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Historia Crítica

versão impressa ISSN 0121-1617

hist.crit.  n.36 Bogotá jul./dez. 2008

 

Garriga Carlos & Marta Lorente.
Cádiz, 1812. La constitución jurisdiccional.
Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, 527 pp. (epílogo de Bartolomé Clavero)

António Manuel Hespanha

Facultade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (Lisboa, Portugal). AMH_ONIamh@oniduo.pt


O livro de Carlos Garriga e Marta Lorente -ambos distintos professores da Faculdade de Direito da Universidade Autónoma de Madrid- não constituirá uma supresa para quem conheça a sua obra anterior ou a da escola em que se inserem, cuja figura inspiradora é Bartolomé Clavero (Faculdade de Direito, Universidade de Sevilha) que, de resto, fecha este livro com um artigo a que se voltará.

Mas, em contrapartida, dará muito que pensar a quem tenha do primeiro constitucionalismo uma visão fundadora, heróica, fracturante, como é habitual na maior parte da historiografia constitucional. Em suma, o que fazem estes dois autores? Compartilhando uma ideia Tocquevilliana de atenção ás continuidades, eles empreendem um trabalho multi-focado de identificação de pontos em que a Constituição de Cádis ficou enredada em pré-compreensões intelectuais e em práticas institucionais que vinham de trás e, por isso, impossibilidade de pôr em práticas rupturas constitucionais e políticas decisivas. Os autores salientam, a este propósito, de uma espécie de Sonderweg do constitucionalismo espanhol que, assim, se distanciaria do francês. Pode ser que nem se trate bem disso, mas apenas de que a experiência geralmente tomada como modelar, também ela não foi mais do que um “caso local” e, por ventura, ainda por cima lido com os a intenção implícita de o valorizar como fracturante, tal como é típico de todos os discursos comemorativos ou sem profundidade histórica. Seja como for, o que do livro ressalta claro é que os constituintes de Cádis, para além dos compromissos políticos inevitáveis, eram, eles mesmos, cabeças de compromisso, vivendo num mundo político de raiz variamente comprometido. As palavras, por vezes, souberam articulá-las, mas raramente foram eles que as encheram de conteúdo. Esse conteúdo vinha do senso comum dominante, do direito pré-constitucional (que era quase todo), das práticas administrativas estabelecidas, das maneiras imaginadas de fazer as coisas, de avaliar as situações de controlar as pessoas. Para este resultado constitucional cunham os autores uma expressão precisa, mas com o seu quê de hermético: constituição jurisdicionalista.

Porquê jurisdicionalista? Por um lado, porque a constituição não consegue destruir a pluralidade de jurisdições que vinha do Antigo Regime, ainda que abaladas pelas reformas iluministas, de sentido centralizador. Isto fazia com que a nação histórica, “naturalmente” organizada em corpos se sobrepusesse à Nação atomizada em indivíduos isolados; com que as jurisdições locais dos corpos competissem com a jurisdição da Nação; com que os estatutos tradicionais das repartições e dos oficiais inviabilizassem a pirâmide hierárquica da administração; com que os confitos de competência não pudessem ser resolvidos por actos de governo ou de administração, mas antes por actos judicias. Por outro lado, e justamente em virtude de alguns dos factores referidos, o corpo jurisdicional, como corpo e não como instrumento pontualmente dependente da lei, cobrasse uma importância decisiva, como instância de definição da ordem constitucional e jurídica vigente, como instância de decisão de confitos entre órgãos estaduais e como árbitro insindicável -sobretudo em Espanha, onde a regra castelhana de proibição de motivação das sentenças continuava a vigorar-das disputas entre particulares.

Como são autores de trabalhos anteriores de natureza mais monográfica, os autores podem esmiuçar o tema, inclusivamente em detalhes bastante técnicos, que geralmente escapam à atenção dos cultores de história geral ou em detalhes bastante práticos e aparentemente banais, que normalmente não merecem a atenção dos juristas e historiadores do direito.

Um detalhe destes últimos é o facto de a Constituição dever ser jurada, por indivíduos e por corpos, como se o acto de aprovação pela Nação representada não fosse suficiente para a fazer valer. Jurada como os antigos pactos políticos, jurada como os contratos, jurada como o matrimónio provocando essa intervenção sacramental de Deus na História que supria a deficiência da vontade como factor de poiética jurídica (cf. 20-25). Ao mesmo tempo que se realça -como acontece com o sistema eleitoral de base paroquial- a convivência da nova corporação Nação com uma miríade de outras corporações preexistentes sobre as quais não tinha tido efeitos a atomização individualizante das novas ideias de pacto social.

Uma outra característica já mais visível e estudada da supervivência de conceitos mais antigos é o tom historicista da Constituição, que rememora mais uma ordem preexistente do que instaura uma ordem nova. Logo o preâmbulo o significa (aqui comparado com o da Constituição portuguesa de 1822)1:

“Las Cortes generales y extraordinarias de la Nación Española, bien convencidas, después del mas detenido examen y madura deliberación, de que las antiguas leyes fundamentales de esta Monarquía, acompañadas de las oportunas providencias y precauciones, que aseguren de un modo esta ble y permanente su entero cumplimiento, podrán llenar debidamente el grande objeto de promover la gloria, la prosperidad y el bien de toda la Na ción, decretan la siguiente Constitución política para el buen gobierno y recta administración del Estado”.

EM NOME DA SANTÍSSIMA E INDIVISÍVEL TRINDADE, As Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes na Nação Portuguesa, intimamente convencidas de que as desgraças públicas, que tanto a tem oprimido e ainda oprimem, tiveram a sua origem no desprezo dos direitos do cidadão, e no esquecimento das leis fundamentais da Monarquia; e havendo outrossim considerado, que somente pelo restabelecimento destas leis, ampliadas e reformadas, pode conse guir-se a [gloria] prosperidade da mesma Nação, e precaver-se, que ela não torne a cair no abismo, de que a salvou a heróica virtude de seus flhos; decretam a seguinte Constituição Política, a fm de assegurar [para el buen gobierno y recta administración del Estado] os direitos de cada um, e o bem geral de todos os Portugueses.

A constituido surge como urna interpretaçáo e ratificacáo da história, incorporando por isso nela a tradicáo anterior e não apenas deixando-a provisoriamente continuar, enquanto não houvesse tempo de a substituir. Com isto, o direito anterior segué em vigor, nem sequer sendo passível de um juízo de constitucionalidade; pois era antes a própria constituicáo que devia ser entendida com o seu lastro de experiência jurídica, que desenvolve e interpreta (cf. 22-27). E, neste sentido, as peticoes às cortes, denunciando abusos, situam-se na esteira dos antigos agravos dirigidos aos tribunais reais (teóricamente, ao rei) ou das peticoes dos povos ñas antigás cortes do reino, pedindo d reparacáo da injustiça, ou seja, a reposicáo da ordem jurídica tradicional.

Esta indissolúvel continuidade entre a ordem jurídica do passado e a ordem jurídica constitucional impede, naturalmente, urna funcáo derrogatória da constituicáo sobre o direito passado e, com isso, a vinculacáo de funcionários e de juízes à lei, tal como isso foi entendido num certo (curto) momento constitucional francesa. Funcionários e juízes estavam -como sempre tinham estado- sujeitos ao direito, gozando da liberdade de interpretacáo deste direito que o seu estatuto (jurisdiçáo) lhes permitía. Tudo isto passa, incólume para o período constitucional. Com a particularidade de ser entáo mais notório um princípio de direito antigo - o de que devia ser punido o juiz (funcionário) que “faz a lide sua” (litem saam facit), ou seja, que, abandonando o seu estatuto de funcionário, que resolve as questões (lides) em funcáo do direito, o faz em funcáo dos seus interesses, como pessoa privada. É este o modelo adoptado para a responsabilizado dos funcionários públicos, tal como em Portugal. A sua responsabilidade não é administrativa, por violacáo da lei, enquanto funcionários, mas civil e penal, enquanto particulares por, ao proceder fora do direito, terem perdido a sua qualidade de pessoas públicas (cf. 27 ss.). Ora, uma vez perdida a ideia de responsabilidade administrativa e substituída por uma responsabilidade ético-jurídica, pessoal, de cada funcionário, perante os deveres do seu cargo (que devem “bem servir”, como se dizia nos alvarás de lembrança e de mercê; e de que, em Portugal, se fazia depender, no Antigo Regime, os direitos dos flhos aos ofícios dos pais), desfaz-se a hierarquia administrativa, ficando a administração pública reduzida a um conjunto heteróclito de repartições e serviços, cada qual estatutariamente garantido, e cujos mútuos litígios apenas podiam ser resolvidos por via judicial ou por procedimentos “de graça” (antes a cargo do rei, agora a cargo das Cortes).

O regime da responsabilização dos funcionários (tratado com mestria em III.7) é completado por um magnífico tratamento da questão da justiça administrativa, em que se aborda também a questão da regra da não motivação das sentenças (cf. 261 ss.), que o direito castelhano importara do direito comum (maxime, do direito canónico), estendendo-a a Aragão. Embora a não motivação favoreça a insindicabilidade da judicatura, como os autores realçam, a verdade é que o estudo comparativo da situação portuguesa, poderia ter matizado bastante a importância que dão ao tópico. É que, em Portugal, onde a regra sempre tinha sido a oposta -e em que, além disso, as Ordenações feriam de nulidade a sentença contra direito expresso, autorizando recursos extraordinários de justiça e de graça -a insindicabilidade prática dos juízes era idêntica, como tal sendo denunciada antes e depois de 1820. A raiz da insindicabilidade- e, com isto, da jurisdicionalização do Estado -não está aí, mas antes em algo em que os autoria também destacam- a natureza doutrina e jurisprudencial da determinação da ordem jurídica. Os juízes não podiam ser externamente obrigados a cumprir o direito porque eles é que decidiam qual era o direito. Tudo o que se lhes pode opor são regras vagas sobre o carácter temerário de decisões isoladas ou contrárias à opinião comum. O resto depende das suas consciências. Pelo que a questão deontológica é -como neste livro também se realça- a questão fulcral (mas inoperante) para o controlo das justiças. Por isso é que se mantém válido, em período constitucional, o tradicional princípio “obedezcase, pero no se cumpla”. Como funcionários ajuramentados a cumprir a Constituição, os oficiais públicos tinham que lhe obedecer; mas isso não passava de um fatus vocis, pois, armados do poder de interpretar a Constituição, podiam não cumprir qualquer lei das cortes ou, mesmo, qualquer norma constitucional, interpretada de forma diferente da que perflhassem (cf. 341 ss.). O único limite -que, em Portugal, no triénio vintista, em que as cortes se apropriaram do recurso de revista, de graça especial e especialíssima, tinha efeitos práticos muito vistosos (relevantes ?) no controlo das decisões dos tribunais- era a possibilidade dos recursos extraordinários para as Cortes, por violação da Constituição e das leis, 286 (cf. arts. 372 e 373 da Constituição de Cadiz; artº 17 da Constitutição Portuguesa de 1822). Ou seja, como concluem os autores, tanto a Constituição como as leis eram defendidas do incumprimento, não da interpretação; pelo que os juízes deviam submeter-se-lhes, sendo porém irrelevante o acatamento substancial delas (cf. 288).

Numa feliz síntese (“El modelo constitucional gaditano”, p. 374 ss.), os autores fazem ainda um resumo geral das suas teses. Neste capítulo, surgem desenvolvidos alguns temas já conhecidos de obras anteriores, mas que, pela sua subtileza, merecem ser realçados. Refro-me, em especial, ao modelo de feitura e publicitação das leis, que já constituíra o tema de um improvavelmente interessante -não pela entidade da autora, mas pelo carácter aparentemente trivial do tema- livro de Marta Lorente (La voz del Estado: la publicación de las normas (1810-1889, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001). Começa por se salientar a participação da “Nação representada”, por meio de consultas e representações aos seus representantes em Cortes, como se a vontade deles não substituísse a dos seus mandantes (estamos aqui num meio termo entre um mandato representativo e um mandato imperativo, algo a que eu me atreveria a chamar um “mandato dirigido”), quer estes fossem indivíduos quer as -agora inusitadas- corporações tradicionais. E, depois, entra -se no mais inovador- o contraste do actual sistema de promulgação e de publicação das leis, com o antigo, ainda seguido em tempos constitucionais: uma publicitação hierarquizada das leis, mediante ordens de as cumprir, decalcadas nas fórmulas tradicionais, dirigidas ás repartições a que as elas eram enviadas, com a especial responsabilização pessoal dos funcionários pelo seu não cumprimento; como se, sem isso, elas não tivessem que ser cumpridas (cf. 380 ss.). Claro que este sistema atomizado de publicação e de decretos de execução pulverizava o dever de cumprimento, pondo em risco a unidade da lei; tanto mais que, na prática, era cada corporação administrativa que editava os complementos normativos internos necessários para a execução das leis (p. 382).

Desta e das já referidas características da constituição gaditana decorriam ao “modelo francês” (p. 389 ss.):

- entorses ao conceito rousseauniano de lei;
- partipação de elementos da sociedade corporativa;
- inexistência de uma publicação erga omnes e geral das leis, mas antes de uma publicitação hierarquizada e atomizada da lei, acompanhada de ordens “personalizadas” para a cumprir e fazer cumprir;
- proibição da motivação das sentenças e, com isto, livre curso da interpretação pessoal e corporativa;
- garantia apenas pessoal de cumprimento das leis, mediante a confusão entre controle da legalidade e responsabilização dos funcionários públicos:
- inexistência de uma obrigatoriedade constitucional de cumprimentos das leis pelos juízes,
- prevalência de práticas institucionais de Antigo Regime, não por razões de um historicismo teórico, mas por inércias institucionais e mentais.

O epílogo de Bartolomé Clavero (“Cadiz en España: signo constitucional, balance historiográfico, saldo ciudadano”, pp. 447-526) leva a cabo uma arriscada (mas corajosa) operação de combinar as três epígrafes do título. Porque se trata de traçar um saldo de cidadania pode ser que o balaço historiográfico soe demasiado partidário e cru; embora certas audácias evolucionistas ou certos esquecimentos da história pregressa dos escritos próprios torne muito apetecível lembrar cada um o que outrora escreveram (ou não escreveram). Com aquele espírito pacificador das Comissões de Justiça e Paz; ou seja, sem intuitos vindicatórios, mas apenas para que conste. Porém, aparte esta questão de enfoque, trata-se de uma informadíssima síntese, cheia de férteis sugestões para investigações futuras; e não apenas relativas à Constituição de Cádis. Sempre sob o mesmo lema a que este grupo tem habituado os seus leitores: desconfar do óbvio; pôr em dúvida as continuidades; estranhar as coisas familiares; desconfar da superfície das fontes; complicar a história.


1. Como é, infelizmente, muito habitual, o confronto com Portugal é inexistente; apesar da vízínhança e da ísomorfa, quer das instituícoes, quer dos perfs de evolucáo histórica). Em certos casos, como o da motívacáo das sentenças ou do regime de recurso extraordinário das sentenças, o confronto sería muito esclarecedor.

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