Introdução
Um dos principais objetivos da terapia endodôntica é fornecer a descontaminação completa do sistema de canais radiculares evitando que a infecção se espalhe dos canais radiculares para os tecidos periapicais 1,2.
Essas infecções são tratadas por procedimentos mecânicos auxiliados por substâncias químicas 2. O uso combinado de soluções de irrigação endodôntica que limpam, desinfetam e moldam o sistema radicular é essencial para o sucesso terapêutico dos dentes onde o tratamento endodôntico é indicado 3.
A assepsia do canal radicular é obtida por meio de uma série de etapas sequenciais de extrema importância, sendo que a instrumentação mecânica e a irrigação química são consideradas as mais notáveis 1. É oportuno acrescentar que a efetividade de uma solução irrigadora depende do seu íntimo contato com o canal radicular, da constante renovação da solução, da profundidade com que a cânula penetra no canal, do volume e da frequência de irrigação 4.
A solução de hipoclorito de sódio (NaClO) tem sido o irrigante endodôntico mais utilizado no preparo biomecânico dos canais radiculares e está disponível em diferentes concentrações, variando de 0,5 a 5,25%, associada ou não a outras substâncias 1,5-7.
O NaClO possui propriedades germicida e bactericida proporcionais à sua concentração, mas sua toxicidade se eleva proporcionalmente com o aumento da concentração 2. Nas concentrações mais elevadas é extremamente irritante para os tecidos periapicais 8.
Por isso, entre os acidentes ocorridos durante a terapia endodôntica, a extrusão ou derramamento de hipoclorito para além do forame apical, ou seja, para os tecidos periapicais pode ser um dos mais alarmantes, por causa das suas manifestações clínicas imediatas, provocando reação inflamatória, dor intensa e edema instantâneo 4,8.
Entretanto, incidentes envolvendo NaClO, durante o tratamento endodôntico, raramente são relatados 9. Assim, objetivo deste trabalho foi verificar através de uma revisão crítica da literatura as evidências científicas sobre as consequências do extravasamento de NaClO durante o tratamento endodôntico e as condutas clínicas odontológicas necessárias frente a esses acidentes.
Metodologia
A pesquisa foi realizada nas bases de dados Scielo, Lilacs e PUBMED. Nas bases Scielo e Lilacs foi realizada busca eletrônica com os seguintes descritores em português: “acidentes extravasamento hipoclorito”, “extravasamento de hipoclorito em canais”, “soluções químicas tratamento canais”, “extravasamento hipoclorito”, “acidentes hipoclorito”, “Acidentes hipoclorito de sódio odontologia”, “hipoclorito acidentes endodontia”, “hipoclorito de sódio odontologia”, sendo obtidos 135 registros.
A busca também foi realizada na base de dados Pubmed com os seguintes descritores no idioma inglês: “Extravasation hypochlorite”; “Extravasation hypochlorite acidentes”; “Hypochlorite accidents endodontics” e “extravasation hypochlorite dentistry” e “apical extrusion of sodium hypochlorite”, sendo obtidos 149 registros.
Foram considerados para análise os artigos publicados nos últimos 15 anos, com disponibilidade para leitura completa, totalizando 98 artigos possíveis de inclusão. Desses registros foram selecionados e incluídos artigos para análise integral, cuja pertinência temática, respondessem aos questionamentos em discussão: o hipoclorito como irrigante endodôntico; fatores que afetam a extrusão do hipoclorito em tratamentos endodônticos, consequências e manejo clínico em caso de extravasamento do irrigante.
Revisão da Literatura
O hipoclorito e suas características como irrigante endodôntico no preparo químico mecânico dos canais
A redução do número de microorganismos presentes na luz dos canais e túbulos dentinários é fundamental para o sucesso da terapia endodôntica 9. Sabe-se que os instrumentos endodônticos só atingem o canal principal do sistema de canais radiculares, ficando vários canais secundários e recorrentes, além de túbulos dentinários sem ser instrumentados e com restos pulpares em seu interior 6.
Por isso, o emprego de substâncias químicas durante o preparo químico-mecânico do canal radicular assume especial importância na desinfecção e limpeza do sistema de canais radiculares 2. A irrigação remove o tecido da polpa e/ou microorganismos (planctônico ou biofilme) do sistema radicular, elimina a camada de esfregaço e os detritos dentinários, que ocorrem após a instrumentação do canal 10.
Apesar do avanço em todos os campos da pesquisa odontológica, a busca da solução irrigante ideal ainda desafia a Endodontia e o potencial de diferentes substâncias para irrigação do canal radicular vem sendo estudado 1. A solução irrigadora deve apresentar propriedades capazes de promover ação antimicrobiana, permitir a dissolução do tecido, possuir efeito de limpeza, ação quelante e ser biocompatível com tecidos orais 7.
Entre as soluções de irrigação endodôntica indicadas como auxiliares para o tratamento de canais a primeira escolha ainda é o hipoclorito de sódio (NaClO), que possui propriedades antimicrobianas, grande poder de dissolução de matéria orgânica, capacidade de transformação de aminas em cloraminas e efeitos desodorizantes 3,9,10.
A ação antimicrobiana de um irrigante em tratamentos endodônticos não é a única preocupação na escolha de uma substância química auxiliar, se fosse o único requisito, a clorexidina seria o irrigante escolhido; porém, a capacidade de dissolução de tecido é de grande importância na instrumentação do canal radicular, propriedade apresentada pelo hipoclorito e inexistente na clorexidina 8.
Assim, a substância química utilizada durante o preparo deve conter propriedades que permitam a ação bactericida e de solvente tecidual, que irão desempenhar um papel importante no debridamento e desinfecção do sistema radicular 2,10. Por isso, NaClO destaca-se, por possuir além da ação bactericida, ação solvente, capaz de digerir matéria orgânica, e favorecer a remoção dos detritos do interior do canal radicular 6,11.
A extrusão de substâncias irrigantes para além do forame apical pode ocorrer durante o processo de instrumentação em dentes com vértices abertos, através de locais de reabsorção ou perfuração externa ao longo das paredes da cavidade, ligação da ponta da agulha de irrigação dentro de um canal e o uso de demasiada pressão de irrigação, resultando na extrusão de irrigante nos tecidos perirradiculares, levando a destruição e necrose tecidual 12.
A toxicidade do NaClO é causada principalmente pela sua composição química, mas outros fatores como a concentração, volume e pressão de extrusão podem exacerbar as consequências desses acidentes 13.
Por isso, apesar da ampla utilização do NaClO como principal solução irrigadora durante o preparo químico-mecânico dos canais radiculares, cuidados devem ser adotados durante a sua utilização, tais como: irrigação lenta com simultânea aspiração e irrigação final com solução fisiológica, a fim de minimizar a ocorrência de extravasamento e de danos aos tecidos periapicais, uma vez que existe potencial tóxico destas soluções 11.
Tipos de extrusão de NaClO, prevenção, consequências e manejo clínico após acidentes
A eficácia do debridamento químico está relacionada à capacidade do irrigante de se infiltrar em todo o espaço do canal sendo o terço apical do canal o mais difícil de ser irrigado pelo maior grau de complexidade anatômico. É importante implementar a troca de fluido no terminal do canal, aproximando a ponta da agulha do comprimento de trabalho do canal instrumentado, entretanto, o equilíbrio entre eficácia e segurança na irrigação assistida por agulha no terço apical do canal é sútil 14.
Caso um incidente com NaClO venha a ocorrer, o dentista deve permanecer calmo, pois nenhum tratamento específico pode reverter o dano de NaClO, e a conduta principal será de terapia de suporte, incluindo o controle do inchaço, alívio da dor e prevenção da infecção secundária 15. Devem ser tomadas medidas para relaxar o paciente e assegurar-lhe que esta complicação pode ser controlada 16.
Zhu et al.12) enfatizou que acidentes criados pela extrusão de NaClO através dos ápices das raízes são relativamente raros e raramente são fatais, porém criam morbidade substancial quando ocorrem, e descreveu sobre 3 tipos de acidentes relatados na literatura: injeção iatrogênica descuidada; extrusão no seio maxilar; e extrusão ou infusão de NaClO além do ápice da raiz nas regiões perirradiculares.
A maioria das complicações associadas a uma extrusão acidental de hipoclorito de sódio referem-se à injeção de agulha de irrigação no canal, e várias medidas podem ser implementadas para evitar esta situação: a irrigação com NaClO deve ser evitada na região apical se os comprimentos de trabalho não tiverem sido previamente medidos; quando os comprimentos de trabalho forem determinados, recomenda-se a colocação de batentes de borracha de posicionamento nas agulhas de irrigação, preferivelmente com saída lateral, para evitar a pressão durante a irrigação e injeção acidental; além disso, o operador deve garantir que a irrigação seja realizada sob pressão baixa e constante 17.
Soares et al.4 complementam que a introdução da agulha de irrigação dentro do conduto, deve sempre permitir uma via de refluxo entre a cânula injetora e o canal radicular, para isso é importante que o operador mova a cânula em movimentos de vaivém ao longo do canal durante as manobras de irrigação, pois ao contrário ocorrerá a obstrução do refluxo, forçando o extravasamento do líquido irrigador, sob pressão, pelo forame apical.
Chaugule, Panse e Gawal 15 descrevem uma sequência de cuidados clínicos para evitar acidentes com NaClO: Preparar adequadamente o acesso; usar agulhas projetadas para fins endodônticos e ter bom controle de comprimento de trabalho (a agulha deve ser colocada de 1 a 3 mm de comprimento de trabalho, passivamente dentro do canal); o irrigante deve ser direcionado ao canal radicular com pressão baixa e constante, permitindo espaço para refluxo pela ligeira remoção da agulha do conduto.
Quando o NaClO é acidentalmente injetado nos tecidos periapicais, a maioria dos autores descrevem sinais e sintomas semelhantes: primeiramente inchaço e dor local e nos tecidos adjacentes, podendo ocorrer envolvimento da área periorbital, lábio superior, bochecha e pode ser acompanhada de hemorragia evidente em pele e mucosa 17.
As complicações e situações clínicas registradas com a extrusão da solução de hipoclorito de sódio junto aos seios maxilares foram: sensação de gosto de cloro, sensação de queimadura, dor severa, edema, hemorragias, hematomas, áreas de necroses, úlceras, parestesias, alterações oculares, trismos, infecções secundárias e abscessos 18.
Deve-se ter cuidado para não se injetar o NaOCl com muita pressão ou muito próximo ao forâmen apical para que não ocorra o seu extravasamento para o periápice, principalmente em pré-molares e molares superiores, a fim de impedir que parte deste hipoclorito adentre o seio maxilar causando danos, muitas vezes, irreversíveis 19.
Guivarc'h et al.13) evidenciam os sinais e sintomas do extravasamento do NaOCl para o seio: a sensação de queimação no seio maxilar, em vez de dor intensa, geralmente esta presente, com pouca ou nenhuma hemorragia do canal e nenhuma evidência de inchaço imediato. Bosch-Aranda et al. 17 acrescentam a possibilidade de irritação da garganta ou complicações graves, como anestesia ou parestesia.
Guivarc'h et al. 13 realizou uma revisão sistemática em que foram analisados 52 relatórios de casos publicados de acidentes com hipoclorito entre 1974 e 2015. Baseado nesses dados, descreveu que os sintomas após a extrusão de NaClO mostrou-se agudo e de início súbito, sendo a dor severa quase sistemática, hemorragia profusa através do canal radicular relatada em 1/3 dos casos, inchaço em quase todos os casos (49 dos 52 relatórios), aparecendo dentro de alguns minutos até poucas horas após o acidente, geralmente com aspecto grande e difuso (semelhante à celulite), estendendo-se intra e extraoralmente bem além do local do dente afetado.
Bosch-Aranda et al. 17 afirma que em casos de extrusão acidental de NaClO para região periapical, a solução deve ser removida o mais cedo possível, realizando uma aspiração negativa com a mesma seringa de irrigação, seguida de irrigação da área com solução salina estéril abundante, o que reduzirá o tempo de exposição nervosa ao agente irrigante.
Deve ser dada prioridade ao alívio da dor, redução do inchaço e prevenção da infecção secundária. Os analgésicos devem ser dados para aliviar a dor pós-incidente; a prescrição de antibióticos apropriados será necessária pela possibilidade de disseminação da infecção, e o uso de anti-histamínico pode ser prescrito para prevenir reações alérgicas 4,16.
Compressas frias extraorais devem ser usadas nas primeiras horas para minimizar o inchaço; depois das 24 hs compressas quentes devem ser usadas para melhorar a circulação na área, diminuir o inchaço dos tecidos moles e auxiliar na resolução do hematoma 15,16.
As terapias são propostas de acordo com a natureza e gravidade do acidente, mas não existe um protocolo de tratamento bem estabelecido: geralmente em casos moderados é recomendada uma terapia ambulatorial e em situações que ameaçam a vida ou quando se espera uma infecção grave de tecidos adjacentes, a admissão em um hospital deve ser considerada para prescrição de medicação intravenosa 17.
Discussão
Quando se opta por uma solução química irrigadora auxiliar no processo de tratamento endodôntico, existem preocupações quanto à ação antimicrobiana, biocompatibilidade e a capacidade de dissolução do tecido, especialmente quando há uma maior possibilidade de derrame clínico dessas substâncias 8.
Sabe-se que a capacidade antimicrobiana e de dissolução de matéria orgânica do NaClO são diretamente proporcionais à sua concentração (concentração-dependente), ou seja, quanto maior a concentração maior desinfecção e dissolução 3,11.
Obviamente a capacidade de dissolução de tecido orgânico não é seletiva, assim, o hipoclorito pode dissolver os remanescentes vitais e necróticos da polpa, bem como os tecidos periapicais, se for permitido entrar no espaço perirradicular por extrusão inadvertida do sistema radicular, possivelmente causando respostas inflamatórias severas e/ou necrose tecidual 5,12.
A literatura aponta uma tríade de sinais e sintomas patognomônicos decorrentes de acidentes por da extrusão de NaClO: dor repentina, sangramento profuso e inchaço quase imediato 13. É imprescindível o monitoramento da situação do paciente nos dias seguintes, aguardando pela remissão dos sintomas, sendo o tratamento da dor, se presente, apenas um atenuante 4.
Compreendendo-se os potenciais riscos associados ao uso de NaClO como irrigante para a terapia do canal radicular, é importante realizar uma técnica eficaz para evitar complicações 17.
A melhor forma de evitar acidentes na irrigação é adotar medidas preventivas, como: o uso do isolamento absoluto; a identificação dos tubetes anestésicos (quando da utilização destes como refil para a solução irrigadora); a colocação de cursores de borracha nas limas e agulhas de irrigação; o uso de uma menor concentração de NaClO, usando agulha de 1-3 mm abaixo do comprimento de trabalho e introduzida de forma passiva no canal radicular, realizando uma irrigação lenta, evitando o uso de pressão excessiva no interior do conduto 4,12.
Entretanto, mesmo realizando todas as medidas preventivas, caso haja o incidente de extravasamento de NaClO no tratamento endodôntico é importante ter as informações necessárias para saber gerenciar de forma tranquila e satisfatória o paciente lesionado, sendo o direcionamento de tratamento aplicado conforme a magnitude de cada caso 4.
Conclusões
O hipoclorito é uma substância importante para a terapia endodôntica, porém sua extrusão para além do forame apical leva a destruição e necrose tecidual. Para prevenção de acidentes são citados o respeito ao comprimento de trabalho, o controle da pressão de irrigação e aspiração adequada. Em casos de acidentes a substância deve ser aspirada e o local lavado abundantemente com solução salina estéril. Não há um protocolo único para intervenção, a extensão e gravidade do acidente devem ser avaliadas. A prioridade é o alívio da dor, controle de edema e prevenção de infecções secundárias. O profissional deve atentar à possibilidade diária de acidentes e adotar medidas preventivas.