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Prolegómenos

Print version ISSN 0121-182X

Prolegómenos vol.19 no.37 Bogotá Jan./June 2016

https://doi.org/10.18359/prole.1682 

ARTÍCULO DE REFLEXIÓN

DOI: http://dx.doi.org/10.18359/prole.1682

AS FIGURAS DA PERVERSÃO DO DIREITO: PARA UM MODELO CRÍTICO DE PESQUISA JURÍDICA EMPÍRICA*

FIGURAS DE LA PERVERSIÓN DEL DERECHO: PARA UN MODELO CRÍTICO DE INVESTIGACIÓN JURÍDICA EMPÍRICA

FIGURES OF LAW PERVERSION: FOR A CRITICAL MODEL OF JURIDICAL EMPIRIC INVESTIGATION

José Rodrigo Rodriguez**

*Artigo de reflexão que é resultado do projeto de pesquisa "Luta por Direitos na Democracia" desenvolvido na Unisinos, Brasil.
** Professor no programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Unisinos-Brasil. Pesquisador do Cebrap e coordenador do Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP-SP, Brasil, Correio eletrônico: jrrodriguez@unisinos.br.

Forma de citación: Rodriguez, J. (2016). As figuras da perversão do direito: para um modelo crítico de pesquisa jurídica empírica. Revista Prolegómenos Derechos y Valores, 19, 37, 99-124. DOI: http://dx.doi.org/10.18359/prole.1682


Fecha de recepción: 18 de junio de 2015
Fecha de evaluación: 20 de septiembre de 2015
Fecha de aprobación: 20 de octubre de 2015

Resumo

O texto propõe categorias metodológicas para utilização no desenho de projetos de pesquisa empírica em direito que assumam uma postura crítica. Projetos interessados em descrever e cobrar racionalidade das instituições do estado de direito. Esta forma de legitimação do poder pressupõe a necessidade de decidir conforme a vontade das leis e não conforme a vontade dos homens. Para realizar o seu objetivo, o texto propõe as categorias "fuga do direito", "falsa legalidade" e "zona de autarquia", construídas a partir da obra de Franz L. Neumann, cuja finalidade é evidenciar e criticar os critérios utilizados pelo poder para justificar seus atos juridicamente e, eventualmente, refletir sobre o significado de sua ausência. A utilização de tais categorias pretende tornar possível identificar problemas de pesquisa que relacionem as categorias da racionalidade interna do direito com os conflitos na sociedade civil, evidenciando os momentos em que o poder decide forma autárquica, pervertendo o direito para impor uma decisão de forma unilateral, ou seja, sem uma justificativa que atenda às exigências da promessa de legitimidade contida na ideia de estado de direito.

Palavras-chave:

Direito, conflitos sociais, racionalidade, movimentos sociais.


Resumen

El texto propone categorías metodológicas que asuman una postura crítica, las cuales se pueden emplear en el diseño de proyectos de investigación empírica en derecho. Proyectos cuyo interés sea describir y exigir la racionalidad de las instituciones del Estado de derecho. Esta forma de legitimación del poder supone la necesidad de decidir conforme la voluntad de las leyes y no conforme la de los hombres. Para alcanzar su objetivo el documento propone las categorías "fuga del derecho", "falsa legalidad" y "zona de autoridad", desarrolladas a partir de la obra de Franz. L. Neumann, cuyo propósito es evidenciar y criticar los criterios utilizados por el poder para justificar jurídicamente sus actos y, eventualmente, reflexionar sobre el significado de su ausencia. El uso de dichas categorías procura posibilitar la identificación de los problemas de investigación que relacionen las categorías de racionalidad interna del derecho con los conflictos en la sociedad civil, revelando los momentos en los que el poder decide la forma autárquica, pervirtiendo el derecho para imponer una decisión de forma unilateral, es decir, sin una justificación que cumpla con las exigencias de la promesa de legitimidad contenida en la idea del Estado de derecho.

Palabras clave:

Derecho, conflictos sociales, racionalidad, movimientos sociales.


Abstract

The text proposes methodological categories which assume a critical posture and can be used in the design of projects of law empiric investigation. Projects whose interest is to describe and demand the rationality of the Constitutional State institutions. This way of legitimation of power involves the need to decide according to the will of laws and not to that of men. In order to reach its objective, the document proposes the categories "outflow of law", "false legality" and "zone of authority", developed from the writing of Franz L. Newmann, whose purpose is to evidence and criticize the criteria used by power in order to juridically justify its actions and, eventually, to reflect about the meaning of its absence. The use of such categories endeavours to enable the identification of investigation problems that relate the law internal rationality categories to the conflicts in civil society, revealing the moments in which power decides the self-sufficient way, perverting the right to impose a decision in an unilateral way, that is, without a justification that fulfills the demands of the promise of legitimacy, contained in the idea of Constitutional State.

Keywords:

Law, social conflicts, rationality, social movements.


Introdução

Uma pesquisa empírica em direito que se pretenda crítica deve cobrar das instituições formais suas promessas não cumpridas, presentes na justificação que as legitimam perante a esfera pública. Na tradição da teoria crítica, Franz Neumann foi pioneiro em construir um modelo crítico adequado para criticar o estado de direito liberal burguês e explicitar seus potenciais repressivos e emancipatórios1.

Em uma palavra, Franz Neumann mostrou que todo poder, estatal ou não, que pretenda legitimar suas ações com fundamento na ideia de estado de direito, precisa justificar racionalmente suas decisões mostrando que elas atendem igualmente aos desejos e necessidades de todos. Utilizar a ideia de estado de direito para legitimar o poder significa, portanto, abrir espaço para que todo e qualquer desejo ou interesse excluído reivindique ser ouvido e contemplado em razão da ideia mesmo de estado de direito, o que resulta na desestabilização constante dos direitos já garantidos pelo estado de direito.

Afinal, cada novo direito reivindicado disputa os recursos púbicos com os direitos já garantidos e pode conferir reconhecimento simbólico a valores que podem ser combatidos com unhas e dentes por outros grupos sociais. Nesse sentido, a ideia de Estado de direito é um fator constante de desestabilização do status quo, um elemento incômodo para todos os desejos e necessidades já reconhecidos, um motor que impulsiona a transformação do direito positivo, que precisa ser revisto constantemente para dar lugar a novos interesses sociais.

A afirmação de que a vontade do poder deva coincidir com a vontade da sociedade, ou seja, de que ela deva ser cada vez mais inclusiva, arma um mecanismo que tende a colocar em xeque toda e qualquer instituição formal que deixe de se transformar para abarcar novos desejos e necessidades sociais. Para Franz Neumann, como mostra Rodriguez (2013a) esta é a estrutura essencial do Estado de direito:

Trata-se de uma estrutura institucional que constrange o poder soberano a agir conforme a vontade da sociedade por meio de normas gerais e as instituições ligadas a elas [...], que instituem e garantem a separação entre soberania e liberdade, entre sociedade e Estado (p. 172).

A ideia de Estado de direito caracteriza-se pela existência de duas esferas: a da soberania e a da liberdade em relação à soberania. A separação dos Estados nacionais ou de outros entes assemelhados nessas duas esferas, acrescida da afirmação de que ele deve servir às necessidades e à vontade de todos os homens e mulheres submetidos a tal poder, possibilita a ampliação do espaço de participação política das forças sociais na produção das normas que regulam a vida em sociedade. De acordo com Rodriguez (2009):

Trata-se de uma estrutura inclusiva e, por isso mesmo, aberta para o futuro, capaz de apreender as novas demandas sociais. A questão não é mais qual é a verdade substantiva que deve orientar a elaboração do direito positivo, mas como construir instituições capazes de ouvir a voz da sociedade (p. 123).

Criticar um Estado de direito em concreto, que assumisse ou não a forma de um Estado nacional, significa, em primeiro lugar, investigar empiricamente o sofrimento social e a ação dos movimentos sociais para identificar indivíduos e grupos, cujos desejos e necessidades não estejam sendo levados em conta pelas instituições formais2. Ademais, e este é o foco deste texto, criticar um estado de direito em concreto significa também mostrar aquelas situações em que os incluídos procuram perverter o direito para evitar que ele esse transforme para abarcar novos desejos e interesse sociais. Afinal, a cada mudança no direito positivo, os interesses já incluídos ficam desestabilizados, ameaçados por demandas novas pela utilização de recursos públicos e pelo reconhecimento simbólico. Nesse sentido, o objetivo deste texto é identificar uma pauta de pesquisa crítica para investigações sobre a racionalidade jurídica em ação, especialmente no exercício da função jurisdicional e da função executiva.

A formulação do modelo crítico neumanniano tornou-se teoricamente possível apenas no momento em que a classe operária entrou no Parlamento e passou a lutar por criar direitos que favoreciam os desejos e necessidades do proletariado. Nesse momento a ideia de Estado de direito, criada com as revoluções burguesas, que prometia direitos iguais para todos e uma gestão dos Estados existentes na época que respondesse aos anseios da sociedade, passou a ser tencionada por este novo grupo social que acabava de entrar em cena.

Afinal, a mesma ideia de igualdade que legitimara as reivindicações burguesas contra os privilégios do mundo medieval, que favoreciam a nobreza e o clero, estava sendo utilizada agora para questionar o poder da burguesia na gestão da economia, ou seja, para questionar suas decisões no que dizia respeito à utilização dos meios de produção, especialmente sua estratégia para explorar a mão de obra.

Como mostrou Neumann, o proletariado, ao falar a mesma linguagem de liberdade que justificava o poder da burguesia, fez do estado de direito uma faca de dois gumes que passou a justificar tanto a destruição dos privilégios medievais quando o questionamento da legitimidade do poder da classe burguesa (Neumann, 2013a; Rodriguez, 2009).

Um dos resultados deste processo foi a crescente perda de legitimidade da ideia de estado de direito perante as classes então dominantes, que passaram a apoiar partidos e regimes autoritários com a finalidade de neutralizar o poder crescente da sociedade civil, neste momento, protagonizado pelo proletariado.

A racionalidade do estado de direito dava lugar, na formulação de Neumann, à irracionalidade de uma legitimação baseada nas ideias de "raça" e "nação", que deixavam de lado a gramática da relação entre sociedade e estado e procurava construir uma política baseada na formação de uma grande comunidade homogênea, identificada por laços de sangue e afeto em que não houvesse mais nenhum antagonismo. Mesmo que isso custasse a vida de milhões de pessoas nos campos de concentração, a burguesia entendeu necessário neutralizar o conflito social e sabotar a racionalidade emancipatória do estado de direito.

Parece evidente que, em uma sociedade em que não haja antagonismos de nenhuma natureza, em uma sociedade em que não haja desigualdades de poder econômico, político ou social, as normas jurídicas permanecerão estáveis, sem questionamento, capazes de incluir todos os desejos e necessidades presentes naquela realidade histórica (Rodriguez, 2013b).

Este estado de reconciliação da sociedade consigo mesma, a despeito de Neumann pouco falar dele, certamente poderia ser chamado de socialismo. Ao menos é assim que a tradição socialista se refere a sociedade em que as desigualdades de classe desapareceram e o Estado funciona em harmonia com a sociedade. No entanto, em sua versão pervertida, por meio de uma pacificação social feita à custa de censura, violência e morte, que inclua a neutralização de qualquer oposição, inclusive por meios violentos, uma sociedade completamente pacificada poderia ser chamada de fascista ou nazista. Nesse sentido, por mais estranho que isso posso soar, socialismo e nazismo guardariam semelhanças, ao menos de superfície, na aparência.

É justamente aqui que a ideia de estado de direito revela toda a sua importância para o pensamento crítico. Pois afinal, apenas uma reconciliação, uma pacificação, uma eliminação de desigualdades feita sob um estado de direito, ou seja, feita por um regime que garanta a qualquer indivíduo ou grupo manifestar sua insatisfação com a ordem vigente e propor reformas diante do que está posto, é capaz de diferenciar o socialismo de toda e qualquer forma de fascismo, comunitarista ou absolutista.

Abstraindo a análise de Franz Neumann para além de seu momento histórico, podemos dizer que o estado de direito, ao menos em sua concepção ocidental, é um regime político fundado na promessa de reconhecimento de direitos para todos os grupos sociais, os quais devem ser levados em conta na gestão do Estado ou de qualquer outra instituição que opere de acordo com esta racionalidade específica.

Utilizo aqui o termo "estado" não como sinônimo de máquina estatal nacional, mas para designar uma situação, uma condição social, um regime de regulação em que as relações sociais são mediadas por normas jurídicas que pretender dar conta de todos os desejos e necessidades sociais, assim reconhecidas por um determinado centro de poder com força coativa.

Nesse sentido, qualquer instância de poder, nacional, internacional ou transacional que reivindique a ideia de estado de direito para justificar seu poder abre espaço para um processo ininterrupto e imprevisível de politização que terá como objetivo fazer valer a promessa contida em tal ideia, por meio de reivindicações que irão procurar incluir interesses incluídos e, por via de consequência, questionar a distribuição de bens, poder político e poder simbólico instituídos e garantidos por aquelas regras.

Ao menos essa é a lição que aprendemos no Ocidente com a entrada do proletariado no Parlamento, episódio central de um processo de luta por direitos que resultou na criação das assim denominadas três gerações de direitos (civis, políticos, sociais) e que continua a pressionar as instituições formais para reconstruir as o direito posto com o objetivo de alojar novos interesses, questionando a posição dos grupos já protegidos e tornando a revisão constante do direito posto uma necessidade da qual não se pode escapar, sob pena de deslegitimar no regime político.

Fácil é perceber, portanto, como a ideia de estado de direito é incômoda, especialmente em regimes de grandes desigualdades e com amplos contingentes de excluídos. A promessa de igualdade contida no estado de direito é capaz de motivar os agentes sociais a reivindicar os direitos que entendem serem devidos eles e, portanto, a desestabilizar a posição de quem já se encontra incluído. Afinal, quando falamos e direitos está em jogo a disputa por recursos públicos e por reconhecimento simbólico deste ou daquele interesse social.

A. Figuras da perversão do direito

É possível perceber, portanto, que os poderosos tentem perverter o direito, ou seja, que procuram utilizar o direito para conferir aparência jurídica a espaços de puro arbítrio nos quais seria possível agir sem o controle da sociedade civil, em função apenas dos interesses dos poderosos3.

Em um estado de direito, insistimos, as normas que regulam nosso comportamento devem ser responsivas aos desejos e necessidades sociais, seja em sua criação, seja em sua aplicação. A criação de normas que não passem pelo crivo da sociedade ou que atinjam de forma injusta determinados grupos e não outros caracterizam a perversão do direito, a qual faz com que o estado de direito passe a funcionar de maneira patológica4, frustrando a promessa que este regime faz às sociedades nas quais está presente.

Tomo a ideia de perversão do direto, ainda de forma tentativa, das páginas do livro Brasil: nunca mais, o relatório das pesquisas da Comissão Justiça e Paz sobre a tortura no Brasil na época da ditadura militar (ARNS, 2011). No livro, considera-se perversão do direito a manipulação das normas com o intuito de dar forma jurídica a atos arbitrários que não seriam tolerados caso as instituições estivessem funcionando normalmente; atos que destoam da literalidade das leis ou que violam práticas evidentemente legais. A perversão do direito, veremos a seguir, pode se manifestar em três figuras diferentes: fuga do direito, falsa legalidade e zona de autarquia.

I. Fuga do direito

A primeira figura da perversão do direito, identificada em meu doutorado, eu chamei de fuga do direito em um diálogo com a obra de Franz Neumann, em especial o livro O império do direito, escrito em 1936, publicado em alemão e inglês apenas na década de 80 e em português em 20135. Como acabamos de mostrar, para que a ideia de estado de direito se mantenha na condição de justificação coerente do poder estatal, ele precisa reconhecer e se propor a acolher as demandas vindas da sociedade.

O problema é que acolher novas demandas, por óbvio, desestabiliza os interesses dos grupos incluídos, reconhecidos e protegidos pelas leis até então positivadas, tornando necessário rearticular continuamente a justificação do que significa servir aos desejos e necessidades de todos para que o direito positivado faça sentido racionalmente a cada momento histórico e possa ser objeto de adesão dos cidadãos e cidadãs. A oposição aos direitos trabalhistas para ficar apenas em um exemplo, não cessou até hoje, mesmo nos países em que eles alcançaram relativa instabilidade, ou seja, em parte do continente europeu.

Para Neumann, uma das explicações para o advento do nazismo foi, justamente, a oposição da burguesia ao uso do estado de direito e de sua gramática em favor dos interesses do proletariado. Diante destes desenvolvimentos indesejáveis do estado de direito, que contrariavam os seus interesses, a burguesia decidiu abandonar esta forma racional de justificação do poder, resolveu fugir do direito, passando a tolerar ou a apoiar abertamente a liderança carismática de Adolf Hitler contra a livre manifestação dos desejos e necessidades da sociedade civil, com o objetivo de desarmar a ligação entre demandas sociais e instituições formais. Esta foi a primeira manifestação eloquente desta expressão da perversão do direito.

Como se vê, o nazismo procurou expropriar a autonomia da sociedade ao desarmar o mecanismo que poderia fazer com que os debates morais, éticos e de qualquer outra natureza pudessem ter consequências efetivas para a construção autônoma do regime normativo daquela sociedade por meio do desenho jurídico de suas instituições formais.

Nesta época na Alemanha, novos ramos do direito estavam surgindo, por exemplo, o direito do trabalho, cujo objetivo era, justamente, equilibrar as posições dos empregados e empregadores na regulação do preço e das condições de trabalho. No direito do trabalho, por princípio, a vontade livre é suspeita, justamente em razão da desigualdade de poder econômico entre as partes, e são criadas cláusulas obrigatórias para todo e qualquer contrato de trabalho, por exemplo, o direito a férias e ao salário mínimo.

Surgia também o direito da concorrência que visava disciplinar a livre-concorrência capitalista para evitar a formação de monopólios, instaurando a possibilidade de regular juridicamente as operações econômicas, ou seja, atingindo por outra via os contratos compreendidos como centro do ordenamento jurídico. Na mesma toada, a Constituição de Weimar elevou ao grau máximo da hierarquia das leis uma série de direitos que beneficiavam as classes exploradas, por exemplo, a função social da propriedade que passou a constranger os proprietários a utilizarem seus bens para fins valorizados socialmente, ou seja, expropriou a burguesia do poder de dispor livremente sobre bens que eram de sua propriedade.

Para além de seu contexto de origem, esta figuraé extremamente útil para refletir sobre fenômenos contemporâneos como a criação de regimes privados transnacionais, lex mercatoria e outros fenômenos da assim chamada globalização6. Nesse sentido, a fuga do direito é útil para flagrar e denunciar processos de reprivatização do direito e de neutralização do poder da sociedade em favor dos interesses de entes altamente poderosos que atuam na esfera internacional.

Também para pensar qualquer regime normativo que afaste a sociedade do controle da produção das normas jurídicas, transferindo o poder normativo exclusivamente para as mãos daqueles diretamente interessados nas mesmas, sem que haja a possibilidade de qualquer interferência da esfera pública em seu processo de produção visando a salvaguardar interesses de outros interessados.

II. Falsa legalidade

Chamo de falsa legalidade a produção de normas aparentemente universais, mas que são efetivamente postas a serviço de interesses parciais, por exemplo, atingir apenas a determinados grupos sociais e não outros. Neumann discute a questão da falsa legalidade de maneira muito sugestiva em seu texto sobre "O conceito da liberdade política" (Neumann, 2013b: 146-148) ao analisar episódios do maccartismo norte-americano, em especial a perseguição a funcionários públicos por meio de inquéritos administrativos. Nestes episódios, o autor identifica a utilização de normas e procedimentos aparentemente legais com fins claramente discriminatórios.

Como explica Neumann, o governo sempre terá o dever de despedir empregados desleais. Mas o problema está em como se pode definir a deslealdade e quais devem ser os procedimentos para a dispensa. Durante o maccartismo, a mera suspeita de deslealdade, leia-se, comunismo, motivava dispensas arbitrárias em um procedimento que não garantia aos empregados direito de defesa. Como se tratava da dispensa de funcionários, segundo Neumann, a administração possuía de fato este poder desde o princípio: ela não estava obrigada a conceder ao empregado a oportunidades de defesa. No entanto, este tipo de reação só ocorria diante de empregados e empregadas suspeitas de serem comunistas.

Fica claro neste caso como um direito garantido pelas leis pode acabar funcionamento como meio para discriminar pessoas e grupos julgados suspeitos por uma razão qualquer, sem que se possa identificar facilmente tal ato como discriminatório. Pior do que tudo, naquele contexto histórico, ser demito por suspeita de deslealdade tinha consequências muito graves para a vida profissional destas pessoas. Sem que fosse necessário enunciar, a deslealdade era identificada com "comunismo" e este estigma era suficiente para que a pessoa nunca mais fosse contratada por nenhum órgão do governo. Ser demitido desta forma condenava a pessoa a um verdadeiro ostracismo.

Klaus Günther (2009) utilizou o conceito neumanniano de falsa legalidade para analisar a legislação antiterror; leis que relativizaram uma série de direitos fundamentais, caros à tradição democrática, como o direito ao habeas corpus, à intimidade e à ampla defesa, com o objetivo de tornar a investigação e o processamento desses casos mais célere. Günther (2009) manifesta surpresa diante da falta de indignação pública diante dessas medidas e atribui este fato justamente à falsa legalidade.

De acordo com ele, os cidadãos e cidadãs tendem a concordar com essas medidas, pois elas supostamente terão efeito apenas sobre a vida de pessoas "perigosas", ou seja, sobre a vida de grupos de radicais muçulmanos por exemplo, e não sobre a vida das "pessoas comuns". A legislação antiterror, em tese, é formulada na forma universal e tem como destinatários qualquer suspeito de terrorismo. No entanto, as mesmas normas geram a expectativa de uma aplicação seletiva, supostamente incapaz de incomodar as pessoas "de bem".

O conceito de falsa legalidade é especialmente útil para evidenciar espaços de arbítrio no interior do estado de direito, espaços que passariam despercebidos se nos ativéssemos apenas ao texto das leis sem prestar atenção em sua aplicação e em seus efeitos sobre a sociedade. Sustento que uma das tarefas centrais da pesquisa empírica em direito hoje é, justamente, identificar casos de falsa legalidade para manter a legitimidade das promessas da democracia encarnadas na racionalidade do estado de direito.

B. Zonas de autarquia

Na concepção ocidental do termo, estado de direito significa a imposição de limites ao poder soberano e ao poder privado. Ninguém pode agir licitamente sem fundamento em uma norma jurídica ou em uma norma social que autorize diretamente uma determinada conduta ou crie um espaço de autonomia dentro dos limites impostos pelo direito de determinado ente soberano. Pode-se dizer que haja um estado de direito quando toda ação possa ser justificada a partir de uma norma criada ou não pelo Estado e, neste último caso, reconhecida por ele (Rodriguez, 2013a).

A figura da zona de autarquia mostra a sua importância quando lembramos que não apenas as normas gerais e abstratas são importantes para o estado de direito, mas também os atos de aplicação destas normas a casos concretos. Textos normativos costumam admitir múltiplas interpretações e, portanto, os órgãos que detêm a competência para utilizá-los na solução de casos concretos também precisam zelar pela segurança jurídica.

Mesmo quando o legislador confere expressamente um espaço de liberdade para a aplicação do direito, as decisões proferidas não podem deixar de se fundar em algum tipo de racionalidade que permita aos destinatários entender por que se privilegiou uma solução jurídica em detrimento de outra, como mostra Rodriguez (2012):

[...] o conceito de Estado de Neumann é construído para dar conta do problema da aplicação e seu controle. Para ele, o Estado tem, de um lado, uma dimensão jurídica, o poder de estatuir normas individuais e normas gerais; de outro lado, este mesmo estado tem uma dimensão sociológica: poder de impor suas normas sobre um determinado território. Ele não se reduz ao direito positivado em abstrato, mas se projeta em suas decisões concretas, tomadas pelos poderes e por todas as pessoas, públicas ou privadas, que atuam em seu nome [...]. Em todos os casos, estamos diante do objeto de estudo da ciência do direito (p. 81).

Se admitimos, com a teoria do direito do século XX, que os atos de aplicação são criativos, fica claro que intenções arbitrárias podem se insinuar também neste espaço de indeterminação. Tal fato exige que a pesquisa em direito tenha, necessariamente, um momento empírico cujo objetivo seja o de zelar pela manutenção do estado de direito pelo controle da justificação das decisões de todo e qualquer órgão de poder. Esta forma de controle se faz pela descrição de como os órgãos jurisdicionais tomam suas decisões e com a reconstrução da justificação oferecida em suas decisões. Desta forma, pode-se avaliar o grau de indeterminação que caracteriza tais decisões e, eventualmente, propor reformas institucionais para mitigar o que se considere espaços de excessiva indeterminação.

A partir do material obtido por pesquisas deste teor, os estudiosos do direito podem se pôr a criticar práticas institucionais reais, favorecendo boas justificativas contra escolhas arbitrárias, ou seja, escolhas que naturalizem soluções e desenhos institucionais sem razão ou que não sejam justificadas de maneira coerente. Se lembramos que em um estado de direito nenhuma função pode ser exercida de modo arbitrário, é razoável afirmar que o momento da decisão não pode estar fundado na mera autoridade do juiz. Deve se legitimar também pelo fato de que as decisões sejam bem justificadas, de acordo com os padrões vigentes em cada realidade jurídica específica.

O conceito de zona de autarquia tem justamente a função de ajudar a identificar e nomear setores de qualquer regime jurídico, nacional, internacional ou transnacional, em que os órgãos de poder atuam de forma arbitrária e explicitar modelos autoritários ou meramente simbólicos de legitimação das decisões. De acordo com Rodriguez (2013a):

[...] chamaremos de zona de autarquia um espaço institucional em que as decisões são tomadas sem que se possa identificar um padrão de racionalidade qualquer, ou seja, em que as decisões são tomadas num espaço vazio de justificação. [...] zonas de arbitrariedade em que a forma jurídica se torna apenas aparência vazia para justificar a arbitrariedade do poder público ou privado (p. 172).

Dificilmente uma autoridade declarará explicitamente "decido assim porque quero" ou "suspendo a norma para tomar em estado de exceção". Atos arbitrários em regimes em que o estado de direito esteja funcionando, ao menos formalmente, são praticados sob a aparência de direito e, por isso mesmo, tendem a passar despercebidos.

A identificação tanto de zonas de autarquia quanto de casos em que ocorra fuga do direito e/ou falsa legalidade exigem atenção minuciosa aos procedimentos dos poderosos, o que implica em mobilizar conhecimentos técnicos sobre o funcionamento da racionalidade institucional. Por isso mesmo, serão normalmente os juristas aqueles pesquisadores melhor equipados para identificar estas figuras da perversão do direito. Mas basta estudar direito a sério para que um pesquisador em ciência humanas possa ter o mesmo desempenho de um ou uma jurista nesta tarefa.

Uma zona de autarquia se caracteriza, insisto, nas situações em que não se possa identificar nenhuma justificação racional, nenhum conjunto de regras que organize a fundamentação da decisão tomada. A zona de autarquia é formada por argumentos sob a aparência de direito, mas que, na prática, não permitem o controle da argumentação pela sociedade, uma vez que não possibilitam a reconstrução organizada do raciocínio que serve de fundamento para a decisão ou para as decisões tomadas.

As zonas de autarquia são utilizadas pelos detentores de posições de poder para, por exemplo, congelar as instituições postas e, por via de consequência, as posições de poder que elas garantem e protegem. De acordo com Rodriguez (2013a): "Desta forma, os poderosos livram-se da necessidade de justificar racionalmente suas posições de domínio ao excluir determinados conceitos jurídicos e desenhos institucionais do debate público" (p. 21).

Recentemente eu mostrei em meu livro Fuga do direito, citado acima, como a criação de zonas de autarquia no Brasil está relacionada a um forte personalismo em nosso Direito. Estas zonas aparecem "fundadas" em argumentos de autoridade que se utilizam de conceitos ou raciocínios naturalizados para justificar decisões em um procedimento que retira da esfera pública a possibilidade de debater as razões para decidir e a justificativa do desenho do Estado, tornando ambas completamente imunes ao debate racional e público.

Em 2014, em seu trabalho de mestrado, Daniel Lieb Zugmann (2014) aplicou meu conceito de zona de autarquia para estudar a maneira pela qual o Executivo recusa a justificar racionalmente sua utilização do conceito de sigilo fiscal. Com efeito, o conceito pode ser utilizado para investigar outras esferas decisórias de qualquer instituição formal sempre que delas se possa exigir alguma espécie de justificação racional com base na ideia de Estado de direito.

Conclusão

A pesquisa empírica sobre a atuação do Estado e de outros órgãos de poder pode se beneficiar muito desta tipologia de formas de perversão do direito. Pois esta maneira de pôs o problema nos ajuda a identificar com clareza toda uma pauta de pesquisa direcionada a cobrar do estado de direito em concreto a realização de seu ideal concebido em abstrato. Estas pesquisas podem, por exemplo, se ocupar de julgados, decisões administrativas do executivo e de outros organismos do Estado, como a CTN-BIO, a Fazenda Pública, o Tribunal de Impostos e Taxas, entre outros.

Reservo a expressão "teoria crítica" para nomear o pensamento dos autores e autoras que circularam e circulam em torno do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, os quais costumam reivindicar expressamente o texto "teoria tradicional e teoria crítica" de Max Horkheimer (1980) como referência para a construção de sua própria posição. Esta reivindicação normalmente implica em um projeto de atualização da obra de Karl Marx com o objetivo de identificar o que ainda está vivo e o que caducou em seu trabalho.

O objetivo final destes autores é construir novos conceitos críticos capazes de identificar tendências emancipatórias inscritas na realidade de cada momento histórico, acessível por meio da reconstrução de teorias de natureza diversa e por meio da pesquisa empírica das práticas sociais (Nobre & Repa, 2012). Ser crítico nesse sentido significa levar a sério seu próprio momento histórico para identificar em que espaços sociais estaria inscrita uma tendência emancipatória capaz de fazer de homens e mulheres seres capazes de determinar os rumos de suas vidas de forma autônoma. No caso do modelo crítico de Franz Neumann, amplamente inspirado em Rousseau (Neumann, 2013a: 42-44, 233-242), isso significa poder tomar parte no processo de formação das normas que regulam a vida em sociedade e determinam quais são os direitos e deveres dos indivíduos.

A teoria crítica não possui uma doutrina oficial comum que a caracterize como uma escola dogmática. Ao contrário, os autores deste campo trabalham a partir de balizas abstratas as quais abrem um espaço amplo para a construção dos mais variados "modelos críticos" (Nobre, 2004). Estes modelos críticos são muitas vezes discordantes entre si, podem surgir a partir de estudos de direito, política, economia, psicanálise, arte, literatura entre outros campos do saber; e podem variar ao longo da obra de um mesmo autor, sempre em função da necessidade de pôr a teoria em dia com novos diagnósticos do tempo.

No que diz respeito ao modelo critico de Franz Neumann, atualizado e reformulado por mim neste texto de forma resumida, sua utilidade se mostra sempre que a ideia de estado de direito passa a ser utilizada como justificativa para o funcionamento de determinadas formas institucionais. Tal modelo permite iluminar desejos e necessidades excluídos do estado de direito, problema sobre o qual não tratei aqui, além de permitir identificar os momentos em que os detentores do poder pervertem o direito para evitar que ele seja controlado pela vontade da sociedade.

A pesquisa das figuras da fuga do direito, falsa legalidade e zona de autarquia se prestam a concretizar esta pauta normativa, qual seja, exigir racionalidade dos atos do poder, além de poderem ser combinadas com os mais variados métodos de pesquisa, especialmente qualitativa, desde que voltados para identificar qual é a racionalidade de uma determinada instituição formal em um certo espaço de tempo e criticá-la à luz da ideia de estado de direito.


NOTAS

1 Esta exposição inicial resume os resultados de minhas obras anteriores: Rodriguez (2009, 2013, 2014). Volver

2 Não tratarei neste texto sobre como pesquisar o direito na sociedade, ou seja, como pesquisar a apropriação social da linguagem do direito e o seu significado, tema que toquei em artigo recente (Rodriguez, 2014). Volver

3 Os conceitos expostos a seguir são de minha criação, o que explica a escassez de notas de rodapé. Volver

4 Classifico de patológica toda instituição formal ou informal que funciona como obstáculo à autonomia da sociedade. Ver Honneth (2008, 2009). Volver

5 Esta parte do texto aproveita resultados obtidos em Rodriguez (2009, 2014). Volver

6 Contemporaneamente, o cientista político William Sheuermann (2008) mostrou como boa parte das atuais formas de globalização da economia, como a lex mercatoria, podem ser vistas como uma maneira de sabotar o controle da sociedade sobre a produção de normas que limitem os contratos. Volver


Referências

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