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Lingüística y Literatura

versión impresa ISSN 0120-5587versión On-line ISSN 2422-3174

Linguist.lit.  no.84 Medellìn jul./dic. 2023  Epub 30-Nov-2023

https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n84a07 

Estudos linguísticos

AS REALIZAÇÕES MORFOLÓGICAS DE PERFECT ASSOCIADO AO FUTURO NO PORTUGUÊS DO BRASIL*

MORPHOLOGICAL REALIZATIONS OF PERFECT ASSOCIATED WITH THE FUTURE IN BRAZILIAN PORTUGUESE

Bruno de Souza Medeiros1 

Larissa da Silva Pessôa2 

Adriana Leitão Martins3 

Jean Carlos da Silva Gomes4 

1Universidade Federal de Río de Janeiro (Brasil), email: brunomedeiros@letras.ufrj.br

2Universidade Federal de Río de Janeiro (Brasil), email: larissapessoa@letras.ufrj.br

3Universidade Federal de Río de Janeiro (Brasil), email: adrianaleitao@letras.ufrj.br

4Universidade Federal de Río de Janeiro (Brasil), email: gomes.jean@letras.ufrj.br


Resumo:

Neste estudo, investiga-se as realizações morfológicas de perfect universal (PU) e existencial (PE) associados ao tempo futuro no português do Brasil. Para tanto, analisa-se dados de fala espontânea e aplica-se um teste linguístico de preenchimento de lacunas. Os resultados revelaram que PU é realizado pelo verbo estar no futuro + gerúndio do verbo principal e presente simples e PE é realizado pelos verbos ter ou haver no futuro + particípio do verbo principal, pretérito perfeito e estar no futuro + predicativo do sujeito. Discute-se que os resultados corroboram a proposta de dissociação de PE e PE na representação sintática.

Palavras-chave: aspecto perfect; perfect universal e existencial; tempo futuro; realizações morfológicas; português do Brasil

Abstract:

In this study, we investigated the morphological realizations of universal (UP) and existential perfect (EP) associated with the future tense in Brazilian Portuguese. We analyzed spontaneous speech data and applied a cloze linguistic test. The results revealed that UP is realized by estar («to be») in the future + gerund and simple present and EP is realized by ter («to have») or haver («there to be») in the future + past participle, simple past and estar («to be») in the future + predicative. We discussed the results supporting the proposal of dissociation of UP and EP in the syntactic representation.

Keywords: perfect aspect; universal and existential perfect; future tense; morphological realizations; Brazilian Portuguese

1. Introdução

A categoria linguística de aspecto é definida como as diferentes maneiras de se visualizar a constituição temporal interna de uma situação. O aspecto perfect1, objeto linguístico sobre o qual recai a investigação deste estudo, de acordo com Pancheva (2003), refere-se ao intervalo de tempo conhecido como Perfect Time Span (PTS), - em português, «intervalo de tempo de perfect» - que inclui o momento do evento e se estende até o momento de referência, sendo o primeiro anterior ao segundo. Entende-se, portanto, que o perfect relaciona uma situação a dois pontos na linha do tempo.

De acordo com McCawley (1981), esse aspecto pode ser dividido em dois tipos: universal e existencial. O perfect universal (PU) refere-se a uma situação que se inicia em um ponto no tempo e continua até outro, sendo o primeiro anterior ao segundo. Já o perfect existencial (PE) refere-se a uma situação que se inicia e termina em um ponto no tempo anterior a outro, sendo o resultado ou efeito do evento naquele ponto percebido neste.

Segundo Comrie (1976), o aspecto perfect pode se combinar aos tempos passado, presente e futuro. Com relação ao português do Brasil (doravante apenas português) 2, muitos estudiosos buscaram verificar as realizações linguísticas desse aspecto quando combinado ao tempo presente (Molsing, 2007; Azevedo, 2014; Novaes; Nespoli, 2014; Lopes, 2016; Jesus, Matos, Martins & Nespoli 2017; Nespoli, 2018; Nespoli y Martins, 2018; Gomes, 2019) e ao tempo passado (Sant’Anna, 2019, 2021). No entanto, a combinação desse aspecto com os demais tempos parece não ter ganhado o devido destaque nas pesquisas linguísticas até então realizadas.

Diante disso, o objetivo deste trabalho é contribuir com a caracterização do aspecto perfect na gramática mental. Mais especificamente, pretende-se investigar as morfologias que podem veicular PU e PE quando associados ao tempo futuro no português. Para tanto, analisa-se dados provenientes da análise do corpus Norma Linguística Urbana Culta (NURC)3, do corpus do grupo de pesquisa Biologia da Linguagem (BioLing) e de um teste linguístico. As hipóteses elaboradas para este estudo são as seguintes: (i) no português, o PU, quando associado ao futuro, é expresso exclusivamente pelo verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo estar + gerúndio do verbo principal (como no exemplo «Quando você chegar, eu terei estado estudando por meia hora») e (ii) no português, o PE, quando associado ao futuro, é veiculado exclusivamente pelo pretérito perfeito (como no exemplo «Quando você chegar, eu já saí») ou por meio do verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal (como no exemplo «Quando você chegar, eu já terei saído»).

Este artigo está organizado da seguinte maneira: na primeira seção, discorre-se sobre o aspecto perfect, apresentando definições e sua classificação em tipos; na segunda, descreve-se algumas realizações de perfect associado ao futuro; na terceira, apresenta-se a metodologia utilizada; na quarta, expõe-se os resultados obtidos na pesquisa; na quinta, analisa-se os resultados; e, por fim, na última seção, apresenta-se as considerações finais.

2. O aspecto perfect: definições e tipos

Segundo Comrie (1976), uma das manifestações linguísticas do valor aspectual de uma sentença é aquela percebida pelos elementos gramaticais contidos nela, como, por exemplo, a morfologia verbal. A esse valor atribui-se o termo aspecto gramatical. O perfect é considerado um aspecto gramatical por ser morfologicamente realizado em determinadas línguas, como no inglês. Para Comrie (1976), tal aspecto pode ser descrito como a relevância atual contínua no presente de uma situação passada4. Os exemplos em (1) e em (2), extraídos do autor (p. 52), tratam-se, respectivamente, de uma sentença que veicula tal aspecto e outra em que ele não é veiculado.

(1) I have lost my penknife. «Eu perdi meu canivete.»

(2) I lost my penknife. «Eu perdi meu canivete.»

Nesse caso, para o autor, a sentença em (1) veicula o perfect, pois o estado proveniente do evento de «perder o canivete» se estende até o presente, tendo como uma de suas possíveis interpretações a de que o canivete ainda se mantém perdido. Por outro lado, a sentença em (2) não veicula esse aspecto, de modo que a implicação de relação do evento passado com o presente não é expressa nela.

Assim, a Figura 1 abaixo apresenta um esquema com o intervalo chamado de Perfect Time Span (PTS), proposto por Pancheva (2003), que explica a associação do perfect ao tempo presente. Neste esquema, segundo Nespoli e Martins (2018), é possível depreender que o momento do evento (E) é anterior ao momento de fala (F) e ao momento de referência (R). A letra E indica o início do evento ou o evento como um todo e, desse modo, encontra-se na fronteira à esquerda do PTS, ao passo que R e F coincidem temporalmente e encontram-se na fronteira à direita do PTS, indicando a permanência ou os efeitos do evento no presente.

Figura 1 Representação do intervalo PTS no presente 

Além de Comrie (1976), outros autores, como McCawley (1981) e Iatridou, Anagnostopoulou e Izvorski (2003), buscaram definir o perfect, associando-o ao tempo presente, como um aspecto que indica uma situação que se iniciou ou ocorreu no passado e persiste ou tem seus efeitos percebidos no presente.

Dentre as propostas de classificação para o aspecto perfect, neste trabalho, adota-se aquela em que esse é dividido em dois tipos, universal (PU) e existencial (PE), como verificado em estudos como os de McCawley (1981) e Iatridou, Anagnostopoulou e Izvorski (2003). De acordo com esses autores, o PU refere-se a uma situação que se iniciou no passado e persiste até o presente, enquanto que o PE refere-se a uma situação que se iniciou e terminou no passado, mas que ainda apresenta efeitos no presente, como se pode depreender, respectivamente, nos seguintes exemplos:

(3) I have been sick since 1990. «Tenho estado doente desde 1990.»

(4) I have lost my glasses. «Perdi meus óculos.»

Assim, no exemplo em (3), entende-se que o evento de ficar doente começa em 1990 e permanece até o momento presente, o que o configura como um exemplo de PU. Já no exemplo em (4), entende-se que os óculos foram perdidos em algum momento no passado, de modo que a ação já está finalizada, mas possui relevância no momento presente, o que exemplifica um caso de PE.

Destaca-se que as definições de perfect, bem como de seus tipos, não se mostram totalmente adequadas para o estudo desse aspecto. As descrições apresentadas por Comrie (1976), McCawley (1981) e Iatridou, Anagnostopoulou e Izvorski (2003) são capazes de fornecer uma explicação do perfect apenas quando está associado ao tempo presente, excluindo sua possibilidade de combinação com o passado e o futuro. Tal proposição pode até ser considerada, de alguma maneira, incoerente, uma vez que Comrie (1976) já indicava que a associação com o presente não era a única possível, apresentando exemplos de sua associação aos tempos passado e futuro, como, respectivamente, ilustrado em (5) e (6), extraídos do autor (p. 53).

(5) I had eaten the fish. «Eu tinha comido o peixe.»

(6) I will have eaten the fish. «Eu terei comido o peixe.»

Como se pode ver, esses exemplos não retratam situações que relacionam o tempo passado com o tempo presente e, ainda assim, veiculam o aspecto perfect. No exemplo em (5), a sentença em questão expressa uma relação entre duas situações passadas, sendo uma anterior a outra, tratando-se da combinação do perfect com o tempo passado. No exemplo em (6), por sua vez, a sentença em questão expressa uma relação entre dois eventos no futuro, sendo um anterior ao outro, revelando a associação do perfect com o tempo futuro.

Pancheva (2003), ao explicar o perfect a partir da definição de intervalo PTS, anteriormente já referida, expõe que tal intervalo inclui o momento do evento (E) e se estende até o momento de referência (R), sendo o primeiro anterior ao segundo. Logo, acredita-se que a descrição de Pancheva (2003), diferentemente das apresentadas por Comrie (1976), McCawley (1981) e Iatridou, Anagnostopoulou e Izvorski (2003), parece mais adequada aos objetivos deste trabalho, uma vez que abarca a combinação do perfect não só com o presente, mas também com o passado e o futuro, sendo a associação com este tempo o foco desta pesquisa.

Na Figura 2, a seguir, apresenta-se um esquema que ilustra a associação do aspecto perfect com o tempo futuro, inspirados na proposta de Nespoli e Martins (2018). Nesse caso, o momento de referência (R) e o momento do evento (E) encontram-se após o momento da fala (F), já que R e E estão no tempo futuro, sendo E anterior a R. Como dito anteriormente, E indica o início do evento ou o evento como um todo e, desse modo, encontra-se na fronteira à esquerda do PTS, ao passo que R encontra-se na fronteira à direita do PTS, indicando a permanência ou os efeitos do evento posteriormente.

Figura 2 Representação do intervalo PTS quando associado ao futuro 

Neste artigo, defende-se que é necessária a formulação de uma definição de perfect que abarque a associação dos seus dois tipos (universal e existencial) aos três tempos. Dessa forma, entende-se que o PU deva ser descrito como o aspecto que retrata uma situação que se inicia em um ponto no tempo e continua até outro, sendo o primeiro anterior ao segundo, e o PE como o aspecto que retrata uma situação que se inicia e termina em um ponto no tempo anterior a outro, sendo o resultado ou efeito do evento naquele ponto percebido neste. Acredita-se que essas definições são capazes de explicar tanto os exemplos em (1), em (3) e em (4), em que há associação com o tempo presente, quanto os exemplos em (5) e em (6), em que há associação, respectivamente, com os tempos passado e futuro. Tendo em vista que, neste trabalho, se busca verificar como PU e PE associados ao futuro podem ser realizados morfologicamente no português, leva-se em consideração as definições para esses aspectos apresentadas neste parágrafo.

Alexiadou, Rathert e von Stechow (2003) apresentam uma abordagem para explicar a diferença entre as leituras existencial e universal do ponto de vista sintático. A partir de dados do inglês da morfologia de present perfect (formada por have («ter») conjugado no presente + particípio do verbo principal), as autoras propõem que há um sintagma na camada flexional da árvore sintática referente ao perfect, o PerfP, que possui um traço [perfect]. As leituras de PE e PU teriam origem na diferença de valoração de sua combinação com o traço [delimitado] no sintagma referente ao aspecto gramatical perfectivo/imperfectivo da sentença, o AspP. Assim, a combinação da ativação do traço [perfect] com a valoração negativa do traço de delimitação, [- delimitado], faria emergir a leitura de PU, enquanto sua combinação com a valoração positiva de delimitação, [+ delimitado], faria emergir a leitura de PE.5

Nespoli (2018), por sua vez, propõe, a partir da análise de dados de línguas românicas, que haveria dois sintagmas para o perfect, um relacionado ao PU, UPerfP, e outro ao PE, EPerfP. Esses são caracterizados, respectivamente, pelos traços sintáticos de [continuidade] e [resultatividade]. Nessa proposta, o traço [resultativo] está valorado positivamente na veiculação tanto de PU quanto de PE. A diferença na expressão desses dois tipos de perfect está na valoração do traço de continuidade, já que, apenas para a expressão de PU, há também a valoração positiva do traço [continuidade].

Visto que o objetivo geral deste estudo é contribuir para a caracterização do perfect na gramática mental, assume-se, como ponto de partida, a proposta representacional para esse aspecto defendida por Nespoli (2018) e resumida no parágrafo anterior.

3. O aspecto perfect associado ao futuro

De acordo com Sigurðsson (2004), todos os traços linguísticos estão disponíveis aos falantes na Gramática Universal (GU) independentemente da língua que falem, havendo diferença entre as línguas apenas no que tange à realização morfofonológica de tais traços. Tal conceito é conhecido na literatura como Hipótese da Uniformidade.

Desse modo, entende-se que os traços formais são universais e estão disponíveis em todas as línguas, de modo que a diferença entre elas reside apenas na forma como são realizados linguisticamente. Posto isso, leva-se em consideração que o aspecto perfect está presente em todas as línguas naturais, diferindo-se apenas em suas realizações (Nespoli, 2018).

Como exposto na introdução, os estudos sobre as realizações morfológicas do perfect, no português, em sua maioria, foram realizados com objetivo de investigar a combinação desse aspecto com o tempo presente (Molsing, 2007; Azevedo, 2014; Novaes; Nespoli, 2014; Lopes, 2016; Jesus, Matos, Martins & Nespoli, 2017; Nespoli y Martins 2018 Nespoli, 2018; Gomes; Semêdo, 2019). Com relação às realizações morfológicas de sua combinação com o tempo futuro, não foram encontrados trabalhos que contenham análises de dados linguísticos do português, ainda que alguns autores tenham especulado acerca de suas possíveis realizações. Assim, ao longo desta seção, descreve-se o modo como foram elaboradas as hipóteses deste estudo, levando em consideração as poucas informações existentes na literatura acerca de tal combinação temporo-aspectual.

Com relação ao PU, destaca-se que, além de não se ter encontrado trabalhos com análises de dados de sua realização morfológica quando combinado com o futuro no português, tampouco foram encontradas especulações em outros estudos sobre o perfect que pudessem exemplificar tal combinação nessa língua. Diante disso, buscou-se descrições de realizações de PU associado ao futuro na língua inglesa6 a fim de verificar se essas poderiam fornecer pistas sobre o modo como tal aspecto seria realizado no português.

Dalrymple (1988), Yule (1998) e Richards e Sandy (2015) destacam que o PU associado ao futuro na língua inglesa pode ser expresso por meio da morfologia will + have («ter») + been (particípio do verbo «estar») + gerúndio do verbo principal, como observado nos exemplos em (7), em (8) e em (9), extraídos, respectivamente, de Dalrymple (1988, p. 70), Yule (1998, p. 54) e Richards e Sandy (2015, p. 97).

(7) John will have been frosting a cake. «João vai ter estado confeitando o bolo.»

(8) You will have been saving in vain. «Você vai ter estado economizando em vão.»

(9) By next week, I will have been working on that project for 6 months. «Na próxima semana, eu vou ter estado trabalhando naquele projeto há seis meses.»

Diante desses dados, questionou-se se essa mesma estrutura poderia ser utilizada no português para a realização do PU associado ao futuro, como no exemplo, elaborado pelos autores deste artigo, em (10), em que se pode encontrar o verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo estar + gerúndio do verbo principal. Desse modo, baseados na morfologia verificada em dados do inglês, descrita por Dalrymple (1988), Yule (1998) e Richards e Sandy (2015), elaborou-se a hipótese (i) de que, no português, o PU, quando associado ao futuro, seria expresso exclusivamente por meio dessa morfologia.

(10) Felipe vai ter estado escrevendo um livro.

Com relação ao PE associado ao futuro no português, foi encontrado, em Comrie (1976) e em Nespoli (2018), uma especulação acerca de duas morfologias que poderiam estar a serviço dessa combinação. Tais estudos não tinham por objetivo verificar as realizações morfológicas do perfect associado ao futuro nessa língua, de modo que as morfologias citadas não são provenientes de uma coleta e posterior análise de dados linguísticos do português. Ainda assim, os autores apresentam alguns exemplos de realizações morfológicas de PE associado ao futuro nessa língua, sendo uma delas, descrita por Comrie (1985, p. 64), a de pretérito perfeito, como ilustrado em (11), e a outra, descrita por Nespoli (2018, p. 52), a que contém o verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal, como visto em (12).

(11) Quando você chegar, eu já saí.

(12) João terá comido o peixe.

Desse modo, baseados nas especulações de Comrie (1985) e Nespoli (2018), elaborou-se a hipótese (ii) de que, no português, o PE, quando associado ao futuro, é veiculado exclusivamente por meio das morfologias de pretérito perfeito e ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal. Buscou-se colocar tal hipótese à prova a fim de verificar se, de fato, essas morfologias são utilizadas na expressão do PE associado ao futuro no português e se essas duas seriam as únicas utilizadas para sua veiculação.

É importante reiterar que as descrições de Dalrymple (1988), Yule (1998) e Richards e Sandy (2015) de realização de PU associado ao futuro, que motivaram a elaboração da hipótese (i) deste artigo, são da língua inglesa e não do português. Além disso, vale ratificar que os estudos de Comrie (1976) e Nespoli (2018), que exemplificam a realização de PE associado ao futuro no português e motivaram a elaboração da hipótese (ii) deste estudo, eram baseados apenas em especulações acerca das realizações morfológicas do perfect associado ao futuro nessa língua. Assim, este trabalho visa preencher tal lacuna existente na literatura, uma vez que se pretende, por meio dele, apresentar um inventário das possíveis realizações morfológicas do perfect associado ao futuro no português com base na coleta e análise de dados, como é descrito na seção a seguir.

4. Metodologia

A metodologia elaborada para este estudo está dividida em duas etapas. A primeira delas caracteriza-se pela realização da análise de fala espontânea coletada por meio de dois corpora do português, nos quais se buscou encontrar realizações morfológicas de PU e de PE associados ao futuro nessa língua, e a segunda trata-se da aplicação de um teste de preenchimento de lacunas, como será descrito ao longo desta seção.

O primeiro corpus verificado foi o Norma Linguística Urbana Culta (NURC), disponível online no link http://www.nurcrj.letras.ufrj.br/. Os dados desse corpus foram coletados entre as décadas de 1970 e 1990. As amostras dizem respeito a diálogos, realizados entre um investigador e um participante, sendo ambos falantes nativos do português, residentes da cidade do Rio de Janeiro, com idades entre 30 e 50 anos e grau de escolaridade correspondente a ensino superior completo ou incompleto. Foram analisadas 110 horas de transcrições de fala espontânea.

Como será descrito na seção de resultados, durante a análise de dados desse corpus, foram encontradas apenas ocorrências de PE associado ao futuro, mas não de PU. Diante disso, decidiu-se ampliar a análise de fala espontânea recorrendo a dados de outro corpus da língua portuguesa.

Assim, o segundo material analisado foi o corpus em desenvolvimento do grupo de pesquisa Biologia da Linguagem (BioLing) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que contém dados coletados entre os anos de 2016 e 2019. Nesse caso, as amostras do corpus diziam respeito a diálogos (entre duas pessoas) e conversas (entre mais de duas pessoas) de falantes nativos português, naturais do estado do Rio de Janeiro, com idades entre 18 e 50 anos e grau de escolaridade correspondente a ensino superior completo ou incompleto. Neste corpus, foram analisadas 5 horas de transcrição de fala espontânea, total de horas disponíveis no material.

Como será descrito na seção de resultados, durante a análise do corpus BioLing, foi encontrada apenas uma ocorrência de PU associado ao futuro, mas não de PE. Diante disso, foi elaborado um teste linguístico para verificar as possíveis realizações de PU e de PE associados ao futuro por outras morfologias que poderiam não ter sido encontradas nos corpora.

Assim, a segunda etapa da metodologia desta pesquisa consistiu na elaboração e aplicação de um teste de preenchimento de lacunas que visava eliciar a produção de perfect associado ao futuro7. Nesse teste, os sujeitos deveriam conjugar o verbo contido nos parênteses após as lacunas levando em consideração as informações temporo-aspectuais expressas por outros elementos presentes nas sentenças que continham as lacunas.

O teste estava formado por um total de 24 lacunas, sendo 8 alvo e 16 distratoras, divididas em quatro diálogos. Esses diálogos retratavam situações cotidianas e continham apenas dois personagens. Em cada diálogo, havia duas lacunas alvo e quatro distratoras. Dentre as lacunas alvo, uma veiculava PU e outra PE.

As sentenças que tinham por objetivo fazer com que o participante produzisse PU associado ao futuro eram iniciadas por uma oração subordinada adverbial temporal introduzida por quando, seguida de um sujeito, uma lacuna na posição do verbo e a expressão há x tempo, como visto no exemplo em (13) a seguir.

(13) Nunca levei jeito para esportes em grupo, mas sempre gostei de lutas. Tô adorando karatê e me prometi não parar. Quando a Malu voltar, eu _________________ (PRATICAR) há 5 meses.8

Acredita-se que a oração subordinada adverbial temporal introduzida por quando destaca a fronteira à direita do intervalo PTS, ao passo que a expressão adverbial há x tempo, a fronteira à esquerda desse intervalo. Além disso, há x tempo contribui com a leitura de PU, como descrito por Nespoli (2018) ao fazer um inventário sobre expressões adverbiais que veiculam perfect no português9.

As sentenças que tinham por objetivo fazer com que o participante produzisse PE associado ao futuro eram iniciadas por uma oração subordinada adverbial temporal introduzida por quando ou até, seguida de um sujeito, do advérbio e uma lacuna na posição do verbo, como visto no exemplo em (14).

(14) Não é tão simples assim, agora ela tá indo visitar o sobrinho dela, o Rogério. Não posso demorar muito, senão até eu chegar lá ela ____________________ (SAIR) de casa.

Como já exposto, a oração subordinada adverbial temporal introduzida por quando ou até destaca a fronteira à direita do intervalo PTS. O advérbio , por sua vez, em consonância com Nespoli (2018), foi utilizado nessas sentenças alvo com o objetivo de reforçar a relevância de um evento anterior na linha do tempo em um ponto posterior dessa linha, contribuindo com a leitura de PE.

No que diz respeito às sentenças distratoras, todas as lacunas deveriam ser preenchidas levando em consideração informações de tempo e aspecto. Nesse caso, para garantir que fossem usadas as formas verbais esperadas, foi acrescido à sentença um adjunto que garantisse a leitura de uma determinada noção temporo-aspectual. Esse adjunto poderia se caracterizar pela presença de um advérbio, como agora, ou uma expressão adverbial lexicalmente composta, como mês passado.

Das 16 sentenças distratoras, seis veiculavam tempo presente e aspecto imperfectivo, como verificado no exemplo em (15), cinco veiculavam tempo passado e aspecto perfectivo, por exemplo em (16), e cinco veiculavam tempo passado e aspecto imperfectivo, como observado em (17).

(15) Vou aproveitar esse tempo que ela está fora e fazer coisas que sempre quis e nunca tive tempo por ter que cuidar dos filhos. Agora, por exemplo, eu ____________________ (LUTAR) karatê.

(16) Eu queria saber quando eu vou conseguir meu primeiro emprego. Mês passado ____________________ (MANDAR) tantos currículos e ninguém me respondeu.

(17) Antigamente, ela não ____________________ (GOSTAR) muito e vira e mexe dava briga.

O teste foi aplicado a 70 informantes. O perfil dos sujeitos que participaram dessa etapa da pesquisa assemelhava-se ao dos informantes que tiveram a fala espontânea incluída na análise dos corpora, uma vez que são todos do estado do Rio de Janeiro com faixa etária entre 18 e 50 anos e com ensino superior completo ou incompleto. O teste foi realizado pelos participantes por meio de um formulário preenchido na plataforma Google Forms enviado pela internet.

A seguir, no Quadro 1, apresenta-se o resumo do perfil dos falantes incluídos na análise de corpora e dos participantes do teste linguístico.

Quadro 1 Síntese do perfil dos participantes 

Metodologia Análise de corpus - NURC Análise de corpus - BioLing Teste linguístico
Região Cidade do Rio de Janeiro Estado do Rio de Janeiro Estado do Rio de Janeiro
Idade 30-50 anos 18-50 anos 18-50 anos
Escolaridade Ensino superior completo ou incompleto Ensino superior completo ou incompleto Ensino superior completo ou incompleto

5. Resultados

Nesta seção, foram apresentados, primeiramente, os resultados obtidos por meio da análise de fala espontânea extraída do corpus NURC, em seguida, os resultados obtidos por meio da análise de fala espontânea do corpus BioLing e, por fim, discorreu-se sobre os resultados da aplicação do teste de preenchimento de lacunas.

Na análise de dados do corpus NURC, não foi encontrada nenhuma ocorrência de PU associado ao futuro. Com relação ao PE, foram encontradas duas ocorrências com a morfologia de verbo ter conjugado no futuro (no subjuntivo e indicativo) + particípio do verbo principal, como visto em (18) e em (19), e duas ocorrências com a morfologia de verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito constituído por um adjetivo com a mesma forma de particípio do verbo10, como nos dados em (20) e em (21).

(18) E a pessoa só pode é... refazer um novo empréstimo depois que tiver terminado aquele (...)?

(19) O que não é tão bom é para se chegar ali. A condução não é boa. (...) De modo que isso teremos resolvido em breve (...).

(20) Vai mais, meio, meio minuto (a ligação) estará terminada.

(21) Dentro em breve, isso estará superado.

Tais dados foram considerados como veiculadores de PE associado ao futuro, pois, neles, é possível observar a relação entre os dois pontos do tempo marcados no intervalo PTS. Na Figura 3, a seguir, ilustra-se tal relação a partir do dado presente no exemplo em (18).

Figura 3 Representação do intervalo PTS do exemplo em (18) 

Nesse caso, é possível perceber que o evento de «término do empréstimo» ocorre depois do momento da fala, ou seja, no futuro. Esse evento finaliza-se antes do momento de referência, caracterizado pelo momento posterior ao «término do empréstimo», e, ainda assim, apresenta efeitos que são percebidos neste ponto. A relevância de E (momento do evento), localizado na fronteira à esquerda do intervalo PTS, no ponto R (momento de referência), localizado na fronteira à direita desse intervalo, ambos posteriores ao ponto F (momento da fala), garante a interpretação de que o valor temporo-aspectual veiculado nessa sentença é o de PE associado ao futuro. Tal modelo pode ser aplicado também para explicar os outros exemplos encontrados nesse corpus.

Com relação aos resultados obtidos por meio da análise do corpus BioLing, vale destacar que não foram encontradas ocorrências de PE associado ao futuro. Já com relação às realizações de PU, foi encontrada apenas uma ocorrência com o uso da morfologia de presente simples, como verificado no exemplo em (22).

(22) Gente, até eu acabar de fazer isso, eu já estou em Campo Grande.

Tal dado foi considerado como veiculador de PU associado ao futuro, pois, nele, é possível observar a relação entre os dois pontos do tempo marcados no intervalo PTS. Na Figura 4, a seguir, ilustra-se tal relação a partir do dado presente no exemplo em (22).

Figura 4 Representação do intervalo PTS do exemplo em (22) 

Nesse caso, é possível perceber que a situação de «estar em Campo Grande» se dá depois do ponto F, ou seja, no futuro. Essa situação se inicia em um ponto na linha do tempo e persiste até outro, o ponto R, caracterizado pelo evento de «acabar de fazer isso». A persistência da situação descrita no ponto E, localizado na fronteira à esquerda do intervalo PTS, no ponto R, localizado na fronteira à direita desse intervalo, ambos posteriores ao ponto F, garante a interpretação de que o valor temporo-aspectual veiculado nessa sentença é o de PU associado ao futuro.

Com relação aos resultados obtidos no teste de preenchimento de lacunas, reitera-se que foram fornecidas respostas por 70 informantes. Como dito na seção anterior, o teste continha duas lacunas alvo (uma de PU e outra de PE) para cada um dos quatro diálogos elaborados, totalizando quatro lacunas para PU e quatro para PE por informante. Assim, foram obtidas 280 respostas para cada um dos tipos de condições alvo.

Com relação às 280 respostas fornecidas nas lacunas de PU, apenas 260 delas foram levadas em consideração11. Em 155 lacunas, foi usada a morfologia de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal, como em (23); em 23 lacunas, a morfologia de presente simples, como em (24); em 38 lacunas, a morfologia de verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal, como em (25); em 29 lacunas, a morfologia de pretérito perfeito, como em (26); em 13 lacunas, a morfologia de futuro do presente, como em (27); e, em 2 lacunas, a morfologia de verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo começar + preposição a + infinitivo do verbo principal, como em (28).

(23) Quando a Malu voltar, estarei / vou estar praticando há 5 meses.

(24) Quando a Malu voltar, eu pratico há 5 meses.

(25) Quando a Malu voltar, eu terei / vou ter praticado há 5 meses.

(26) Quando o Renan chegar na Ilha, ela esperou há três horas.

(27) Quando a Malu voltar, eu praticarei há 5 meses.

(28) Quando a Malu voltar, eu terei / vou ter começado a praticar há 5 meses.

A seguir, no Quadro 2, apresenta-se o resumo da quantidade de ocorrência de cada morfologia verbal encontrada nas lacunas de PU.

Quadro 2 Síntese da quantidade de ocorrência de cada morfologia verbal encontrada nas lacunas de PU 

Morfologia verbal Nº de ocorrências
Estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal 155
Ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal 38
Pretérito perfeito 29
Presente simples 23
Futuro do presente 13
Ter conjugado no futuro + particípio do verbo começar + preposição a + infinitivo do verbo principal 2
Total 260

Vale destacar ainda que, em 38 lacunas, os participantes inseriram o advérbio antes da perífrase formada pelo verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal, como em (29). Em 11 lacunas, tal advérbio foi inserido antes da perífrase formada pelo verbo ter conjugado no futuro + particípio, como em (30). Em 1 lacuna, esse advérbio foi inserido antes da morfologia de presente simples, como em (31). E, em 4 lacunas, foi inserido antes da morfologia de pretérito perfeito, como em (32).

(29) Quando a Malu voltar, eu já estarei / vou estar praticando há 5 meses.

(30) Quando a Malu voltar, eu já terei / vou ter praticado há 5 meses.

(31) Quando a Malu voltar, eu já pratico há 5 meses.

(32) Quando o Renan chegar na Ilha, ela já esperou há três horas.

A partir dos dados obtidos e exemplificados acima, empreendeu-se uma análise para avaliar se as sentenças produzidas efetivamente veiculavam PU associado ao futuro. Com isso, concluiu-se que somente as sentenças ilustradas em (23), em (24), em (29) e em (31) veiculam tal aspecto, como demonstrado na representação do intervalo PTS contido na Figura 5 a seguir. Para tanto, tomou -se como base a lacuna «Quando a Malu voltar, eu _______ (PRATICAR) há 5 meses».

Figura 5 Representação do intervalo PTS dos exemplos em (23), (24), (29) e (31) 

Somente as sentenças em (23), em (24), em (29) e em (31) possibilitam a interpretação em que o evento de «praticar karatê» se inicia em um ponto no tempo, o ponto E, localizado na fronteira à esquerda do intervalo PTS, e persiste até outro, o ponto R, localizado na fronteira à direita desse intervalo, sendo ambos posteriores ao ponto F. Dessa forma, considera-se que as morfologias de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal e de presente simples veiculam PU associado ao futuro.

Por outro lado, as sentenças exemplificadas em (25), em (26), em (30) e em (32), com as morfologias de verbo ter no futuro + particípio do verbo principal e pretérito perfeito, foram interpretadas como veiculadoras de PE associado ao futuro, como é demonstrado na representação do intervalo PTS presente na Figura 6 a seguir.

Figura 6 Representação do intervalo PTS dos exemplos em (25), (26), (30) e (32) 

Nessa direção, entende-se que o evento de «praticar karatê» no ponto E, situado na fronteira à esquerda do intervalo PTS, inicia-se e termina antes do evento da «volta da Malu» no ponto R, situado na fronteira à direita desse intervalo. Tal possibilidade de interpretação do evento como algo que teve início e fim na fronteira à esquerda parece ter sido disparada pelo uso da expressão adverbial há 5 meses, no caso dessa sentença, e há três horas, utilizadas nas demais sentenças alvo de PU. Embora tais expressões adverbiais tenham sido utilizadas na concepção do teste com a intenção de se marcar a fronteira à esquerda em que o evento teve início, elas parecem ter sido entendidas como o ponto específico em que o evento se deu. Nesse caso, como o evento ocorrido no ponto E apresenta relevância no ponto R e ambos são posteriores ao ponto F, há veiculação de PE associado ao futuro nessas sentenças. Além disso, a inserção do em algumas dessas sentenças parece corroborar a afirmação de que é esse o valor temporo-aspectual expresso nessas ocorrências12. Em razão disso, tais dados foram reagrupados como veiculadores de PE, como será apresentado posteriormente nesta seção.

As sentenças presentes nos exemplos em (27) e em (28), por outro lado, não veiculam o aspecto perfect, seja PU ou PE. A forma de futuro do presente conduz à interpretação de que o evento de «praticar karatê» ocorrerá somente após a «volta da Malu», de modo que o há 5 meses não estaria sendo interpretado como uma expressão adverbial de passado e, por isso, não haveria o estabelecimento de um intervalo de perfect. Tal interpretação ancora-se no fato de a grafia há 5 meses não ser necessariamente associada ao passado para algumas pessoas, ainda que mais escolarizadas, como os participantes desta pesquisa, que podem ter assumido que a sentença significaria «Quando a Malu voltar, eu praticarei dali a 5 meses». Já a morfologia de ter conjugado no futuro + particípio do verbo começar + preposição a + infinitivo do verbo principal enfoca apenas o início do evento, não garantindo sua continuidade ou sua relevância no ponto R.

Com relação ao total de respostas obtidas para PE, das 280 presentes nas lacunas do teste que verificavam tal noção aspectual, apenas 266 dados foram levados em consideração para esta análise13. Em 130 lacunas, foi utilizada a morfologia de pretérito perfeito, como em (33); em 115 lacunas, a morfologia de ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal, como em (34); em 12 lacunas, a morfologia de verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito, como em (35); em 2 lacunas, a morfologia de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal, como em (36); em 1 lacuna, a morfologia de presente simples, como em (37); e, em 6 lacunas, a morfologia de futuro do presente, como em (38).

(33) [...] quando eu chegar, ele já ficou umas cinco horas sozinho.

(34) [...] quando eu chegar, ele já terá / vai ter / haverá ficado umas 5 horas sozinho.

(35) Em 2042, eu já estarei / vou estar formada na faculdade há 20 anos.

(36) Quando a gente chegar, a bebida já estará / vai estar acabando.

(37) [...] quando eu chegar, ele já fica umas 5 horas sozinho.

(38) [...] quando eu chegar, ele já ficará umas 5 horas sozinho.

A seguir, no Quadro 3, apresenta-se o resumo da quantidade de ocorrência de cada morfologia verbal encontrada nas lacunas de PE.

Quadro 3 Síntese da quantidade de ocorrência de cada morfologia verbal encontrada nas lacunas de PE 

Morfologia verbal Nº de ocorrências
Pretérito perfeito 130
Ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal 115
Estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito 12
Futuro do presente 6
Estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal 2
Presente simples 1
Total 266

A partir dos dados obtidos e exemplificados acima, empreendeu-se uma análise para avaliar se as sentenças produzidas efetivamente veiculavam PE associado ao futuro. Com isso, concluiu-se que somente as sentenças ilustradas em (33), em (34) e em (35) veiculam tal aspecto, como demonstrado na representação do intervalo PTS contido na Figura 7 a seguir. Para tanto, tomou-se como base a lacuna «Quando a gente chegar, a bebida já _______ (ACABAR)».

Figura 7 Representação do intervalo PTS do exemplo em (33) e em (34) (extensível ao exemplo em (35)) 

Nessa direção, nas formas utilizadas em (33) e em (34), é possível interpretar que a situação de «ficar sozinho» no ponto E, situado à esquerda do intervalo PTS, ocorre em um ponto no tempo anterior ao da «minha chegada», no ponto R, situado à direita desse intervalo. Analogamente, na forma usada em (35), o evento de «formar-se na faculdade» no ponto E, situado à esquerda do intervalo PTS, ocorre em um ponto no tempo anterior a «2042», no ponto R, situado à direita desse intervalo. Como as situações no ponto E apresentam relevância no ponto R e ambas são posteriores ao ponto F, há a veiculação de PE associado ao futuro. Desse modo, parece que as morfologias de pretérito perfeito, de verbo ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal e de verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito estão a serviço da veiculação dessa combinação temporo-aspectual.

Por outro lado, as sentenças exemplificadas em (36) e em (37), com as morfologias de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal e presente simples, foram interpretadas como veiculadoras de PU associado ao futuro, como é demonstrado na representação do intervalo PTS presente na Figura 8 a seguir.

Figura 8 Representação do intervalo PTS do exemplo em (36) (extensível ao exemplo em (37)) 

As sentenças exemplificadas em (36) e em (37) permitem a interpretação de que as situações, respectivamente, de «acabar a bebida» e «ficar sozinho» no ponto E, situadas à esquerda do intervalo PTS, têm início em um ponto no tempo anterior aos eventos, respectivamente, de «chegada da gente» e «minha chegada», no ponto R, situados à direita desse intervalo. Como as situações do ponto E persistem no ponto R e ambas são posteriores ao ponto F, há a veiculação de PU associado ao futuro.

A sentença presente no exemplo em (38), por outro lado, não veicula o aspecto perfect, seja PU ou PE. A forma de futuro do presente conduz à interpretação de que o evento de «ficar umas 5 horas sozinho» ocorrerá somente após a «chegada da gente», não havendo o estabelecimento de um intervalo de perfect.

A partir das análises empreendidas acima, obteve-se um total de 141 respostas em que se veiculava PU associado ao futuro, independentemente do tipo de perfect que se pretendia eliciar na lacuna alvo. Dentre essas respostas, foram observadas 117 com a morfologia de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal, totalizando 83 % dos dados, e 24 com a morfologia de presente simples, totalizando 17 % dos dados, como ilustrado no Gráfico 1 a seguir.

Gráfico 1 Morfologias veiculadoras de PU associado ao futuro no teste de preenchimento de lacunas 

Com relação ao PE associado ao futuro, obteve-se um total de 324 respostas, independentemente do tipo de perfect que se pretendia eliciar na lacuna alvo. Dentre essas respostas, foram observadas 159 com a morfologia de pretérito perfeito, totalizando 49 % dos dados, 153 com verbo ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal, totalizando 47 % dos dados, e 12 com verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito, totalizando 4 % dos dados, como ilustrado no Gráfico 2 a seguir.

Gráfico 2 Morfologias veiculadoras de PE associado ao futuro no teste de preenchimento de lacunas 

Assim, o resumo das morfologias encontradas tanto na fala espontânea quanto no teste encontra-se apresentado no Quadro 4 a seguir.

Quadro 4 Resumo das morfologias encontradas para realização de PU e PE associados ao futuro nos dados de fala espontânea e do teste de preenchimento de lacunas 

Morfologias de PU Morfologias de PE
Fala espontânea Teste Linguístico Fala espontânea Teste Linguístico
Presente Simples Presente Simples Ter (futuro) + particípio Ter/Haver (futuro) + particípio
Estar (futuro) + gerúndio Estar (futuro) + predicativo do sujeito Estar (futuro) + predicativo do sujeito
Pretérito Perfeito

6. Discussão

De maneira geral, pode-se observar, conforme descrito na seção anterior, que, para a realização de PU, foram encontradas as morfologias de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal e presente simples. Dessa forma, a hipótese (i), que previa que o PU, quando associado ao futuro, seria expresso exclusivamente pelo verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo estar + gerúndio do verbo principal, foi refutada.

Em relação ao PE, foram encontradas três morfologias distintas, sendo elas os verbos ter ou haver conjugados no futuro + particípio do verbo principal, pretérito perfeito e verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito. Posto isso, a hipótese (ii), que previa que o PE, quando associado ao futuro, seria expresso exclusivamente pelo verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal ou pelo pretérito perfeito, foi refutada.

É importante salientar que a refutação das hipóteses se deu de maneira distinta. A primeira hipótese foi refutada porque a morfologia descrita nela não foi encontrada, ao passo que outras duas foram observadas nos dados. A segunda hipótese, por sua vez, foi refutada não pela ausência nos dados das morfologias previstas, mas porque, além dessas, outra foi encontrada.

Ainda que se tenha encontrado diversas morfologias para a realização de PU e PE associados ao futuro, destaca-se que alguns pontos merecem maior atenção. A partir deste momento no texto, procura-se discutir questões relativas à metodologia empregada e aos resultados obtidos neste estudo.

A primeira delas diz respeito às poucas ocorrências de perfect associado ao futuro encontradas nos dados de fala espontânea. Acredita-se que isso pode ter se dado por dois fatores. O primeiro deles é o de que o recorte feito nos corpora pode não ter sido suficiente para encontrar tal combinação. O segundo é o de que, possivelmente, essa não seja uma associação temporo-aspectual tão comum nos temas das conversas presentes nos dados dos corpora, uma vez que grande parte deles se tratava de narrativas passadas ou de relatos de hábitos e crenças que os participantes possuem no presente.

Com relação às morfologias utilizadas no teste de preenchimento de lacunas para realizar a associação do PU ao tempo futuro, chama a atenção o fato de que a morfologia estar no futuro + gerúndio foi usada como resposta em 83 % das lacunas-alvo. Isso parece indicar que a produção prototípica para esse aspecto no português é por meio dessa morfologia.

A outra morfologia utilizada para a expressão de PU associado ao futuro foi o presente simples. Um ponto que se pode destacar acerca dessa forma verbal diz respeito ao fato de, no português, ela ser comumente utilizada para veicular diversas informações temporo-aspectuais, podendo ser interpretada como uma forma multifuncional (Bruchard, 1989; Fatori, 2010). Parece que tal afirmação encontra lugar nos dados obtidos nesta pesquisa.

Outro ponto de igual relevância observado nos dados de PU associado ao futuro diz respeito à inserção do advérbio antes da forma verbal em 39 sentenças em que se veiculava tal aspecto, como em «Quando a Malu voltar, já estarei / vou estar praticando há 5 meses», e «(...), quando eu me formar, eu já procuro emprego há dois anos». Nespoli (2018), a partir de dados de realização do perfect associado ao presente, descreveu o como um advérbio que está a serviço apenas de PE. Assim, seu uso em sentenças veiculadoras de PU não era esperado neste estudo. Acredita-se que a inserção desse advérbio nessas sentenças se deu pela necessidade de alguns informantes de reforçar a relação entre os dois pontos no tempo caracterizadora do intervalo PTS.

Levanta-se, assim, o questionamento acerca do papel do na veiculação do perfect, argumentando que não é possível assegurar que tal advérbio esteja relacionado apenas ao tipo existencial, podendo ser utilizado também na veiculação do tipo universal. Desse modo, tal advérbio teria uma contribuição mais ampla na veiculação de perfect, seja PU ou PE, como observado nos dados desta pesquisa em que se verifica a veiculação desse aspecto associado ao tempo futuro e o emprego do advérbio .

Vale destacar também que a morfologia de verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo estar + gerúndio, que estava prevista como veiculadora de PU associado ao futuro na hipótese (i) deste estudo, não foi encontrada nos dados da análise de fala espontânea nem do teste de preenchimento de lacunas. No entanto, acredita-se que essa morfologia possa estar a serviço da veiculação desse aspecto no português. Sendo assim, considera-se importante ampliar as formas de coleta de dados desse aspecto para averiguar se tal morfologia pode ser realmente utilizada/aceita pelos falantes.

Ademais, ressalta-se a possibilidade de que perífrases progressivas formadas por auxiliares conjugados no futuro, para além do estar encontrado nos dados, possam também veicular PU associado ao futuro, como em frases como «Desde amanhã até o dia 15, vou andar / seguir / continuar trabalhando muito». Desse modo, reitera-se a necessidade de ampliação da metodologia empregada neste trabalho.

Um ponto relevante nos dados diz respeito à grande quantidade de respostas nas lacunas que pretendiam eliciar PU com as morfologias de verbo ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal e de pretérito perfeito, consideradas veiculadoras de PE, como em «Quando a Malu voltar, vou ter praticado / pratiquei há 5 meses». Parece que tais morfologias emergiram a partir de uma interpretação não prevista inicialmente da expressão adverbial há x tempo.

Tal expressão adverbial foi selecionada para a composição de lacunas eliciadoras de PU associado ao futuro com base na proposta de Nespoli (2018), que argumenta que há x tempo colabora na veiculação de PU associado ao presente. Durante a confecção do teste, elencou-se essa expressão adverbial para ser usada nas sentenças alvo de PU, pois, quando combinada com a forma verbal utilizada na composição da hipótese, obteve-se uma sentença como «Quando o Renan chegar na Ilha, ela vai ter estado esperando há três horas», em que se destaca a relação de continuidade do evento iniciado no primeiro ponto do tempo, o ponto E do «início da espera», no segundo, o ponto R da «chegada do Renan». Logo, entende-se inicialmente que essa expressão adverbial poderia também colaborar na veiculação de PU associado ao futuro.

Porém, diferentemente do esperado, observou-se que o uso dessa expressão pode ter também levado a uma interpretação diferente. É possível que alguns participantes tenham interpretado essa expressão apenas como referente a um tempo fechado e específico no passado, contribuindo para a veiculação da ideia de uma situação que se iniciou e terminou nesse ponto do tempo específico e possui relevância em um ponto posterior, o que caracteriza o PE. Essa pode ser, então, uma motivação para o uso das morfologias de ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal e de pretérito perfeito nas lacunas que pretendiam eliciar o PU.

Acredita-se que seja importante, nesse sentido, aprimorar a metodologia experimental. Torna-se necessário, por exemplo, o aperfeiçoamento do teste de preenchimento de lacunas por meio da elaboração de sentenças com outros advérbios e/ou expressões adverbiais veiculadores de PU, como ainda e por x tempo, a fim de evitar uma ambiguidade na leitura aspectual pretendida nessas sentenças. Além disso, considera-se interessante a elaboração de testes em que os participantes possam ser apresentados a mais de uma opção de morfologia e escolher a que considera mais natural.

Em relação ao PE, como visto no início desta seção, foram encontradas três morfologias distintas para sua realização, o que culminou na refutação da segunda hipótese deste estudo. Entretanto, diferentemente do que ocorreu com PU, as duas morfologias previstas na hipótese, de ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal e de pretérito perfeito, foram encontradas durante as análises empreendidas.

Ainda assim, destaca-se que a morfologia de ter no futuro + particípio foi a única prevista na hipótese que foi encontrada nos dados de fala espontânea. Parece que a morfologia de pretérito perfeito não foi encontrada nesses dados devido ao recorte feito e à natureza dos corpora investigados. Um dos motivos que nos faz argumentar a favor dessa ideia é o fato de o pretérito perfeito ter sido utilizado em muitas das respostas fornecidas pelos participantes no teste de preenchimento de lacunas, mais especificamente, em 49 % das sentenças em que houve veiculação de PE, uma porcentagem bastante similar à de ter ou haver no futuro + particípio, que totalizou 47 %. E, como demonstrado pelos resultados do teste, as morfologias previstas na hipótese foram as mais usadas pelos sujeitos, totalizando 96 % das respostas.

Ainda que a hipótese tenha sido formulada apenas levando em consideração o auxiliar ter, observou-se nos dados a utilização também do auxiliar haver. Optou-se, ao longo deste artigo, por não fazer referência às perífrases formadas pelos auxiliares ter e haver conjugados no futuro + particípio do verbo principal como morfologias diferentes, pois, na verdade, ambas apresentam a mesma estrutura morfossintática. Tendo em vista que o teste foi desenvolvido na modalidade escrita, ainda que buscasse simular diálogos na modalidade oral, as poucas respostas com o auxiliar haver parecem ter sido decorrentes de uma tentativa de imprimir um maior grau de formalidade nas respostas dadas, já que essa forma, ainda que não seja comumente usada na fala, na escrita, ainda concorre com ter.

A morfologia não prevista pela hipótese e encontrada nos dados de veiculação de PE associado ao futuro foi a de estar no futuro + predicativo do sujeito. Essa foi encontrada tanto nos dados de fala espontânea quanto no teste de preenchimento de lacunas. Tal ocorrência merece destaque, uma vez que tal morfologia não foi descrita anteriormente na literatura como veiculadora de PE associado ao futuro. Vale ainda destacar que o predicativo do sujeito presente nessa construção era sempre de base adjetival com a forma de particípio de um verbo e, mais precisamente, de verbos que pareciam denotar mudança de estado do constituinte sobre o qual recai o evento, como observado nas ocorrências da fala espontânea exemplificadas em (20) («vai mais, meio, meio minuto (a ligação) estará terminada») e em (21) («Dentro em breve, isso estará superado»), de modo que tal morfologia não emergiu no teste em sentenças constituídas por verbos que não possuíam argumento interno sobre o qual poderia recair o evento de mudança de estado, como em «(...) até eu chegar lá, ela já _______ (SAIR) de casa». Assim, especula-se que a construção estar + particípio possa estar sendo reinterpretada como uma morfologia a serviço de perfect desde que o particípio seja de um verbo que selecione argumento interno e que implique alguma mudança de estado no constituinte sobre o qual recai o evento.14

No que diz respeito ao PE, pretende-se também ampliar a pesquisa, observando, por meio da eliciação de tal aspecto associado ao futuro através do uso de outros advérbios e expressões adverbiais, outras formas verbais que possam veicular tal noção temporo-aspectual no português. Além disso, pretende-se refinar a metodologia adotada no que diz respeito à ampliação da análise de fala espontânea.

No que tange a uma discussão mais ampla acerca da forma verbal de ter + particípio do verbo principal e sua relevante função na veiculação do aspecto perfect no português, é importante destacar a diferença entre suas interpretações a partir de sua combinação com os diferentes tempos. Nessa construção, quando o auxiliar ter encontra-se conjugado no tempo presente, veicula-se o valor aspectual de PU (Nespoli, 2018); quando conjugado no tempo passado, veicula-se o valor aspectual de PE (Sant’Anna, 2019, 2021); e, por fim, como observado neste estudo, quando conjugado no tempo futuro, veicula-se o valor aspectual de PE. É necessário, então, que sejam empreendidas investigações acerca do processo de mudança linguística sofrido por tal perífrase verbal para compreender o caminho por ela percorrido que culminou em sua atual distribuição de valores aspectuais no português.

Até o presente momento do texto, foram apresentadas as diferenças nas realizações morfossintáticas de PU e PE associados ao futuro. Porém, vale ressaltar que, mesmo havendo distinção nesses casos, alguns recursos morfológicos parecem mostrar-se produtivos para a expressão do perfect de forma geral e, portanto, são observados na expressão de ambos os seus tipos.

Como se pode constatar pelos resultados, tanto para PU quanto para PE, observa-se a emergência de formas verbais compostas. O uso de tais formas é recorrente também na expressão desses valores associados a outros tempos (Ilari, 2001; Travaglia, 2016; Medeiros, 2008; Sant’Anna, 2021) bem como na expressão do perfect em outros idiomas, como o inglês, o espanhol, o francês e o italiano (Iatridou, Anagnostopoulou & Izvorki, 2003; Nespoli, 2018). Tal fato parece decorrer da complexidade da informação que o aspecto perfect carrega, tendo em vista que se caracteriza não só pelo estabelecimento de um intervalo entre dois pontos no tempo, bem como pelo tipo de relação estabelecida entre os pontos desse intervalo, o que diferencia PU e PE.

Nessa direção, com base nos dados observados para o futuro, ressalta-se o uso da forma nominal de gerúndio do verbo principal para expressão de PU, posto que ela destaca a informação de continuidade no tempo, e da forma nominal de particípio do verbo principal para expressão de PE, posto que tal forma verbal destaca a informação de finalização do evento.

Além disso, vale ressaltar que, tanto para PU quanto para PE, observa-se para além das formas compostas, formas sintéticas (o presente simples para PU e o pretérito perfeito para PE). É possível que o uso dessas formas seja decorrente de um processo morfológico diacrônico recorrente da língua portuguesa caracterizado pela substituição de formas compostas por formas simples (Barbosa, 2004; Gomes & Semêdo, 2019).

Por fim, vale ressaltar a contribuição que os dados deste estudo apresentam para o entendimento da representação mental do aspecto perfect na camada flexional. Nespoli (2018), ao tratar da representação sintática do perfect, destaca que PU e PE projetam sintagmas distintos na árvore sintática, o UPerfP para o primeiro e o EPerfP para o segundo. Após realizar um estudo comparativo entre línguas românicas, a autora utiliza três argumentos, a partir de dados de associação desse aspecto com o tempo presente, para defender sua argumentação, sendo um deles a diferença entre as realizações morfológicas de PU e PE nessas línguas. Nessa direção, os resultados parecem servir como mais uma evidência em favor da argumentação dessa autora, uma vez que, na realização do perfect associado ao futuro, as formas linguísticas observadas para a realização de PU diferem-se consideravelmente das observadas para a realização de PE. Nas formas de PU, tem-se formas mais imperfectivas (presente simples e estar + gerúndio) e, em PE, formas mais perfectivas (pretérito perfeito e ter + particípio). Os dados parecem seguir a lógica proposta em Nespoli (2018) de que, para a veiculação de PU, as formas verbais são imperfectivas em função do traço [- delimitado] no núcleo de AspP e, para a veiculação de PE, as formas verbais são perfectivas em função do traço [+ delimitado] no núcleo de AspP.

7. Considerações finais

Este trabalho tinha por objetivo verificar as realizações morfológicas do aspecto perfect, tanto universal quanto existencial, quando associado ao tempo futuro no português do Brasil. Parte-se das hipóteses de que, quando associados ao futuro, PU seria realizado exclusivamente por verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo estar + gerúndio do verbo principal, e o PE seria realizado exclusivamente por pretérito perfeito e pelo verbo ter conjugado no futuro + particípio do verbo principal.

Para tanto, a metodologia deste trabalho foi dividida em duas etapas. A primeira delas consistia em uma análise de fala espontânea, por meio de dados coletados do corpus do NURC e do corpus em desenvolvimento do grupo de pesquisa Biologia da Linguagem. A segunda consistia na aplicação de um teste de preenchimento de lacunas.

Os resultados indicaram que o PU pode ser expresso por meio de verbo estar conjugado no futuro + gerúndio do verbo principal e do presente simples, enquanto que o PE, por meio de verbo ter ou haver conjugado no futuro + particípio do verbo principal, morfologia de pretérito perfeito e verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito de base adjetival com a forma de particípio de um verbo. Dessa maneira, as duas hipóteses elaboradas para este estudo foram refutadas. Vale destacar que a única morfologia prevista para a realização de PU na hipótese (i) não foi encontrada nos dados e mais uma morfologia, além das duas previstas para a realização de PE na hipótese (ii), foi encontrada nos dados: verbo estar conjugado no futuro + predicativo do sujeito de base adjetival com a forma de particípio do verbo.

A partir dos resultados obtidos, discute-se que o fato de serem utilizadas formas verbais distintas na realização de PU e de PE associados ao futuro no português contribui para a interpretação de que esses dois tipos de perfect estão dissociados na representação sintática da sentença, à luz do que é argumentado por Nespoli (2018) com base na análise das realizações de perfect associado ao presente em línguas românicas.

Como passos futuros, pretende-se ampliar o escopo de análise de fala espontânea a fim de verificar a emergência de outras formas verbais utilizadas pelos falantes. Além disso, considera-se importante aprimorar o teste de preenchimento de lacunas, utilizando novos advérbios e expressões adverbiais para verificar se outras formas verbais podem ser utilizadas na veiculação de PU e PE associados ao futuro, e também desenvolver outros testes linguísticos para verificação do fenômeno. Pretende-se também verificar a influência de valores aspectuais semânticos na seleção das morfologias veiculadoras da combinação temporo-aspectual investigada neste trabalho.

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1. Utiliza-se o termo perfect, e não sua tradução ao português («perfeito»), a fim de evitar que haja uma interpretação equivocada acerca das noções aspectuais que se discutem neste artigo, tendo em vista que o termo em português é comumente utilizado na literatura para fazer referência à morfologia de pretérito perfeito, que veicula aspecto perfectivo, e não aspecto perfect tal como se descreve neste trabalho. Tal distinção de nomenclatura tem sido adotada em estudos de diversos autores como Maggessy (2018), Nespoli (2018) e Gomes (2020).

2. Ao longo do texto, todas as menções a português referem-se exclusivamente ao português do Brasil. Devido à recorrente oposição entre PB (português do Brasil) e PE (português de Portugal) na literatura, optou-se por essa estratégia como uma maneira de evitar possíveis mal-entendidos.

3. Os dados coletados no corpus NURC podem ser considerados antigos, visto que algumas entrevistas datam de 1970. Isso, no entanto, não invalida o trabalho. Além do NURC, o corpus do BioLing foi analisado e também foi utilizada metodologia experimental no estudo. Os poucos dados encontrados no NURC foram validados por meio de coleta de dados com viés metodológico experimental.

4Como será abordado mais detalhadamente ainda nesta seção, em tal definição Comrie associa o aspecto perfect ao tempo presente.

5. Cabe ressaltar que as autoras, ao empregarem o traço de [± delimitado], referem-se explicitamente à oposição entre perfectivo, aspecto gramatical que permite a visualização de uma situação como um bloco fechado, ou seja, [+ delimitado], e imperfectivo, em que se destacam as fases internas da situação, ou seja, [- delimitado], sem fazer menção a informações do aspecto lexical.

6. A escolha por buscar evidências a partir da língua inglesa se deu devido à grande parte dos estudos sobre o perfect ter como base essa língua, pois nela é possível observar uma relação imediata entre forma e sentido, uma vez que a forma verbal composta por «ter» + particípio necessariamente veicula tal aspecto nessa língua (Nespoli, 2018; Gomes, 2020).

7. É importante destacar que testes de preenchimento de lacunas permitem a investigação da expressão linguística de determinados traços linguísticos. No que tange ao perfect, tal método é comumente utilizado no estudo de suas realizações no português, como verificado em Lopes (2016), Jesus, Matos, Martins & Nespoli (2017), Gomes (2019) e Gomes (2020).

8. Alguns constituintes encontram-se sublinhados na apresentação do exemplo apenas para melhor descrição do método. Porém, na apresentação do teste aos participantes, nenhum constituinte encontrava-se destacado nos diálogos.

9. Nespoli (2018) propôs um inventário de advérbios e expressões adverbiais que estão a serviço de PU e PE levando em consideração a combinação desse aspecto com o tempo presente. Neste trabalho, defende-se que alguns dos advérbios e expressões adverbiais descritos por essa autora podem ser aplicados também à associação desse aspecto com o tempo futuro, como há x tempo, para PU, e , para PE.

10Nas análises empreendidas neste artigo, todas as ocorrências da morfologia de verbo «estar» conjugado no futuro + predicativo do sujeito são dados em que o predicativo do sujeito era de base adjetival com a forma de particípio do verbo. Faz-se alusão a essas ocorrências apenas como morfologia de verbo «estar» conjugado no futuro + predicativo do sujeito.

11. A exclusão de 20 respostas deu-se em função do fato de o informante não ter respondido determinada lacuna, ter alterado o verbo solicitado, como em «Quando Renan chegar na Ilha, ela acabou (esperar) há três horas», ou ter preenchido a lacuna de modo a produzir sentenças agramaticais, como em «*Quando a Malu voltar, eu praticara há 5 meses» e «*Quando Renan chegar na Ilha, ela já vai ter acabado esperado há três horas».

12. Outra interpretação possível das sentenças com as lacunas preenchidas com a morfologia de pretérito perfeito seria a de que a situação se deu pontualmente em um ponto do tempo passado (há 5 meses, por exemplo), sem estabelecer qualquer relação com o ponto R na fronteira à direita do intervalo PTS, veiculando, assim, apenas aspecto perfectivo. Porém, a interpretação conferida às sentenças com tal morfologia como veiculadoras de PE associado ao futuro ancora-se na proposta de Nespoli (2018), segundo a qual o advérbio , ainda que não realizado foneticamente, pode encontrar-se ativo na representação sintática de sentenças, possibilitando a veiculação de PE.

13. A exclusão de 14 respostas deu-se em função do fato de o informante não ter respondido determinada lacuna, ter alterado o verbo solicitado, como em «Quando a gente chegar, a bebida já foi (ACABAR)», ou ter preenchido a lacuna de modo a produzir sentenças agramaticais, como em «*Até eu chegar, ela já saído (SAIR) de casa».

14. Destaca-se, porém, que alguns verbos que selecionam argumento interno e que implicam em mudança de estado do constituinte sobre o qual recai o evento, como o verbo inacusativo acabar em «acabou a bebida», parecem não favorecer a morfologia estar + particípio, haja vista a ausência de produção dessa morfologia nas lacunas do teste linguístico com esse verbo («Quando a gente chegar, a bebida já _______ (ACABAR)»). Logo, acredita-se que haja ainda outras restrições sintático-semânticas para o uso dessa morfologia que devem ser investigadas mais detidamente.

*Cómo citar: de Souza Medeiros, B., da Silva Pessôa, L., Leitão Martins, A., & da Silva Gomes, J. C. (2023). As realizações morfológicas de perfect associado ao futuro no português do Brasil. Lingüística Y Literatura, 44(84), 154-184. https://doi.org/10.17533/udea.lyl.n84a07

Recebido: 09 de Dezembro de 2022; Aceito: 28 de Abril de 2023

*Autor para correspondência: Bruno de Souza Medeiros, email: brunomedeiros@letras.ufrj.br

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