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Historia Crítica

versão impressa ISSN 0121-1617

hist.crit.  no.47 Bogotá may./agos. 2012

 

UMA LÓGICA DEMOGRÁFICA ELÁSTICA: O ABOLICIONISMO BRITÂNICO E A PLANTATION ESCRAVISTA NO BRASIL (1789-1850)*

Manolo Florentino

Profesor Asociado del Instituto de Historia de la Universidad de Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil). Magister en Estudios Africanos por El Colegio de México (México D.F., México) y Doctor en Historia por la Universidad Federal Fluminense (Niterói, Brasil). Autor, entre otros, de Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (São Paulo: Companhia da Letras, 2010) y, en colaboración con Adriana María Alzate Echeverri y Carlos Eduardo Valencia, editó Imperios ibéricos en comarcas americanas: estudios regionales de historia colonial brasilera y neogranadina (Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2008). En 2009 recibió la Medalla al Mérito Científico Nacional por parte del gobierno brasileño. mgflorentino@gmail.com


UNA LÓGICA DEMOGRÁFICA ELÁSTICA: EL ABOLICIONISMO BRITÁNICO Y LA PLANTACIÓN ESCLAVISTA EN BRASIL (1789-1850)

RESUMEN

El presente trabajo analiza las respuestas demográficas de los grandes hacendados esclavistas de Rio de Janeiro, a las presiones británicas por el fin de la trata de esclavos en el Atlántico. Estudia con especial énfasis las décadas de 1810 y 1820, aunque tangencialmente revisa un período más largo. Se cuestiona la idea, ampliamente diseminada en la historiografía brasileña sobre la esclavitud, de que la trata interna de esclavos era suficiente para atender a las demandas de la plantation esclavista en crecimiento y, por consiguiente, que crecimiento natural positivo de la población esclava y esclavitud eran variables incompatibles en el Brasil colonial e imperial.

PALABRAS CLAVE:
Brasil, población esclava, auto-reproducción demográfica, demografía de la esclavitud.


AN ELASTIC DEMOGRAPHIC LOGIC: BRITISH ABOLITIONISM AND THE SLAVER PLANTATION IN BRAZIL (1789-1850)

ABSTRACT

This paper analyzes the demographic responses of the large slaver land holders of Rio de Janeiro, to the British pressure to end slavery in the Atlantic Ocean. It places special emphasis on the decades of 1810 and 1820, although it covers a longer period in lesser detail. The article questions the idea, widely disseminated in Brazilian historiography, that the internal slave trade in Brazil was enough to respond to the demands of growing slaver plantations and, therefore, that the natural positive growth of the slave population and of slavery were incompatible variables in colonial and imperial Brazil.

KEY WORDS:
Brazil, slave population, demographic self-reproduction, demographics of slavery.

Artículo recibido: 12 de agosto de 2011; aprobado: 27 de octubre de 2011; modificado: 28 de febrero de 2012.


UMA LÓGICA DEMOGRÁFICA ELÁSTICA: O ABOLICIONISMO BRITÂNICO E A PLANTATION ESCRAVISTA NO BRASIL (1789-1850)

RESUMO

O presente trabalho trata das respostas demográficas dos grandes fazendeiros escravistas do Rio de Janeiro às pressões britânicas pelo fim do tráfico atlântico de escravos, com ênfase para as décadas de 1810 e de 1820, embora tangencie período maior. Nele questiona-se a ideia, amplamente disseminada na historiografia brasileira sobre a escravidão, de que o tráfico interno de escrava bastava para atender às demandas da plantation escravista em crescimento e, por conseguinte, que crescimento natural positivo da população escrava e escravidão eram variáveis incompatíveis no Brasil colonial e imperial.

PALAVRAS-CHAVE:
Brasil, população escrava, autorreprodução demográfica, demografia da escravidão.


INTRODUÇÃO

A andar por Minas Gerais em 1818, Auguste de Saint-Hilaire topou com um africano cujo destino já não admitia ilusões. Havia muito no Brasil, o escravo queria casar - "quando se fica assim, sempre só, o coração não vive satisfeito", explicou. Mas jamais escolheria uma brasileira: "As crioulas desprezam os negros da costa; vou me casar com outra mulher que a minha senhora acaba de comprar; essa é da minha terra e fala minha língua" 1.

Suas palavras evocam a cisão entre os crioulos e os escravos nascidos na África 2. Pouca atenção tem sido dada à referência feita à mulher com quem esperava juntar seus trapos. Afinal, ao aludir ao estímulo enviesado que recebia do próprio tráfico atlântico de escravos para por termo à sua solidão, o ladino torna ainda mais intrincado o papel do comércio negreiro para a reprodução dos cativos no Brasil.

1. GRAU ZERO DE REPRODUÇÃO?

Sabe-se que a aquisição de escravos a baixos custos na África permitia bem remunerar o empresário-traficante e manter reduzido o valor dos africanos no mercado brasileiro. Escravos baratos ensejavam o exercício de uma lógica senhorial fundada no imediatismo económico. As derivações: excesso de trabalho, descuido para com a subsistência e forte seletividade etária e sexual na montagem dos plantéis - a origem de boa parte das angústias de nosso africano.

Oito entre cada dez africanos desembarcados no porto do Rio de Janeiro na década de 1820 tinham menos de trinta anos de idade, e 43$, menos de vinte - havia três homens para cada mulher 3. Tudo tramava para que a reprodução natural fosse relegada a plano secundário, e que a aquisição de africanas adultas respondesse, no fundamental, aos afazeres domésticos culturalmente associados à figura feminina.

O enorme desequilíbrio entre os sexos comprometia os potenciais reprodutivos dos escravos, é óbvio. De todo modo, contar com um terço de mulheres entre os adultos nascidos na África representava algum incentivo à reprodução natural. Por diminuto que se apresentasse, o potencial genésico das africanas adultas impedia que resultasse ainda mais pronunciado o déficit resultante de taxas de mortalidade sempre superior às de natalidade, agravado por altas frequências de alforrias nas áreas de colonização católica das Américas.

Pela compra de africanas - deixemos de lado, por ora, o mercado interno de escravos -, a lógica demográfica da plantation encorajava a reprodução natural. Porque propiciava encontros entre parceiros potenciais, bem entendido; nunca por ensejar a formação de criatórios de escravos, hipótese jamais comprovada, cuja origem talvez remonte aos escritos de viajantes como o norte-americano Thomas Ewbank 4. A natureza deliberada dessa estratégia reprodutiva estaria ainda mais ratificada se, como querem alguns, o predomínio de escravos do sexo masculino derivasse não apenas da preferência dos senhores, mas igualmente da retenção de mulheres pelas sociedades africanas, em virtude de suas capacidades produtivas e reprodutivas 5.

Em resumo, penso que, se não abria mão de acrescentar mulheres ao conjunto dos seus africanos adultos, é porque, em seu imediatismo, a plantation amiúde incorporava a obtenção de algum grau de reprodução natural da escravaria. No limite, o cálculo senhorial transbordava a lógica económica stricto sensu, pois buscava impedir que a solidão a que alude o entrevistado de Saint-Hilaire - "sempre só, o coração não vive satisfeito" - se convertesse em tensões inassimiláveis.

2. A ESFERA DA DEMANDA (1) ABOLICIONISMO E POTENCIAL REPRODUTIVO PRESENTE

 Os caminhos e a envergadura desse transbordamento dependiam das circunstâncias que incidiam sobre a produção escravista - os preços pagos pelos africanos nos portos da África e sua combinação com as taxas de juros coloniais; os graus de acesso ao mercado, sobretudo o mercado externo; o temor de que a população africana ultrapassasse a de livres nas Américas etc. E também -aspecto não raro desconsiderado-, as expectativas em torno da continuidade do tráfico atlântico. É o que tentarei mostrar por meio do gráfico 1, que engloba os africanos presentes nos grandes plantéis fluminenses, e dá a conhecer o peso dos adultos frente ao total de cativos, e o de mulheres em relação aos adultos. Desenha também as importações de africanos pelo porto do Rio de Janeiro de 1789 a 1830.

Até 1807, desembarcavam entre cinco e sete mil escravos por ano, provenientes sobretudo do Congo e de Angola. É provável que menos da metade desse contingente permanecesse na capitania do Rio de Janeiro, com o restante reexportado para Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. A partir de 1808, teve início o maior ciclo de importações de africanos da história do Brasil. A chegada da família real, a abertura dos portos ao comércio internacional e a multiplicação das trocas daí derivada explicam-no. Entre 1809 e 1811, os desembarques atingiram a casa dos vinte mil escravos, cifra que alcançou mais de 40 mil/ano em fins da década de 1820. Minas Gerais absorvia boa parte desses cativos 6.

Antes de 1810, os adultos representavam entre 60$ e 70$ dos africanos das plantations. O mais importante: no início das décadas de 1790 e de 1800, a presença feminina alcançava metade ou mais deles. Tal dado matiza a ideia corrente de que o tráfico sempre fomentava desequilíbrios entre o número de homens e o de mulheres. Seria factível postular ter a plantation fluminense buscado incorporar maior potencial reprodutivo pela via do comércio negreiro antes de 1810?

Talvez, embora especiicidades relativas à esfera da oferta congo-angolana sempre impedissem atender adequadamente a altos níveis de demanda por escravas do sexo feminino (ver item 5). De todo modo, ao trabalhar com dados em geral relativos ao período posterior à chegada da família real, boa parte de nossa historiograia se esmera em projetar para épocas pretéritas os altos graus de desequilíbrio entre os sexos detectados nas fazendas brasileiras depois de 1808. Não se deve esquecer, como demonstra o rigoroso estudo de John Monteiro, que a montagem do complexo açucareiro paulista ocorreu no século xvii tendo por base a escravização de indígenas, entre os quais as mulheres geralmente superavam o número de homens 7.

Somente depois de 1808, no rastro da euforia económica que se seguiu à abertura dos portos, os adultos chegaram a representar 80$ dos africanos, e os homens superavam as mulheres em uma proporção de quatro por um. De 1815 em diante, a expansão da plantation fluminense ocorreu em meio à reorientação de parte de sua lógica demográfica aparentemente imediatista. Foi quando a participação de adultos tendeu a se estabilizar no patamar dos 70$ dos africanos, e a de mulheres dessa faixa de idade cresceu gradativamente até atingir um terço dos africanos.

É pouco, em termos de incorporação de potencial reprodutivo. Sobretudo diante da cada vez mais intensa pressão inglesa contra o tráico atlântico. Chega a ser desconcertante a facilidade com que os grandes proprietários rurais fluminenses abriam mão do plus reprodutivo contido nas africanas que poderiam adquiriam.

3. A ESFERA DA DEMANDA (2): ABOLICIONISMO E POTENCIAL REPRODUTIVO FUTURO

É necessário atentar para o fato de que a lógica das grandes fazendas não se resumia a obter graus variados de reprodução natural presente por meio da compra de escravas sexualmente férteis. Era igualmente possível incorporar potencial produtivo e reprodutivo futuro, encarnado na aquisição de crianças de ambos os sexos.

A compra de escravos do sexo masculino com menos de 15 anos de idade representava uma aposta no aumento do número de trabalhadores a médio prazo. A de escravas em iguais condições acrescentava, além disso, o potencial genésico nelas incorporado. Tal como no caso da aquisição de adultas, o esgarçamento dessas possibilidades dependia sobretudo das percepções dos senhores sobre a continuidade do comércio negreiro.

As listagens de escravos em inventários post-mortem de grandes fazendeiros permitem obter um panorama geral da participação de menores de 15 anos entre os escravos nascidos na África. Escasso, na última década do século, o peso demográfico dessas crianças permaneceu ínfimo até 1810 - em boa parte desses vinte anos, a amostragem de plantations não registra a presença de uma única criança nascida na África.

O quadro se alterou a partir de 1815. O gráfico 2 expressa as alternativas demográficas que os grandes senhores passaram a retirar do próprio tráico atlântico, em resposta à intensiica-ção das pressões abolicionistas britânicas.

Em 21 de janeiro de 1815, em Viena, os britânicos extraíram dos portugueses uma Convenção pela qual, mediante compensação inanceira, deixariam de acatar demandas referentes à detenção de naus portuguesas realizadas antes de junho de 1814. Um dia depois, um tratado extinguiria o comércio negreiro ao norte do Equador. De resto, mantinham-se as prescrições do tratado firmado entre Londres e Lisboa em 1810: Portugal comercializaria escravos apenas no âmbito de seu império, reiterava a promessa de colaborar para a gradual extinção do comércio negreiro, e conirmava a abolição do tráico nos estabelecimentos de Bissau e Cacheu. A novidade era que Portugal comprometia-se a negociar com a Inglaterra um tratado no qual se fixaria a data em que o tráfico terminaria. Em 1817, nova Convenção, assinada em Londres por Palmela e Castlereagh, complementava os acordos de 1815: conferia-se -na prática apenas à Inglaterra- o direito de busca e apreensão de negreiros que atuassem ao norte do Equador 8.

Em resposta a todos estes acordos, o primeiro pico da participação de crianças africanas nas fazendas fluminenses ocorreu nos anos 1815-1817. Elas alcançaram 6$ do total de africanos -8$, considerando apenas os adultos-, e as meninas eram 20$ dos africanos menores de 15 anos de idade. A insegurança dos proprietários brasileiros cresceu na década de 1820. Ao lento estrangulamento, ao tráfico externo juntaram-se os acontecimentos que culminaram na Independência, tornando incerto o destino das fontes abastecedoras de escravos na África. Na letra da lei, nada impedia à nova nação traicar ao norte ou ao sul do Equador. Contudo, a necessidade de obter o reconhecimento internacional tornava insustentável a posição dos traicantes sediados no Brasil, sobretudo porque Londres instruíra os seus representantes a não reconhecerem novos governos envolvidos com o comércio negreiro. As autoridades brasileiras descartavam a imediata supressão do tráico, pois isso arruinaria o país e signiicaria o seu suicídio político.

Eis o pano de fundo de temores logo traduzidos no incremento das crianças nos grandes plantéis fluminenses. Em 1820-1822, elas representavam 12$ do total de escravos nascidos na África, cifra duas vezes superior à detectada em 1815-1817, e 17$ da quantidade dos adultos africanos. As meninas alcançavam então 40$ de todos os infantes africanos.

O tratado que pôs termo ao tráfico foi finalmente assinado em 23 de novembro de 1826. Seu primeiro artigo prescrevia que, ao im de três anos, contados a partir da ratiicação do documento pelo governo inglês - ocorrida em 13 de março de 1827 -, o comércio negreiro seria considerado ato de pirataria por Brasil e Grã-Bretanha. Londres cedera em um ponto apenas: a partir de 13 de março de 1830, as naus brasileiras que ainda estivessem no litoral africano teriam seis meses para regressar. Resultado: em 1830-1831, as crianças nascidas na África chegaram a 10$ dos africanos das grandes fazendas do Rio de Janeiro, 21$ das quais, meninas. Representavam ainda 14$ dos adultos nascidos na África.

A evolução dos preços nominais de crianças e adultos africanos de ambos os sexos permite afirmar que os acordos diplomáticos irmados em decorrência da pressão antitráico não constituíam mera dissimulação, encarnada na famosa célebre expressão "lei para inglês ver". Timidamente, tateando mesmo, os grandes senhores brasileiros buscaram se preparar para o eventual término oficial do fluxo de africanos. E fizeram-no por meio do próprio potencial reprodutivo contido no tráfico. É o que mostra a tabela 1, fundada também em inventários post-mortem.

Em suma, a demanda por crianças africanas de ambos os sexos conheceu, depois de 1815, proporções jamais observadas nos vinte anos anteriores à chegada dos Bragança. Por isso, a participação relativa de meninas entre as crianças passou a ser maior do que a das mulheres adultas entre os adultos da plantation fluminense. Por ordem de importância estabelecida pela evolução dos preços dos africanos, foram as seguintes as estratégias acionadas:

a. a aquisição de meninos, cujos preços reais apresentam o maior índice de crescimento no período 1810-1831 (572), sugerindo a aposta empresarial na incorporação de trabalhadores a médio prazo;

b. a compra de meninas, cujos preços conheceram o segundo maior índice de crescimento do período (553); buscava-se não apenas incorporar trabalhadoras a médio prazo, mas igualmente investir em seu potencial reprodutivo - i.e, na geração de trabalhadores a longo prazo;

c. a compra de africanas adultas em meio ao enorme predomínio masculino entre os escravos de 15 a 40 anos. Embora sempre menor do que a de crianças de ambos os sexos, a valorização das adultas foi bem superior à dos adultos do sexo masculino (527 contra 507), sugerindo a aposta senhorial na incorporação de potencial produtivo e reprodutivo imediato.

Além de incorporar potencial genésico presente e futuro, semelhantes estratégias são indícios da busca de rejuvenescimento dos plantéis fluminenses.

4. A ESFERA DA OFERTA (1): PARÂMETROS DA BUSCA DE REJUVENESCIMENTO DA ESCRAVARIA

Ausentes de grandes cabedais, muitos comerciantes se aproveitavam das incessantes partidas de negreiros rumo à África para obter alguma vantagem. Alguns forneciam parcelas ínfimas dos bens que compunham o escambo de traicantes brasileiros ou, mesmo, dos intermediários na África. Não necessariamente se interessavam por escravos. Somente os mais abonados e audaciosos se punham a traficar, abastecendo com poucas mercadorias aos seus correspondentes nos portos africanos. Em troca, esperavam receber partidas de dez, quinze, por vezes de vinte escravos. Se nenhum africano perecesse durante a travessia oceânica, lucros excepcionais poderiam ser alcançados no Brasil.

Sorte não bastava. Era preciso que todos os traicantes -grandes e pequenos- estivessem atentos às tendências sempre cambiantes da estrutura da demanda americana. A este respeito, as cartas que remetiam a seus pares na África demonstram que, em resposta aos anseios dos senhores brasileiros, os traicantes estavam absolutamente cientes de que deveriam obter escravos cada vez mais jovens de ambos os sexos 9.

Francisco da Silva era um deles. Em uma de suas cartas, depois de informar ao correspondente na África o envio de duzentas peças de ouro, avaliadas em um conto e quinhentos mil réis, José Francisco exigia sua troca por "escravos novos, que sejam bons". A mesma expressão aparece nas instruções que o traficante Manoel Gonçalves de Carvalho oferecia a seu interlocutor: os trinta fardos de fazendas e os vinte barris de molhados por ele remetidos deveriam ser "empregados em escravos novos que sejam bons, ainda que custem alguma meia dobra".

Por "escravos bons" entendia-se cativos em perfeito estado físico - de compleição robusta e ausentes de doenças ou deformidades. E os "escravos novos", em que faixa etária se encaixariam? A carta de Pedro Antônio Vieira, um pequeno traficante do Rio de Janeiro, oferece uma pista. Ela informava ao interlocutor em Luanda sobre a remessa de produtos avaliados em quase quatrocentos mil réis, pelos quais exigia "escravos de 12 até 18 anos pouco mais ou menos". Bem podem ter sido estes -12 e 18 anos de idade- os limites que continham os "escravos novos" a que tanto aludiam as instruções dos traficantes.

Outro pedido esclarece ainda mais a questão. Na mesma correspondência, Pedro António dava plenos poderes a seu interlocutor para recapturar Domingos Congo, um escravo seu que conseguira fugir no Brasil e regressar à África, possivelmente como marinheiro do navio Mariana. "Ainda rapaz", dizia a carta, o astuto Domingos era alto, marcado pela varíola -"picado de bexigas" - e apresentava um "defeito no olho". Tinha mais ou menos 25 anos de idade e, ao que parecia, conseguira montar um negócio nas aforas de Luanda. Então: a expressão "ainda rapaz" encarnava um escravo de no máximo 25 anos de idade, um jovem que, no entanto, não correspondia exatamente a um "escravo novo" - um rapaz poderia equivaler a um escravo entre 19 e 25 anos de idade.

Pedro António pedia a captura e reenvio de Domingos para o Rio de Janeiro, mas oferecia como opção a sua alforria em troca de "três ou cinco moleques". É plausível que o termo "moleques" - assim mesmo, no plural - designasse crianças de qualquer sexo com menos de 12 anos de idade. Afinal, por mais que quisesse atormentar a vida de Domingos, caso lograsse capturá-lo, diicilmente se poderia aceitar que Pedro Antônio acreditasse que um escravo de 25 anos, bexiguento e de olho torto realmente equivalesse a três ou cinco "escravos novos".

Falo "crianças" em geral, independentemente do sexo, pois acredito que a migração do termo "moleque" do quimbundo para o português se fez mediante o alargamento de seu signiicado original. Manteve-se a acepção de "menino" - mleke em quimbundo; mas a ela se acrescentou um sentido mais amplo, que em português engloba ambos os sexos quando utilizado no plural - como, por exemplo, quando modernamente fazemos referência à "molecada". É óbvio que os "moleques" pertenciam a uma faixa etária distinta da dos "molequinhos". Estes, pelos motivos acima expostos, igualmente crianças de ambos os sexos com, talvez, menos de cinco anos de idade - as tão famosas "crias de peito" e "crias de pé" registradas em documentos das alfândegas dos portos coloniais, expressões que alguns acreditam englobar todos os escravos de menos de dez anos de idade 10.

Semelhantes conclusões são reiteradas na recusa em adquirir determinados escravos, explicitada em carta de 4 de dezembro de 1823. Nela, o traficante luandense Joaquim Ribeiro de Brito instruía seu agente estacionado no Rio Zaire a trocar os onze contos de réis em fazendas embarcados na escuna Flor do Bungo por "escravos bons", "molecões, moleconas e moleques de 6 palmos passantes", além de "algumas negras que sejam vistosas, moças, pois é a gente que eu quero". E arrematava: "nada de barbados" - embora em outra parte da carta solicitasse "peças de índias" - nem de "molequinhos", talvez em função da alta mortalidade destes últimos na África, no mar ou nos primeiros tempos de Brasil 11

"Molecões" e "moleconas" parecem designar o que nas cartas corresponde a escravos de ambos os sexos, de 12 a 18 anos de idade. "Moleques de 6 palmos passantes" remete a limites etários entre os molequinhos que se recusa, e os molecões e moleconas que se requer - possivelmente a escravos de cinco e doze anos. O termo "moça" pode encarnar o contraponto de "rapaz", referindo-se a uma escrava de menos de 25 anos de idade. "Barbados" certamente designava cativos de faixas etárias mais elevadas, quando não velhos.

Resumindo. O ramerrão diário do tráico proveniente da costa congo-angolana durante a década de 1820 acusa claramente os anseios da demanda brasileira por jovens de ambos os sexos. Requeriam-se especialmente moleques e molecas, molecões e moleconas, categorias classiicatórias que englobavam escravos e escravas entre cinco ou seis e dezoito anos de idade. A preferência recaía sobre o que hoje chamamos meninos e meninas (com idades entre cinco e doze anos), e ao que também modernamente caracterizamos por pré-adolescentes e adolescentes (de idades entre 12 e 18 anos).

Não eram excluídos rapazes e moças (entre 18 e 25 anos de idade), mas havia reticência quanto à aquisição de cativos maduros, digamos, de trinta anos em diante. O rejuvenescimento dos contingentes a serem comprados e logo exportados para o Rio de Janeiro era, pois, a tónica dos traficantes que atuavam na África, o que no limite significava investir no alongamento da capacidade vital dos africanos escravizados e na capacidade reprodutiva presente e futura das escravas adquiridas.

5. A ESFERA DA OFERTA (2): A ESPECIFICIDADE CONGO-ANGOLANA E AS PROJEÇÕES PARA O PERÍODO DE TRÁFICO ILEGAL

Fontes derivadas do mercado de escravos permitem avaliar até que ponto este padrão de demanda de fato se refletia nos contingentes que atravessavam o Atlântico rumo ao Rio de Janeiro nas décadas de 1820 e de 1840. O primeiro conjunto documental é o códice 425, pertencente ao acervo do Arquivo Nacional, onde estão anotadas as remessas de cativos por terra e mar a partir da cidade do Rio de Janeiro entre 1819 e 1833 12. São cerca de 19 mil partidas de escravos para o interior fluminense e outras províncias. Em quase 400 registros referentes a africanos recém-desembarcados, pode-se capturar, simultaneamente, indicações de sexo e idade para o período 1822-1833. São a base das colunas 2, 3 e 4 da tabela 2.

Oito entre cada dez africanos pré-púberes tinham de 10 e 14 anos. A pequena porcentagem de escravos com menos de dez anos de idade - 4$ do total - equivale à encontrada por Herbert Klein para o tráfico entre Luanda e Benguela e o Rio de Janeiro na segunda metade do século xviii. Com uma diferença: sua cifra refere-se apenas às "crias em pé" e "crias de peito", as quais, para ele, encarnariam os cativos de menos de dez anos de idade. Não há garantias de que não houvesse recém-nascidos ou escravinhos na primeira infância entre os reexportados pelo Rio de Janeiro, pois, aparentemente, sobre eles não incidiam impostos 13.

Quase 45$ dos africanos recém-desembarcados eram moleques, molecas, molecões e moleconas - logo, com menos de 20 anos de idade. Somados aos rapazes e moças com idades entre 20 e 24 anos, teremos que dois terços dos africanos desembarcados tinham menos de 25 anos de idade durante a década de 1820.

As colunas 5, 6 e 7 da tabela 2 contêm cifras ainda mais vinculadas ao tráfico atlântico, na medida em que derivam de registros de africanos encontrados em quatro navios negreiros capturados nos anos de 1838 (Brilhante), 1851 (Urânia e Marambaia) e 1852 (Golfinho), quando tentavam realizar desembarques no Rio de Janeiro e adjacências. Trabalhados pela historiadora norte-americana Mary Karasch 14, estes documentos registram um total de 434 escravos africanos com sexo e idade registrados. Comparados às cifras relativas à reexportação de recém-desembarcados entre 1822 e 1833, os dados dos negreiros sugerem grande incremento do tráico de crianças africanas na década de 1840 (de 20,4$ para 36,6$). Quase 90$ dos africanos então exportados para o Rio tinham menos de 25 anos de idade, contra os 67,2$ detectados para a década de 1820.

Embora aiance o rejuvenescimento dos africanos importados nas décadas de 1820 e de 1840, a tabela 2 mostra também que o tráico atlântico não supria a demanda exatamente nos termos almejados por fazendeiros e traicantes. Lograva-o no que tange ao volume e à baixa idade mediana dos africanos, mas não quanto ao número de mulheres jovens requeridas. Isso prova o grande desequilíbrio sexual entre os escravos que cruzavam o Atlântico, crescente a favor dos homens conforme se transita de faixas etárias pré-púberes para as sexualmente férteis - na década de 1820, as molecas representavam 38$ dos africanos entre cinco e nove anos, as moleconas eram 23$ dos africanos de 15 a 19 anos, e as moças constituíam 22$ dos escravos de 20 a 24 anos de idade. Na década de 1840, embora a participação das escravas tenha crescido entre o total de escravos com menos de 15 anos, daí até os 30 anos de idade, ela assumiu um peso ainda menor do que na década de 1820 (ver gráfico 3).

A impossibilidade de atender adequadamente à demanda brasileira por escravas ratifica a ideia de que a África retinha mulheres 15. E fazia-o de modo regionalmente diferenciado. Sabe-se que, ao longo do século xix, a participação feminina entre os escravos originários da África Ocidental era diretamente proporcional às flutuações das exportações e, talvez, aos preços dos escravos na costa. Dito de outro modo: a pressão da demanda induzia as sociedades afro-oci-dentais a incorporarem quantidades adicionais de escravas ao tráfico atlântico. Semelhantes tendências estavam ausentes do tráfico congo-angolano - a principal fonte abastecedora do Rio de Janeiro -, que, com parcimônia, exportava as suas mulheres 16.

Tudo se passava como se fosse fixo o quantum de escravas congo-angolanas exportáveis, sobretudo quando se tratava de mulheres em idade sexualmente reprodutiva 17. Inelástica, a participação relativa das congo-angolanas tendia a ser inversamente proporcional ao volume de escravos dessa região desembarcados no Brasil. Apenas em períodos de baixa procura por africanos, podia-se contar com a África Central Atlântica para a implementação de estratégias mais efetivas de reprodução natural pela via do tráfico, como parece ter sido o caso dos vinte anos anteriores a 1810. Em épocas de intensa procura, ao invés, tornava-se impossível atingir semelhante objetivo contando apenas com a oferta feminina proveniente desta rota. Neste caso, o acesso a mulheres originárias de outras regiões africanas ou provenientes do mercado interno de escravos surgia como as opções mais factíveis.

Eis porque, no que tange a contar com o tráfico atlântico para prolongar a própria escravidão, não restou ao mercado fluminense, depois de 1815, senão procurar adquirir meninos africanos mais do que meninas e mulheres nascidas na África (ver tabela 1). Semelhante estratégia parece haver se potencializado dramaticamente nas décadas de tráico ilegal, quando os africanos de menos de 15 anos de idade podem ter alcançado até três quartos dos contingentes transportados pelos navios negreiros 18.

6. RESULTADOS (1826-1830)

Revelaram-se insuicientes os efeitos demográicos derivados da exclusiva utilização do comércio negreiro para o incremento da reprodução natural dos escravos. A histórica dependência do sudeste brasileiro em relação a uma região africana que primava em reter mulheres pode explicá-lo. Analisarei a partir de agora a alternativa de buscar escravas nascidas no Brasil no mercado interno.

Abordemos a questão tendo por parâmetros uma nova intervalação 1789-1807, 1810-1825 e 1826-1830, adotada em função dos diferentes índices de crescimento anual do tráfico nesses períodos (respectivamente, 0,35$, 2,4$ e 4,5$) e também da intensificação das pressões antitráfico 19. Por razões que logo serão aclaradas, fez-se igualmente necessário comparar o comportamento demográfico da escravaria da plantation frente à dos plantéis de menos de dez escravos - deixemos de lado a flutuante camada de médios proprietários, detentores de 10 a 19 cativos.

No que tange às variações do indicador que mais diretamente influenciava a reprodução natural - as taxas de masculinidade -, não houve surpresas. De acordo à tabela 3, de 1789 a 1830 o desequilíbrio entre homens e mulheres foi uma constante no interior das pequenas e grandes propriedades. Na plantation ocorria uma variação diretamente proporcional entre o incremento do tráfico e a taxa geral de masculinidade nos dois primeiros intervalos (1789-1807 e 1810-1825): de 57$ para 66$. No que concerne aos estabelecimentos de menos de nove escravos, contudo, ocorria exatamente o inverso. Isto é, conforme se incrementava o tráfico de africanos ao Brasil, a taxa de masculinidade de seus plantéis tendia a diminuir. Durante a última etapa do tráfico legal, o momento de maior pico dos desembarques de africanos, este quadro se inverteu completamente: tanto nos grandes como nos pequenos plantéis, a taxa global de masculinidade retornou praticamente aos mesmos níveis da época de estabilidade (1789-1807), atenuando-se o desequilíbrio entre os sexos. Incorporando-se à discussão os índices de africanidade, observa-se que as taxas de africanidade dos pequenos plantéis tenderam a acompanhar o tráico, crescendo entre 1789 e 1830. Os grandes, ao invés, viram a participação de africanos no período 1826-1830 (48,1$) retornarem aos vinte anos anteriores à chegada da família real ao Brasil.

Estamos diante de um movimento aparentemente paradoxal. Acompanhando a aceleração do desembarque de cativos africanos, a elite proprietária rural cresceu e estabilizou no pico do tráico (1826-1830). Os índices de masculinidade e africanidade de sua escravaria, por sua vez, após atingirem o auge em 1810-1825, caem radicalmente em 1826-30, retornando aos padrões de uma época (1789-1807) em que a capacidade de acumulação desta elite era menor.

Teriam os pequenos produtores, frente ao fim iminente do fluxo exterior de braços, mais do que quaisquer outros, incrementado as suas compras, explicando-se, desse modo, que dois entre cada três de seus escravos fossem africanos? A falta de sustentação desta hipótese é flagrante: os pequenos produtores viram cair a sua participação na estrutura de posse de escravos depois de 1810, permanecendo baixa (10$ dos cativos) daí por diante. Por outro lado, a explosão dos preços dos escravos nesta última etapa do tráico legal por certo afastou ainda mais os mais pobres produtores do acesso ao mercado, em especial ao mercado de africanos.

Outro raciocínio é possível. Embora a busca por homens cativos continuasse a ser a tônica dos momentos de menores desembarques, o resultado inal era sempre um panorama menos desequilibrado no interior das grandes propriedades do que nas pequenas, dado que naquelas se incrementava a frequência de crioulos através dos nascimentos, os quais tendiam a ter como padrão sexual 1/1. Daí explicam-se, para o intervalo 1789-1807, as taxas de africanidade (48,1$) e de masculinidade (56,6$) dos grandes plantéis serem sempre menores do que nos pequenos - respectivamente, 59$ e 61,6$.

Como a abertura dos portos significou um crescimento geral dos preços dos cativos, a entrada na etapa ascendente do tráico implicou em que, mais do que a pequena empresa, as grandes comprassem mais homens estrangeiros, com o que se exacerbaram seus índices de masculinidades. Explica-se, assim, por que as taxas de africanidade (61,7$) e de masculinidade (65,7$) dos grandes plantéis eram então sempre maiores do que nos pequenos - respectivamente, 59,9$ e 55,2$.

Nos momentos de crise da oferta de braços, estes padrões continuaram vigentes: a alta dos preços dos escravos, a preferência por homens, e a tendência a uma maior frequência de nascimentos no interior dos grandes plantéis. Contudo, em particular diante de uma crise que se mostrava definitiva como a que desencadeou o fim oficial do tráfico atlântico em 1830, a esses padrões se agregou a preocupação senhorial em aumentar os índices de reprodução natural da escravaria, o que, no caso brasileiro, refletiu-se no incremento do mercado de mulheres, em especial do mercado interno de cativas 20 Dada a natureza inelástica do mercado interno em geral, a maior procura por escravas se traduziu em um tráico interclasses de mulheres.

Assim, se os índices de masculinidade eram altos para os pequenos plantéis entre 1826 e 1830 (62,5$ contra 59,8$ dos grandes plantéis), isso se devia não a uma maior compra de africanos homens, mas sim à perda de mulheres (africanas e crioulas) para as grandes unidades produtoras, que buscaram maximizar os potenciais internos de autorreprodução de sua escravaria. Isso poderia explicar inclusive o fato de os homens serem minoritários no interior das grandes propriedades. Eram bastante elásticas as opções demográicas da empresa escravista.

A argumentação até aqui desenvolvida possui agora dois eixos: o de que os nascimentos de escravos tendiam a ser mais frequentes no interior dos grandes plantéis, e que, em épocas de crise da oferta, incrementava-se um tráico interclasses, pautado fundamentalmente na compra de mulheres cativas. Por certo, provar este conjunto de circunstâncias exigiria cruzar os inventários post-mortem com tipos outros de fontes, tais como registros de batismos e de compra e venda de cativos. Contudo, os próprios inventários podem oferecer importantes indicações que ajudam a sustentar nossa argumentação e que se referem à possibilidade de trabalhar com as taxas de dependência das faixas de plantéis.

A mesma tabela 3 demonstra que a escravidão, ao poder se reproduzir fisicamente através do mercado de braços, tendia a produzir baixas taxas de dependência 21. Entretanto, mesmo baixas, essas taxas variavam no interior dos plantéis de acordo com os seus respectivos tamanhos e as fases dos desembarques.

Para o período 1789-1807, embora as taxas de dependência fossem mais ou menos equivalentes para pequenos e grandes plantéis (0,96 e 0,93), elas se alimentavam de faixas etárias distintas: de idosos (21,8$) nos pequenos, e de infantes (30,8$) nos grandes, com a participação dos adultos permanecendo praticamente no mesmo patamar em ambos (ao redor de 51$). É possível, pois, airmar serem os nascimentos nos grandes plantéis os fatores que impediam uma brusca queda da taxa de dependência, mesmo em fases de relativa estabilidade do tráico de escravos.

Além disso, eram esses mesmos nascimentos os responsáveis pelo fato de os africanos serem minoria (48,1$) entre os escravos dos grandes estabelecimentos.

Com o advento da chegada da família real, a extraordinária compra de homens estrangeiros adultos seria decisiva para a baixa da taxa de dependência nas grandes propriedades, do que derivou a queda relativa da participação dos infantes (para 22$) nestes plantéis. Observe-se que, impossibilitados, pelos altos preços, de irem em massa ao mercado, os pequenos estabelecimentos viram a sua escravaria envelhecer, com todos os outros índices tendendo a manterem-se mais ou menos nos mesmos níveis de antes de 1808.

Entrada a etapa de crise da oferta de africanos, já o vimos, embora comprassem a maior parte dos escravos desembarcados, os grandes plantéis conheceram taxas de masculinidade e de africanidades menores do que a dos plantéis menos extensos. É que elas se nutriam de dois movimentos retroalimentadores: os nascimentos normalmente mais frequentes nos grandes estabelecimentos e a política deliberada dos grandes proprietários no sentido de adquirir mais mulheres crioulas aos pequenos estabelecimentos. Por isso a participação dos infantes saltou para 30,2$, e a taxa de masculinidade entre os crioulos baixou para 52,3$. Este incremento de reprodução natural redundou em que a taxa de dependência tendesse a crescer nestas grandes propriedades em relação à etapa anterior, de ampla expansão do mercado de braços.

Outra prova de nossa argumentação pode ser obtida através do trabalho com as variações das taxas de masculinidade entre os escravos adultos nascidos no Brasil. O gráfico 4 demonstra claramente que, com a abertura dos portos, a taxa de masculinidade dos adultos crioulos dos pequenos plantéis tendeu a crescer pouco, ao contrário da acentuada alta observada nos grandes: diferença que remete à intensidade da participação destes últimos no mercado.

Contudo, na crise da oferta africana, as taxas obedecem a movimentos inversamente proporcionais nas diferentes faixas de plantel: o que mostra ser a maior presença relativa de mulheres nos grandes estabelecimentos, resultado de compras realizadas junto aos pequenos proprietários - um tráico interclasses, enfim.


Comentários

* Esta investigación contó con apoyo financiero del Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, del Ministerio de Ciencia y Tecnología de Brasil.

1 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais (Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia e EDUSP, 1975), 53.

2 Manolo Florentino e José Roberto Góes, A paz das senzalas (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997), capítulo 7.

3 Arquivo Nacional (an), Rio de Janeiro, Brasil, Códice 425. Dentre os escravos africanos exportados para as Américas, 70$ tinham menos de 30 anos, uns 5$, mais de 40 anos, e 22$, menos de 20 anos de idade. Desconsiderando as variações regionais, a relação entre o número de homens e o de mulheres nos navios negreiros girava ao redor de dois por um. Ver Henry A. Gemery e Jan S. Hogendorn, "The economic cost of West African participation in the atlantic slave trade: a preliminary sampling for the eighteenth century", em The uncommonmarket (essays in the economic history of the atlantic slave trade), orgs. Henry A. Gemery e Jan S. Hogendorn (Nova York: Academic Press, 1979), 154; Philip D. Curtin, Economic change in precolonial Africa: Senegambia in the era of the slave trade (Madison: Wisconsin University Press, 1975), 157.

4 Vanessa Gomes Ramos, "Escravos da religião - alforriandos do clero católico no Rio de Janeiro (1840-1871)" (Dissertação de Mestrado em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007), 67.

5 "As características demográficas dos recém-chegados escravos africanos, explicadas, principalmente, pela maior demanda do sexo feminino dentro da África e pelo desinteresse comercial pelo tráfico de crianças, justificam a estatística incomum, relativa ao [desequilíbrio de] sexo e idade dos africanos, tanto no primeiro censo de 1872, como nos censos regionais anteriores". Herbert S. Klein, "Tráfico de escravos", em Estatísticas históricas do Brasil (Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1986), 53.

6 Manolo Florentino, Em costas negras (São Paulo: Companhia das Letras, 2010), 236.

7 John Monteiro, Negros da terra (São Paulo: Companhia das Letras, 1985), 84.

8 Maurício Goulart, A escravidão africana no Brasil (São Paulo: Alfa Omega, 1975), 221-224.

9 Toda a correspondência mencionada adiante se encontra no AN,Junta do Comércio, caixa 398, pacote 1, e foi produzida entre 1818 e1823.

10 Herbert S. Klein, "The portuguese slave trade from Angola in the 18th century", em The middle passage (comparative studies in the atlantic slave trade), org. Herbert S. Klein (Princeton, Princeton University Press, 1978), 54-56.

11 AN, Real Junta do Comércio, caixa 433, pacote 2. Não me parece que a expressão "peça de índias" tenha, no século xix, o mesmo que tinha no assento de Grillo e Lomelim, de 1662, ao qual se refere Maurício Goulart. Ou seja, que a expressão remeta a "um e meio, ou dois pretos, para perfazer uma peça", ou a "2 negros, dos 35 aos 40 anos, [que] valiam uma peça" - Maurício Goulart, A escravidão africana no Brasil (São Paulo: Alfa Omega, 1975), 102-103. Até porque, como quer o próprio Goulart, com o tempo a conta das importações passou a ser feita por toneladas. A referência que a carta de instruções de Joaquim Ribeiro de Brito faz à "peça de índias" parece-me referir-se a um escravo adulto.

12 AN, Rio de Janeiro, Brasil, Despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819- 1833, Códice 245.

13 Herbert S. Klein, "The portuguese slave", 23-50.

14 Mary Karasch, A vida dos escravos, 69-71.

15 O argumento é o de que, por ser a mulher a principal força de trabalho agrícola de grande parte da África e, ao mesmo tempo, por constituir-se em veículo primordial da reprodução física dos indivíduos, uma vez escravizada, seu preço seria superior ao do homem no mercado africano - ver Herbert S. Klein e Stanley Engerman, "A demografia dos escravos americanos", em População e sociedade, org. Maria L. Marcílio (Petrópolis: Vozes, 1982), 208-227.

* David Eltis, Economic growth and the ending of the transatlantic slave trade (Nova York: Oxford University Press, 1987), 69.

17 A julgar pelo caso do Progresso (1843), negreiro proveniente de Paranaguá que foi capturado em Moçambique depois de haver embarcado escravos, os navios procedentes da África Oriental pautavam-se também pela imensa presença de crianças. Em seu interior contava-se 189 homens - "poucos, no entanto, passando dos vinte anos" -, 45 mulheres e 213 meninos (boys, no original inglês). Pascoe G. Hill, Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro (Rio de Janeiro: José Olympio, 2006), 62.

18 David Eltis, Economic growth, 257.

19 Manolo Florentino e José Roberto Góes, A paz das senzalas, 129-168.

20 A preocupação senhorial com o incremento das taxas de reprodução natural em momentos de crise da oferta foi também detectada pelos proprietários do sul dos Estados Unidos: "O paternalismo encorajado pela proximidade física de senhores e escravos foi enormemente reforçado pelo fechamento do tráfico de escravos africanos, o que obrigou os senhores a dedicar mais atenção à reprodução de sua força de trabalho" - Eugene D. Genovese, A terra prometida (o mundo que os escravos criaram) (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978), 23.

21 Taxa dada pela fórmula (número de infantes + número de mulheres)/(número de adultos).


Referências

Fontes primárias

Arquivos:

Arquivo Nacional (an), Rio de Janeiro-Brasil. Registro da Polícia de saídas de escravos, Despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, Inventários post-mortem do Rio de Janeiro, e Junta do Comércio.         [ Links ]

Documentação primária impressa:

Hill, Pascoe G. Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.         [ Links ] Saint-Hilaire, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte e São Paulo: Editora Itatiaia/Edusp, 1975.         [ Links ]

Fontes secundárias

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