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Prolegómenos

Print version ISSN 0121-182X

Prolegómenos vol.18 no.36 Bogotá July/Dec. 2015

https://doi.org/10.18359/dere.939 

ARTÍCULO DE REFLEXIÓN

DOI: http://dx.doi.org/10.18359/dere.939

A MARCHA DAS VADIAS COMO REDES DE MOVIMENTOS E SIGNIFICADOS*

LA MARCHA DE LAS PUTAS COMO REDES DE MOVIMIENTOS Y SIGNOS

THE MARCH OF THE WHORES AS MOVEMENTS AND SIGNS NETWORKS

Mariana Passos Dutra**
Tiago de García Nunes***

* Este artigo apresenta parte da pesquisa para a Dissertação de Mestrado da Acadêmica Mariana Passos Dutra, realizada no período entre 2013, 2014 e 2015.
** Assistente Social; especialização em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos pela FIOCRUZ/RJ, Rio de Janeiro, Brasil; mestranda no Programa de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS/UFF). Correio eletrônico: marianapadu@gmail.com.
***Professor na Universidade Católica de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil; mestre em Sociologia pela Universidade do Pais Basco e Universidade de Milão; doutorando no programa em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF). Correio eletrônico: tiago.nunes@ucpel.edu.br

Forma de citación: Passos, M. & García, T. (2015). A Marcha das Vadias como redes de movimentos e significados. Revista Prolegómenos Derechos y Valores, 18, 36, 153-168. DOI: http://dx.doi.org/10.18359/dere.939


Fecha de recepción: 16 de diciembre de 2014
Fecha de evaluación: 22 de abril de 2015
Fecha de aprobación: 23 de junio de 2015

Resumo

O trabalho analisa o movimento feminista intitulado Marcha das Vadias a partir da grade teórica das "Redes de Significados" desenvolvida por Alberto Melucci na obra "Nômades do presente: movimentos sociais e necessidades individuais na sociedade contemporânea" (1989a). Questiona-se se a Marcha das Vadias pode ser considerada uma rede de movimentos e significados capaz de realizar a coalizão de diversos feminismos e de fazer dialogar as três principais ondas do feminismo. Em termos metodológicos, foi realizada pesquisa bibliográfica e documental junto a Marcha das Vadias e às demais entidades representativas que compõem o movimento e observação participante em três Marchas. Em que pese a fase exploratória da pesquisa, ao final são apontados alguns limites sobre a representatividade na Marcha das Vadias e sobre o suposto crescimento de um feminismo de corte liberal.

Palavras-chave: Marcha das Vadias, movimento feminista, redes de significados, Alberto Melucci.


Resumen

El objetivo de este artículo es analizar el movimiento feminista llamado Marcha de las Putas desde la perspectiva teórica de las redes de los signos desarrollada por Alberto Melucci en su obra Nomads of the present (1989). Se pregunta si la Marcha de las Putas puede considerarse una red de movimientos y signos capaces de realizar la unión de distintos feminismos y hacer dialogar a las tres olas del feminismo más importantes. En cuanto a la metodología, se llevó a cabo una investigación bibliográfica y documental, respecto a la Marcha de las Putas y otros órganos de representación que integran el movimiento, y la observación participante en tres marchas. A pesar de la fase exploratoria de la investigación, al final se señalan algunos límites a la representación en la Marcha de las Putas y el supuesto crecimiento de un tribunal feminista liberal.

Palabras clave: Marcha de las Putas, movimiento feminista, redes de signos, Alberto Melucci.


Summary

The aim of this article is to analyze the feminist movement called March of the Whores from the theoretical perspective of the networks of signs developed by Alberto Melucci in his wok Nomads of the presen (1989). He wondered whether the March of Whores can be considered a network of movements and signs capable of binding different feminisms and create a dialogue between the three major waves of feminism. As for the methodology a bibliographical and documentary research was carried out on the March of the Whores and other representative bodies that make up the movement, and the active observation in three marches. Despite the exploratory phase of the research, in the end some limits to the representation in the March of the Whores and the supposed growth of a liberal feminist court were presented.

Keywords: March of Whores, feminist movement, networks of signs, Alberto Melucci.


A. Introdução

Sociologicamente, podemos definir um movimento social como sendo "um esforço coletivo, contínuo e organizado que se concentra em algum aspecto de mudança social" (Johnson, 1997, p. 155). Desta noção simplificada importa destacar 4 elementos: a coletividade dos movimentos, que se refere aos autores da ação; a sua continuidade, que dá conta da noção de temporalidade da ação; a organização, que implica na sua estrutura de poder, componentes e estratificação; a questão da mudança social que destaca o objetivo principal da ação social, podendo ser um movimento de reforma -por melhoras nas condições de um sistema social-, um movimento revolucionário -cuja finalidade é alterar as características estruturais ou culturais básicas de um sistema-, ou um movimento de resistência, organizado para combater a mudança social ou para garantir alguma conquista do passado. Contudo, o campo dos movimentos sociais talvez seja um dos mais indefiníveis que existe na teoria social. Os movimentos são difíceis de definir, mesmo que em grades conceituais. Os vários autores tentam isolar alguns aspectos empíricos dos fenômenos coletivos, mas como cada pensador acentua elementos diferentes, resta difícil comparar.

Assim sendo, este artigo tem o objetivo de analisar o movimento feminista intitulado "Marcha das Vadias" a partir da grade teórica das "redes de significados" desenvolvida por Alberto Melucci na obra Nômades do presente: movimentos sociais e necessidades individuais na sociedade contemporânea (1989).

Para tanto, questionaremos se a "Marcha das Vadias" pode ser considerada uma rede de movimentos e significados capaz de realizar a coalizão de diversos feminismos e de fazer dialogar as três ondas do feminismo que mencionaremos na sequência e questionar os padrões tradicionais de comportamento e relacionamento entre as pessoas.

Em termos metodológicos, para dar conta do tema proposto foi realizada pesquisa bibliográfica e documental junto a Marcha das Vadias e às demais entidades representativas que compõem o movimento, especialmente em blogues e sítios na internet. Além disso, foi realizada observação participante em três Marchas -uma na cidade de Porto Alegre, em 2011 e duas na cidade do Rio de Janeiro, em 2012 e 2013-.

B. O feminismo como movimento social

Para que se tenha uma noção do movimento feminista no Brasil, especialmente no que no que diz respeito ao reconhecimento e efetivação de direitos políticos e sociais, é necessário primeiramente verificar o surgimento deste no resto do mundo. Percebe-se, de antemão, que o movimento possui formatação muito semelhante em várias regiões do planeta1.

O feminismo como movimento social, pode ser considerado um movimento essencialmente moderno, principalmente se comparado a outros tipos de ações coletivas. Ana Alice Costa define que

O feminismo, como movimento social, é um movimento essencialmente moderno, surge no contexto das idéias iluministas e das idéias transformadoras da Revolução Francesa e da Americana e se espalha, em um primeiro momento, em torno da demanda por direitos sociais e políticos. Nesse seu alvorecer, mobilizou mulheres de muitos países da Europa, dos Estados Unidos e, posteriormente, de alguns países da América Latina, tendo seu auge na luta sufragista (2007, p. 52).

Maria da Glória Gohn (2008) destaca que as lutas das mulheres para se constituírem como sujeitos históricos datam de vários séculos, podendo ser destacado o papel das mulheres desde sociedades antigas e primitivas. Contudo, foi com o feminismo que as mulheres geraram visibilidade pública, como coletivo. A autora destaca que o feminismo no mundo ocidental tem sido classificado em três grandes ondas ou fases:

A primeira corresponde à luta pelo reconhecimento legal da igualdade de direitos - voto, trabalho etc. - nos séculos XVIII e XIX e início do século XX. A segunda onda corresponde às lutas desenvolvidas pelas feministas entre 1960 e 1980, quando a preocupação com a igualdade se estendeu das leis aos costumes, focalizando temas como sexualidade, violência, mercado de trabalho etc. A categoria gênero (tratada abaixo) surge nesse período. A terceira onda começou em 1990, quando as estratégias foram repensadas e ganhou "ênfase a crítica à construção da imagem feminina pelos meios de comunicação de massa" (Knibiehler, 2007, p. 10). Nesta última fase as mulheres falam em nome de uma libertação da sexualidade e não somente de sua sexualidade (Alvarez, 2000). As mulheres conduzem e sustentam as transformações culturais atuais (Touraine, 2006b), buscam reconhecimento (Fraser, 2001) (Gohn, 2008, p. 136).

Necessário destacar o apelo argumentativo e didático da divisão da história do movimento em três grandes ondas ou fases, pois na prática estas podem ser consideradas cíclicas e interrelacionadas, sem começo ou final precisamente delimitado.

No caso brasileiro, o movimento feminista acompanha o desenrolar da história brasileira, como um conjunto de eventos relacionados, principalmente com as duas primeiras ondas:

No Brasil, no século XIX, causas abolicionistas também foram abraçadas por mulheres, brasileiras que "ousavam" trabalhar como professoras, escritoras ou artistas, a exemplo de Chiquinha Gonzaga (década de 1880), Nísia Floresta (1853) e muitas outras. Nas primeiras décadas do século XX, Maria Lacerda de Moura, feminista e anarquista, fez ponte entre o mundo operário e a política e fundou em 1921 a Federação Internacional Feminina (Leite, 1984). Ana Aurora Lisboa organizou protestos com pequenos grupos visando o direito à educação (Louro, 1997). A luta pelo sufrágio feminino também teve seu impacto no Brasil, com Bertha Luz e outras. A vitória completa só veio em 1934, como o voto feminino garantido na Constituição daquele ano. Na década de 1930, Patrícia Galvão, a Pagu, entrou para a história brasileira não apenas como escritora, mas como defensora dos direitos das mulheres. Foi a primeira presa política no Brasil no século XX (Gohn, 2008, pp. 137-138).

Segundo Mirian Pillar Grossi esses movimentos lutavam por uma vida melhor, mais justa e igualitária, e é justamente no bojo destes movimentos "libertários" que vamos identificar um momento-chave para o surgimento da problemática de gênero,

[...] quando as mulheres que deles participavam perceberam que, apesar de militarem em pé de igualdade com os homens, tinham nestes movimentos um papel secundário. Raramente elas eram chamadas a assumir a liderança política: quando se tratava de falar em público ou de se escolher alguém como representante do grupo, elas sempre eram esquecidas, e cabia-lhes, em geral, o papel de secretárias e de ajudantes de tarefas consideradas menos nobres, como fazer faixas ou panfletar (1998).

O estudo de gênero é uma das consequências das lutas libertárias e contestatórias dos anos 60, mais particularmente dos movimentos sociais da década de 19682, que causaram uma verdadeira revolução nos costumes. O feminismo, como movimento, ressurge em torno da afirmação de que o "pessoal é político", pensado não apenas como uma bandeira, mas como uma proposta de questionamento profundo dos parâmetros conceituais do político, dos padrões tradicionais de comportamento e de relacionamento entre as pessoas; intenta, subverter as fronteiras do conceito do "político", até então alocado pela teoria política no âmbito exclusivo da esfera pública e das relações sociais tidas como públicas. Com efeito,

Ao afirmar que "o pessoal é político", o feminismo traz para o espaço da discussão política as questões até então vistas e tratadas como específicas do privado, quebrando a dicotomia público-privado, base de todo o pensamento liberal sobre as especificidades da política e do poder político. Para o pensamento liberal, o conceito de público diz respeito ao Estado e às suas instituições, à economia e a tudo mais identificado com o político. Já o privado se relaciona com a vida doméstica, familiar e sexual, identificado com o pessoal, alheio à política (Costa, 2007, p. 53).

Além disso, os anos 60 constituem um período de grande questionamento do papel da sexualidade humana, pois:

[...] a pílula anticoncepcional passa a ser comercializada, a virgindade enquanto valor essencial das mulheres para o casamento começa a ser amplamente questionada, e se começa a pensar mais coletivamente, no Ocidente, que o sexo poderia ser fonte de prazer e não apenas destinado à reprodução da espécie humana (Grossi, 1998, p. 2).

É importante frisar a função do discurso de gênero tanto na luta feminista pela ampliação dos papéis na sociedade (das mulheres e dos homens), como na igualdade de direitos sociais e políticos. Conforme destacam Búrigo e Meller (2012), o que busca o movimento é a não diferenciação de homens e mulheres quanto seu lugar sociopolítico, respeitando, apesar de tudo, qualquer diferença fisiológica, biológica e sexual. A gradativa mudança do termo "mulher" para o termo "gênero", pretende ultrapassar uma visão meramente biológica da mulher, alcançando aspectos relacionais e culturais da construção social do masculino e do feminino. Segundo Vera Soares,

Gênero se refere à construção social da identidade sexual, construção que designa às pessoas diferentes papéis, direitos e oportunidades, de acordo com seu sexo; enquanto o sexo se refere à diferenças biológicas entre homens e mulheres. As diferenças de gênero são constituídas hierarquicamente: a construção social do ser homem tem um status maior que a construção social do ser mulher. O gênero é um termo relacional, que nomeia a interação entre o masculino e o feminino; portanto, o estudo de um é coadjuvante do outro. O conceito de gênero é uma categoria de análise de grande poder para explicar as desigualdades entre as pessoas. Não obstante, é apenas parte de uma construção social complexa de identidade, hierarquia e diferença. A raça, a etnia, a classe são outras categorias socialmente construídas que se intersectam com o gênero para determinar a localização social dos indivíduos (2004, pp. 113-114).

O gênero, ou a inserção da categoria enquanto conceito de análise revestido de história e hierarquia é uma conquista dos feminismos que adentraram a academia a partir das teorias feministas, e é importante ressaltar das teóricas feministas, mulheres que romperem padrões e conquistaram espaço devido a muito esforço e competência.

Não são recentes as diversas discussões que envolvem as questões sobre a categoria de gênero. Se em algum momento o gênero é visto como forma de empoderamento e criação de espaço para uma nova discussão na forma de tratar a questão das mulheres, seja do feminismo na academia ou mesmo em movimentos políticos, essa concordância tem se alterado ultimamente nas leituras acerca da categoria, no que diz respeito ao alcance e expansão do uso do termo gênero, político ou teórico.

É possível verificar que existe uma divisão entre aquele feminismo que considera a categoria gênero como a mais adequada para explicar as reproduções de um sistema machista e patriarcal, que coloca a categoria como central na explicação de que o gênero é construído enquanto reflexo da opressão existente que coloca homens acima de mulheres e que assim gera todo um sistema de opressões generalizados, que tem os homens heteros como os detentores do poder.

As discussões acerca dessa "divisão" começam principalmente quando no final da década de 80 e início da década de 90 começam a crescer as teorias pós-modernas dentro da Universidade, principalmente nos campos que estudam assuntos como gênero e sexualidade. A teoria pós moderna ou queer faz críticas às "antigas" feministas, acusando-as de não ter um olhar crítico sobre a categoria de gênero, e que esse olhar seria de certa forma inocente tendo uma forma essencialista de falar sobre essas questões e não uma forma construcionista social.

Nesse sentido, é importante destacar minimamente as diferenças entre as concepções de gênero para cada uma das correntes que estamos assinalando aqui. As "antigas" feministas, ou aquelas que introduziram a categoria como forma de estudo e também como estratégia política para adentrar espaços antes fechados para questões do feminismo, consideram gênero como sendo um sistema de relações sociais estruturadas em uma divisão binária entre homens e mulheres, a categoria está sim fundamentada sobre delimitação biológica, porém o gênero está assentado sobre o social e não sobre o biológico, pensando criticamente sobre a construção da masculinidade e feminilidade em diferentes tempos e espaços, a opressão aqui se dá através da subordinação de um gênero sobre o outro, homens sobrepondo mulheres. Já na teoria queer ou na inserção da teoria pós-moderna no pensar sobre essa questão, o gênero é um aspecto da identidade pessoal, e não necessariamente vinculado apenas com a questão biológica, então o gênero estaria deslocado do sexo.

O que esta teoria traz de novidade é que descortina um sistema binário rígido, que oprime tanto homens quanto mulheres, delimitando as formas como cada um deve se comportar na sociedade ou limitando os papéis de cada um. Esse sistema seria opressor inclusive para as pessoas que não se encaixam nem em um ideal de feminilidade e nem de masculinidade, ou se encaixam nos dois.

O feminismo radical ou a concepção antiga de gênero para o feminismo era de que a luta se daria através da organização das mulheres para acabar com o poder dos homens e assim desconstruir o poder destes sobre elas, e também desconstruir o poder da masculinidade e assim simultaneamente não haveriam gêneros, pois não haveria dominação de um sobre outro.

A teoria queer está muito mais vinculada ao poder das performances, ou como as nossas práticas seriam performáticas, o que acarretaria na desconstrução das identidades. O que diferencia as duas formas de pensar e colocar o gênero é a sua meta política. A teoria queer, ou pós-moderna do gênero, tem como meta a rejeição ao sistema binário de gênero e reivindica uma variedade infinita de identidades de gênero. Assim cada ser humano é livre para escolher qual gênero se identificaria, portanto o gênero continuaria existindo.

E o que torna tão importante essa discussão? Como falamos acima, o gênero adentra a universidade enquanto conceito teórico, mas acima de tudo político. Torna-se, por conseguinte, uma estratégia para que a questão seja discutida e respeitada dentro da academia enquanto forma científica para discussão dos problemas que envolvem a vida das mulheres e também como forma de problematizar a dominação e reprodução de um sistema patriarcal que como um todo interfere na sociedade estruturalmente.

É essencial que pontuemos isso para que possamos entender minimamente uma série de outras transformações pelas quais o feminismo vem passando. E também frisar, o caráter mais significativo da categoria de gênero, o seu caráter político. E a importância de pensarmos como a concepção que cada militante tem de gênero pode alterar completamente a forma de atuação política das feministas e dos movimentos em geral.

Aí podemos claramente observar onde a primeira onda do feminismo (luta pelo reconhecimento de direitos iguais) se encontra com a segunda onda (quando a questão da igualdade se estendeu das leis aos costumes), que também representou a preocupação feminista quanto a configuração da estrutura social, aliada a observância de uma ampla diversidade de formas patriarcais. E é nesta conexão que questionamos se a "Marcha das Vadias" pode ser considerada uma rede de movimentos e significados capaz de realizar a coalizão de diversos feminismos e de fazer dialogar as três ondas do feminismo que mencionamos. Passemos então ao nosso sujeito de pesquisa.

C. A marcha das vadias

Tem-se notícia que a mobilização conhecida como "A Marcha das Vadias" (que não pode ser confundido com um movimento pelas causas das prostitutas) tenha ocorrido pela primeira vez em 2011, na Escola de Direito Osgode Hall, cidade de Toronto no Canadá. A manifestação foi uma reação a um pronunciamento de um policial que, quando questionado sobre a expressiva incidência da prática de abuso sexual contra mulheres dentro da Universidade de Toronto, respondeu publicamente que os abusos deixariam de acontecer quando as mulheres deixassem de se vestir como sluts ("vadias" em inglês).

Sua fala foi postada e reproduzida pela internet por diversos meios: "Disseram-me que eu não deveria dizer isso, mas as mulheres deviam evitar se vestir como vagabundas, para não se tornarem vítimas" (Hashimoto, 2011, p. 3). O policial, advertindo as estudantes do sexo feminino a tomarem precauções para diminuírem as chances de serem vítimas de crimes sexuais, fomentou uma grande polêmica, reafirmando um discurso sexista de dupla vitimização, pois busca colocar parcela ou porcentagem da culpa por ocorrer uma agressão sexual na conduta, vestimenta e até no comportamento social da mulher (Hashimoto, 2011).

A partir desse posicionamento, universitárias de Toronto se reuniram e organizaram a SlutWalks (caminhada ou marcha das vadias) contra a culpabilização das vítimas de estupro e a criminalização da sexualidade feminina e favorável a liberdade das mulheres na escolha do quê vestir e como vestir, desconstruindo um condicionamento sociocultural que se manifesta não apenas nas ruas, mas dentro das próprias instituições.

Assim, a primeira "SlutWalks" contou com a presença de aproximadamente três mil pessoas, entre alunas e alunos estudantes universitários em Toronto, Canadá e a partir daí veio se difundindo através de movimentos feministas por outras cidades e outros países, inclusive o Brasil. O discurso fundamental presente em todas as manifestações não é apenas relativo à fala do policial, mas fundamenta-se ao intrínseco a esta fala: a visão machista, sexista, que pune, viola e retira a liberdade da mulher e a disposição de seu corpo, como forma de dominação e poder sobre ele, em uma relação patriarcal (Junqueira e Gonçalves, 2011). O objetivo da utilização do termo é fazer uso de um nome tão requisitado para humilhar e impor dominação psicológica ou física contra as mulheres e fazer uso do termo para reafirmar a própria classe, causar destaque ao discurso que fundamenta o protesto (Junqueira e Gonçalves, 2011).

A proposta do protesto era a de realizar uma mudança de enfoque sobre o tema do estupro. O questionamento tradicional frisava o cuidado da mulher com seu corpo, sua vestimenta, como medida para evitar tentativas de estupros ou violências, com a mudança de conduta sendo associada à parte feminina. Os protestos e marchas passaram a questionar tal reflexão trazendo o foco de diálogo para o masculino. Em síntese:

Não estupre, respeite. "Meu corpo, minhas regras". Deixa-se, assim, explícito, que a liberdade de escolha feminina sobre seu corpo é fundamental dentro deste diálogo. E destaca que a mudança do enfoque para a educação masculina, ao invés da imposição ao feminino, seria o caminho mais correto (Junqueira e Gonçalves, 2011, p. 3)3.

A primeira marcha no Brasil ocorreu na cidade de São Paulo reunindo cerca de 300 pessoas, com o lema central inspirado no fato ocorrido no Canadá (Folha de S. Paulo, 4 de júnio de 2011). Desde então, a Marcha das Vadias espalhou-se pelas capitais brasileiras e latino-americanas, com algumas pautas em comum, mas também com alguns acréscimos nacionais.

D. Sobre as teorias dos movimentos sociais

A existência de movimentos sociais pode ser percebida em vários momentos da história, mas a interpretação sistemática das ações coletivas, trata-se de fenômeno mais recente e que mereceu atenção especial das ciências sociais, em especial da sociologia. Breno Bringel (2012) oferece uma classificação das teorias dos movimentos sociais baseadas em três etapas, que passamos a descrever.

Inicialmente, as interpretações sobre os movimentos sociais seguiram o paradigma dos autores clássicos da Sociologia (Marx, Durkheim e Weber), em especial o caminho iniciado por Karl Marx, que elabora, no século XIX, a primeira teoria sistemática sobre o tema, colocando o conflito e a ação coletiva no seio da estrutura social; destacando o papel do movimento operário e a relevância atribuída ao conflito no mundo do trabalho (Marx, 2012a, 2012b)4.

Num segundo momento, uma série de lutas sociais desenvolvidas no século XIX, a radicalização dos ideais de liberdade irradiados pela contracultura, e a ampla variedade de manifestações estéticas que concentravam os desejos despertados nos anos 1960, voltaram a atenção da academia para a investigação dos Movimentos Sociais, atentando agora para outros aspectos desse sujeito social, tais como: dimensão interna, impactos, características e sentidos de suas ações. Tais estudos ocorreram nos anos 1960 e 1970, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, e, ensejaram matrizes analíticas oferecidas pelas teorias dos "novos movimentos sociais", teoria da "mobilização de recursos", teoria do "processo político", teoria da "escolha racional" dentre outras. Contudo, com as transformações sociais, econômicas e políticas ocorridas nos anos 1990 -no caso brasileiro, nos referimos principalmente à redemocratização política-, os limites da discussão acerca dos movimentos sociais sob os dois paradigmas teóricos mencionados ficaram claros, pois os sujeitos coletivos passaram a se articular sob novas práticas. As correntes e paradigmas anteriores foram questionadas -inclusive a própria noção de movimento social- e substituídas por abordagens mais plurais e relacionais, dando origem a uma terceira etapa (etapa contemporânea, de acordo com Bringel).

Maria da Glória Gohn (2008), por sua vez, classifica as teorias sobre os movimentos sociais baseada em três correntes teóricas: a históricoestrutural, a culturalista-identitária e a institucional/ organizacional/comportamentalista. A primeira corrente bebe em fontes das abordagens de Marx, Gramsci, Lefebvre, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Lênin, Mao Tse-tung; e veio a influenciar a análise tida como clássica ou tradicional sobre os movimentos sociais do século XX, com seus estudos e escritos sobre o movimento social dos trabalhadores vistos como sujeitos históricos. A segunda corrente construiu a chamada novidade dos "novos movimentos sociais" ao destacar que as novas gerações abriam espaços sociais e culturais, eram compostas por sujeitos e temáticas que não estavam na cena pública ou não tinham visibilidade, como mulheres, jovens, índios, negros etc.; tendo uma variada e complexa gama de influências como a abordagem fenomenológica e as teorias da sociologia weberiana, a escola de Frankfurt e a teoria crítica, além de Foucault, Giddens, Bourdieu e Touraine.

Ao desenvolver a abordagem culturalista, esses autores destacaram a questão da identidade dos movimentos sociais, criticaram as abordagens estruturais ortodoxas que se detinham excessivamente na análise das classes sociais como categorias econômicas e com foco apenas na classe operária e nos sindicatos, deixando de lado outros atores sociais relevantes. É importante frisar que estes autores teceram críticas ao marxismo, mas tiveram com ele um diálogo permanente, não o descartando. O grande saldo da corrente culturalista-identitária foi apresentar ao mundo a capacidade dos movimentos sociais de produzir novos significados e novas formas de vida e ação social.

Transcrevemos as classificações dos dois autores (Bringel, 2012 e Gohn, 2008) para justificar a nossa opção teórica por Alberto Melucci (1989a). O autor estaria localizado na segunda etapa ou corrente tanto na classificação de Bringel como na classificação de Gohn, mas com o diferencial de captar a transição do paradigma dos anos 1960 para o paradigma que se iniciou nos anos 1990 e perdura até os dias atuais. Melucci sistematizou uma abordagem sobre os movimentos sociais e ações coletivas a partir dos novos requerimentos da modernidade e a redefinição do sujeito racional de forma a incorporar as identidades culturais.

Para Melucci (1989a, 1989b, 2001) os movimentos atuais são capazes de criar identidades a grupos antes dispersos e desorganizados, projetando em seus participantes sentimentos de pertencimento social. O autor projeta importância nas diferentes espacialidades dos atores, nos elementos formais e informais, na latência e visibilidade, na plurimilitância, etc. Mesmo sem aderir a corrente tradicional dos movimentos sociais, ele percebe o importante papel que os mesmos podem desempenhar no sistema político tradicional.

E. A marcha das vadias a partir da teoria das redes de significados, de Alberto Melucci

1. A ação como forma simbólica

Segundo Alberto Melucci, as mobilizações coletivas dos anos 1970 e 1980 na Europa sugeriram a emergência de um novo modelo de ação coletiva. Alguns elementos deste modelo tornaram-se evidentes nas mobilizações estudantis de caráter antiautoritário e anti-institucional dos anos 1960. Em 1968, tivemos alguns elementos embrionários, apesar de estarem obscurecidos sob a necessidade de dar uma forma política organizada às exigências por modernização, ou seja, para alterar o funcionamento de diversas instituições sociais e políticas, padrões e normas culturais da sociedade (1989a). Entretanto, foi nos anos 1970, com a crise da nova esquerda, que ocorreu o desenvolvimento de um novo modelo de ação coletiva. Segundo Melucci, a crise da Nova Esquerda emergiu em duas frentes: "pelo crescimento das demandas das mulheres dentro da própria esquerda e pela crise da militância, que por sua vez refletiu a recusa do modelo de atuação Leninista, em nome de autorrealização, expressividade e comunicação afetiva" (Melucci, 1989a, p. 58).

As motivações desta nova tendência ficaram evidentes: não havia mais espaço para questões pessoais nas organizações; as pessoas sentiamse sufocadas pelas organizações pois não havia oportunidade para vida afetiva e relacionamentos pessoais. Melluci também destaca outra questão relevante:

No final da década de 1970, a música ocupou um lugar significativo no surgimento de novos grupos políticos. Este foi o período dos mega-shows. Os grandes eventos culturais pareciam substituir simbolicamente as grandes manifestações políticas dos anos anteriores. Numa época em que o modelo vigente de militância política já tinha perdido muito do seu apelo, os concertos atraíram um grande público de jovens, incluindo aqueles que tinham experimentado a última onda de mobilizações coletivas de jovens em 1977 (1989a, p. 59).

A atividade dos novos grupos consistia em tocar música, fumar cânhamo, atividades artísticas, atritar com a polícia, dentre outras atividades expressivas. Melucci destaca que estas tendências, apesar de retratarem a sociedade italiana, podem ser generalizadas para outros países, e conduziriam as mudanças mais importantes no modelo de ação coletiva.

Desde os anos 1980 a ação coletiva passou a ser estruturada em diferentes "áreas de interesse". Tal estrutura tomou a forma de redes compostas por uma multiplicidade de grupos dispersos, fragmentados e submersos na vida cotidiana.

Na visão de Melucci (1989b) os "movimentos sociais" são na verdade "redes de movimentos" que incluem tanto as organizações formais como redes de relações informais, que conectam núcleos de indivíduos e grupos a uma área de participantes mais ampla. A noção de rede indica que os movimentos sociais mudaram suas formas organizacionais, pois se tornaram completamente diferentes das organizações políticas tradicionais. Além disso, os movimentos vêm adquirindo crescente autonomia em relação aos sistemas políticos; como um subsistema específico, criouse um espaço próprio para a ação coletiva nas sociedades complexas. Na noção de "Rede" os movimentos tornam-se ponto de convergência de formas de comportamentos diferentes que o sistema não pode integrar (incluindo não só orientações conflitantes, mas também comportamento desviante, inovação cultural etc.) (Melucci, 1989b).

Estas redes submersas, embora compostas de pequenos grupos separados, são sistemas de trocas (de pessoas e informações circulando ao longo das redes, algumas agências como rádios livres locais, livrarias, revistas que fornecem uma determinada unidade) e têm as seguintes características: "a) permitem associação múltipla; b) a militância é apenas parcial e de curta duração; c) o envolvimento pessoal e a solidariedade afetiva são requeridos como condições para a participação em muitos dos grupos" (Melucci, 1989b, p. 61).

2. Construindo identidades coletivas

Na esteira do raciocínio de Melucci, a nova forma organizacional dos movimentos contemporâneos não é exatamente "instrumental" para seus objetivos, trata-se de construção de identidades coletivas, pois

É um objetivo em si mesmo. Como a ação está focalizada nos códigos culturais, a forma do movimento é uma mensagem, um desafio simbólico aos padrões dominantes. Compromisso de curta duração e reversível, liderança múltipla aberta ao desafio, estruturas organizacionais temporárias e ad hoc são as bases para a identidade coletiva interna, mas também para o confronto simbólico com o sistema. Às pessoas é oferecida, a possibilidade de outra experiência de tempo, espaço, relações interpessoais, que se opõe à racionalidade operacional dos aparatos. Uma maneira diferente de nomear o mundo repentinamente reverte os códigos dominantes. O meio, o próprio movimento como um meio, é a mensagem. Como profetas sem encantamento, os movimentos contemporâneos praticam no presente a mudança pela qual eles estão lutando: eles redefinem o significado da ação social para o conjunto da sociedade (1989b, p. 62).

O movimento de mulheres fornece um bom exemplo desta situação. Uma revisão da literatura recente mostra a excessiva ênfase colocada pelos analistas nos aspectos organizacionais e no que eu chamaria de resultado de igualdade (Melucci, 1989b, p. 62). O objetivo do movimento não é apenas a igualdade de direitos ao homem, mas também o direito a ser diferente. A luta contra a discriminação, por uma distribuição mais igualitária no mercado econômico e político é ainda uma luta pela cidadania. O direito de ser reconhecido como diferente é uma das mais profundas necessidades na sociedade pós-industrial ou pós-material, segundo Melucci (1989b).

Ser reconhecida como uma mulher é afirmar uma experiência diferente, uma percepção diferente da realidade, enraizada em "outro corpo", numa maneira específica de se relacionar com a pessoa. O movimento de mulheres, quando fala da diferença, fala para o conjunto da sociedade e não apenas para as mulheres. Para as sociedades que desenvolvem uma pressão crescente pela conformidade, esta reivindicação tem efeitos disruptivos, desafia a lógica do sistema e tem uma orientação antagonista.

As mensagens exibidas na marcha das vadias refletem as várias tensões do movimento feminista. Dentre estas, destacamos: -entre grupos de extrema esquerda vinculados a partidos políticos e grupos apartidários-; entre a consciência de grupos centrados na discussão das necessidades afetivas e os grupos de profissionais comprometidos com a criação de um espaço público para expressar a diferença feminina; -entre grupos, produzindo uma "cultura das mulheres" para consumo interno (escrita, arte e vestimenta) e os grupos envolvidos na prestação de serviços para as mulheres (proteção, saúde, lazer, trabalho e renda, bem-estar)-; e entre os grupos, dando prioridade à investigação sobre as diferenças do SELF e os grupos que enfatizam o sentimento de grupo.

A integração destas várias dimensões é possível graças a elasticidade e a forma organizativa adaptável que é, simultaneamente, retrorreflexiva e produtiva de códigos culturais femininos.

A partir desta estrutura de identidade, a mobilização das mulheres é, assim, possível e assume uma forma de duplo grau de visibilidade e latência: breves e intensas campanhas de mobilização públicas são alimentadas pelas redes submersas de grupos de mulheres e seus recursos de autorreflexão. Acompanhando as notícias e os acontecimentos das Marchas foi possível identificar que marcharam juntos homens e mulheres, gays e lésbicas, travestis e transexuais; com aparente abertura à múltiplas formas de resistências contra opressão, segundo o suposto movimento.

III. Visibilidade e latência

Em sua proposta de teoria da ação coletiva, Melucci trata da questão da latência e da visibilidade dentro dos movimentos sociais, pois para o autor

[...] quando os movimentos se mobilizam, eles revelam a face das redes latentes [...] latência e visibilidade são dois pólos interrelacionados da ação social. Aqueles que veem a ação coletiva desde um ponto de vista político-profissional, geralmente limitam a observação para a face visível da mobilização. Tal visão negligencia o fato de que ações coletivas são nutridas pela produção diária de significados nas redes que estruturam o movimento (1989a, pp. 70-71).

Tal análise é muito profícua para a problematização do movimento da Marcha das Vadias. O que o autor nos diz é que latência não significa inércia. O fato de a Marcha ocorrer uma vez ao ano não significa que o movimento passa o resto do ano na inatividade. Foi possível observar tais atividades nos diversos blogues alimentados pelos coletivos que compõem a Marcha, ou que são meros simpatizantes5. No mesmo sentido, existe uma conexão fisiológica entre a visibilidade e a latência nos movimentos sociais. Os atores geralmente ficam visíveis somente quando o conflito vem à tona (Melucci, 1989a) ou quando existe a necessidade de demonstrar sua legitimidade à sociedade; do contrário ficam na latência. Um bom exemplo foi o protesto relativo ao comentário do humorista "Rafinha Bastos" então integrante do programa CQC, da rede de televisão Bandeirantes. Este, em um dos programas afirmou que as mulheres feias que forem estupradas deveriam agradecer ao estuprador pelo ato. O humorista compara publicamente o estupro a "uma oportunidade" para determinadas mulheres, e o estuprador a um benfeitor, digno de "um abraço".

Melucci destaca que a dimensão latente dos movimentos não pode ser considerada como marginal ou residual, pois esta pode atestar a capacidade e desejo de desenvolver novos estilos de vida, numa era onde as formas de controle social não emanam somente do Estado. Mais adiante, no entanto, o autor destaca a presença de um delicado paradoxo na questão latênciavisibilidade: se a base dos conflitos contemporâneos foi deslocada para a esfera da produção de sentidos (ações referentes a vida cotidiana, às relações pessoais e às novas concepções de tempo e espaço), então, aparentemente a ação social teria pouco a ver com a política (Melucci, 1989a). Para o autor, por este caminho os atores coletivos tendem a dispersar e desintegrar-se de maneira fragmentada e atomizada, em redes ou grupos de terapia, rodas de conversa ou grupos de apoio.

Talvez seja na exitosa combinação entre latência e visibilidade que esteja o sucesso das ações coletivas. E a necessidade de reinterpretar a bandeira "o pessoal é político". Melucci chama a atenção para a necessidade da produção de significados que transcendam a política. Quer dizer: a ação coletiva não poder ser substituída pela mediação política, decisões ou políticas públicas, que traduzam esforços coletivos em mudanças institucionais.

Para o nosso autor, as formas de ação coletiva devem ser anteriores, mas ao mesmo tempo devem ir além da política: "são pré-políticas porque são enraizadas nas experiências da vida cotidiana; e meta-políticas porque forças políticas nunca podem representá-las por completo" (Melucci, 1989a, p. 72).

IV. A eficácia oculta dos movimentos sociais

A função contemporânea dos conflitos sociais é de conferir visibilidade ao oculto que permanece escamoteado na racionalidade dos procedimentos administrativos e de organização da política. Enquanto o poder visível desaparece nas sociedades complexas, ele se pulveriza por todos os espaços sociais. Apesar de desempenhar um papel central na conformação das relações sociais, é difícil localizá-lo nos indivíduos ou nas instituições (Melucci, 1989a).

O poder foi se transformando num conjunto de sinais que são frequentemente ocultados, entrelaçados em procedimentos, ou cristalizados em padrões de consumo de massa difundidos pela mídia. Um dos papéis fundamentais da ação coletiva é precisamente o de fazer explícito seus objetivos, mediante a criação de espaços nos quais o Poder fique visível (Melucci, 1989a).

Mediante a observação das atividades desempenhadas pelas entidades que compõem a Marcha das Vadias percebeu-se que os coletivos se esforçam por demonstrar quão propagado está o machismo e o patriarcalismo na sociedade, procurando ocupar e criar o maior número de espaços públicos em suas mobilizações. Destacamos as manifestações e protestos realizados em repúdio as campanhas publicitárias da rede de departamentos Marisa e da grife Hope6. Nestes casos,

A ação coletiva possibilita o estabelecimento de acordos públicos que, embora transitórios, nutrem a democracia política e protegem a comunidade contra os riscos do exercício arbitrário da violência e do poder [...] visto que o poder é neutralizado por trás da racionalidade formal de procedimentos, ele não poder ser controlado ao menos que se torne visível (Melucci, 1989a, p. 77).

Para o autor, a ação coletiva produz dois tipos de mudanças. A primeira é a mudança molecular, que é cultural, no sentido antropológico: alteração do cotidiano, formas de vida e relacionamentos sociais. A segunda mudança é relacionada aos efeitos causados nas instituições e nos sistemas políticos (Melucci, 1989a). Neste sentido, Melucci (1989a) critica o parâmetro de avaliação Leninista, no qual os movimentos somente chegam ao sucesso ao tomarem o poder estatal; do contrário são considerados perdedores.

Ainda na esteira da crítica do padrão leninista, Melucci assevera que a figura do "militante para a vida" ficou atrelada a uma condição objetiva e a uma cultura de classe específica. A militância contemporânea, em contraste, é de duração limitada. Atores mobilizam-se por um período limitado de tempo e somente para situações especiais que lhe interessam; eles participam de diversas atividades que lhe parecem compatíveis (Melucci, 1989a)7.

Para Alberto Melluci a questão da mudança do perfil da militância, nas sociedades complexas tem uma implicação na análise da mudança social, pois: "a mudança sempre ocorre de acordo com um "esquema" regional, relacionado com áreas particulares do sistema. O problema em explicar a mudança concerne à relação entre diferentes níveis de mudança, que podem convergir, mas também se distinguem" (Melucci, 1989a, p. 79).

As estruturas políticas tradicionais são incapazes de catalisar as necessidades da população. Para ocupar este vazio de representação, os movimentos sociais precisam de agilidade e flexibilidade nas estratégias de mobilização. Na visão do autor, a capacidade de sequestrar o poder de conformação das políticas públicas das mãos dos corpos políticos tradicionais e institucionalizados, poderia ser um bom parâmetro para verificar a efetividade dos movimentos e um bom indicador para medir a abertura do sistema político (Melucci, 1989a).

Melucci destaca ainda o perigo da relação entre atores coletivos e instituições políticas no que diz respeito a institucionalização dos movimentos sociais. Para o autor, esferas públicas como as universidades, os equipamentos públicos e a mídia comunitária, deveriam cumprir esse papel, pois possibilitariam a oportunidade de que os atores sociais tivessem visibilidade e fossem ouvidos, sem abdicar da autonomia ou institucionalizar os dirigentes dos movimentos (Melucci, 1989a).

F. Considerações finais

Pelo exame que fizemos, constatamos que é difícil definir o feminismo como um só movimento, homogêneo e com fronteiras definidas. Entendemos o feminismo como um movimento diversificado, plural, de batalhas cotidianas presentes em diversos momentos da história mundial. Mediante a análise do material coletado até então, seria precipitado concluir que a "Marcha das Vadias" pode ser considerada uma rede de movimentos e significados capaz de realizar a coalizão de diversos feminismos, questionar os padrões tradicionais de comportamento e relacionamento entre as pessoas e de fazer dialogar as três ondas do feminismo que mencionamos (a - luta pela igualdade de direitos; b - igualdade estendida das leis aos costumes, focalizando temas como sexualidade, violência e mercado de trabalho; c - crítica à construção da imagem feminina pelos meios de comunicação de massa, quando as mulheres falam em nome de uma libertação da sexualidade e não somente de sua sexualidade).

Dentre as principais bandeiras que percebemos na Marcha das Vadias, destacamos: repúdio a qualquer forma de violência que se inicia a partir da desigualdade e do preconceito; maior liberdade das mulheres; contra a criminalização das várias formas de exercer a própria sexualidade humana; contra o machismo como forma de dominação masculina; contra o patriarcado e a mercantilização do corpo feminino e a vida em geral; por uma nova forma de lidar com as relações de gênero e com a sexualidade.

Para uma percepção mais aprofundada do movimento será necessário uma pesquisa de campo -de natureza qualitativa- no intuito de coletar dados dos próprios integrantes da Marcha das Vadias mediante entrevistas que possibilitem a captação do sentido da possível coalizão.

Assim será possível averiguar o grau de envolvimento e identificação que os participantes do movimento possuem, assim como o nível de entendimento e envolvimento com a causa. E ainda, neste sentido, questionar: a Marcha das Vadias pode ser enquadrada como um novo momento do feminismo e da luta contra o sexismo e a heteronormatividade?

Em que pese a fase exploratória da pesquisa, nos arriscamos a apontar duas pistas de investigação:

I. Limites sobre a representatividade na Marcha das Vadias

Em setembro de 2011 o grupo Black Women's Blueprint lançou uma carta em repúdio a Marcha das Vadias dos EUA que teve repercussão internacional, alcançando os diversos países onde a Marcha se estabeleceu como Movimento Social orgânico. A carta parabeniza e reconhece a importância da Marcha como resposta e mobilização ao que ocorreu em Toronto, porém pontua alguns de seus limites e questiona a apropriação do nome como algo não representativo das demandas das mulheres negras, que são e foram historicamente sexualizadas, estupradas e tratadas como "vadias". A mensagem destaca a importância de que se ressalte a opressão étnica/ racial e traz à tona algumas questões latentes no movimento, que têm afastado um grande número de feministas, a exemplo, o desacordo com a intitulação do movimento (a apropriação do termo vadia), com as pautas estabelecidas, com a forma de protesto etc.

Como Mulheres Negras, não temos o privilégio ou o espaço de nos chamarmos de "Vadia" sem validar a ideologia historicamente intrincada e recorrente de quem é a Mulher Negra. Nós não temos o privilégio de brincar com representações destrutivas que foram marcadas no nosso imaginário coletivo, nos nossos corpos e nossas almas por gerações. Apesar de compreendermos o ímpeto válido por trás do uso da palavra 'vadia' como linguagem usada para enquadrar e representar um movimento anti-estupro, estamos gravemente preocupadas. Para nós, a trivialização do estupro e a ausência de justiça são cruelmente ligadas à narrativas de vigilância sexual, acesso legal e disponibilidade da nossa humanidade. É ligado a ideologia institucionalizada de nossos corpos como objetos sexuais da propriedade de outra pessoa, espetáculos de sexualidade e desejo sexual. É ligado as noções de nossos corpos, com roupas ou sem roupas, serem impossíveis de serem estuprados, seja na plataforma de leilão (local onde se colocavam escravos à venda), nos campos ou na tela da televisão. A percepção, e a larga aceitação de especulações sobre o que a Mulher Negra quer, o que ela precisa e o que ela merece, há muito tempo ultrapassou as barreiras de somente como ela se veste (Black Women's Blueprint, 2011, p. 2)8.

II. Suposto crescimento de um feminismo de corte liberal

Se já havia um desconforto (muitas vezes velado) de alguns movimentos feministas e de mulheres em relação a marcha das vadias, este desconforto veio à tona no Brasil, principalmente após a última marcha realizada durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, em julho de 2013.

A marcha das vadias tem recebido o rótulo de sustentar um feminismo que não debate questões estruturais, que se fixa demasiadamente na bandeira o "pessoal é político", e que acaba desarticulando debates históricos que enfrentam questões de opressão do próprio sistema capitalista, da divisão sexual do trabalho e do consumo.

Não encontramos definições teóricas sobre o que seria um feminismo liberal, no entanto, algumas militantes arguem que este seria uma expressão do feminismo com foco unívoco na questão das sexualidades (gays, lésbicas, trans, travestis e queers). Neste sentido, a Marcha das Vadias não seria um movimento feminista, pois o feminismo precisa ser um espaço de empoderamento das mulheres que ainda se encontram em uma lógica estrutural de dominação patriarcal e machista. Outrossim, o feminismo liberal não faria uma crítica à economia, e não pontuaria diretamente a pobreza, a desigualdade, a exploração sistêmica. A vinculação da Marcha das Vadias ao feminismo liberal também associada à "defesa" da prostituição, o que a maioria dos feminismos trata como o extremo da mercantilização do corpo da mulher.

A Marcha das Vadias está nos interesses das mulheres privilegiadas que podem brincar com o papel de vadia, se vestir como uma puta, exibir cartazes com dizeres como "Vadias Dizem Sim", que imaginam que as mulheres no mercado do sexo são empoderadas quando elas nos chamam de irmãs (Ação Antisexista, Coletivo Feminista, 2012, p. 1).

Preliminarmente, os argumentos levantados questionam a própria possibilidade de coalizão problematizada no artigo, ou seja, seria possível fortalecer uma coalizão de feminismos com tantas contradições, limites e oposições? Por fim, ressaltamos que no início desta pesquisa, havia pouca repercussão de outros movimentos feministas e de mulheres acerca da Marcha das Vadias; havia considerável crescimento e fortalecimento do movimento e poucas críticas.

No entanto, atualmente as críticas têm aparecido de forma mais explícita e contundente. Dentre estas destacamos as críticas à representatividade, elitização ou recorte de classe, recorte étnicoracial, apropriação do termo vadia e orientação individualista das bandeiras levantadas. Igualmente, é importante estar sempre em alerta para identificar discursos de origem moralista e que objetivam nada além da criminalização das lutas sociais.


NOTAS

1 Não pretendemos reconstruir neste artigo toda a história das lutas das mulheres. Faremos apenas a contextualização necessária à compreensão da Marcha das vadias como movimento social. Para aprofundar o estudo das lutas feministas ver, entre outros Gohn (2008) y Perrot (1998). Volver

2 Dentre estes citamos as revoltas estudantis de maio em Paris, a primavera de Praga na Tchecoslováquia, os black panters, o movimento hippie e as lutas contra a guerra do Vietnã nos EUA, a luta contra a ditadura militar no Brasil. Volver

3 Veja-se a carta manifesto da marcha das vadias de Brasília: Por que marchamos? https://marchadasvadiasdf.wordpress.com/manifesto-2012-por-que-marchamos/ Acesso em 25 de janeiro de 2012. Volver

4 Há também quem acrescente ao bloco das teorias clássicas, as teorias da frustração-agressão, teoria da sociedade de massa e teoria da tensão estrutural; embora nominalmente sociológicas, baseiam-se sobre sobretudo em processos e mecanismo psicológicos (Johnson, 1997). Volver

5 Recomenda-se: blogueirasfeministas.com; http://marchadasvadiasdf.wordpress.com; http://marchadasvadiasrio.blogspot.com.br; http://marchadasvadiasbr.wordpress.com/calendario Volver

6 No caso Hope o movimento feminista pressionou a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República para pleitear a suspensão da campanha das lojas Hope estrelada pela modelo Gisele Bündchen junto ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Ver reportagem http://virgula.uol.com.br/ver/noticia/lifestyle/2011/09/28/285206-propaganda-dahope-com-gisele-bundchen-vira-alvo-de-criticas-e-podeser-tirada-do-ar Volver

7 Concordamos em parte com a validade deste aspecto da teoria de Melucci, pois é notório que no caso brasileiro, a figura do militante "guarda-chuva" ou do "plurimilitante", dos "novos movimentos sociais" esteja densamente imbricada aos partidos políticos de esquerda e sindicatos (tidos como "velhos movimentos") ou ainda a outros coletivos de esquerda com orientação leninista. Isso ocorre tanto no caso da marcha das vadias, como no caso de outros coletivos. Volver

8 Uma versão traduzida foi publicada em http://www.feministacansada.com/post/44143444731 Volver


REFERENCIAS

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