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Historia Crítica

Print version ISSN 0121-1617

hist.crit.  no.71 Bogotá Jan./Mar. 2019

https://doi.org/10.7440/histcrit71.2019.03 

Tema libre

“Por que devemos ser bons para com os animais?” A formação prática e moral dos brasileiros por meio dos discursos de proteção aos animais (1930-1939)*

“¿Por qué debemos ser buenos con los animales?” La formación práctica y moral de los brasileños por medio de los discursos de protección a los animales (1930-1939)

“Why Must We be Kind to Animals?” The Practical and Moral Training of Brazilians by Discourses on the Protection of Animals (1930-1939)

Natascha Stefania Carvalho de Ostos** 

** Professora substituta do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). Graduada em História e Direito, mestre e doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora no grupo História e Natureza. Suas últimas publicações são: “União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo: práticas, discursos e representações de uma entidade nas primeiras décadas do século XX”. Revista Brasileira de História 37, n.° 75 (2017): 297-318, http://doi.org/10.1590/1806-93472017v37n75-13; “A luta em defesa dos animais no Brasil: uma perspectiva histórica”. Ciência e Cultura 69 (2017): 54-57 e “‘Terra adorada, mãe gentil’: l’image de la nature et du féminin dans la construction de l’idée de Brésil-nation (1930-1945)”. Cahiers des Amériques Latines n.° 82 (2016): 155-170, http://doi.org/10.4000/cal.4374. nataschaostos@hotmail.com


Resumo:

Objetivo/contexto:

O artigo analisa a trajetória da Sociedade União Infantil Protetora dos Animais, por meio da revista Amigo dos Animais, editada por essa organização ao longo da década de 1930. A criação da entidade ocorreu em um contexto de expansão da chamada causa animal no Brasil, marcado pela atuação das entidades protetoras, pela promulgação da primeira lei federal de proteção aos animais, no ano de 1934, e pelo crescente interesse da imprensa e da opinião pública no assunto.

Originalidade:

A História Ambiental é um campo de pesquisa já assentado na América Latina. Contudo, a vertente da História dos Animais tem sido pouco explorada, particularmente no Brasil, requerendo a atenção dos estudiosos. Este artigo investiga a atuação de grupos protetores dos animais, assunto praticamente inédito na historiografia brasileira, lançando mão de um impresso ainda não estudado, a revista Amigo dos Animais.

Metodologia:

A investigação privilegia o enfoque representacional dos animais, partindo da análise da atuação e dos discursos produzidos pela Sociedade União Infantil Protetora dos Animais. Consideramos que as ações e as narrativas que constroem o animal simbólico mantém uma tensa relação com o chamado animal “real”, transitando entre a dependência da materialidade e o recurso à imaginação.

Conclusões:

O estudo demonstra que os enunciados da sociedade protetora, ao lidarem com as categorias de homem e de animal, eram perpassados por contradições que a todo o momento deixavam a descoberto o caráter instável desses conceitos. Evidenciamos que a defesa dos animais também suscitava dilemas éticos e políticos, pois implicava na necessidade de escolher quais seriam os limites dessa proteção.

Palavras-claves: Brasil; animais; imprensa; sociedades protetoras

Resumen:

Objetivo/contexto:

el artículo analiza la trayectoria de la Sociedade União Infantil Protetora dos Animais, por medio de la revista Amigo dos Animais, editada por esta organización a lo largo de la década de los 1930. La fundación de la entidad ocurrió en un contexto de expansión de la llamada causa animal en Brasil, marcado por la actuación de las entidades protectoras, por la promulgación de la primera Ley Federal de Protección a los Animales, en 1934, y por el creciente interés de la prensa y la opinión pública en el tema.

Originalidad:

la Historia Ambiental es un campo de investigación ya asentado en América Latina. Sin embargo, la vertiente de la Historia de los Animales ha sido poco explorada, particularmente en Brasil, requiriendo la atención de los estudiosos. El artículo investiga la actuación de grupos protectores de los animales, asunto prácticamente inédito en la historiografía brasileña, recurriendo a un impreso todavía no estudiado, la revista Amigo dos Animais.

Metodología:

la investigación privilegia el enfoque representacional de los animales, desde el análisis de la actuación y los discursos producidos por la Sociedade União Infantil Protetora dos Animais. Consideramos que las acciones y las narrativas que construyen el animal simbólico mantienen una tensa relación con el llamado animal “real”, transitando entre la dependencia de la materialidad y la imaginación.

Conclusiones:

el estudio demuestra que los enunciados de la sociedad protectora, al lidiar con las categorías de hombre y de animal, eran traspasados por contradicciones que a todo momento dejaban a descubierto el carácter inestable de estos conceptos. Evidenciamos que la defensa de los animales también suscitaba dilemas éticos y políticos, ya que implicaba la necesidad de elegir cuáles serían los límites de esta protección.

Palabras clave: animales; Brasil; prensa; sociedades protectoras

Abstract:

Objective/context:

This article analyzes the development of the Sociedade União Infantil Protetora dos Animais, through its magazine Amigo dos Animais, published by that organization throughout the 1930’s. The organization was founded in a context where there was more and more of a commitment to the cause of the animals in Brazil, marked by the work of such animal protection societies, the passing of the first federal law for the protection of animals in 1934 and the growing interest in the subject on the part of the press and public opinion.

Originality:

Environmental History is a field of research which is already well established in Latin America. However, the branch of it which is devoted to the History of Animals has been little explored, especially in Brazil, and requires more attention from scholars. This article investigates the work of groups devoted to the protection of animals, a subject which has been practically ignored in Brazilian historiography, and it makes use of a publication which has not been previously consulted either, the magazine Amigo dos Animais.

Methodology:

This investigation favors the representational focus on animals, with an analysis of the work and discourses of the Sociedade União Infantil Protetora dos Animais. We believe that the actions and narratives which create the symbolic animal uphold a tense relation with what is called the “real” animal, moving between a dependence on materiality and a resort to the imagination.

Conclusions:

This study shows that by contending with the categories of man and animal, the pronouncements of the animal protection society were shot through with contradictions which always revealed the wavering nature of these concepts. We provide evidence of how the defense of animals also roused ethical and political dilemmas, since it implied a need to choose what the limits of that protection would be.

Keywords: Brazil; animals; press; societies for the protection of animals

Introdução

A pergunta que compõe o título deste artigo parece, à primeira vista, bastante simples e incapaz de suscitar maiores reflexões. Porém, a questão levantada por uma revista infantil brasileira na década de 19301 integra, sob diversas formas, o campo de consideração de pensadores durante séculos2. No limite, a pergunta nos indaga sobre dilemas e paradoxos difíceis de lidar, como: quais as diferenças entre os chamados seres humanos e os ditos animais? Qual a fronteira que delimita essa separação e o que ela implica para os dois polos da equação? Para além daquilo que nos separa dos animais, o que nos une a ponto de acreditarmos que, em algum nível, devemos ser bons para com eles? Em que se baseia esse dever ser, essa obrigação de bondade? Em comparação com a filosofia e com a antropologia, a história adentrou esse domínio há pouco tempo, mas as pesquisas realizadas já têm sido suficientes para indicar uma possível inflexão no que refere à própria teoria da história, a começar pela consideração de que, ao se falar “de duas bordas, O Homem e o Animal em geral [...] só se pode, aliás, falar aqui de história, de momento ou de fase histórica, a partir de uma borda presumida da dita ruptura, a borda de uma subjetividade antropocêntrica que, autobiograficamente, se conta ou se deixa contar uma história, a história de sua vida - que ela chama a História3.

Assim, aqueles a quem chamamos animais constituem o centro invisível, silenciado, da nossa própria constituição como humanos, um conjunto de seres vivos aos quais atribuímos uma falta, a falta que torna possível que nós mesmos nos distingamos como sujeitos. O animal é uma construção (não os seres concretos que habitam o mundo), categoria genérica criada pelo homem para se diferenciar do restante dos viventes. Isso não implica a negação de uma peculiaridade humana, já que parte do problema reside justamente no fato de que, se pensamos os animais como falhos ou inferiores, é justamente em razão de avaliá-los de acordo com nossas próprias características. Acompanhamos o entendimento de Erica Fudge, no sentido de que, “Ao empregar e, simultaneamente, deixar a descoberto o conceito de ‘animal’ como um cobertor para uma multiplicidade desconcertante de relações, eu espero ter destacado o desconforto, a variedade e as limitações dessas relações. E daí, talvez, possamos escrutinar não somente o conceito, mas também as relações vividas”4.

A história, ao lidar com essas relações vividas, tensiona as abstrações criadas pelos ensaios reflexivos e aponta para inúmeras formas de estar no mundo, “humanos e animais são seres reais e não apenas conceitos abstratos [...] é vivendo com outras espécies companheiras - outros reais - que nós somos aptos a ser e então pensar”5. Nesse sentido, mesmo se aquilo que dizemos sobre os animais se baseie em documentos produzidos por humanos, a partir das nossas representações, isso não é um mal em si, a não ser para aqueles que acreditam na existência de uma realidade última e verdadeira a ser descoberta, em que se esconde O animal. Trata-se de fazer uma história dos viventes, chamados humanos e animais, em sua multiplicidade corpórea e simbólica, de forma que a ênfase de cada pesquisa no aspecto material ou no representado não necessariamente avaliza uma visão unilateral de mundo.

Apesar de a proposta deste artigo envolver uma perspectiva representacional dos animais, por meio do estudo da trajetória da Sociedade União Infantil Protetora dos Animais (Suipa), principalmente através da sua revista Amigo dos Animais, procuramos não reforçar uma visão passiva dos bichos, questionando sempre os a priori antropocêntricos. Acreditamos que pesquisas como esta são úteis se, primeiro, forem conscientes das bases teóricas e metodológicas pelas quais se movimentam e dos estereótipos com os quais lidam; segundo, produzirem conhecimento sobre uma área incipiente dos estudos históricos, que ainda busca se afirmar através de trabalhos sistemáticos, tanto do ponto de vista da teoria como do dos estudos documentais6; terceiro, problematizarem os diversos critérios de classificação que definem e, portanto, separam e hierarquizam os viventes, pois precisamos conhecer e entender a produção dessas diferenças ao longo da história, do contrário apenas reafirmamos princípios abstratos sem conhecer os discursos, as circunstâncias e experiências, que, ao mesmo tempo, representaram/materializaram os chamados animais. A partir desses estudos, poderemos então questionar a pretensa estabilidade da categoria animal como pressuposto a-histórico capaz de conferir homogeneidade a toda uma gama de seres vivos.

Assim, dentro do estado atual do campo acadêmico da história dos animais, este trabalho apresenta sua contribuição por meio de duas vertentes principais. Primeiramente, apresentamos uma abordagem descritiva do quadro histórico relativo à proteção dos animais no Brasil da década de 1930. Tal perspectiva se justifica tendo em vista que essa área de estudos é incipiente no país, e até na América Latina, demandando que os pesquisadores estabeleçam um painel informativo básico, capaz de alicerçar, historicamente, qualquer ambição reflexiva. A segunda vertente, realizada concomitantemente à primeira, problematiza a ação e as falas da Suipa, apresentando a tese de que, na aparente simplicidade de suas manifestações práticas e discursivas, a organização evidenciava tensões sociais e históricas primordiais da relação homem-animal que, em última instância, pressionavam os próprios limites culturais criados para separar e definir os seres humanos e os bichos.

1. Sociedade União Infantil Protetora dos Animais

No início da década de 1930, o Brasil passava por grandes transformações políticas, econômicas e sociais. As oligarquias regionais que governavam o país desde o início do século XX tiveram seu poder contestado por dissidências internas, por uma nova classe média que se afirmava nos centros urbanos e por movimentos sociais, de operários e camponeses que questionavam sua exclusão das instâncias decisórias e a falta de direitos sociais básicos7. Nesse contexto, Getúlio Vargas, membro da tradicional oligarquia do estado do Rio Grande do Sul, consolidou-se como agente capaz de canalizar as vozes descontentes em torno de um projeto nacional que acomodava as reivindicações de diversos grupos sem, contudo, contestar as bases econômicas e políticas que garantiam a primazia social das elites do país. Através de um golpe, Vargas ascende ao poder em outubro de 1930, episódio conhecido como a Revolução de 1930, que deu início a uma longa série de reformas que englobaram, por exemplo, o campo das leis trabalhistas, da economia e do ensino, promovendo uma face modernizante do Brasil, de feição moralista e nacionalista.

O país passava por uma expansão dos centros urbanos, principalmente das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, avivadas pelos recursos advindos da exportação de café, do intenso fluxo de imigrantes europeus, da massa de ex-escravos, livres após a abolição em 1888, e da crescente demanda por serviços e bens de consumo que estimulavam o comércio e a indústria. A cidade de São Paulo se afirmava como o centro econômico da nação e ultrapassava, em meados de 1920, a capital, Rio de Janeiro, em termos de concentração de capitais8. Esses fatores impactaram a organização urbana, com o crescimento do número de habitantes, a abertura de ruas e a melhoria do sistema de transporte, a preocupação com a saúde e higiene públicas, a multiplicação de pessoas desocupadas, questões que afligiam moradores e demandaram ação do poder público. A esse contexto, somava-se a força dos projetos políticos nacionalistas, que mobilizavam os setores médios a favor dos ideais de progresso, desejosos de formar uma população brasileira saudável, moralmente sólida, comprometida com a nação, com o trabalho e com a cooperação social.

Em sintonia com essa conjuntura, é fundada, em janeiro de 1930, na capital paulista, a Suipa, com o objetivo de “Trabalhar pelo progresso intelectual e moral da criança, despertando o seu espírito de solidariedade e cultivando em seu coração o amor, a proteção e o respeito à vida dos animais”9. A organização teve como fundadores e sócios pessoas de destaque, membros da elite local ligados a profissões liberais, ao comércio, à literatura, ao ensino e à administração pública. Percebe-se, contudo, que os sócios masculinos desempenhavam um papel formal, preenchendo os altos cargos e fazendo-se presentes como porta-vozes da sociedade nos eventos importantes, a fim de conferir prestígio, solidez e seriedade à agremiação, tendo em vista que iniciativas exclusivamente femininas poderiam ser vistas com desconfiança no meio conservador da época. Isso fica claro no próprio ato de fundação da Suipa, quando o presidente designado, Oscar Moreira, “felicitou as exmas. senhoras promotoras desta futurosa e benéfica organização”10. Assim, o trabalho cotidiano, as campanhas e iniciativas rotineiras eram capitaneadas pelas mulheres, responsáveis por lidar com o público em geral e com o dia a dia da entidade.

Considerando a condição privilegiada da maioria dos integrantes da Suipa, eles conseguiram abrir um canal de diálogo com altas instâncias do poder público e criaram projetos que contaram com o apoio declarado de autoridades, da imprensa e do empresariado. Os eventos da entidade recebiam cobertura positiva dos jornais e eram prestigiados por representantes do governador de São Paulo, do prefeito da capital, da cúria católica, da guarda civil e de inspetores de ensino. Além da legitimidade social conferida pela relação próxima com os poderosos, a entidade obteve o suporte de homens de negócios, que cediam seus estabelecimentos para a realização de encontros, ofertavam brindes e prêmios a serem distribuídos e patrocinavam outras necessidades da organização. Dentre os apoiadores da entidade, destacamos: Phillips, Chevrolet, The Nacional City Bank, Companhia de Seguros “A São Paulo”, Caixa Econômica Federal de São Paulo, Sociedade Anônima Leônidas Moreira (corretores), dentre muitos outros. Não vemos nessa rede de suporte uma necessária adesão à causa de proteção aos animais, e sim aos indivíduos que compunham a Suipa, capazes de mobilizar, por meio de suas privilegiadas relações pessoais e profissionais, a solidariedade entre iguais.

Dentre os integrantes da sociedade, destaca-se a participação majoritária de professoras, o que explica o foco da entidade na formação infantil e o seu caráter mais educativo do que propriamente de denúncia. Atentas ao ambiente político e cultural da época, de crítica a saberes “artificiais”, desconectados da vida prática e das necessidades concretas da população, as professoras buscaram aproximar-se das crianças por meio de projetos pedagógicos que conjugavam informações úteis, diversão e ações edificantes. No Brasil da década de 1930, o crescimento urbano desordenado alimentava uma visão idealizada do campo, tido como o espaço nacional por excelência, guardião das riquezas naturais, dos verdadeiros valores brasileiros, em contraste com a vida afetada dos moradores das cidades, desconectados da natureza e do trabalho ligado a terra, ao solo pátrio11. Portanto, esse ambiente de valorização política do mundo natural, fonte de fortuna material e de lições morais, delineou um ambiente social propício para a disseminação da causa animal; não por acaso, no ano de 1934, é publicada a primeira lei nacional voltada especificamente para a proteção dos bichos, resultado da ação de sociedades protetoras, mas que encontrou pronta ressonância no governo de Getúlio Vargas12.

A Suipa tinha como lema “Pela Educação Moral das Crianças e Proteção aos Animais”, diferenciando-se de outras sociedades protetoras existentes, como a União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo (1895) e a Sociedade Paulista Protetora dos Animais (1932), que se concentravam no resgate e cuidado de animais feridos e abandonados. A nosso ver, a preocupação conjunta com as crianças e os animais partilhava, em certa medida, um desejo de domesticação e controle de hábitos e comportamentos tidos como desordenados. Crianças, principalmente de tenra idade, são constantemente associadas a animais por darem vazão a desejos e a necessidades fisiológicas fora das normas sociais, de descontrole por meio de choros e gritos (uso precário da linguagem verbal), necessitando, por meio de incentivos e repressão, serem enquadradas quanto à expressão aceitável de impulsos físicos e da própria vontade13. Por outro lado, animais domésticos também são comparados a crianças por dependerem dos humanos para acessarem abrigo e comida14. Logo, as intenções da Suipa convergiam quanto ao desejo de zelar pelos seres tidos como mais fracos e desprotegidos, crianças e animais, considerados aliados naturais.

Mesmo a Suipa tendo por foco o assunto da proteção aos animais, essa temática era, muitas vezes, a ponta de lança para adentrar outros tópicos, como a necessidade de propagar hábitos de higiene entre as crianças, de incentivar a dedicação aos estudos e ao trabalho, o amor à pátria e o espírito de cooperação familiar e social. As iniciativas da associação envolviam a promoção de concursos de redação, de construção de comedouros para aves, a realização de chás e sorteios para a arrecadação de fundos, a distribuição de cartões com mensagens educativas etc. A entidade concentrava suas ações na cidade de São Paulo, contando com uma boa rede de divulgação na imprensa local, de tal forma que um concurso promovido para eleger o melhor comedouro para aves construído por crianças contou, em 1930, com mais de 25 mil votos depositados por visitantes da exposição15. Apesar do seu caráter local, a Suipa também tinha interesse na expansão da causa e enviou, em 1931, “uma delegação ao Rio, a fim de fundar nesta cidade uma associação congênere”16. Contudo, isso não quer dizer que a agremiação se dirigisse a qualquer tipo de público; suas ações eram elitizadas, voltadas para uma camada infantil bem alfabetizada, inserida no sistema de ensino17.

No Brasil, foi no contexto de valorização da educação prática e do mundo natural que proliferaram as entidades protetoras dos animais, o que já vinha ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos da América desde meados do século XIX18. Assim, a Suipa encontrou terreno fértil para a propagação de suas ideias, recebendo apoio do sistema oficial de educação. Já em 1930, a entidade tinha permissão expressa da diretoria de Instrução Pública de São Paulo para contatar os diretores das escolas públicas e articular palestras, concursos escolares, comemorações e atividades acadêmicas, “dando à criança de gravar as melhores impressões de carinho e entusiasmo em prol dos animais”19. O Grupo Escolar Rural do Butantan, na capital paulista, destacou-se como educandário modelo nesse projeto de intensa cooperação da Suipa com as escolas. Ali funcionava uma espécie de laboratório do ensino rural no estado, onde se “criava uma complexa rede de temas e posturas que articulavam conhecimento do mundo do trabalho rural, patriotismo e higiene eugênica”20.

As diretoras da Escola Butantan, Dinorah Chacon e Noêmia Mattos Cruz, estavam especialmente envolvidas nos projetos oficiais em prol do ensino rural; Noêmia Cruz tinha cursado disciplinas como Apicultura e Zootecnia Geral, e Veterinária, sendo, em 1943, alçada ao posto de Inspetora do Ensino Rural do Governo Federal21. Dada a composição societária da Suipa, formada por muitas professoras, não é de se estranhar a sua aproximação com a escola modelo, sempre presente nas páginas da revista Amigo dos Animais como exemplo a ser seguido, “As professoras daquela casa de ensino souberam implantar no espírito dos alunos a mais justa compreensão do que deve ser o amor aos animais, às plantas, a todas as coisas vivas da natureza”22. Na imagem 1, vemos uma fotografia publicada na revista da entidade, Amigo dos Animais, retratando um encontro comemorativo na escola Butantan em prol dos animais. A ocasião contou com a presença de membros da Suipa, que incluía a diretora do impresso, Zizi Moreira, que distribuiu exemplares para as crianças. Nota-se como a instituição escolar possuía uma área grande, tendo em vista sua ênfase no ensino rural; em muitos desses eventos, os alunos eram incentivados a levar seus animais de estimação, daí a grande quantidade de bichos na imagem - incluindo gatos -, um coelho enjaulado, muitos cães e dois cavalos que, supomos, deveriam pertencer à escola, já que ali se desenvolviam atividades agrícolas. Cumpria-se assim o objetivo de levar o tema da proteção aos animais para dentro dos colégios, evidenciando o impressionante esforço da Suipa em concretizar uma proposta educativa inédita e inovadora, tendo em vista que a pauta de defesa dos animais era assunto pouco conhecido ou irrelevante para a maioria da população brasileira na década de 1930.

Fonte: “Uma bela demonstração educativa”, Amigo dos Animais, outubro [n.° 42], 1934, 27, em Acervo particular de Regina Horta Duarte.

Imagem 1 Fotografia de evento ocorrido na escola Butantan com a colaboração da Suipa 

A estratégia encontrada pela associação para alcançar o maior número possível de crianças foi bastante inteligente, pois, ao invés de dispersar suas ações perante uma audiência pulverizada e até mesmo desinteressada, direcionou seus esforços para as escolas da região que, mais do que concentrar grande número de crianças, sujeitava-as a um projeto pedagógico e de conteúdo obrigatórios. Daí que ter uma boa relação com a Inspetoria de ensino era fundamental, já que dela dependia a autorização para adentrar o universo escolar e convocar diretores e professores a inserir a temática da proteção aos animais no cotidiano da sala de aula.

Todas essas informações concernentes à Suipa são fundamentais para compormos uma visão ampla de sua atuação, já que o impresso Amigo dos Animais era definido como o porta-voz da entidade, dependendo dela, portanto, para estabelecer a sua linha editorial. Naquele contexto, os movimentos de proteção aos animais já possuíam uma feição organizada e coletiva, conquistando visibilidade na imprensa, legitimidade perante o governo e, aos poucos, alguma ressonância social. O incremento da urbanização nos parece fenômeno importante para a compreensão do aguçamento da sensibilidade em torno da causa animal. O crescente afastamento da vida do campo e dos próprios bichos, dos mecanismos de criação e abate, além dos avanços tecnológicos que introduziam meios de transporte e de força motriz independentes dos animais, colaboraram para aprofundar a intolerância dos citadinos para com o derramamento de sangue, os odores e visão de dejetos, os sons de agonia, a concentração de pulgas, carrapatos e moscas23. É certo que os bichos usados para tração e outros trabalhos ainda eram muito comuns nas cidades do Brasil de então, mas o esforço para afastar ou ocultar as atividades desagradáveis correlatas à presença dos bichos era cada vez maior.

No caso do campo, já na década de 1930, o governo Vargas investia em políticas públicas para a implantação de uma agropecuária profissional, que visasse concretizar o que se acreditava ser a vocação agrícola do país, de feição exportadora. Nesse cenário, exacerbado ao longo dos anos, a criação intensiva ganhava relevo, com os bichos submetidos a condições cada vez mais restritivas, vivendo, do nascimento à morte, em pequenas baias, com mínima capacidade de movimento, em locais fechados e lotados, obrigados a intervenções físicas invasivas e mecanizadas, com o intuito de extrair máxima produtividade no menor tempo possível. O processo industrial de criação de animais, ao mesmo tempo que afastou os bichos das vistas de uma parte significativa da população, introduziu técnicas padronizadas, sequenciais e impessoais de manipulação, como no caso dos abatedouros, verdadeiras fábricas de produzir carne24. No caso do Brasil, paralelamente à busca da racionalização das atividades agropecuárias, romantizava-se a vida rural como genuína e virtuosa, e os animais como puros e autênticos, em contraposição à malícia humana. É importante destacar, ainda, que no Brasil as primeiras décadas do século XX foram marcadas pela reivindicação de direitos por operários, mulheres e camponeses; as leis trabalhistas mais importantes da história do país, com ressonância até os dias de hoje, foram criadas nesse período. O governo Vargas procurou canalizar a luta dos excluídos para projetos oficiais que enalteciam a ética do trabalho, do esforço e da produtividade como forma de construir um Brasil economicamente desenvolvido e formar cidadãos operosos. Foi nesse contexto que a condição subalterna dos animais ganhou relevo, pois o cavalo, o burro, o boi não eram também trabalhadores? Não mereciam algum tipo de resguardo?

A Suipa enfatizava constantemente o caráter colaborativo dos animais, sua fidelidade e obediência, o que lhes conferia o merecimento da proteção. A entidade, apesar de combater veementemente a crueldade contra qualquer ser, distinguia os animais úteis daqueles nocivos, assim qualificados por colocarem em risco a vida humana, ou por causarem doenças e danos materiais. Portanto, mesmo a Suipa sendo uma organização que se esforçava em questionar os limites do poder humano sobre os animais, ela não aprofundava a prática reflexiva a ponto de desafiar o lugar central dos homens no mundo ou o seu direito de dominar outras criaturas em benefício próprio. Mas tal postura, emanada de uma sociedade protetora de animais, criava desconfortos e contradições difíceis de sanar, como veremos no exame do periódico editado pela associação.

2. A revista Amigo dos Animais

A ideia de criar um impresso que pudesse propagar as ideias da Suipa e ser o porta-voz da entidade já constava do estatuto de fundação do grupo; o projeto foi concretizado em abril de 1931, com a edição do primeiro exemplar25. De circulação mensal, o periódico foi editado entre 1931 e, provavelmente, 1939, media entre 18 x 26 cm, com número de páginas que variava entre 32 e 48, confeccionado em papel jornal, mas a capa e algumas páginas do miolo vinham em papel couché. Predominantemente em preto e branco, mas outros coloridos apareciam na capa, em ilustrações e nas propagandas. A publicidade era farta e responsável, junto com a comercialização da revista, pela viabilidade financeira do impresso, que além de ser vendido nas bancas da cidade também poderia ser assinado. No esforço para conseguir assinaturas, promoviam-se concursos e a distribuição de prêmios para as crianças subscritoras, além de inscrevê-las no Clube dos Jovens Protetores, que conferia diversos benefícios a seus membros, como o acesso privilegiado à biblioteca infantil da organização.

As propagandas presentes na revista versavam, em sua maioria, sobre objetos e serviços para uso humano (alimentos, roupas, seguros, medicamentos etc.), mas alguns itens eram voltados para os animais. Tal fato demonstra que, naquele momento, o mercado do que hoje chamamos dos pets era incipiente. A figura do veterinário já se afirmava como a autoridade no que concerne à saúde e ao comportamento dos animais, e podemos entrever nas páginas da revista o surgimento de um tímido comércio voltado para o cuidado dos animais de estimação. Anunciavam-se consultas veterinárias, produtos para combater vermes, pulgas e carrapatos, mas nada que se possa comparar ao gigantesco mercado atual direcionado aos bichos de companhia. Com frequência, a revista dedicava uma seção a consultas veterinárias por correspondência, o que evidencia diferenças com a prática profissional de hoje, já que o veterinário não só dava o diagnóstico à distância como também indicava a medicação a ser ministrada. Interessante notar a ausência, nos exemplares que tivemos acesso, da menção à ração para bichos; o insumo, hoje em dia recomendado como o alimento mais adequado para os animais, era praticamente inexistente no horizonte de possibilidade tanto para os veterinários como para os donos. A prescrição veterinária da dieta canina aconselhava “meio carnívora e meio herbívora [...] juntem-se o leite e o pão [...] Os legumes cozidos, as frutas, como ameixas, peras, bananas”26.

A revista não contava com muitas seções fixas, mas seu conteúdo transitava por um repertório de temas recorrentes: contos e fábulas, informações científicas, notícias sobre a proteção animal no Brasil e no mundo, curiosidades, concursos de desenho e escrita, fotografias de animais e dos seus donos, conhecimentos sobre história e geografia, divulgação das iniciavas da Suipa, preceitos de saúde e higiene, textos de cunho moralizante etc. O alvo da revista era as crianças, mas a proposta incluía fazer das escolas e dos pais os mediadores entre o conteúdo e o universo infantil. Assim, diversas passagens, como os editoriais de primeira página, dirigiam-se diretamente aos adultos. Em outros momentos, publicavam-se artigos para as mães, com dicas de higiene, cuidado físico e moral das crianças, com muita ênfase na saúde bucal. Tal peculiaridade se explica em razão da editora da revista, Zizi Moreira, ser, além de professora, dentista. Fato raro no país da época, uma mulher com diploma superior, dona Zizi fez da promoção do cuidado dos dentes uma verdadeira cruzada da revista (tanto que as propagandas mais comuns eram as de pasta de dente). Nesse aspecto, a missão esclarecedora da revista se alinhava com projetos políticos preocupados em depurar o tipo brasileiro de suas “imperfeições”, como evidencia a fala de um dentista publicada no periódico: “A odontologia para favorecer a eugenia, isto é, para conseguir uma ‘geração de indivíduos normais e perfeitos, e a repressão da progênie defeituosa e degenerada’, deverá empregar todas as suas conquistas para conseguir um tipo eugênico perfeito no ponto de vista odontológico”27.

A revista Amigo dos Animais tentava fazer a sua parte no que concerne à formação de uma população saudável e apta para o trabalho, sendo as crianças a esperança maior na busca por uma geração hígida. Mas, como administrar a população no seu aspecto biológico (natalidade, saúde, longevidade) sem atentar para o meio físico e para a existência dos demais viventes?28. Nesse sentido, era necessário estabelecer princípios para a criação dos bichos segundo diretrizes racionais, capazes de maximar a produção e evitar a transmissão de pragas e doenças para os humanos. Assim, no caso de Amigo dos Animais, vemos como a publicação se preocupa em consultar especialistas (veterinários, médicos, dentistas, agrônomos) para ensinar aos leitores como cuidar de si mesmos e dos seus animais, reforçando a perspectiva governamental da época segundo a qual o país precisava superar doenças, epidemias, condições insalubres e de desasseio, de desperdício dos recursos naturais, direcionando todas as energias do Brasil rumo ao desenvolvimento. Impossível gerir um conjunto populacional humano sem ao mesmo tempo cuidar dos animais que com ele compartilham espaço; no caso do ordenamento urbano, os problemas relacionavam-se com condições e locais apropriados para o abate e o armazenamento de carne, recolha de dejetos, regras de salubridade para o confinamento de animais vivos, condição física dos bichos usados em transporte e tração, eliminação dos cães e gatos vadios, extermínio de ratos e insetos, imposição de normas para a criação e circulação de bichos na cidade etc. Ciente de que essas questões eram do interesse de governantes, da imprensa e do meio intelectual da época, a revista tratou de incluí-las no debate sobre a proteção aos animais, já que nem todos se sensibilizavam com os apelos sentimentais ou éticos, “Não é somente uma questão de humanidade, é também, na maior parte das vezes, uma questão de simples higiene29.

O que se pode afirmar é que a revista Amigo dos Animais era editada de modo muito profissional no que concerne ao conteúdo, já que os responsáveis eram ligados à educação, sempre preocupados com o direcionamento e o impacto que as matérias poderiam ter na alma infantil. O esmero no preparo de cada edição, no sopesar dos temas, na linguagem escolhida, podem ser confirmados por texto de autoria da própria editora do impresso, a professora Zizi Moreira. O artigo, intitulado “Como se deve fazer uma Revista Infantil”, é um registro raro e valioso que nos ajuda a entrever as intenções dos diretores do periódico no que se refere ao modo correto de organizar uma publicação do tipo30. O ponto de partida da autora era a premissa de que diversão e educação deveriam andar juntas.

“Na revista o instrutivo deve fazer parte integrante do recreativo [...] O conto, a historieta, a anedota, encerrarão sempre uma lição que, aparentemente não parece ser o seu fim, mas que, na realidade constitui a sua essência. [...] A história de fadas, à maneira antiga está em franca decadência e já não impressiona as crianças. [...] um menino do século da máquina, do rádio e do avião não pode acreditar em fadas e em bruxas tais como elas surgem nas versões antigas. O maravilhoso para ele deve ser feito com a própria realidade. [...] páginas de magazine que visam, sem dúvida, habilitar as crianças para o trato do mundo”31.

O trecho descreve bem o modo como Amigo dos Animais selecionava e expunha o seu conteúdo, por meio de referências ao cotidiano, ressaltando aspectos científicos e enaltecendo a importância das habilidades e dos saberes práticos. Outro ponto destacado pela professora era a preocupação de que as publicações infantis tratassem daquilo que fosse nacional, combatendo o “mal tão arraigado no espírito do brasileiro, que é colocar a preocupação do estrangeiro acima do interesse que lhe deve suscitar o seu próprio país”. Por fim, Zizi Moreira propõe que esse tipo de impresso deveria privilegiar “a vida dos animais e, a necessidade de protegê-los. [...] Alimentar no espírito infantil o amor aos irracionais é iniciá-los na solidariedade humana, na comunhão de sentimentos que deve envolver todos os seres vivos, para o advento de um mundo melhor”32. Temos aí o projeto editorial de Amigo dos Animais explicitado pela sua editora-chefe: ênfase nas relações práticas da vida, estímulo ao patriotismo e evocação dos animais como veículo concreto do afeto infantil, com o fim de despertar nas crianças emoções positivas para com a natureza e a sociedade. Esses princípios também eram condensados nas ilustrações do impresso, como se pode ver na capa da revista, imagem 2.

A cor avermelhada passa a impressão de vivacidade; a menina e as galinhas estão em sintonia de movimentos e propósitos; há uma complementaridade entre o gesto da criança de jogar milho e o ato de alimentação dos bichos; assim, mesmo sendo uma criança de tenra idade, já existe uma relação de dependência e superioridade no fato de ela ser a provedora de comida. Na imagem, os papéis da pessoa e dos animais são desempenhados conforme o que é socialmente esperado e, no que concerne ao projeto editorial da revista Amigo dos Animais, a menina está entretida em atividade ao mesmo tempo lúdica e educativa, em treinamento para o trabalho que poderá exercer na vida adulta, ligado ao mundo prático e à vida rural. Essa forma de interação homem-animal, pacífica, afetiva e ao mesmo tempo produtiva, era o ideal almejado pela Suipa.

Fonte: capa da revista Amigo dos Animais, outubro [n.° 30], 1933.

Imagem 2 Capa da revista da Suipa que retrata a interação ideal entre crianças e animais 

A revista se esforçava em passar uma visão positiva da vida, mas toda essa ênfase na comunhão “natural” entre crianças e animais se confrontava com outros costumes arraigados da infância, de maus-tratos aos animais. Como educadoras, as professoras-membros da Suipa tentavam equilibrar uma perspectiva adocicada da infância (mais como retórica para convencer as crianças de que, ao serem definidas como brandas e generosas, elas deveriam comportar-se desse modo) com a realidade contraditória do comportamento pueril, do qual elas estavam bem cientes. Um editorial da revista, dirigido às mães, apelava:

“Mães: ensinem os seus filhos a serem bons. Quantas vezes não temos visto [...] crianças se comprazendo em brinquedos cruéis em que os pobres animais se tornam palhaço e mártir, ao mesmo tempo? Já nos aconteceu ver [...] a mãe rir-se ao observar seu filho que, tendo apanhado um sapo, lhe tirava para fora as vísceras; outras tolerarem que os filhos perseguissem com pedradas um gato esfomeado, destruíssem ninhos com estilingue aleijando os pobres e inofensivos passarinhos! [...] Muita gente não aprende por si mesmo esses princípios rudimentares de humanidade. É preciso ensiná-los. É PRECISO ENSINAR ÀS CRIANÇAS A SEREM BOAS.

Aquele que desde a mais tenra idade não puder ver, sem fremir de indignação, as mil torturas infligidas aos animais pelos homens e que institui como uma lei moral e normal o respeito ao sofrimento e às penas dos fracos, esse não brutalizará nem matará mais tarde os animais nem os homens”33.

Muitas práticas infantis consideradas como brincadeiras normais para a idade, agora causavam repulsa; a sensibilidade em voga entrava em atrito com costumes arraigados, “divertimentos” ordinários passaram a ser combatidos como cruéis e perigosos para a formação moral das crianças: caçar pássaros, aprisionar aves canoras, desmembrar insetos, amarrar objetos no rabo de cães e gatos, apedrejar bichos, usar estilingue e armadilhas para abater ou capturar animais, destruir suas tocas, espancá-los etc. Tais condutas não poderiam ser toleradas, e caberia aos pais e educadores moldar novos sentimentos nas crianças, já que elas, ao contrário do que a própria revista deixava entrever em outras passagens, não possuíam uma afinidade natural com os bichos; elas precisavam ser ensinadas, o que justificaria a própria existência da Suipa e da revista Amigo dos Animais, com a missão de inculcar e disseminar a empatia para com os animais. A dificuldade era ampliar as definições do que constituía abuso e violência contra os bichos, pois muitas dessas práticas eram socialmente admitidas e apreciadas pelas crianças, como no caso do uso do estilingue. Na documentação consultada, encontramos dois relatos que atestam a proibição oficial do uso do estilingue em razão de iniciativa da Suipa, contudo não conseguimos localizar o decreto correspondente - supomos que sua abrangência tenha sido estadual ou municipal (São Paulo ou sua capital) -, mas o certo é que a restrição, se realmente existiu, foi instituída entre 1930 e junho de 1932. Texto publicado em jornal paulista menciona que os diretores da entidade “conseguem das autoridades medidas simpáticas como foi por exemplo a proibição do uso do estilingue, alegando muitos argumentos de peso, entre os quais este: ‘O estilingue é a primeira arma que o homem usa: ao estilingue segue-se o punhal ou o revólver’”34.

A frase acima integra um conjunto argumentativo recorrente nas páginas de Amigo dos Animais, a de que condutas e instrumentos direcionados a ferir os bichos ensaiavam, na infância, tendências destrutivas que se intensificariam na vida adulta, dando vazão a uma violência crescente, tendo como alvo pessoas. Assim, para além do dano causado aos bichos, existia a preocupação com a formação da mente e das emoções das crianças, e como tais ações poderiam contribuir para a constituição de seres humanos agressivos, insensíveis e potencialmente perigosos, que mais cedo ou mais tarde poderiam causar sérios danos à ordem social. A linguagem melodramática e exagerada da Suipa, cujas analogias eram propositalmente carregadas com o intuito de chocar o público, não significa que suas conclusões fossem necessariamente falsas. Pesquisas atuais indicam que a violência deriva de múltiplos fatores que perpassam questões de exclusão social, culturais, de vulnerabilidade econômica e psicológica; os estudiosos têm se voltado para um elemento pouco considerado: a ligação entre o abuso de animais e a violência praticada por jovens e adultos. Tal correlação não é necessariamente uma novidade, e sim o trato científico do tema que agora vai além do mero impressionismo; crianças que maltratam animais podem ter algum distúrbio psicológico ou podem estar sendo, elas mesmas, vítimas de violência. Segundo os estudiosos, o fundamento que torna os animais um alvo privilegiado para as práticas violentas estaria, grosso modo, na proposição de que, “Abuso animal e violência interpessoal para com humanos compartilham características comuns: os dois tipos de vítimas são criaturas vivas, têm a capacidade para experimentar dor e aflição, podem mostrar sinais físicos de sua dor e stress (com os quais humanos podem ter empatia) e podem morrer como resultado dos ferimentos infligidos”35.

Assim, a preocupação da Suipa era preservar tanto a integridade física dos animais quanto a mente e os sentimentos das crianças, evitando que a crueldade embotasse suas emoções, tornando-as tolerantes ao sofrimento alheio. “A mão de uma criança que acaricia um cão abandonado e estende um pouco de comida ao animal faminto desprezado pelos homens, é a mesma mão que, amanhã, consolará o seu semelhante e defenderá o fraco”36. Mas, se o homem tinha o dever de cuidar dos animais, isso não se devia a uma condição de equivalência entre os dois, “Serei BOM para os HOMENS que são NOSSOS IRMÃOS, mas serei BOM para os ANIMAIS que são nossos SERVIDORES E AMIGOS”37, dizia o lema do Jovem Protetor da Suipa. Aqui, a condição humana compreende uma unidade familiar, parentesco que remete à consanguinidade; mesmo na multiplicidade de indivíduos, o que prevalece é a unicidade em razão da partilha de uma só condição. Os animais seriam amigos, seres próximos, porém fora da família; o potencial positivo dessa abertura para o outro se esvai na qualificação dos bichos como servidores, de modo que a amizade professada expressa uma hierarquia, sendo os animais o polo subordinado. Seria possível existir amizade entre o senhor e o servo? Provavelmente sim, até o momento em que o senhor decida exercer sua autoridade sobre o servidor. Além do mais, na máxima acima intuímos que o status de amigo deriva da condição de servidor, é a “disposição” dos bichos para servirem a humanidade que os tornam bons companheiros. O uso dos animais como força de trabalho e alimento aparecia nas páginas da revista como uma entrega voluntária por parte dos bichos, ordem natural do mundo; o que se condenava não era a sua utilização, mas os excessos praticados contra esses servidores (em última instância, eles eram servidos no prato) que, direta ou indiretamente, cumpriam propósitos importantes para a sociedade.

O conceito de amizade entre animais e humanos é permeado por tensões, pois, para além da relação individual e afetiva entre uma determinada pessoa e um animal singular, nós assumimos, simultaneamente, diversos papéis para com os bichos, de “donos, comedores, usuários de peles, praticantes de vivissecção, treinadores, usuários, caçadores. Mas também emergimos como amantes, protetores [...]”38. A revista Amigo dos Animais reconhecia essa tensão ao silenciar, por exemplo, sobre o consumo de carne e a criação de animais para a retirada de couro e peles. O desejo e o constante fracasso na construção de uma relação minimamente simétrica entre homens e animais tornavam a ficção a única instância possível para se escapar desse dilema inquietante. Não por acaso, em abril de 1934, a revista Amigo dos Animais publicou um livro infantil de autoria de Zizi Moreira e Brito Broca (importante literato da época) chamado Capitão e Mimi, que tinha como enredo as “aventuras de dois amigos, um cão e um gato39, inscritos na nossa cultura como os maiores antagonistas do mundo animal. Outro fato interessante foi a mudança do título do impresso de Amigo dos Animais para Amigo das Crianças em meados de 1937. Não temos elementos documentais que esclareçam as razões dessa troca, portanto só nos resta especular; mas, seguindo a trilha das ponderações feitas até aqui e forçando o limite das evidências, podemos nos perguntar se a amizade para com os animais não era um projeto por demais ambicioso. Ao refundar a proposta da amizade em bases mais próximas, fortalecia-se a identidade humana, ao invés de desafiá-la.

Considerações finais

A trajetória da Suipa e da sua revista, Amigo dos Animais, informa-nos sobre inúmeras questões importantes, mas em última instância ela coloca em relevo a reflexão sobre o lugar dos seres humanos no mundo em interação com outros viventes.

No Brasil da década de 1930, já era possível entrever o impacto dos avanços tecnológicos que aceleravam a comunicação e o transporte, intensificando a exploração dos recursos naturais e a instalação de um parque industrial na forma de grandes empreendimentos. A vida no campo se alterava, de modo gradual, para atender à demanda por uma agricultura e zootecnia focadas no incremento produtivo e na rentabilidade; as cidades atraíam uma quantidade cada vez maior de pessoas, o que modificou o tecido urbano, que já se reorientava com a introdução da iluminação pública, veículos a motor, vias pavimentadas e os inúmeros códigos de posturas que visavam regulamentar o viver em comum de tantos citadinos. Nesse quadro vertiginoso, onde se encaixavam os animais? A presença de bichos soltos, vagando pelos campos ou cidades, começava a colocar obstáculos para os processos racionais da exploração econômica e da organização do espaço; no caso da área rural, o confinamento dos bichos de criação já se apresentava como método mais lucrativo e eficaz de manejo. Com relação à cidade, a necessidade de administrar um conjunto de viventes cada vez maior e concentrado colocava a existência de animais “vagabundos” como um desafio para a saúde pública e a segurança dos habitantes40.

A tendência foi restringir a liberdade de circulação dos animais, impor regras para sua criação no espaço urbano e ocultar da vista dos citadinos processos desagradáveis de abate, processamento de carne e peles, disseminação de cheiros fortes, cenas de sofrimento que pudessem causar inquietação e ferir suscetibilidades. Mas isso não significou, necessariamente, a diminuição da violência contra os animais, e sim a implantação de um novo sistema que “passaria pela organização e a exploração de uma sobrevida artificial, infernal, virtualmente interminável, em condições que os homens do passado teriam julgado monstruosas, fora de todas as normas supostas da vida própria aos animais”41. Nesse cenário, foi criada a Suipa, que precisava lidar com um mundo em transição, onde práticas rurais antigas conviviam com a produção intensiva, onde cães e gatos eram perseguidos e exterminados nas ruas da cidade, ao mesmo tempo que se popularizavam como animais de estimação. Essas e outras contradições estavam presentes nas páginas da revista Amigo dos Animais; ali os bichos eram apresentados como irracionais, incapazes de articular o pensamento, de ter consciência de si mesmos, e, a partir desses critérios, a Suipa naturalizava o uso dos animais como instrumentos à disposição das pessoas, mas não de modo absoluto. Também existia o reconhecimento de traços em comum, sendo o mais importante deles a sensibilidade, a capacidade dos seres humanos e dos animais de sentirem dor; diante da partilha dessa fragilidade, da repulsa e aflição que ela suscita, nasciam a empatia e o dever de enfrentar a questão do sofrimento animal. Assim, a análise crítica das atividades da Suipa, que expõe contradições e silêncios, não se sobrepõe ao enfrentamento corajoso da entidade sobre a condição animal e, por extensão, do próprio ser humano, com todos os paradoxos e incoerências suscitados por esse exercício de reflexão.

O que a Suipa concebia como sendo “o animal”? A dificuldade reside justamente no fato de que, na utilização desse vocábulo unificador, a entidade apontava para os mais diversos e discordantes critérios, que a todo o momento negavam a essência da própria denominação: eles eram irracionais, bondosos, amigos, para comer, úteis, perigosos, inocentes, misteriosos, transparentes, brutos, inteligentes, biologicamente próximos e distantes das pessoas, sem capacidade de linguagem, com linguagem própria etc. A caracterização variava conforme o quadro explicativo e de justificação que a entidade desejava elaborar, adequando-se à lição a ser transmitida às crianças. Assim, no chão da história, torna-se evidente que o vocábulo animal, longe de ser uma categoria unívoca, apresenta camadas de significados que se produzem no tempo, comportando níveis de contradição, ambiguidade, permanência e mudança de sentidos, a depender do contexto, dos sujeitos, das práticas, da linguagem e do conjunto de textos analisado.

Daí que a pergunta que integra o título deste artigo, “Por que devemos ser bons para com os animais?”, tema do concurso de redação promovido pela revista Amigo dos Animais, é tão relevante, pela sua capacidade de condensar, na aparente singeleza, questões e pressupostos cruciais da relação homem-animal. A revista Amigo dos Animais publicou o que considerou como as melhores respostas a essa pergunta. A argumentação das crianças deixava entrever a complexidade do assunto e a falta de parâmetros claros para orientar esse dever-ser: “Eu nem sei dizer por quantas razões devemos proteger os animais. As ideias me acodem múltiplas, e nem sei coordená-las com critério”. As respostas perpassaram uma gama diversificada de motivações (nada infantis), lançando mão de argumentos presentes na tradição teológica e filosófica: “devemos querer e tratar bem os animais que são nossos servidores e amigos fiéis [...], como havemos de maltratar os nossos ‘irmãos inferiores’, que não têm responsabilidade do que fazem e consciência nenhuma dos atos que praticam?”42. O trecho é elucidativo, revela uma economia das relações assimétricas, já que a defesa de limites no exercício do poder se faz legitimando a superioridade de um dos polos, pois é a “insuficiência” e a “incapacidade” do outro que institui o dever moral de não cometer abusos (argumentação também usada no caso das relações homem-mulher, adulto-criança, patrão-empregado etc.).

Em outra redação infantil premiada pela associação, percebem-se os profundos dilemas éticos suscitados pelo assunto. “Quando eu era pequenino maltratava muito os animais. Matava as formigas que encontrava, arrancava as pernas das moscas, as asas das borboletas e sentia prazer em cortar uma lagartixa pelo meio. [...] Nunca mais os persegui. Um dia tive a fortuna de entrar como sócio da S.U.I.P.A”. O texto se encerra com a mais sincera das declarações, explicitando as contradições e os dilemas culturais relacionados ao tema, “E sem faltar com a caridade, matarei, sim matarei, sem deixar sofrerem, àqueles que nos são nocivos, e que de qualquer forma nos molestam. Mas dos outros animais serei sempre o maior defensor, o mais devotado protetor43. A afirmação de potência enunciada pela criança, sua disposição e segurança moral diante do desafio de matar outros seres vivos (ao mesmo tempo que se comprometia na defesa de certos animais), condensava um impasse ético vivenciado pela própria sociedade protetora, de difícil sustentação discursiva. Em outro nível, o programa da Suipa também buscava compatibilizar a salvaguarda dos animais com a defesa de projetos governamentais empenhados na expansão das fronteiras agrícolas e na racionalização dos processos produtivos do campo, incluindo a criação intensiva de animais; ao longo de poucas décadas, esses projetos se expandiram e afetaram profundamente a forma de manejo de bois, aves e suínos. Nesse quadro, hoje já solidificado, a morte deixa de ser o pior dos destinos, pois a administração e o prolongamento da vida animal em situações limite de confinamento e manipulação dos seus corpos operam, em muitos casos, com graus elevados de stress, desconforto e dor, em cadeias produtivas de escala gigantesca. Realidade que ecoa a pergunta do filósofo Jacques Derrida, “em suma, só há crime ‘contra a humanidade’?”44.

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Como citar: Carvalho de Ostos, Natascha Stefania. “‘Por que devemos ser bons para com os animais?’. A formação prática e moral dos brasileiros por meio dos discursos de proteção aos animais (1930-1939)”. Historia Crítica n.° 71 (2019): 48-68, https://doi.org/10.7440/histcrit71.2019.03

* Este artigo é resultado de pesquisa de pós-doutorado, realizada no programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo: 165936/2015-0, sob a supervisão da professora doutora Regina Horta Duarte, do Departamento de História da referida universidade. Agradecemos a ela a troca intelectual profícua no que se refere ao campo de investigação da História dos Animais. Também agradecemos ao CNPq e às valiosas contribuições dos pareceristas do artigo.

1“Por que devemos ser bons para com os animais?”, Amigo dos Animais, outubro [n.° 42], 1934, 18. Trata-se de tema de composição proposto pela revista aos seus leitores.

2Alguns exemplos de textos clássicos que consagram atenção à temática dos animais: Michel de Montaigne, Ensaios, vol. 2 (São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1580]); René Descartes, Discurso do Método (São Paulo: Martins Fontes, 2001 [1637]); Voltaire, Dicionário Filosófico (São Paulo: Martins Fontes, 2011 [1764]); Immanuel Kant, Sobre a pedagogia (São Paulo: Unimep, 1996 [1803]). Para um panorama de diversos pensadores que se interessaram pelo assunto ao longo do tempo, ver: Luc Ferry e Claudine Germé, Des Animaux et des Hommes (Paris: Le Livre de Poche, 1994).

3Jacques Derrida, O animal que logo sou (São Paulo: Unesp, 2002), 60. Itálico no original.

4Erica Fudge, Animal (Londres: Reaktion Books, 2002), 158, 165. Tradução da autora.

5Erica Fudge, Pets (Stocksfield: Acumen, 2008), 89. Tradução da autora.

6Pesquisadores dos Estados Unidos da América e da Inglaterra são responsáveis por grande parte dos estudos existentes na área. Para uma bibliografia em língua inglesa: “Animal Studies Bibliography”, Animal Studies at Michigan State University, <http://www.animalstudies.msu.edu/bibliography.php>. No caso da França, consultar o levantamento bibliográfico de Eric Baratay e Jean-Luc Mayaud, “Un champ pour l’histoire: l’animal”. Cahiers d’histoire 42, n.° 3-4 (1997): 410-470. Na Espanha, os trabalhos se desenvolvem principalmente nas áreas de História Medieval e Moderna: Dolores-Carmen Morales Muñiz, “Zoohistoria: reflexiones acerca de una nueva disciplina auxiliar de la ciencia histórica”. Espacio, Tiempo y Forma n.° 4 (1991): 367-383; Arturo Morgado García, “La visión del mundo animal en la España del siglo XVII: el Bestiario de Covarrubias”. Cuadernos de Historia Moderna 36 (2011): 67-88. Na América do Sul, e particularmente no Brasil, o campo de estudos ainda é incipiente, mas em crescimento: Martha Few e Zeb Tortoric, ed., Centering Animals in Latin American History (Durham: Duke University Press, 2013); Regina Horta Duarte, “Zoos in Latin America”, em The Oxford Research Encyclopedia of Latin American History, organizado por William Beezley, vol. 1 (Nova York: Oxford University Press, 2017), 1-21, http://doi.org/10.1093/acrefore/9780199366439.013.439; Nelson Filho Aprobato, “O couro e o aço: sob a mira do moderno: a ‘aventura’ dos animais pelos ‘jardins’ da Paulicéia, final do século XIX/início do XX” (Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, 2007).

7José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007), 89-126.

8José Miguel Arias Neto, “Primeira República: economia cafeeira, urbanização e industrialização”, em O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente, da proclamação da República à Revolução de 1930, organizado por Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006), 222-226.

9“Sociedade União Infantil Protetora dos Animais - Extrato dos Estatutos”, Diário Oficial da União, 5 de fevereiro, 1930, 1235.

10“Sociedade União Infantil Protetora dos Animais”, 1235.

11O governo deu início, em 1934, a um programa oficial de incentivo à criação de Clubes Agrícolas pelo país, sediados nas escolas primárias, com o objetivo de “despertar nos escolares o interesse pela Natureza, principalmente pela vida dos animais e dos vegetais, fazendo ver não só sua beleza mas sua utilidade”. “Como se organiza um Clube Agrícola Escolar”, Boletim do Ministério da Agricultura, outubro [n.° 10], 1940, 75. Contando em 1939 com 870 clubes ativos, essas unidades buscavam, além de incutir conhecimentos práticos, cuidar da formação moral dos brasileiros do futuro, alinhando-os com ideais conservadores de ordem e obediência, “mostrar os perigos do urbanismo e do abandono dos campos; desenvolver o espírito de cooperação na escola, na família e na coletividade”. “Objetivo dos Clubes Agrícolas”, Boletim do Ministério da Agricultura, novembro [n.° 11], 1940, 67.

12Para o contexto histórico de criação do Decreto-lei 24.645, 10 julho de 1934, ver: Natascha Stefania Carvalho de Ostos, “União Internacional Protetora dos Animais de São Paulo: práticas, discursos e representações de uma entidade nas primeiras décadas do século XX”. Revista Brasileira de História 37, n.° 75 (2017): 305-307, http://doi.org/10.1590/1806-93472017v37n75-13

13Sherry Ortner, “Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?”, em A Mulher, a cultura, a sociedade, organizado por Louise Lamphere e Michelle Rosaldo (Rio de janeiro: Paz e Terra, 1979), 107.

14Animais domésticos seriam aqueles mantidos em “cativeiro por uma comunidade humana que possui total controle sobre sua criação, organização territorial e suprimento alimentar”. Juliet Clutton-Brock, Animals as Domesticates: A World View through History (East Lasing: Michigan State University Press, 2012), 3.

15“Tem sido muito visitada a exposição de comedouros para aves”, Diário Nacional, 27 junho, 1930 [n.° 918], 5.

16“A semana da criança no Rio”, Diário Nacional, 13 outubro [n.° 1281], 1931, 1.

17Em 1935, 54,4% das crianças aptas a frequentar o ensino elementar não estavam na escola. Azilde Lina Andreotti, “A administração escolar na Era Vargas e no nacional-desenvolvimentismo (1930-1964)”. Revista HISTEDBR n.° especial (2006): 108.

18Keith Thomas, O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800) (São Paulo: Companhia das Letras, 1988), 206-228.

19“O ‘Dia dos Animais’ - Comunicado da Diretoria de Ensino”, Correio Paulistano, 15 setembro [n.° 24.02], 1934, 8.

20André Mota, “Higienizando a raça pelas mãos da educação ruralista: o caso do Grupo Escolar Rural do Butantan em 1930”. Interface - Comunicação, Saúde, Educação 14, n.° 32 (2010): 13.

21Mota, “Higienizando a raça”, 12, 14.

22“A comemoração do Dia dos Animais no Grupo Escolar do Butantan-Uma festa em plena natureza”, Amigo dos Animais, outubro [n.° 30], 1933, 12.

23Caroline Hodak, “Les animaux dans la cité: pour un histoire urbaine de la nature”. Genèses n.° 37 (1999): 163; Thomas, O homem e o mundo natural, 217-219.

24A disseminação dos abatedouros em formato industrial ocorreu a partir da metade do século XIX. Amy Fitzgerald, “A Social History of the Slaughterhouse: From Inception to Contemporary Implications”. Human Ecology Review 17, n.° 1 (2010): 60.

25Amigo dos Animais é uma revista rara nos arquivos brasileiros e praticamente desconhecida dos pesquisadores. Nossa consulta se baseou em exemplares adquiridos em sebos e no acervo particular da professora doutora Regina Horta Duarte (Universidade Federal de Minas Gerais), a quem agradecemos ter-nos cedido para consulta, generosamente, todos os exemplares da publicação referentes ao ano de 1934. Consideramos que a nossa amostragem é suficiente para o estudo, tendo em vista que entrecruzamos a análise das revistas com o levantamento de informações publicadas em jornais da época: Correio Paulistano e Diário Nacional, em “Hemeroteca Digital”, Biblioteca Nacional, <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.

26“Alimentação dos Cães”, Amigo dos Animais, junho [n. ° 50], 1935, 28.

27Dr. Moacyr de Macedo Pinto, Membro da Academia Internacional de Odontologia, Colégio de S. Paulo, Seção de Imprensa, “Higiene Dentária”, Amigo dos Animais, fevereiro [n. ° 58], 1936, 28-29.

28Essas questões são relativas à biopolítica, “a tentativa, a partir do século XVIII, de racionalizar os problemas colocados à prática governamental pelos fenômenos próprios a um conjunto de viventes, constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças [...] Nós sabemos que espaço crescente esses problemas ocuparam desde o século XIX, e quais desafios políticos e econômicos eles constituem até os dias de hoje”, em Michel Foucault, Naissance de la Biopolitique, Cours au Collège de France 1978-1979 (Paris: Gallimard/Seuil, 2004), 323. Tradução da autora.

29“À Imprensa do Nosso País”, Amigo dos Animais, abril [n.° 36], 1934, 3. Grifos da autora.

30Zizi Moreira, “Como se deve fazer uma Revista Infantil”. Revista de Educação vol. XXI-XXII (1938): 41-45. Agradecemos ao Instituto de Estudos Educacionais Sud Mennucci-CPP o envio da cópia digital do artigo.

31Moreira, “Como se deve fazer uma Revista Infantil”, 43-44.

32Moreira, “Como se deve fazer uma Revista Infantil”, 45.

33“Mamães, Escutem...”, Amigo dos Animais, janeiro [n.° 45], 1935, 3. Maiúsculas no original.

34Castor Coelho, “No Mundo dos Animais”, Diário Nacional, 21 junho, 1932 [n.° 1493], 3. O outro artigo que menciona o fato é: “Uma grande obra em prol dos animais”, Amigo dos Animais, dezembro [n.° 20], 1932, 39.

35Frank R. Ascione, “Animal abuse and youth violence”, Juvenile Justice Bulletin (2001): 3. Tradução da autora. Relevante notar que, com relação ao segundo item apontado pelo autor (capacidade de experimentar dor), nem sempre existiu consenso. René Descartes propunha que os animais eram autômatos, incapazes de sentir dor em razão de que, para o filósofo, a consciência da sensação era precondição para a sensibilidade, e ele atribuía essa qualidade apenas aos humanos. Descartes, Discurso do Método, 61-66. Frank R. Ascione fornece dados interessantes compilados de outras investigações que mostram que o histórico de crueldade contra animais se faz presente em uma porcentagem significativa dos membros de certos grupos (em comparação com outros grupos de controle): atiradores em escolas, perpetradores de violência doméstica e contra as mulheres etc. O autor é cuidadoso em não generalizar essas correlações, deixando claro que se trata de uma entre muitas “bandeiras vermelhas” às quais é preciso estar atento. Há que se considerar também as diversas gradações da violência perpetrada, ter em conta “o que é considerado, em dado contexto social e histórico, como inaceitável em termos de sofrimento infligido aos animais”, em Frank R. Ascione, “Animal abuse and youth violence”, 2. Tradução da autora, com qual objetivo e, finalmente, o tipo de animal (matar vacas para consumir carne é aceitável na maior parte do mundo).

36Zizi Moreira, “A proteção aos animais, escola de filantropia”, Amigo dos Animais, março [n.° 59], 1936, 1.

37“Atenção-Departamento dos Jovens Protetores”, Amigo dos Animais, outubro [n.° 30], 1933, contracapa. Maiúsculas no original.

38Fudge, Animal, 165. Tradução da autora.

39“Como foi recebida a novela ‘Capitão e Mimi’ pela imprensa da capital”, Amigo dos Animais, junho [n.° 50], 1935, contracapa. Grifos da autora.

40A raiva, doença mortal transmitida pela mordida de animais infectados, aterrorizava a população e preocupava as autoridades públicas. O cachorro, pela sua onipresença nas cidades, era alvo de maior atenção. A disseminação de novos hábitos sociais também gerava consequências insuspeitas, como no caso da popularização dos banhos de mar; a presença massiva de pessoas na praia multiplicou relatos sobre a ocorrência de uma dermatite causada por “um verme intestinal do cão, o ‘ancilóstomo caninum’”, levando o governo do estado de São Paulo a determinar que “fossem proibidos cães nas praias, como também se deu larga publicidade ao assunto, a fim de que chegasse ao conhecimento dos frequentadores dos banhos de mar”, em Relatório apresentado ao Exmo. Dr. Getúlio Vargas-Presidente da República, pelo Dr. Adhemar Pereira de Barros-Interventor Federal em São Paulo 1938-1939 (São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1938), 122.

41Derrida, O animal que logo sou, 52.

42Clara Gross, “Por que devemos ser bons para os animais”, Desenhos e Correspondências, colaboração das escolas, Amigo dos Animais, dezembro [n.° 44], 1934, 6. Grifo da autora.

43José Geraldo da Silva Hellmeister, “Por que devemos ser bons para os animais”, Desenhos e Correspondências, colaboração das escolas, Amigo dos Animais, dezembro [n.° 44], 1934, 7. Grifos da autora.

44Derrida, O animal que logo sou, 88.

Recebido: 03 de Abril de 2018; Aceito: 25 de Julho de 2018

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