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Prolegómenos
Print version ISSN 0121-182X
Prolegómenos vol.19 no.38 Bogotá July/Dec. 2016
https://doi.org/10.18359/prole.1970
ARTÍCULO DE REFLEXIÓN
DOI: http://dx.doi.org/10.18359/prole.1970
CRÍTICAS AO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÕES PÚBLICAS*
CRÍTICAS AL RÉGIMEN DIFERENCIADO DE CONTRATACIONES PÚBLICAS
CRITICS TO THE DIFFERENTIAL REGIME OF PUBLIC PROCUREMENT
Diana Carolina Valencia Tello**
*O artigo faz parte da linha de pesquisa de Direito de Estado, dentro do núcleo constitucionalismo e democracia da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná e foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
** Professora visitante da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Especialização em Direito Administrativo e Ambiental. Mestrado, Doutorado e Pôs-Doutorado em Direito na Universidade Federal do Paraná, Brasil. Correio eletrônico: dianavalencia@ufpr.br
Forma de citación: Valencia, D. (2016). Críticas ao regime diferenciado de contratações públicas. Revista Prolegómenos Derechos y Valores, 19, 38,61-75. DOI: http://dx.doi.org/10.18359/prole.1970
Fecha de recepción: 2 de marzo de 2015
Fecha de evaluación: 27 de agosto de 2015
Fecha de aprobación: 2 de febrero de 2016
Resumo
Tendo como motivo a realização da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, no Brasil, o Congresso Nacional aprovou a lei 12 462/2011, que cria o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), com a finalidade de contar com um regime de contratação eficiente. Desde 2012 o alcance do RDC foi estendido, por meio de diversas leis, a outras áreas e setores públicos estratégicos, confirmando a tendência de que o RDC passe a ser o modelo de licitação usualmente adotado pela administração pública, em substituição ao regime de licitação geral. Essa tendência é preocupante porque, como será analisado no presente artigo, o RDC banaliza princípios fundamentais da contratação pública, que são essenciais para o correto funcionamento de Estados democráticos constitucionais.
Palavras-chave: Contratação pública, Copa do Mundo, Olimpíadas, regime diferenciado, Estado democrático constitucional, inconstitucionalidade.
Resumen
Por causa del Mundial de Fútbol de 2014 y de los Juegos Olímpicos de 2016 en Brasil, el Congreso Nacional aprobó la ley 12.462/2011, que crea el Régimen Diferenciado de Contrataciones Públicas (RDC) con la finalidad de contar con un régimen de contratación eficiente. Desde 2012 el alcance del RDC se extendió por medio de diversas leyes a otras áreas y sectores públicos estratégicos, confirmando la tendencia de que el RDC pase a ser el modelo de licitación usualmente adoptado por la administración pública, en reemplazo al régimen de licitación general. Esa tendencia es preocupante porque, como se analizará en el presente artículo, el RDC trivializa principios fundamentales de la contratación pública, que son esenciales para el correcto funcionamiento de Estados democráticos constitucionales.
Palabras clave: Contratación pública, Mundial de Fútbol, Juegos Olímpicos, régimen diferenciado, Estado democrático constitucional, inconstitucionalidad.
Summary
Because of the Football World Cup of 2014 and the Olympic Games in 2016 in Brazil, the National Congress approved the law 12.462/2011, which creates the Differential Regime of Public Procurement (RDC) in order to have an efficient procurement regime. From 2012 the scope of the RDC spread through various laws to other areas and strategic public sectors, confirming the trend that the RDC becomes the tender model usually adopted by the public administration, to replace the general procurement regime. This trend is worrisome because, as it will be analyzed in this article, the RDC trivializes some fundamental principles of public procurement, which are essential for the proper functioning of democratic constitutional States.
Keywords: Public procurement, Football World Cup, Olympic Games, differential regime, democratic constitutional State, unconstitutionality
Introdução
Nos Estados, as despesas públicas utilizadas mediante a contratação pública têm uma importante função no fomento do crescimento da economia, bem como influenciam de diversas formas no desenvolvimento do capital físico e humano das sociedades. Nos Estados democráticos constitucionais, o legislador tem a obrigação de regular o regime da contratação pública, conforme os parâmetros estabelecidos em suas respectivas Constituições, determinando as atuações e os procedimentos que devem realizar os funcionários públicos, nas diferentes entidades públicas, com a finalidade de procurar o cumprimento dos objetivos constitucionais do Estado.
No Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu no artigo 37, XXI, a obrigatoriedade de realizar processos de licitação pública para contratar obras, serviços, compras e alienações, o que foi regulamentado mediante a lei 8666/1993. Mas a lei é criticada por trazer um grande número de prescrições burocráticas que impede a realização de processos licitatórios eficientes.
Assim, tendo como motivo a realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 no Brasil, o Congresso Nacional aprovou a lei 12 462/2011, que cria o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), com a finalidade de contar com um regime de contratação eficiente, econômico e célere afastado do regime de licitação geral.
Desde 2012, o alcance do RDC foi estendido por diversas leis a outras áreas e setores públicos, tais como: o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); as obras e os serviços de engenharia no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS); as licitações e os contratos necessários à realização de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino; e as obras e os serviços de engenharia para a construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo.
Para Cardoso, tais previsões legais confirmam a tendência de que o RDC passe a ser o modelo de licitação usualmente adotado pela administração pública, em substituição ao regime de licitação geral. Essa tendência é preocupante porque, como será analisado no presente artigo, o RDC banaliza princípios fundamentais da contratação pública, que são essenciais para o adequado funcionamento de Estados democráticos constitucionais. Efetivamente o RDC banaliza os princípios de legalidade e publicidade administrativa.
A importância de garantir o cumprimento de princípios básicos constitucionais nas administrações públicas de América Latina tem relação com a história compartilhada de burocracias autorreferidas, dominadas por interesses privados, que em muitas oportunidades ocultam informações relevantes para evitar a critica e a participação cidadã. Disso decorre a necessidade de garantir no ordenamento jurídico a devida publicidade e transparência nos processos contratuais, como defende este artigo.
O artigo está dividido em três seções. A primeira trata da opacidade da esfera pública em América Latina, visando analisar a importância de garantir a transparência na gestão pública nos países da região, para depois, na segunda seção, estudar o RDC e os princípios constitucionais de legalidade e publicidade. Na terceira seção se realizaram algumas considerações sobre a contratação pública nos Estados democráticos constitucionais. A metodologia adotada na pesquisa é de natureza qualitativa, tem fim exploratório e descritivo, mediante o análise de livros, periódicos, documentos oficiais e sítios eletrônicos reconhecidos.
A. Opacidade da esfera pública em América Latina
Na América Latina, as administrações públicas têm sido questionadas inúmeras vezes pela falta de transparência de seus atos e decisões. A falta de transparência pode dever-se em parte à existência de ordenamentos jurídicos autoritários que, junto com a existência de uma cultura jurídica autorreferida e pouco interessada em vincular aos administrados as atividades governamentais, permite proteger informação para evitar criticas ou questionamentos sobre as decisões tomadas de forma autônoma e centralizada pelos funcionários competentes.
Nos Estados democráticos constitucionais, os cidadãos são chamados a participar de forma ativa nos assuntos públicos, e para que a participação seja uma possibilidade real, a gestão pública das entidades deve ser transparente mediante a devida publicidade dos atos e das decisões de governo. A democracia constitucional não se limita ao direito de votar e ser eleito, ao contrário impõe a obrigação aos Estados de ampliar os espaços de participação e de prestação de contas nas entidades públicas.
Porém, na América Latina há limitações culturais ou legados negativos que às vezes impedem a efetiva participação dos cidadãos e a prestação de contas sobre os assuntos públicos. A esse respeito o Conselho de Ministros do Centro Latino-americano de Administração para o Desenvolvimento (Clad)1 afirma que não é possível mudar a situação atual da administração pública sem compreender as bases históricas mais profundas que vigoram desde a colônia.
Para o Clad, existem legados negativos que marcam a história da administração pública na região. Aqui para analisar a importância de garantir o cumprimento de princípios constitucionais na contratação pública, ressaltaremos os legados negativos de patrimonialismo, formalismo burocrático e excessiva centralização.
Em relação ao patrimonialismo, esse legado negativo está relacionado à fragilidade da esfera pública devido a séculos de domínio de interesses privados sobre as administrações públicas. O domínio dos cargos públicos pelas oligarquias políticas e o grau de influência que teve o poder econômico sobre as decisões do governo permitiram o aprisionamento do poder público pelos interesses privados, limitando o escrutínio público sobre as decisões dos governantes (Clad, 2010).
O domínio dos cargos públicos por parte de oligarquias políticas, além de afetar a impessoalidade no recrutamento de quadros burocráticos -uma das características estabelecidas por Weber para a conformação de uma burocracia profissional e técnica- também afetou os mecanismos de controle dentro da democracia, já que os funcionários públicos foram leais ao político do momento, sem prestar muita atenção à lei ou aos motivos técnicos das escolhas públicas.
Ao mesmo tempo que imperavam o patrimonialismo, o clientelismo e outras formas de privatização da esfera pública, as atividades na administração pública eram movimentadas por um conjunto inesgotável de normas e procedimentos, com a finalidade de dar a falsa impressão de que existia um "poder impessoal". O formalismo burocrático extremo gerou a ineficiência da gestão pública, dificultando também o acesso dos cidadãos ao Estado e impedindo o controle dos atos da administração por parte da cidadania, gerando uma administração pública autorreferida (Clad, 2010).
Em decorrência disso, o "poder impessoal" que prevalece em uma administração dominada por normas procedimentais, sem considerar as diferentes necessidades da cidadania, gera a existência de controles legais que não se preocupam com a transparência, a eficiência ou a efetividade da gestão pública. Em termos mais preciso, nesse tipo de administração, o funcionário público é o único que sabe o que deve ser feito, e o faz pelo hábito do fazer, não pela consciência da busca de um fim maior. Nesses termos, não existem canais de comunicação com a cidadania e muito menos prestação de contas que expliquem claramente os motivos legais, técnicos e financeiros que fundamentaram as escolhas feitas (Valencia y Vitorelli, 2013).
O isolamento burocrático causado pela falta de prestação de contas e pelo formalismo burocrático extremo possibilitou que a modernização do Estado e da administração pública fosse incompleta. A excessiva centralização do poder no Executivo construiu estruturas hierárquicas e verticais, com pouca autonomia dos órgãos gestores e do poder local, gerando também pouca participação das sociedades na elaboração das políticas públicas e na tomada de decisões públicas (Clad, 2010).
Tendo em conta esses legados negativos que marcam a história da administração pública latino-americana, é compreensível que a maioria das novas Constituições dos Estados latinoamericanos, como a brasileira de 19882, a equatoriana de 20083 e a colombiana de 19914 (só para dar alguns exemplos) estabelecem princípios constitucionais que devem ser aplicados pelas administrações públicas em sua gestão e, em especial na contratação pública, visando à construção de Estados democráticos constitucionais.
Assim, os princípios constitucionais de legalidade, moralidade, eficiência, economia, publicidade, transparência, igualdade, impessoalidade e responsabilidade devem ser aplicados pelas administrações públicas em todos os níveis procurando a construção de Estados mais legítimos e menos corruptos ou clientelistas. Como a Constituição é a norma das normas num ordenamento jurídico, toda regulamentação sobre a gestão da administração pública deve levar em consideração esses princípios constitucionais que visam à construção de administrações públicas mais transparentes, eficientes e responsáveis diante da cidadania.
B. O regime diferenciado de contratação pública e os princípios constitucionais de legalidade e publicidade
Em 30 de outubro de 2007 o Brasil foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014 e em 2 de outubro de 2009 a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Segundo o então presidente da Fifa, Joseph Blatter, o Brasil foi o primeiro país que teve sete anos para organizar esse evento mundial, mas, ainda assim, a construção e as adequações das obras para a realização da Copa do Mundo sofreram grande atraso (EFE, Folha de S. Paulo, 2014).
Assim, cabe perguntar por que o poder executivo não encaminhou (desde o momento em que o Brasil foi selecionado sede da Copa do Mundo e das Olimpíadas) um projeto de lei ao Congresso Nacional, que ajudasse a melhorar a lei de licitações públicas, eliminando procedimentos burocráticos desnecessários, mas garantindo o respeito dos princípios constitucionais da contratação pública? A esse respeito Dias e Ferreira (2012, p. 53) afirmam:
[...] contados da data de confirmação da realização do primeiro grande evento, passaramse quase quatro anos até a edição da Lei do RDC, dado que certamente exclui qualquer caráter de urgência para adoção desse regramento especifico, o que, por si só, já geraria polêmicas acerca da instituição do regime.
Evidentemente, as medidas provisórias de 2010 e 2011 e, posteriormente, a lei 12 462/2011, que serão analisadas na sequência, representam o afã de recuperar o tempo perdido, mediante a instauração de procedimentos ágeis que nem sempre levam em consideração o cumprimento dos princípios constitucionais nos processos contratuais, outorgando ampla discricionariedade ao poder executivo.
Como antecedente do RDC, devemos ressaltar que em maio de 2010, o presidente da República editou a medida provisória 489, que criou um novo regime de licitações para a contratação de obras aeroportuárias relacionadas à Copa do Mundo e de obras e serviços, de modo geral, destinados às Olimpíadas de 2016, conduzidos pelo Consórcio Público denominado Autoridade Pública Olímpica (APO)5.
O regime diferenciado de licitações nada mais era que um afrouxamento de inúmeros controles no processo de aquisição de bens e contratação de obras, principalmente no que se refere à publicidade do edital. O prazo de divulgação do edital, quando o critério de julgamento fosse o menor preço, seria de apenas três dias úteis (art. 18, I), independentemente do valor da aquisição. Além disso, a publicidade do certame no Diário Oficial da União seria meramente facultativa (art. 18, parágrafo único) (Valencia y Vitorelli, 2013).
A medida provisória, por uma questão exclusivamente política -não relacionada a suas inúmeras inconstitucionalidades-, foi rejeitada por decurso de prazo. O poder executivo tramitou outras duas medidas provisórias, a 503 e a 521 de 2010, que resgatavam disposições da MP 489/2010. Todavia, em 2011 o poder executivo tomou medidas para inserir na medida provisória 527/2011, que já estava em tramitação para conversão em lei no Congresso Nacional, e cujo objeto era totalmente alheio a tal questão6, o regime já rejeitado, ainda que de modo tácito, pelo poder legislativo (Valencia y Vitorelli, 2013).
Aqui é importante ressaltar que a Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998, dispõe que a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis (conforme determina o paragrafo único do artigo 59 da Constituição) deve tratar de um único objeto e a lei não deve conter matérias estranhas a seu objeto, o que significa que todos os artigos das leis devem estar vinculados por afinidade, pertinência ou conexão.
Ainda assim, a MP 527/2011 foi, ao final, convertida na lei 12 462/2011, que institui o RDC, com uma aplicabilidade ainda maior que o propugnado pela rejeitada medida provisória 489/2010.
Segundo o artigo 1º da lei, corresponde aos comitês responsáveis pelos eventos (Genopa: Grupo Executivo da Copa do Mundo Fifa 2014 e APO) determinar as contratações que serão feitas sob o RDC, por meio de disposição expressa no edital, afastando-se do regime geral de licitações e contratos da administração pública instituído pela lei 8666/1993.
Portanto, o legislador ao escrever a lei não delimitou claramente quais são os contratos ou as licitações necessários para a realização dos eventos esportivos, deixando a critério dos comitês responsáveis a definição dos contratos que seriam tramitados mediante o RDC. Para Dias e Ferreira (2012, p. 54):
O poder decisório conferido ao Gecopa e à APO, que têm a competência para determinar as obras e serviços a serem contratados e, portanto, estabelecer as exceções ao modelo geral de contratações imposto por fora da lei, contraria frontalmente a competência atribuída constitucionalmente ao Poder Executivo.
A Constituição Federal de 1988, no artigo 37, impõe à administração pública o dever de licitar, mas ao mesmo tempo também permite o afastamento ao regime geral de licitações e contratos em situações específicas predeterminadas por lei, com a finalidade de limitar o poder discricional da administração pública para decidir a abrangência do regime geral de contratações. A respeito do princípio de legalidade na contratação pública, José dos Santos Carvalho Filho (2007, p. 220) leciona:
O princípio da legalidade é talvez o princípio basilar de toda a atividade administrativa. Significa que o administrador não pode fazer prevalecer sua vontade pessoal; sua atuação tem que se cingir ao que a lei impõe. Essa limitação do administrador é que, em última instância, garante os indivíduos contra abusos de conduta e desvios de objetivos. No campo das licitações, o princípio da legalidade impõe, principalmente, que o administrador observe as regras que a lei traçou para o procedimento.
Em consequência, consideramos que, desde o primeiro artigo, o RDC viola o artigo 37, XXI, da Constituição Federal, já que a Constituição estabeleceu a regra da obrigatoriedade da licitação e só para casos excepcionais, o legislador ordinário pode determinar a dispensa da licitação, mas esses casos devem estar claramente identificados na lei. No tocante a isso, Alexandre de Moraes (2012, p. 280) assevera:
Ao legislador ordinário, por tanto, não será possível, em desrespeito aos preceitos constitucionais estabelecer arbitrariamente hipóteses de dispensa de licitação. Se não houver razoabilidade ou compatibilidade de dispensa legal com os princípios constitucionais que norteiam a necessidade de licitação, haverá fragrante inconstitucionalidade.
Um outro aspecto polêmico do RDC se relaciona com a introdução do orçamento sigiloso no procedimento licitatório. O artigo 6º da lei determina que o orçamento estimado pela administração será sigiloso até o encerramento da licitação, sendo fornecidas aos licitantes somente as informações relativas ao detalhamento dos quantitativos e demais informações necessárias para a elaboração das propostas. O artigo também determina que os órgãos de controle interno e externo deverão ser informados estrita e permanentemente sobre o orçamento sigiloso. A limitação à publicidade do orçamento em nenhum momento implica a inexistência dele. A esse respeito Marçal Justen Filho (2014, p. 111) ressalta:
Insista-se em que a Lei previu o sigilo do orçamento, o que não significa a sua inexistência nem importa a sua irrelevância. O orçamento deve existir obrigatoriamente, ressalvadas as exceções citadas acima. Ademais, a sua elaboração deve atender a todos os requisitos pertinentes, com a previsão de preços que reflitam os custos reais atinentes à execução do objeto contratual.
Cardoso (2013 pp. 82-83), ao analisar o artigo 6º, faz uma ressalva necessária para a correta compreensão do alcance do novo regime, nestes termos:
Num primeiro momento, a Administração promove a elaboração do orçamento estimado, como medida imprescindível à definição do objeto licitado e dos custos envolvidos com a sua execução. Integra uma das etapas da fase interna da licitação. Trata-se de atividade inafastável, que objetiva a definição exata da necessidade administrativa a ser satisfeita e do objeto licitado. Além disso, há inclusive previsões legais específicas - contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101), artigos 15 e 16 e na legislação orçamentária (p. ex: art. 127 da LDO de 2011 - Lei n.º 12.309; e art. 125 da LDO de 2012 - Lei n.º 465)7, bem como no Decreto n.º 7.983/2013 -que impõem a obrigação de elaboração de orçamento estimado para toda e qualquer contratação a ser realizada pela Administração. Num segundo momento dá-se a divulgação ou publicação desse orçamento estimado que fora previamente elaborado pela Administração. Essa divulgação pode se dar juntamente com o edital (nas modalidades licitatórias regidas pela Lei nº 8.666) ou não (como entende o Tribunal de Contas da União no caso do pregão)8.
Assim, é claro que o RDC não alterou em nenhum momento a obrigação de a Administração realizar um orçamento estimado, e, para Moreira e Guimarães (2012), a falta do orçamento estimado na etapa interna da licitação poderá gerar a nulidade dos atos subsequentes. Isso porque a administração corre o risco de assumir compromissos financeiros sem a adequada previsão de recursos, o que violaria as leis orçamentárias.
Para Moreira e Guimarães (2012), o orçamento sigiloso não ofende o princípio de publicidade porque ele é divulgado imediatamente após a disputa. Nas palavras dos tratadistas: "Trate-se, portanto, de impor apenas a restrição subjetiva e temporal à veiculação do orçamento, não se podendo falar em sigilo ou confidencialidade das informações" (p. 160).
Para outros autores, as informações orçamentárias são relevantes para exercer efetivamente controle popular sobre os gastos públicos e a atividade da administração pública, especialmente no Brasil. Sobre isso, Marçal Justen Filho (2014, pp. 640-641) aponta:
[...] a manutenção do segredo acerca do orçamento ou preço máximo produz o enorme risco de reintrodução de práticas extremamente nocivas, adotadas antes da Lei n.º 8.666. É que, se algum dos licitantes obtiver (ainda que indevidamente) informações acerca do referido valor, poderá manipular o certame, formulando proposta próxima ao mínimo admissível. O sigilo acerca de informação relevante, tal como o orçamento ou preço máximo, é um incentivo a condutas reprováveis. Esse simples risco bastaria para afastar qualquer justificativa para adotar essa praxe.
O argumento publicamente utilizado na defesa do orçamento sigiloso era evitar o conluio entre os licitantes. Essa afirmação exige que se suponha, em primeiro lugar, que não haja vazamento do orçamento "secreto" pela própria administração e, em segundo lugar, que os licitantes estejam impossibilitados de combinar suas propostas sem saber o valor orçado pelo Estado (Valencia y Vitorelli, 2013).
Aqui é importante ressaltar que para garantir o efetivo sigilo do orçamento, a administração pública deve contar com infraestrutura e procedimentos adequados para controlar a informação e responsabilizar os funcionários públicos que têm acesso à informação. O envio do orçamento estimado aos órgãos de controle não está regulamentado, o que implica que um grande número de funcionários pode ter acesso à informação, sem o devido controle, possibilitando que qualquer um possa quebrar facilmente o sigilo do orçamento em favor de determinados proponentes.
Adicionalmente, o argumento do conluio entre os licitantes é contrário ao princípio de boa-fé que deve existir em toda comunidade e que deve inspirar a aplicação da ordem jurídica nos Estados democráticos constitucionais, pois toda atuação, tanto de particulares como de autoridades administrativas, deve ajustar-se a condutas honestas que permitam a existência de relações recíprocas que outorguem confiança, segurança e credibilidade às diversas atuações realizadas por cidadãos e autoridades públicas. Portanto, pressupor no início do processo contratual o conluio entre os licitantes não satisfaz as características básicas de um Estado democrático constitucional.
Outro argumento utilizado por vários tratadistas (Cardoso, 2014; Moreira e Guimarães, 2012) é a existência de estudos internacionais que indicam que a prática do orçamento sigiloso desestimula o conluio e outras atividades anticoncorrenciais, ajudando a combater a corrupção e superar ineficiências nas licitações, motivo pelo qual é uma prática comumente adotada em Estados Unidos e nações integrantes da União Europeia, além de ser uma prática recomendada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A esse respeito é importante destacar as importantes diferenças culturais que existem entre os Estados Unidos, a União Europeia e os países latino-americanos, como vimos na primeira seção. Adicionalmente, a recomendação realizada pela OCDE e citada por Moreira e Guimarães (2012, p. 157) determina o seguinte:
Ao elaborar um processo de contratação pública, os responsáveis pelas aquisições devem estar conscientes dos diversos fatores que podem facilitar o conluio. A eficiência do processo vai depender do modelo de contratação adotado, mas também da forma como o concurso é concebido e levado a cabo. Os requisitos de transparência são indispensáveis para um processo correto, que contribua no combate a corrupção. Estes requisitos devem ser respeitados de forma equilibrada, a fim de não facilitar o conluio com a disseminação de informações para além dos requisitos legais. Infelizmente, não existe uma regra única sobre a concepção de um leilão, concurso ou licitação. As propostas tem de ser concebidas em função da situação existente e, sempre que possível, devem ser consideradas as seguintes questões: Considerar cuidadosamente que tipo de informação deve ser disponibilizado aos concorrentes no momento do ato ou sessão pública de abertura de propostas. [...] Recorrer à utilização de preços máximos de aquisição apenas quando estes se baseiam numa cuidadosa pesquisa de mercado e se as entidades adjudicantes estiverem convencidas de que se trata de preços muito competitivos. Esses preços mínimos não devem ser publicados, antes devem ser mantidos confidenciais durante o processo ou depositados noutra autoridade pública.
A recomendação da OCDE é relevante porque mostra como não existem regras únicas para garantir transparência e eficácia na contratação pública, e deixa claro que o orçamento sigiloso é recomendado só em casos em que exista uma cuidadosa pesquisa de mercado, pois a responsabilidade pela existência de erros no orçamento estimado será da Administração e, em consequência, a contratação pode terminar sendo ineficiente e apresentando sobre preços.
Assim, o orçamento sigiloso também apresenta o problema de possíveis equívocos por parte da administração no ato de realizar o orçamento estimado, sem que o contratante tenha a possibilidade de questionar os cálculos estimados da administração, nem seja responsável pelos equívocos nas estimativas da realidade do mercado. Segundo Cardoso (2013, p. 100):
A estimativa feita pode ser muito reduzida, o que resultará no afastamento de todos licitantes que tenham formulado propostas de preços compatíveis com o mercado. Também pode ser muito mais elevada do que os valores de mercado, prejudicando o interesse na busca da proposta mais vantajosa, e a própria finalidade da regra que prevê o diferimento da publicidade do orçamento estimado.
Em vista desse risco, Cardoso (2013) cita o Tribunal de Contas da União, que reconheceu que não era obrigatório o sigilo do orçamento mesmo nas licitações sujeitas ao RDC, recomendando:
9.9 recomendar à Infraero, com base no art. 250, inciso III, do Regimento Interno do TCU, que em face do caráter optativo do orçamento fechado em licitações vigidas segundo o RDC, pondere a vantagem, em termos de celeridade, de realizar procedimentos com preço fechado em obras mais complexas, com prazo muito exíguo para conclusão e cuja parcela relevante dos serviços a serem executados não possua referencia explicita no Sinapi/Sicro, em face da real possibilidade de preços ofertados superiores aos orçados, decorrente da imponderabilidade da aferição dos custos dessa parcela da obra (Acordão 3011/2012, Plenário, Rel. Min. Valmir Campelo).
Assim, cabe à administração ponderar as vantagens ou desvantagens de utilizar a ampla competência legal outorgada pelo RDC para realizar procedimentos com orçamento sigiloso. Para Marçal Justen Filho (2014, p. 746): "Impõese a exigência de avaliação das circunstâncias e das características da situação concreta. A escolha pelo sigilo ou pela divulgação não será automática. Exige-se motivação para a decisão em qualquer um dos sentidos".
Mas aqui devemos ressaltar que o artigo 6º do RDC não determina em nenhum momento a obrigação de a Administração considerar vantagens ou desvantagens de utilizar o orçamento sigiloso, nem determina critérios que ajudem a ponderar a ampla discrição outorgada à Administração.
A ineficiência na contratação pública da Copa do Mundo pode evidenciar-se no fato de que o Brasil tinha calculado no início um investimento de 800 milhões de euros para 12 estádios, mas em 2014 se informou que o montante atingiu 2.000 milhões (Franco, 2014). No caso dos aeroportos, a situação não é diferente, já que no aeroporto de Rio os investimentos foram de R$ 800 milhões e as obras foram atrasadas em um ano e cinco meses e, portanto, o aeroporto Galeão não ficou pronto para a Copa (Do valor, Folha de S. Paulo, 2014). Isso só para dar alguns exemplos.
Os maus resultados da contratação pública para a Copa do Mundo não ajudaram a refletir sobre a necessidade de melhorar o planejamento no processo de contratação pública, ao contrário o Executivo inseriu novas matérias no RDC. Assim, a lei 12 688/2012 institui o RDC para as ações integrantes do PAC; a lei 12 745/2012 institui o RDC para as obras e os serviços de engenharia no âmbito do SUS; a lei 12 722/2012 determina que o RDC é aplicável às licitações e aos contratos necessários à realização de obras e serviços de engenharia no âmbito dos sistemas públicos de ensino; e a lei 12 980/2014 estabelece que o RDC também é aplicável às obras e aos serviços de engenharia para a construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo.
Desde 2011, há duas ações diretas de inconstitucionalidade da lei 12 462 (ADI 4645 e 4655) no Supremo Tribunal Federal (STF); as quais questionam a constitucionalidade formal e material da lei, mas até o momento nenhuma das ações foi apreciada (nem mesmo em sede de cautela) pelo STF. No exame da lei, o STF pode reconhecer a inconstitucionalidade total ou parcial, ou também pode pronunciar a declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto e promover a interpretação conforme seus dispositivos. Em qualquer caso, boa parte do orçamento federal foi executada nos últimos quatro anos utilizando o RDC, sem que a polêmica sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade seja definida pelo STF.
C. A contratação pública no Estado democrático constitucional
A contratação pública está direcionada ao cumprimento do interesse geral, pois o contrato público é um instrumento jurídico que utiliza o Estado para cumprir suas finalidades e deveres e para prestar os serviços necessários para o bem-estar da comunidade, comprometendo em todo momento o erário público. As despesas públicas utilizadas mediante a contratação pública têm uma importante função no fomento da economia e, também, influenciam de diversas formas no desenvolvimento do capital físico e humano das sociedades.
As despesas dos governos contribuem de forma significativa no produto interno bruto (PIB) dos países e, em alguns casos, o Estado é normalmente o principal consumidor da economia nacional. Dados da rede interamericana de compras governamentais mostram que os governos europeus gastam cada ano aproximadamente o 16 % do PIB em bens e serviços e na América Latina as despesas públicas representam em média 24 % do PIB (RICG, 2011).
Segundo a OCDE, a contratação pública é a atividade mais vulnerável à corrupção porque no processo interatuam os setores público e privado e, portanto, é possível criar diversas oportunidades para que os funcionários públicos e (ou) os privados desviem fundos para a consecução de ganhos particulares. Além disso, a contratação pública é uma atividade econômica principal do governo, já que a OCDE calcula que a contratação pública representa um 15 % do PIB dos países desenvolvidos. Assim, os interesses econômicos, o volume das transações e a interação estreita entre os setores público e privado fazem com que a contratação pública seja especialmente vulnerável à corrupção (OCDE, 2010).
Dada a importância da contratação pública no desenvolvimento das sociedades e da economia, nos Estados, o legislador tem a obrigação de regular o regime da contratação pública, determinando as atuações e os procedimentos que devem realizar os funcionários públicos que representam a administração, nas diferentes entidades públicas, com a finalidade de procurar o cumprimento dos objetivos constitucionais. O princípio de legalidade na administração pública obriga os servidores públicos a atuar conforme o que determinam a Constituição e a lei, com a finalidade de garantir o interesse geral e afastar o arbítrio e o favorecimento indevido nas decisões públicas.
Assim, o princípio de legalidade constitui um dos mais importantes fundamentos para a organização do exercício de poder no Estado, bem como constitui uma garantia fundamental do direito de todos os cidadãos, que devem ser tratados em igualdade de condições mediante o cumprimento do devido processo, vinculando todas as autoridades do Estado quanto aos direitos adquiridos e ao cumprimento dos procedimentos que limitam o exercício do poder público conforme o estabelece o ordenamento jurídico. Dessa forma, os atos e as decisões das autoridades estão em todo momento subordinadas ao ordenamento jurídico, definido previamente pela Constituição e a lei.
No caso do RDC, o princípio de legalidade é desrespeitado pelo legislador quando viola as normas de elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, estabelecidas na Lei Complementar 95, que dispõe sobre a necessidade de pertinência temática com o conteúdo inicial da medida provisória para a elaboração de leis, como vimos na seção anterior.
Segundo Barroso (2008) a Constituição disciplina a forma de produção de leis e demais atos, por meio da definição de competências e procedimentos que devem ser seguidos pelos servidores públicos. Portanto, a inconstitucionalidade formal decorre da criação de uma lei em desconformidade com normas de competência e os procedimentos estabelecidos no ordenamento jurídico.
Adicionalmente, com base no princípio de legalidade, o regime de contratação pública deve regular importantes aspectos do processo contratual, nas etapas de planejamento9, contratação, execução10 e liquidação do contrato11, as quais devem considerar, em todos os momentos (mas com diferentes intensidades), o cumprimento de princípios constitucionais básicos, tais como a legalidade, a publicidade, a livre concorrência entre ofertantes, o devido processo, a transparência, a eficácia, a moralidade, entre outros.
No Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu no artigo 37, XXI a obrigatoriedade de contratar as obras, os serviços, as compras e alienações mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes; isso, com a finalidade de preservar os princípios de legalidade, igualdade, impessoalidade, moralidade e probidade do patrimônio público. Para Cardoso (2014) a regra constitucional consagra:
(a) a licitação como regra para a contratação de obras, serviços, compras e alienações pelo Estado; e (b) a necessidade de que o processo licitatório assegure, ao mesmo tempo, (b.1) a igualdade de condições aos concorrentes, e (b.2) a segurança ao Poder Público, que poderá impor requisitos de qualificação técnica e econômica indispensáveis ao futuro cumprimento das obrigações contratuais. A transparência como princípio constitucional aplicável à contratação pública responde à necessidade de evitar pressões politicas, econômicas ou familiares indevidas que ameaçam o interesse geral.
A transparência na etapa de formação do contrato manifesta-se mediante a efetiva publicidade do processo contratual, que visa garantir a livre concorrência dos administrados no processo de seleção da proposta mais vantajosa para a administração.
A publicidade dos processos contratuais é uma garantia constitucional importante que permite a consolidação da democracia, o fortalecimento da seguridade jurídica e o respeito dos direitos fundamentais dos administrados, pois a oportuna publicidade dos processos contratuais outorga a oportunidade aos cidadãos de conhecer a vontade da Administração no cumprimento de seus deveres constitucionais, permitindo também participar e questionar as decisões ou interpretações das autoridades públicas, o que é fundamental para o funcionamento da democracia e a legitimidade do Estado.
Para permitir a livre concorrência do mercado, é necessário que a administração pública realize previamente estudos de mercado que ajudem a definir as condições do mercado em determinados períodos de tempo, já que esta informação relevante é necessária para ajustar a convocação pública às necessidades do Estado e às condições do mercado. Os estudos de mercado devem ser publicados nas convocações para que a cidadania tenha oportunidade de questionar as analises e interpretações realizadas pela administração, com a finalidade de ajustar a convocação pública às necessidades da entidade, da cidadania e as condições do mercado.
A lei 8666/1993, regulamentou o artigo 37 XXI da Constituição Federal e instituiu as normas gerais para licitações e contratos administrativos; entretanto, frequentemente ao longo dos anos, a lei foi criticada pelo grande número de prescrições burocráticas que impede a realização de processos licitatórios eficientes, além de não garantir condições vantajosas para a administração pública nos contratos que celebra (Rezende, 2011).
Aqui é importante ressaltar que o princípio de eficiência na administração pública foi incluído na Constituição Federal de 1988, dez anos depois, mediante a emenda constitucional 19 do 4 de junho de 1998 e, portanto, no momento da aprovação da lei 8666/1993, a eficiência não foi um princípio que deveria ser considerado na administração pública, o que pode ser uma razão para que, inicialmente, a lei estabelecera grande número de prescrições burocráticas procurando garantir os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade, probidade, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo, sem considerar a importância da eficiência nas atuações da administração pública.
Evidentemente, a contratação pública não só deve cuidar da transparência mediante a aplicação dos princípios constitucionais iniciais, como que também deve equilibrar estes princípios com o princípio de eficiência na administração pública para evitar a corrupção e garantir a existência de processos contratuais ajustados às exigências dos Estados democráticos constitucionais.
Assim, urge aprimorar as leis de contratação pública no Brasil, procurando melhorar a legalidade e publicidade das atuações da administração pública, levando em consideração, ao mesmo tempo, a eficiência, economia e celeridade que devem ter os procedimentos administrativos.
Conclusão
A construção de um Estado democrático constitucional é um processo permanente, que pode ter avanços significativos, mas também retrocessos significativos. A materialização das normas constitucionais só é possível se os preceitos constitucionais são levados a sério pelos funcionários responsáveis nas diversas entidades da administração pública.
No caso da contratação pública no Brasil, a Constituição de 1988 foi desrespeitada pelos três poderes do Estado, arguindo a urgência de estabelecer regras mas flexíveis e ágeis para as licitações e os contratos necessários à construção de infraestrutura para a Copa do Mundo 2014 e para as Olimpíadas de 2016.
O poder executivo desrespeitou a Constituição ao não promover a tempo uma reforma da lei geral de contratação pública que tivesse em conta a eficiência junto com os outros princípios constitucionais estabelecidos no artigo 37, XXI da Constituição. Também desrespeitou a Constituição ao incluir no RDC outras matérias que não têm relação alguma com a Copa do Mundo ou as Olimpíadas.
O poder legislativo desrespeitou a Constituição ao aprovar o RDC, sem cumprir as normas de elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, e sem regulamentar adequadamente procedimentos que garantam a objetividade, transparência e publicidade que devem ter todos os processos contratuais; outorgando ampla discrição aos funcionários públicos responsáveis pela contratação pública. Também desrespeitou a Constituição ao permitir a inclusão de novas matérias no RDC, sem avaliar os maus resultados que esse tipo de contratação estava gerando nas diferentes obras de infraestrutura no Brasil.
Finalmente, o poder judiciário desrespeitou a Constituição ao não realizar o controle de constitucionalidade no devido tempo, permitindo que até agora continue a polêmica sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do RDC. Em decorrência, consideramos que se deve revisar de forma geral as leis em matéria de licitações e contratação pública, com a finalidade de avaliar as boas e más experiências, visando à criação de leis que cumpram todos os parâmetros estabelecidos na Constituição Federal de 1988.
NOTAS
1 O Clad é um organismo público internacional de caráter intergovernamental, respaldado pela ONU, que tem o propósito de promover a análise e o intercâmbio de experiências e conhecimento sobre a reforma do Estado, assim como a modernização da administração pública em América Latina. O Conselho Diretivo congrega os ministros da administração pública e reforma do Estado de todos os países latino-americanos, da Espanha e de Portugal. Volver
2 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: XXI ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988). Volver
3 Art. 288. "Las compras públicas cumplirán con criterios de eficiencia, transparencia, calidad, responsabilidad ambiental y social. Se priorizarán los productos y servicios nacionales, en particular los provenientes de la economía popular y solidaria, y de las micro, pequeñas y medianas unidades productivas" (Constitución Política de Ecuador, 2008). Volver
4 Art. 209. "La función administrativa está al servicio de los intereses generales y se desarrolla con fundamento en los principios de igualdad, moralidad, eficacia, economía, celeridad, imparcialidad y publicidad, mediante la descentralización, la delegación y la desconcentración de funciones. Las autoridades administrativas deben coordinar sus actuaciones para el adecuado cumplimiento de los fines del Estado. La administración pública, en todos sus órdenes, tendrá un control interno que se ejercerá en los términos que señale la ley" (Constitución Política de Colombia, 1991). Volver
5 Dispõe a referida medida provisória: "Art. 11. A aquisição de bens e a contratação de obras e serviços, inclusive de engenharia, necessários à realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela APO, ou relacionados à infraestrutura aeroportuária necessária à realização da Copa do Mundo Fifa 2014, observarão o disposto nos arts. 12 a 24 desta Medida Provisória". Volver
6 A MP, segundo sua própria ementa, tratava da "organização da Presidência da República e dos Ministérios, cria a Secretaria de Aviação Civil, altera a legislação da Agência Nacional de Aviação Civil -ANAC e da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária- Infraero, cria cargos de Ministro de Estado e cargos em comissão, dispõe sobre a contratação de controladores de tráfego aéreo temporários, cria cargos de Controlador de Tráfego Aéreo". Volver
7 Na LDO de 2014 (lei 12 919/2013), as previsões a respeito da necessidade de orçamento estimado foram objeto de veto presidencial, sob a justificativa de que "Os critérios para a elaboração do orçamento de referencia de obras e serviços de engenharia transcendem um exercício financeiro e por isso já estão disciplinados pelo Decreto nº 7.983, de 8 de abril de 2013, que assegura a necessária segurança jurídica sobre as regras a serem aplicadas. Além disso, a redação proposta não contempla especificidades previstas no Decreto, como as regras para empreitada a preço global e o RDC, podendo gerar insegurança jurídica". Volver
8 "Na licitação na modalidade de pregão, o orçamento, o orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários não constitui um dos elementos obrigatórios do edital, devendo estar inserido obrigatoriamente no bojo do processo relativo ao certame. Ficará a critério do gestor, no caso concreto, a avaliação da oportunidade e conveniência de incluir esse orçamento no edital ou informar, no ato convocatório, a sua disponibilidade aos interessados e os meios para obtê-lo" (TCU. Acordão 114/2007, Plenário. Processo 023.782/2006-4. Rel. Min. Benjamin Zymler. Sessão: 7.2.2007. DOU, 09 fev. 2007). Volver
9 O planejamento da contratação trata sobre a identificação das necessidades, os recursos orçamentários disponíveis, o cumprimento de normas exigíveis no processo contratual, a elaboração e o alcance dos estudos e desenhos prévios (técnicos, econômicos e jurídicos) que requer a contratação especificamente. Volver
10 A etapa de contratação corresponde à elaboração do edital com base nos estudos prévios, assim como a execução do contrato. Volver
11 A liquidação contratual é a etapa em que se elabora ata para finalizar a relação contratual entre a administração pública e o contratante. Volver
Referências
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