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Prolegómenos

Print version ISSN 0121-182X

Prolegómenos vol.20 no.40 Bogotá July/Dec. 2017

https://doi.org/10.18359/prole.3045 

ARTÍCULO DE REFLEXIÓN
DOI: http://dx.doi.org/10.18359/prole.3045

MAIS TOGAS E MENOS SABRES: AMPLIAÇÃO DE COMPETÊNCIA DOS JUÍZES TOGADOS NA JUSTIÇA MILITAR BRASILEIRA E O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL*

MORE GOWNS AND LESS SABERS: COMPETENCES OF THE CIVILIAN JUDGES IN THE BRAZILIAN MILITARY JUSTICE AND THE NATURAL JUDGE PRINCIPLE

MÁS TOGAS Y MENOS SABLES: AMPLIACIÓN DE COMPETENCIAS DE LOS JUECES CIVILES EN LA JUSTICIA MILITAR BRASILERA Y EL PRINCIPIO DEL JUEZ NATURAL

Susi Castro Silva**

* Artigo de reflexão com base em monografia homônima apresentada pela a autora em 2014 à Universidade Federal do Ceará.
** Advogada. Membro conselheira da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Ceará (OAB/CE). Especialista em História Militar pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFCE), Licenciatura em Letras pela União Metropolitana de Educação e Cultura (UNIME). Serviu como militar no Primeiro Esquadrão do Sétimo Grupo de Aviação da Força Aérea Brasileira (2005-2008).

Forma de citación: Castro, S. (2017). Mais togas e menos sabres: ampliação de competência dos juízes togados na justiça militar brasileira e o princípio do juiz natural. Revista Prolegómenos Derechos y Valores, 20, 40, 127-144. DOI: http://dx.doi.org/10.18359/prole.3045


Fecha de recepción: 21 de marzo de 2016
Fecha de evaluación: 12 de mayo de 2017
Fecha de aprobación: 16 de mayo de 2017

Resumo

A justiça militar brasileira vem sendo criticada ao longo do século XX, ora porque seria um juízo de exceção, ora porque seria um privilégio de classe. No núcleo de ambas as críticas encontrase o fato de os militares, apesar de não possuírem conhecimentos jurídicos, exercerem função jurisdicional nos conselhos de justiça através do escabinato, que é formado por um civil magistrado (o toga) e por quatro militares (os sabres). Nesse trabalho, com base no método hermenêutico-concretizador de interpretação constitucional, analisouse a composição desses conselhos de justiça em relação ao princípio do juiz natural, conforme a Constituição Federal de 1988.

Palavras-chave:

Justiça militar, processo penal militar, princípios constitucionais, juiz natural, escabinato.


Summary

The Brazilian military justice has been criticized along the twentieth century because it might be either a trial of exception or a class privilege. In the core of both critics, it has been found that even though the military does not have any legal knowledge, they do exercise a jurisdiction function through the "escabinato", which is composed by a civilian judge (the gown) and four military (the sabers). In the hereby article, based on the hermeneutic-concrete method of constitutional interpretation, the composition of those justice councils with regards to the natural judge was analyzed, in accordance with the Federal Constitution of 1988.

Keywords:

Military justice, military criminal proceedings, constitutional principles, escabinato.


Resumen

La justicia militar brasileña viene siendo criticada a lo largo del siglo XX, ya sea por ser un juicio de excepción o por constituir un privilegio de clase. En el centro de ambas críticas se encuentra el hecho de que los militares, a pesar de que no poseen conocimientos jurídicos, ejerzan una función jurisdiccional en los consejos de justicia a través del escabinado, que se conforma por un magistrado civil (la toga) y cuatro militares (los sables). En este artículo, con base en el método hermenéutico-concretizador de interpretación constitucional, se analizó la composición de esos consejos de justicia en relación con el principio del juez natural, conforme con la Constitución Federal de 1988.

Palabras clave:

Justicia militar, proceso penal militar, principios constitucionales, juez natural, escabinado.


Introdução

No Brasil, tanto a Justiça Militar da União (JMU) como a Justiça Militar Estadual (JME) possuem historicamente como órgãos judicantes em primeira instância os conselhos de justiça compostos por civis magistrados (os togas) e militares (os sabres), sendo que estes são maioria. A despeito de, por variados motivos, a justiça militar brasileira ter sido criticada em todas as constituintes, os problemas fáticos decorrentes especificamente dessa estrutura judicante, na qual predominam militares investidos de jurisdição, somente vem sendo evidenciados na atualidade, através, por exemplo, das inspeções realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça. Inclusive, constam em seus relatórios possíveis práticas atentatórias à independência da magistratura, morosidade, favorecimento a réus, falta de transparência, nepotismo e até desvios de função, conforme se verifica no Auto Circunstanciado de Inspeção Preventiva na Justiça Militar Estadual do Rio Grande do Sul, em Brasil (2008). Mas extinguir a justiça militar por conta desses problemas não uma solução jurídica, tendo em vista que essa justiça especializada foi constitucionalmente instituída, de forma que extingui-la seria amputar a organização judiciária estabelecida pelo poder constituinte originário.

No entanto, por melhor que seja a intenção dos militares, sua "experiência de caserna" não supre a imprescindibilidade de competência acadêmico-jurídica no exercício da atividade judiciária, nem justifica o descumprimento de normas (princípios e regras) constitucionais de investidura, assecuratórias do devido processo legal. Em zelo a este princípio geral, a Constituição Federal de 1988 estabelece vários princípios específicos tal como o da imparcialidade do qual decorre o princípio do juiz natural.

A. A herança do sistema militar romano e a origem da justiça militar no sistema judiciário brasileiro

Em Roma, conforme leciona Palma (2010) o direito militar se desenvolveu como ramo autônomo, com instituições e institutos peculiares, e aplicado por uma justiça especializada. Inicialmente, porém, a justiça militar romana foi exercida pelos reis, que além de concentrarem em si todos os poderes estatais, eram os próprios comandantes de seus exércitos e participavam das batalhas, segundo descreve Ribeiro (2008). Segundo Gusmão (1915), eles aplicavam o jus commune porque, como a disciplina militardetinha a mesma organização disciplinar da cidade, o mesmo "substractum jurídico-moral" servia de alicerce para ambas.

Mais tarde, à época do Império, os cônsules passaram a deter o imperium majus, podendo julgar tanto os civis como os militares. Com a expansão do Império, e como os cônsules ficavam sediados em Roma, segundo Gusmão (1915) a justiça militar passou a ser exercida pelos prefeitos do pretório, de forma que passou a ser possível operar o jus castrenses romano-rum no âmbito dos acampamentos militares,conhecidos como castra.

Quando a legião romana ficou maior e mais poderosa, mais por questões políticas do que por questões táticas, Constantino a multidividiu tornando-a uma "multiplicidade de membros desagregados". Para disciplinar as tropas divididas entre si e espalhadas pelo Império romano, ele empreendeu reformas no modus operandi da justiça militar romana, instituindo, por exemplo, um Consilium encarregado de assistir o juiz militar. A opinião emitida pelo Consilium, entretanto, segundo Gusmão (1915), não vinculava os juízes militares.

Essa especialização da "justiça militar romana", assim como outros institutos de direito militar, influenciou os sistemas jurídicos europeus. Na Ibéria, particularmente, os visigodos conservaram instituições romanas, apesar de modificadas, subscrevendoas em seu código de leis Fuero Jusgo. Segundo Magalhães (1988), tais leis foramrevalidadas no século XIII por Afonso de Castela em um conjunto de leis chamado de Siete Partidas, que tratava dos deveres militares dos súditos.

No século XVI, quando Portugal ficou sob o reinado de Dom Felipe II da Espanha no regime da União Ibérica (1580-1640), as instituições militares espanholas prevaleceram sem que o sistema militar português fosse alterado de modo profundo. Uma dessas instituições foi o Conselho de Guerra espanhol, que exercia jurisdição sobre as tropas estabelecidas no litoral Português. Nessa época, segundo Ribeiro (2008), ele já era composto tanto por juízes militares, como por juízes civis que julgavam como um "colégio judicante", sendo que Carlos I da Espanha já havia conferido em 1547 a designação de "auditor" aos magistrados civis.

No Brasil, as instituições militares foram adquirindo nova feição, na medida em que as instituições portuguesas iam sofrendo a influência do domínio espanhol. Segundo Magalhães (1988), por volta de 1623, o julgamento dos crimes militares coube aos Conselhos de Guerra do Exército de terra e da Marinha, e em 1630 sua jurisdição se estendeu aos delitos não militares, aos moldes de como era feito no âmbito da União Ibérica.

Em 1640, quando reorganizava as forças militares portuguesas para as Guerras da Restauração contra o reino da Espanha, D. João IV criou o Conselho de Guerra, primeiro órgão superior da justiça militar em Portugal, para tratar de todos os assuntos administrativos, táticos e jurídicos, relativos ao exército e à marinha. Depois de restaurada a independência, Portugal retomou a tradição militar das Ordenações Afonsinas, mas manteve o Conselho de Guerra.

A ideia de um conselho como órgão de instância superior chegou ao Brasil juntamente com a corte portuguesa, em 1808. Poucos meses após a sua chegada, Dom João expediu o alvará de 1° de abril de 1808, instituindo um foro especial para os delitos militares, criando, conforme o inciso I do alvará, o Conselho Supremo Militar e de Justiça para funcionar do mesmo modo que o Conselho de Portugal, apreciando em segunda e última instância todas as matérias militares. Seus membros eram nomeados pela Coroa e mantidos, portanto, sob total controle, conforme leciona Ribeiro (2008).

A Presidência do Conselho era exercida pelos próprios "mandatários" no país: Dom João, como príncipe regente, foi o primeiro; também foi o segundo, com o título de Dom João VI, após a morte de sua mãe, Dona Maria I; o terceiro foi Dom Pedro II, em 1822; depois, foi o presidente Deodoro da Fonseca, em 1889; e, em seguida, o presidente Floriano Peixoto, em 1891. Em 1893, o presidente do Conselho Supremo passou a ser o conselheiro mais antigo.

Já os conselhos de guerra, órgãos de primeira instância, que após 1813 passaram a existir em outras localidades além do Rio de Janeiro, segundo Ribeiro (1998), eram compostos por: um oficial superior; cinco ou mais oficiais, competentes para julgar os militares de suas unidades no caso de faltas graves; e um auditor de campo, que era um oficial versado em direito, ou com prática na área, que após examinar os casos emitia relatórios e pareceres.

Também compunham a justiça militar brasileira em primeira instância, as juntas de justiça militar e as comissões militares. Estas, entretanto, foram criadas para processar e julgar os líderes das insurreições regionais que ocorreram após a Independência. Como os processos e os julgamentos ocorriam sumariamente, essas comissões eram muito criticadas pelos políticos liberais da época que, inclusive, chegaram a elaborar um projeto que propunha a extinção do Conselho Supremo Militar. Mas, conforme leciona Ribeiro (1998), com o apoio dos políticos conservadores, prevaleceram as tradições portuguesas.

A estrutura judiciária militar no Brasil somente começou a tomar forma diferenciada em relação à metrópole quando a Constituição de 1891 separou os poderes executivo, legislativo e judiciário. Apesar de não contemplar uma justiça militar no âmbito do poder judiciário, essa Constituição estabeleceu o foro especial para os delitos militares, composto pelos conselhos para a "formação de culpa" e julgamento, e pelo Supremo Tribunal Militar como órgão máximo, ficando extinto o Conselho Supremo.

Atrelados ao executivo, os conselhos e o Supremo Tribunal Militar permaneceram julgando os militares até a Constituição de 1934 agregar a justiça militar ao poder judiciário. Essa Constituição também estendeu o foro militar aos civis em casos de crime contra a segurança externa ou contra as instituições militares.

B. A justiça militar brasileira na atualidade e o movimento em prol de sua extinção

A justiça militar brasileira abrange a JMU e a JME e do distrito federal. A primeira, conforme o art. 124 da CF/88, é competente para julgar os crimes militares que assim são definidos em lei, sendo esta o vigente Código Penal Militar (CPM). Essa competência é interpretada como sendo ratione legis, de forma que a JMU alcançaria os militares das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), mas também os civis que cometessem os crimes definidos no CPM. A segunda, conforme o §4° do art. 125 da CF/88, possui competência ratione personae, uma vez que julga os integrantes das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares), mas também possui competência ratione legis, uma vez que julga os crimes e os atos disciplinares militares, assim definidos em lei. Na JME, contudo, mantémse a competência do Júri quando a vítima for civil e, conforme o §5º do art. 125 da CF/88, os juízes de direito do juízo militar processam e julgam singularmente os crimes militares cometidos contra civis.

A primeira instância da JMU é composta por uma auditoria de correição e por dezenove auditorias militares distribuídas nas doze circunscrições judiciárias do país. Nas auditorias atuam os Conselhos de Justiça que, por sua vez, se organizam em conselhos especiais e conselhos permanentes. Estes julgam os praças, e são constituídos por um juizauditor e por quatro oficiais da mesma Força Armada do acusado. Já os conselhos especiais julgam os oficiais até o posto de capitão-de-mar-e-guerra (ou coronel) e são formados por um juiz auditor e por quatro oficiais da mesma força do acusado, que seja de patente superior ou mais antigo que ele. O juiz auditor, civil provido através de concurso público, não preside esses conselhos no âmbito da União, pois a presidência fica a cargo do juiz militar que tenha a maior patente em relação aos demais militares do órgão julgador. Compete ao juiz civil redigir a sentença em conformidade com a maioria dos votos, mesmo sendo voto vencido.

O Superior Tribunal Militar (STM), segunda instância da JMU, é órgão colegiado e composto por quinze ministros: dez militares em último posto da carreira militar, em serviço ativo, indicados ao ministro da Defesa pelos comandantes das respectivas Forças Armadas e nomeados pelo presidente da República após sabatina e aprovação pelo Senado Federal; e cinco civis, sendo três escolhidos dentre advogados de notório saber jurídico, conduta ilibada e dez anos de efetiva atividade profissional, um escolhido dentre os juízesauditores, e o outro escolhido dentre os membros do Ministério Público Militar.

A JME, criada pela lei 192, de 17 de janeiro de 1936, inclusa no poder judiciário a partir da Constituição de 1946, também possui conselhos de justiça como órgãos judicantes de primeira instância, também divididos em Conselho Permanente e Conselho Especial, e que também são compostos por um juiz civil e quatro juízes militares. Mas se diferenciam dos conselhos de justiça da JMU porque são presididos pelos juízes civis que o integram, que são juízes de direito do juízo militar, membros do poder judiciário estadual.

Na JME, de modo geral, são as Câmaras Especializadas dos Tribunais de Justiça dos Estados que atuam em segunda instância. Nos Estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo, porém, há tribunais de justiça militar como órgãos recursais, uma vez que a CF/88 autoriza a criação desses tribunais quando o efetivo militar do Estado for superior a vinte mil integrantes. O STM não tem competência para julgar os recursos da JME, ainda que provenientes desses tribunais militares. Os recursos contra as decisões das Câmaras Especializadas ou dos TJM são jugados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou pelo STF.

Apesar da recente reforma no judiciário que, através da emenda constitucional (EC) 45/2004, atribuiu ao juiz de direito atuante na JME a competência para atuar singularmente nos casos do art. 125, §5° da CF/88, predomina na justiça militar o julgamento realizado pelos conselhos de justiça através do escabinato: um juiz civil e quatro juízes militares. Permanece presente na organização judiciária militar brasileira, portanto, a possibilidade de militares atuarem como juízes, que é resquício do modo romano de fazer "justiça" aos militares, que por muito tempo seguiu sendo feito na Europa, e foi trazido ao Brasil pelos portugueses. Além disso, a justiça militar brasileira no âmbito da União também pode alcançar civis, sendolhes aplicável, inclusive, o julgamento pelo escabinato.

Já em 1906, Hélio Lobo criticou em sua obra Sabres e togas: a autonomia judicante militar o exercício da função judicante por militares, e propôs que os tribunais militares fossem abolidos, devendo a função judicante pertencer apenas ao magistrado, inclusive em tempos de guerra. Segundo Ribeiro (1998), Hélio Lobo condenou a justiça militar porque seria tanto um privilégio de classe, como uma forma de opressão do superior para com o subordinado. Ele argumentava que era desnecessária, e que bastaria que a justiça civil se abstivesse de determinadas exigências "de direito", para que pudesse julgar com celeridade, cumprindo o atributo que se desejava para uma justiça aos militares.

Também Chrysólito de Gusmão em Direito penal militar, publicado em 1915, criticou as"monstruosidades" do ordenamento jurídico militar brasileiro, inclusive a predominância de militares, embora sem formação jurídica, na composição de órgãos jurisdicionais. Para Chrysólito de Gusmão (1915), o sistema de escabinato era ultrapassado, e baseavase em uma doutrina que concebia o poder judiciário militar como "uma emanação do comando".

Esmeraldino Bandeira, por sua vez, em Direito, justiça e processo militar, publicado em 1919,entendeu que bastaria que o juiz togado apreciasse o fato para que pudesse dizer o direito militar, uma vez que o processo e o julgamento seriam um estudo do facto criminoso e a investigação da responsabilidade do agente em face da lei, do direito e do processo.

C. Interpretação das normas constitucionais e o princípio da imparcialidade

Ao julgar o HC 115530 PR, 2013, o STF posicionouse quanto à constitucionalidade dos conselhos de justiça militar da seguinte forma:

Habeas corpus. Direito penal e processual penal militar. Crime de uso e posse de entorpecente em lugar sujeito à administração militar (CPM, ART. 290). Arguição de inconstitucionalidade da organização da justiça penal militar (lei N. 8.457/92). Improcedência. Existência de garantias próprias e idôneas à imparcialidade do julgador. Simetria constitucional. Alegação de ausência de prova do fato criminoso. Comprovação do ilícito por laudo pericial subscrito por um único perito. Validade. Inaplicabilidade da súmula 361 do STF. Perito oficial. Precedentes. Interrogatório nas ações de competência da justiça militar. Ato que deve passar a ser realizado ao final do processo. Nova redação do art. 400 do CPP. Precedente do Plenário do Supremo Tribunal Federal (ação penal Nº 528). Ordem concedida.
1. A Lei nº 8.457/92, ao organizar a Justiça Militar da União criando os Conselhos de Justiça (art. 1º c/c art. 16) e confiandolhes a missão de prestar jurisdição criminal, não viola a Constituição da República ou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), porquanto assegura a seus respetivos membros garantias funcionais idôneas à imparcialidade do ofício judicante, ainda que distintas daquelas atribuídas à magistratura civil [...] (STF HC 115530, 2013).

A preliminar de inconstitucionalidade da lei 8457/92, que organiza a JMU, foi arguida pela Defensoria Pública da União no Paraná (DPU PR), nos seguintes termos:

Pronunciamento da nulidade da decisão condenatória proferida pelo Conselho Permanente de Justiça para o Exército, em razão da inconstitucionalidade da lei de organização da Justiça Militar (Lei nº 8.457/1992): referido diploma legal omitiu a previsão para membros militares do Conselho de Justiça, das garantias e deveres da magistratura, estabelecidos na Constituição Federal e em Tratados Internacionais (STF HC 115530, 2013).

Concordando com o posicionamento da DPU PR, mas indo além, percebese que é possível argumentar acerca da pretendida inconstitucionalidade a luz de uma interpretação voltada a preservar a unidade da Constituição.

Através do movimento neoconstitucionalista1, e do consequente desenvolvimento de uma "nova hermenêutica jurídica", para elucidar os enunciados constitucionais, recorrese a métodos de interpretação que declarem o direito, concretizandoo, e também o atualizando conforme as transformações sociais, conforme leciona Cunha (2011).

Nesse sentido, segundo Cunha (2011), o método hermenêutico-concretizador é adequado para interpretar os princípios constitucionais e os seus graus distintos de densidade normativa, porque parte da ideia de que se deve iniciar a interpretação por uma pré-compreensão do sentido da norma, através de uma atividade criativa, que permite ao intérprete determinar o próprio conteúdo material da norma. Através do método hermenêutico-concretizador, segundo Konrad Hesse, seu principal teorizador, "o procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto da interpretação, pela Constituição e pelo problema respectivo" (Hesse, 1998, p. 63, citado por Cunha, 2011, pp. 218-219).

E pelo princípio da unidade da Constituição, um dos princípios de interpretação constitucional do método hermenêutico-concretizador, a unicidade e o caráter sistemático do ordenamento jurídico são conferidos pela Constituição, onde não há distinção hierárquica entre suas normas, já que decorrem de uma mesma fonte ou possuem o mesmo fundamento de validade, que seria o poder constituinte originário.

Tendo em vista que no Brasil tem predominado a percepção do ordenamento jurídico como um conjunto coerente de normas de derivação e adequação obrigatória à Constituição, é pertinente que sejam revistas as práticas no âmbito do poder judiciário que, apesar de sedimentadas pelo tempo, encontramse contraditórias ao escopo da Constituição de 1988.

A justiça militar brasileira, que desde a Constituição de 1934 integra o poder judiciário, que é uno, assim como é una a função jurisdicional, conforme leciona Cintra, Grinover e Dinamarco (2012), está obrigada a efetivar os princípios gerais do processo, devendo assegurar ao jurisdicionado, dentre outros princípios, o da imparcialidade do juízo, segundo Grau (2006).

Verificase que o princípio da imparcialidade, pressuposto para que a relação processual se instaure validamente, tem recebido em âmbito internacional uma moderna interpretação ampliativa. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), por exemplo, tem desenvolvido uma teoria da imparcialidade que abrange três conceitos, segundo Escobar-Martínez (2009):

  1. que a "teoria da aparência" é relevante para averiguar a imparcialidade do tribunal (apreciado no caso Delcourt vs. Bélgica, e reiterado no caso De Cubber vs. Bélgica);
  2. que a imparcialidade judicial possui duas dimensões, uma subjetiva e outra objetiva (apreciado nos casos Piersack vs. Bélgica, De Cubber vs. Bélgica, e Kyprianou vs. Chipre);
  3. e que a imparcialidade objetiva deve ser objetivamente justificada, analisandose a natureza e a finalidade das medidas tomadas pelo magistrado (apreciado no caso Hauschildt vs. Dinamarca, e reiterado nos casos Sainte-Marie vs. França, Fey vs. Áustria, Padovani vs. Itália, Bulut vs. Áustria e Saraiva de Carvalho vs. Portugal).

Pela "teoria da aparência" aplicada pelo TEDH, a aparência de imparcialidade por parte dos tribunais deve inspirar confiança na sociedade que se pretende democrática. Quanto à face subjetiva do princípio da imparcialidade, Fernández Segado (2008, p. 47) afirma que "la imparcialidade subjetiva, cuyo possible quebrantamento deriva de la relación del Juez com las partes, y la imparcilidad objetiva, que puede ser vulnerada por la relación del Juez com el objeto del proceso". Quanto à face objetiva da imparcialidade, com base no entendimento do TEDH, Fernández Segado (2008, p. 47) explica que

A salvaguardar la imparcialidade objetiva se orienta la necessária separación entre la función instructora y la juzgadora, doctrina que, siguiendo muy de cerca la interpretación realizada por el Tribunal Europeo de Derechos Humanos em el caso De Cubbre (STEDH de 26 de octubre de 1984) [...].

Além dessa concretização ampla do princípio da imparcialidade proposta pelo TEDH, há a necessidade de sua concretização em sentido estrito, que é alcançada através de princípios e regras constitucionais. São regras concretizadores da imparcialidade do juízo, por exemplo, as garantias conferidas aos magistrados, as regras de impedimento e suspeição e as regras de investidura.

A imparcialidade é um dos princípios específicos concretizadores do princípio geral do devido processo legal, que no Brasil é garantia expressamente prevista no art. 5°, LIV da CF/88, que diz que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Mas essa garantia, segundo Cunha (2011), possui duas faces: o substantive due process of law (devido processo legal material ou substantivo), que determina que haja justiça e razoabilidade (adequação, necessidade, e proporcionalidade) nas decisões restritivas de direitos, não bastando a instauração regular de um processo; e o procedural due process of law (devido processo legalformal ou procedimental), alcançado quando se exige como condição para a restrição de direitos pelo menos a abertura regular do processo.

A garantia do devido processo legal formal tem origem na Magna Carta Libertatum, assinada em 15 de junho de 1215, quando o rei da Inglaterra João sem Terra assegurou privilégios aos barões e aos burgueses ingleses. Pelo caráter restritivo a determinadas classes, esses privilégios não configuravam direitos fundamentais. Mas a Carta foi fundamental para o desenvolvimentoconstitucional inglês e para a construção da democracia moderna, pois, segundo Cunha (2011), assegurou liberdades públicas e limitou o poder do rei. Como formalidade necessária para a imposição de penas, o item 39 exigiu a realização de um processo:

Nenhum homem livre será detido nem preso, nem despojado de seus direitos nem de seus bens, nem declarado fora da lei, nem exilado, nem prejudicada a sua posição de qualquer forma; tampouco procederemos com força contra ele, nem mandaremos que outrem o faça, a não ser por um julgamento legal de seus pares e pela lei do país (Cunha, 2011, p. 575).

Nessa origem do princípio do devido processo legal, estaria, como plano de fundo, o princípio do juiz natural, pois a Magna Carta Libertatum estabeleceu previamente quem, a partir dali, seria o órgão julgador. O núcleo inicial do princípio do juiz natural é, portanto, a vedação ao tribunal de exceção, ou seja, é a "proibição de se instituir ou de se constituir um órgão jurisdicional exclusiva ou casuisticamente para o processo e julgamento de determinada infração penal" (Oliveira, 2006, p. 25).

D. O princípio do juiz natural e os seus desdobramentos

Através da Magna Carta, foram investidos de competência jurisdicional os "pares" daqueles que seriam beneficiados com ela, ou seja, os barões e os burgueses. Assim, foi definido previamente quem seria o órgão julgador, e esse foi o núcleo inicial da garantia do juiz natural. A doutrina jurídica norteamericana, por sua vez, acrescentou à noção de juiz natural a exigência do estabelecimento de uma regra prévia de competência. E no Brasil, dada a configuração do modelo constitucional em que as funções do poder público e do judiciário possuem "distribuição extensa e minudente", a competência deve derivar de fontes constitucionais, conforme leciona Oliveira (2006). Assim, as modernas doutrinas sobre o princípio do juiz natural, segundo Cintra et al. (2012), concebemno constituído de três conceitos:

  1. só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição;
  2. ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato;
  3. entre os juízes préconstituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja (Cintra et al., 2012, p. 61).

O conceito "b" consiste no conteúdo temporal do princípio do juiz natural, que demanda que a constituição do órgão jurisdicional seja realizada previamente à ocorrência do fato. Esse conteúdo é garantindo no ordenamento jurídico brasileiro no art. 5°, XXXVII da CF/88 que estabelece que "não haverá juízo ou tribunal de exceção". Como os órgãos jurisdicionais brasileiros encontramse previamente instituídos pela Constituição, ou por lei expressamente autorizada por ela, não há que se falar em tribunais de exceção no Brasil2.

Mas o fato de um tribunal não ser de exceção, não significa que não possa ofender ao princípio do juiz natural, tendo em vista os outros conceitos que o englobam. Conforme o conceito "a", o órgão jurisdicional deve ser instituído pela Constituição ou pela lei expressamente autorizada por ela e em conformidade com os limites constitucionais. Pelo conceito "c", uma vez préconstituídos de função jurisdicional, os órgãos devem possuir taxativamente competências constitucionais. Este conteúdo, em especial, encontrase positivado em forma de garantia no art. 5°, LIII da CF/88, que estabelece que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". Unidos, os conceitos "a" e "c" formam o princípio do juiz constitucionalmente competente, pelo qual somente a Constituição poderá conferir jurisdição e competência para um órgão jurisdicional.

Assim, uma vez que o juízo ou tribunal tenha sido instituído, suas competências devem ser estabelecidas em coerência com o sistema normativo (regras e princípios) constitucional, já que, para atender ao princípio do juiz natural, o órgão jurisdicional previamente constituído também deverá ser constitucionalmente competente. Em consequência, não se pode instituir ou extinguir um juiz natural através de lei, conforme leciona Oliveira (2006).

A titularidade da jurisdição no Brasil é una e pertence ao Estado, mas para uma divisão racional do trabalho, encontrase distribuída em órgãos jurisdicionais estabelecidos no art. 92 da CF/88: o Supremo Tribunal Federal; o STJ; os tribunais regionais federais e juízes federais; os tribunais e juízes do trabalho; os tribunais e juízes eleitorais; os tribunais e juízes militares; os tribunais e juízes dos Estados e do distrito federal e territórios. A Constituição também institui de função jurisdicional os juizados especiais de pequenas causas (art. 24, inc. X), a serem providos por "juízes togados ou por togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 98, inc. I)" (Cintra et al., 2012). Também é expressamente que a Constituição atribui função jurisdicional:

a) à Câmara dos Deputados, quanto à declaração da procedência de acusação contra o Presidente e o Vice-Presidente da República, os Ministros de Estado (art. 51, inc. I); b) ao Senado Federal para o julgamento do Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade, assim como dos Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles (art. 52, incs. I-II); c) à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, quanto à declaração de perda do mandato de seus membros, por infringência das proibições estabelecidas no art. 54 da Constituição, ou por procedimento incompatível com o decoro parlamentar ou atentatório das instituições vigentes (art. 55, § 2º).
Nos demais casos do art. 55 da Constituição Federal ou há controle judiciário posterior (§ 3º), ou já houve pronunciamento anterior do Poder Judiciário (art. 55, incs. V-VI). Assim sendo, apenas as hipóteses dos incs. I, II e VI e do art. 55, a que se reporta o § 2º, configuram exercício de função jurisdicional (Cintra et al., 2012, p. 186).

A jurisdição deveria ser exercida, portanto, por quem foi regularmente investido pelo Estado na autoridade de juiz. E, em regra, a função jurisdicional é exercida pelos magistrados ou togados, aos quais são asseguradas garantias e prerrogativas para que possam exercêla com independência e imparcialidade, devendo ainda preencherem os requisitos estabelecidos no art. 93, I da CF/88:

[...] ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindose do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendose, nas nomeações, à ordem de classificação (Brasil, 1998, art. 193).

Mas há três modalidades de juízes investidos de jurisdição no Brasil: os togados, que são os magistrados; os militares, que atuam nos conselhos de justiça da JMU e da JME; e os juízes de fato, que são os jurados que atuamno Tribunal do Júri. Destes, apenas os magistrados possuem as garantias e as prerrogativas assecuratórias de imparcialidade.

Os juízes de paz, conforme o art. 98, II da CF/88, onde também estão delimitadas as suas competências e forma de investidura, não são investidos de jurisdição. Os conciliadores e os juízes leigos dos juizados especiais estaduais, cuja competência está delimitada no art. 98, I da CF/88, também não estão investidos de jurisdição, sendo que os primeiros são recrutados, preferencialmente, entre os bacharéis em direito, e os segundos, entre advogados com mais de cinco anos de experiência, para ambos atuarem como auxiliares da justiça, conforme o art. 7° da lei 9099/1995. Os juízes leigos das juntas eleitorais, cuja competência está delimitada no art. 40 da lei 4737/1965 (Código Eleitoral), lei autorizada pelo art. 121 da CF/88, não estão investidos de jurisdição penal, e são recrutados entre os "cidadãos de notória idoneidade". O juízo arbitral, autorizado pela lei 9307/1996, declarada constitucional por via incidental no Agravo Regimental na Sentença Estrangeira 5206-7 - Reino da Espanha, também não é órgão de jurisdição, uma vez que não é função estatal.

Ademais, quando os órgãos jurisdicionais não são integralmente compostos por magistrados, ou a Constituição estabelece os critérios e a forma de ingresso dos não magistrados na função judicante, delimitando as suas competências3, ou confere parâmetros e autoriza que a lei os organize e estabeleça suas competências4, como ocorre no âmbito da justiça militar5. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, as investiduras de jurisdição e as atribuições de competência aos órgãos jurisdicionais tendem a concretizar o princípio do juiz constitucionalmente competente.

Sobre as prerrogativas de foro, elas ofenderiam ao princípio do juiz natural se não fossem uma determinação constitucional ou legal (autorizada pela Constituição), e/ou fossem estabelecidas após a ocorrência dos fatos a serem julgados. Sobre isso, o STF no Inq. 1376-AgR, em 2007, posicionouse quando enfatizou que a garantia do juiz natural não se tratava de conferir um privilégio ou garantia pessoal, mas sim uma prerrogativa ratione muneris (em razão do cargo ou função),que deveria cessar quando sobreviesse a cessação da investidura no cargo, função ou mandato do indiciado, denunciado, ou réu.

A lógica triconceitual do princípio do juiz natural como sendo o garantidor de uma prévia investidura de jurisdição e competência pela Constituição também é verificável na jurisprudência do STF, como no HC 120224, julgado em 2014. A lógica triconceitual está consolidada quanto ao respeito à predeterminação da competência, de forma que os recursos cabíveis devem ser exauridos no âmbito da jurisdição competente, não se podendo substituílos por uma ação de habeas corpus de competência de outro tribunal. Pois, admitindo essa possibilidade, estaria permitindo que o impetrante elegesse qual tribunal exerceria o juízo de revisão, se seria o juízo natural (o previamente definido) ou se outro juízo, através de habeas corpus substitutivo.

Também, segundo o STF, conforme julgados no HC 86889 SP, 2007, e no HC 99240 AM, 2010, a convocação de juízes de primeiro grau de jurisdição para compor em maioria a Turma julgadora ou para substituir Desembargadores não viola o princípio do juiz natural, uma vez que já são investidos de jurisdição. O STF também entende que por haver autorização no art. 96, I da CF/88, poderá haver alteração de competência dos órgãos do poder judiciário, a exemplo da especialização de varas, por deliberação dos tribunais, sem que isso viole o princípio do juiz natural, conforme julgado no HC 96104 MS, 2010; e no HC 113018 RS, 2013.

E. O escabinato e o descumprimento do princípio do juiz natural

A justiça militar está previamente e constitucionalmente instituída de jurisdição e provida de competência, não sendo, portanto, um tribunal de exceção. Mas essa jurisdição foi conferida de forma genérica, uma vez que o constituinte autorizou a instituição dos tribunais e juízes militares através de lei, conforme o art. 122, II, da CF/88, bem como a organização, o funcionamento e a competência da justiça militar serem dispostos por lei, conforme o art. 124, parágrafo único, da CF/88. Para não ferir o princípio do juiz natural, por conseguinte, essa lei de organização deve estar em consonância com o sistema normativo (regras e princípios) constitucional.

Contudo, pelo princípio de interpretação constitucional da unidade da Constituição, verificase, primeiramente, que a qualificação para a composição dos conselhos de justiça militar conflita com as demais disposições constitucionais que prédefinem uma qualificação para a composição dos órgãos jurisdicionais. Em regra, os órgãos jurisdicionais são compostos por bacharéis em direito6. A CF/88 também admite o "notório saber jurídico", independentemente do título de bacharel em direito, como qualificação para a composição do STF, conforme o art. 101 da CF/88. Através de lei autorizada pela CF/88, também se exige a qualificação de "cidadão de notória idoneidade" para a composição do júri, conforme o art. 436 do CPP, e para a composição dos dois, ou quatro, juízes leigos nas juntas eleitorais, que também são compostas de um juiz de direito, conforme o art. 36 do Código Eleitoral, e art. 11, §2º da LC 35/1979. Também a lei 9099/1995 que, autorizada pela CF/88, organiza os juizados especiais cíveis e criminais estaduais, dispõe que os conciliadores sejam preferencialmente bacharéis em direito, e que os juízes leigos sejam advogados. E, pelo art. 41, §1º da mesma lei, as turmas recursais dos juizados estaduais devem ser compostas por três juízes togados.

No entanto, conforme a lei 8457/92 que organiza a JMU, para a composição dos conselhos especiais de justiça e dos conselhos permanentes de justiça, subdivisões dos conselhos de justiça militar, são previstos um magistrado e quatro militares, estes devendo possuir as seguintes características funcionais: oficiais de carreira; em serviço ativo; e preferencialmente lotados no âmbito de jurisdição da auditoria.

Conforme a sistemática da Constituição, se daquele que não é magistrado se exige "notório saber jurídico", às vezes até de advogados, ou se exige "notória idoneidade" ou "conduta ilibada", ou ambas as qualificações para a composição de órgãos jurisdicionais, então também deveria ser exigido do militar integrante dos conselhos de justiça, ou algum "saber jurídico" ou alguma "notável" condição.

Mesmo que a "idoneidade" seja requisito para o ingresso na carreira militar, ela não pode ser tida como presumida ad aeternum do militar, mesmo porque os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, bem como os das Polícias Civis e Militares e do Corpo de Bombeiros, classificam os militares em graus de comportamento, podendo os militares permanecerem em seus quadros ainda que classificados no "mau comportamento"7. Estes, por exemplo, poderiam ter sido excluídos da possibilidade de exercerem a função judicante, mas a lei 8457/92 apenas excluiu os militares que, em alguma medida, poderiam influenciar na tomada de decisões pelos demais, conforme se depreende do art. 19, §3°, da lei 8457/92, transcrito abaixo:

Art. 19. Para efeito de composição dos conselhos de que trata o artigo anterior, nas respectivas Circunscrições, os comandantes de Distrito ou Comando Naval, Região Militar e Comando Aéreo Regional organizarão, trimestralmente, relação de todos os oficiais em serviço ativo, com respectivos posto, antigüidade e local de serviço, publicandoa em boletim e remetendoa ao Juiz-Auditor competente.
§ 3° A relação não incluirá:
a) os oficiais dos Gabinetes dos Ministros de Estado;
b) os oficiais agregados;
c) os comandantes, diretores ou chefes, professores instrutores e alunos de escolas, institutos, academias, centros e cursos de formação, especialização, aperfeiçoamento, Estado-Maior e altos estudos;
d) na Marinha: os Almirantes-de-Esquadra e oficiais que sirvam em seus gabinetes, os Comandantes de Distrito Naval e de Comando Naval, o Vice-Chefe do Estado-Maior da Armada, o Chefe do Estado-Maior do Comando de Operações Navais e os oficiais embarcados ou na tropa, em condições de, efetivamente, participar de atividades operativas programadas para o trimestre;
e) no Exército: os Generais-de-Exército, Generais Comandantes de Divisão de Exército e de Região Militar, bem como os respectivos Chefes de Estado-Maior ou de Gabinete e oficiais do Estado-Maior Pessoal;
f) na Aeronáutica: os Tenentes-Brigadeiros, bem como seus Chefes de Estado-Maior ou de Gabinete, Assistente e Ajudantes-de-Ordens, ou Vice-Chefe e o Subchefe do Estado-Maior da Aeronáutica.

Em segundo lugar, a composição colegiada dos conselhos de justiça militar para atuar em primeira instância não condiz com a sistemática constitucional acerca dos demais órgãos jurisdicionais colegiados.

Em regra, a CF/88 estabelece órgãos jurisdicionais colegiados para apreciarem as decisões proferidas por uma instância inferior que, em regra, é realizada por um juízo singular. Por essa mesma lógica de possibilitar uma "melhor análise" é que a CF/88 excepciona que o julgamento dos ocupantes de determinados cargos seja realizado diretamente por órgãos colegiados, assim como também o sejam determinadas ações, em razão da matéria.

Conforme Oliveira (2011), a formação colegiada também se justifica para a redução das pressões externas sobre um único julgador. Além disso, esperase dos órgãos colegiados "em razão da organização das respectivas carreiras -promoção por merecimento e antiguidade-, uma formação técnica já consolidada, dado o longo exercício da função judicante" (Oliveira, 2011, p. 25).

A CF/88, conforme seu art. 124, caput, criou expressamente a especialização jurisdicional em razão da matéria, qual seja "os crimes militares definidos em lei", dada a necessidade de serem analisados de forma especializada. Mas, prescindindo de uma análise colegiada, a CF/88 não conferiu prerrogativa de foro aos militares. Na realidade, a CF/88 expressamente especificou quais os militares deveriam ser processados e julgados perante um colegiado: os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica perante o STF, conforme art. 102, I, "c", da CF/88, ou perante o Senado Federal, conforme art. 52, I, da CF/88. Nada foi dito no texto constitucional a respeito dos demais militares.

Nesse sentido é que, pela ADIN 2797-2 DF, foi considerada inconstitucional a lei 10 628/2002 que, além de tentar instituir juiz natural através de legislação ordinária, instituía prerrogativa de foro perante tribunais.

[...] no aspecto estrito da violação ao juiz natural, enquanto critério de distribuição da competência judicante, observase uma unanimidade na doutrina e mesmo na jurisprudência do Superior Tribunal Federal no sentido de que a competência de jurisdição (federal, estadual, eleitoral, dos tribunais, isto é, em razão da matéria e em razão da função) é reservada a Constituição Federal. E mesmo quando se trata de aceitar, no STF, a instituição de foro para determinadas autoridades estaduais, no âmbito das Constituições Estaduais, a fundamentação dos julgados repousa no princípio federativo, matéria igualmente constitucional (Oliveira, 2011, pp. 98-99).

Por uma interpretação sistemática, em prol do princípio da unidade da Constituição, portanto, uma lei não poderia instituir de função jurisdicional um colegiado para julgar em primeira instância os militares ou quem pratique crimes militares definidos em lei.

No âmbito da JMU, não bastasse a lei 8457/92 instituir a composição colegiada dos conselhos de justiça para julgarem em primeira instância os militares, ainda estabelece em seu art. 6°, I, "a", prerrogativa de foro colegiado e em instância superior aos oficiais generais das Forças Armadas, determinando que sejam julgados originariamente no Supremo Tribunal Militar. Ou seja, institui prerrogativa de foro por lei, numa flagrante inconstitucionalidade por desrespeito ao princípio do juiz constitucionalmente competente, que, por sinal, é um dos conceitos do princípio do juiz natural.

Ressaltase que os conselhos de justiça militar não são comparáveis às turmas recursais, previstas na lei 9099/1995 e na lei 10 259/2001 porque, apesar de estas serem órgãos colegiados em primeira instância, compostas por três magistrados e três suplentes nas turmas estaduais, tratamse de órgãos revisores dos juizados especiais. As juntas eleitorais, por sua vez, também autorizadas a serem instituídas por lei complementar, também em razão da especialização da matéria, e que também possuem composição colegiada na qual também atuam juízes leigos e em primeira instância, não possuem, entretanto, competência penal como possuem os conselhos de justiça. Também, quanto à composição colegiada, os conselhos de justiça não são comparáveis ao júri porque os jurados não deliberam entre si, mas apenas votam "sim" ou "não" em relação a quesitos pré-estabelecidos.

Em terceiro, verificouse que são asseguradas aos magistrados garantias8 e a eles impostas vedações enquanto órgãos singulares, ou quando integrantes de órgãos colegiados jurisdicionais, no intuito de assegurar independência e imparcialidade. Por isso é que apesar de o juízo arbitral, os juízes de paz, os conciliadores e os juízes leigos dos juizados especiais não estarem investidos de jurisdição, e os juízes leigos das juntas eleitorais não terem jurisdição criminal, todos ou possuem suas decisões homologadas por magistrados, ou atuam de forma supervisionada por eles, que são os detentores de prerrogativas da magistratura.

Apesar de presididos pelos juízes togados e deterem funções decisórias de caráter administrativo, aos integrantes das juntas eleitorais ainda lhes são assegurados que, conforme o art. 121, §1° da CF/88, "no exercício de suas funções, e no que lhes for aplicável, gozarão de plenas garantias e serão inamovíveis".

Os juízes militares dos conselhos de justiça, entretanto, atuam de forma independente em relação ao juiz togado, formando livre convencimento, com poder de voto, e com competência em matéria criminal, sem que lhes sejam atribuídas garantias assecuratórias de independência e imparcialidade. Apesar de o art. 18 da lei 8457/92 determinar que "os juízes militares dos Conselhos Especial e Permanente são sorteados dentre oficiais de carreira, da sede da Auditoria, com vitaliciedade assegurada", eles exercem uma função jurisdicional temporária, de forma que a vitaliciedade poderá ser aplicada ao cargo e ao posto militar, mas jamais à condição de componente de órgão jurisdicional.

Os juízes militares também não desfrutam de independência funcional jurisdicional. Enquanto reunidos nos conselhos, atuam como juízes, mas ainda nos corredores da justiça militar são dependentes das forças a que servem, estão alocados na hierarquia militar, sujeitos às regras militares, devendo cumprir ordens de seus superiores, bem como emitir ordens aos seus subordinados. Atuam exatamente como é vedado aos magistrados, conforme o art. 95, I da CF/88: "Parágrafo único. Aos juízes é vedado: I-exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério".

Em uma interpretação que preze pela unidade da Constituição, entendendo que as normas derivam do mesmo fundamento de validade, qual seria o poder constituinte originário, não podendo a ele contradizer, verificase que a função jurisdicional requer mecanismos assecuratórios de imparcialidade, uma vez que representa a função do Estado-juiz como terceiro imparcial mediador e solucionador de conflitos. A função jurisdicional, especialmente a criminal, portanto, não pode ser cuidadosamente atribuída a uns, enquanto que privilegiadamente distribuída a outros.

Em quarto lugar, verificase que a forma e a duração da investidura dos juízes militares que integram os conselhos de justiça militar também destoam dos órgãos jurisdicionais de modo geral. Quanto à duração, os magistrados, inclusive os que integram os conselhos especiais e permanentes de justiça, ingressam na carreira através de concurso público, conforme dispõe o art. 93, I, da CF/88, sendo investidos de jurisdição para atuarem em todos os processos a eles submetidos da data de sua investidura para frente e vitaliciamente.

Os militares juízes que compõem os conselhos, entretanto, são sorteados, conforme o art. 18 da lei 8457/92, dentre oficiais de carreira, da sede da Auditoria. O sorteio dos juízes do Conselho Especial de Justiça (que julgam os oficiais), conforme o art. 20 da lei 8457/92,é feito pelo juiz-auditor, em audiência pública, na presença do procurador, do diretor de Secretaria e do acusado, quando preso. Ou seja, os juízes militares que julgam os oficiais nos conselhos especiais de justiça somente são sorteados após o acontecimento do fato, sendo investidos na função de juízes militares apenas para um processo, ficando vinculados a ele, e sendo destituídos ao seu término. Percebese, portanto, que nesse caso o princípio do juiz natural é descumprido em seus três conceitos.

O sorteio dos juízes do Conselho Permanente de Justiça (que julgam os praças), conforme o art. 21 da lei 8457/92, é feito pelo juiz-auditor, em audiência pública, no último mês do trimestre anterior, na presença do procurador e do diretor de Secretaria. Conforme o art. 24 da lei 8457/92, o Conselho Permanente, uma vez constituído, funciona "durante três meses consecutivos, coincidindo com os trimestres do ano civil, podendo o prazo de sua jurisdição ser prorrogado nos casos previstos em lei". Nesse caso, o sorteio tende a ser prévio à ocorrência do fato, respeitando o conteúdo temporal do princípio do juiz natural.

Dessa forma de investidura realizada através de sorteio e com base na hierarquia militar em relação ao réu, decorre o problema logístico de, não sendo possível compor os conselhos, dada a exigência de os militares pertencerem a posto superior ou mais antigo que o acusado, recorrerse a oficiais no âmbito de jurisdição da Auditoria, e sendo insuficientes, recorrerse aos da sede e, persistindo a necessidade, sorteálos dentre os oficiais que sirvam nas demais localidades abrangidas pela respectiva Circunscrição Judiciária Militar. Assim, a exigência da composição dos conselhos conforme a hierarquia militar chega a acarretar os desaforamentos de processos por não se conseguir completar o órgão, como ocorreu, por exemplo, no desaforamento 0000015-97.2006.7.12.0012 AM, 2011. Ou seja, não bastasse o sorteio da função jurisdicional, a lei 8457/92, através do art. 6°, II, "h", também prevê a possibilidade do desaforamento de processos para outra circunscrição judiciária militar que não a do réu, a ser decidido pelo STM.

Em quinto lugar, em regra, verificase que a Presidência dos órgãos colegiados é estabelecida através de eleição, conforme dispõe o art. 119, parágrafo único e o art. 120, §2° da CF/88, respectivamente para o TSE e para o TRE. No STF, STJ, STM, TST, e nos TRF, TRT, e TJ seus presidentes e vices também são eleitos, conforme dispõem os seus regimentos internos. Para os órgãos colegiados mistos (com juízes leigos e magistrados), verificase o estabelecimento de uma Presidência fixa, a exemplo da que é conferida aos juízes togados nas juntas eleitorais e da que é conferida aos juízes de direito do juízo militar na JME que, nesse ponto, foi reformada de forma acertada pelo poder constituinte derivado reformador, através da EC 45/04.

No âmbito da JMU, entretanto, segundo o art. 16 da lei 8457/92, o Conselho Especial de Justiça é presidido por um oficial-general ou oficial superior de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade. O Conselho Permanente de Justiça, por sua vez, é presidido pelo oficial superior. Dentre outras atribuições, compete a esses presidentes militares dos conselhos especial e permanente, conforme o art. 29, VI, da lei 8457/92, "resolver questões de ordem suscitadas pelas partes ou submetê-las à decisão do conselho, ouvido o Ministério Público", apesar de não lhes serem exigidos conhecimentos jurídicos como requisito ao cargo. Enfatizase que a presunção de conhecimentos jurídicos penais por parte desses militares não é suficiente para concretizar os princípios jurídicos específicos requeridos pelo princípio geral do devido processo legal.

Em sexto lugar, comparou-se a composição quantitativa e o poder de voto nos órgãos colegiados integrados por magistrados e por não magistrados em relação à composição dos conselhos de justiça militar.

Aos juizados especiais, por exemplo, a CF/88 faculta expressamente que possam ser providos por juízes togados, ou togados e leigos. Então a lei 9099/95, que organiza esses juizados em âmbito estadual, determina em seu art. 7° que os conciliadores sejam recrutados preferentemente entre os bacharéis em direito e que os juízes leigos sejam recrutados dentre os advogados com mais de cinco anos de experiência, e por seu art. 24, §2° que os árbitros sejam escolhidos entre os juízes leigos, para os três atuarem como auxiliares da justiça. Essa lei estabelece em seus arts. 5° e 6° que compete ao magistrado dirigir e julgar o processo, bem como homologar o laudo do juiz arbitral.

Quanto às juntas eleitorais, o art. 21, §1° da CF/88 atribui à lei complementar a tarefa de dispor sobre a sua organização e competência, o que é feito pelo Código Eleitoral que no seu art. 36 determina que as juntas eleitorais devam ser compostas por um juiz de direito e dois ou quatro cidadãos de notória idoneidade. Cabem aos juízes de direito que presidem as juntas processarem e julgarem os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos, decidirem habeas corpus e mandado de segurança, em matéria eleitoral, e demais atribuições listadas no art. 36 do Código Eleitoral, cabendo aos juízes leigos as atribuições de caráter administrativo-eleitoral.

Nos conselhos de justiça, contudo, é o escabinato, ou seja, o magistrado e quatro juízesmilitares que julgam conjuntamente os réus militares. Todos os membros votam, formando a decisão por maioria, então, uma vez que são quatro militares e um magistrado, sempre é o voto militar que prevalece e, com ele, todas as convicções dos experts na caserna, mas leigos no direito. Trata-se de "desnaturar" a função de julgar, conforme leciona Gusmão (1915), pois não atende especificamente ao princípio da imparcialidade em sua modalidade subjetiva, uma vez que é intrínseca a relação do militar juiz com uma das partes interessadas no processo, qual seja a Força Armada a qual pertencem ele e o réu.

Em suma, a CF/88 não prevê que os "juízes militares" devam ser militares oficiais e da ativa, tampouco determina que os conselhos de justiça sejam formados por militares, nem que eles sejam em maior número em relação aos juízes togados, nem que possuam voto paritário e determinante no processo, nem lhes excetuam a necessidade de conhecimento jurídico ou de deterem notória condição, nem os qualificam como sui generis em relação aos demais órgãos jurisdicionais. Assim, os conselhos de justiça militar estão, de fato, em dissonância com as normas (regras e princípios) constitucionais, e especialmente em desacordo com o princípio do juiz natural.

Conclusão

Apesar das críticas contra a existência da justiça militar, a exemplo das realizadas por Hélio Lobo (1906), essa justiça especializada não pode ser extinta posto ter sido instituída como órgão do poder judiciário pelo poder constituinte originário. Também os relatos sobre práticas atentatórias à independência da magistratura, alto custo de manutenção dos tribunais, morosidade, nepotismo, e outras dessa espécie, não justificam a extinção da justiça militar, pois se tratam de falhas recorrentes na administração pública de modo geral, e devem ser corrigidas uniformemente. Entretanto, as críticas quanto à função judicante ser exercida por militares sem conhecimentos jurídicos, atuando, inclusive, em maioria no órgão jurisdicional, são pertinentes, a exemplo das suscitadas por Chrysólito de Gusmão (1915) e Esmeraldino Bandeira (1919).

A justiça militar, resistente às críticas, permanece com uma estrutura incompatível com a nova realidade social, e conflitante com a ordem constitucional prescrita pela CF/88. A ideia de haver um conselho como juízo natural para o julgamento de militares provém do sistema militar romano, foi aproveitada pelos sistemas militares espanhol e português, trazida ao Brasil pelos colonizadores portugueses e mantida no ordenamento jurídico brasileiro até os dias atuais. E apesar de a justiça militar integrar o poder judiciário desde 1934, ela também resiste à principiologia processual constitucional, muitas vezes sob a justificativa de pautar-se nos princípios da hierarquia e da disciplina, que justificariam a não aplicação ou a mitigação de todos os demais princípios.

Especificamente quanto ao princípio do juiz natural, seu núcleo inicial foi a vedação ao tribunal de exceção, mas a doutrina jurídica norte-americana acrescentou a exigência do estabelecimento de uma regra prévia de competência, e no Brasil essa competência deriva de fontes constitucionais. Assim, a moderna doutrina entende que o órgão jurisdicional deve ser instituído pela Constituição ou pela lei expressamente autorizada pela Constituição e em conformidade com os limites constitucionais. Inclusive, essa lógica triconceitual do princípio do juiz natural como sendo o garantidor de uma prévia investidura de jurisdição e competência constitucional, bem como a vedação de instituição de juízo natural através de lei, são verificáveis na jurisprudência do STF.

Concluiu-se que, como a CF/88 não dispõe que os juízes militares devam ser militares oficiais e da ativa, tampouco determina que os conselhos de justiça sejam formados por militares, nem que eles sejam em maior número que o de juízes togados, nem que possuam voto paritário e determinante no processo, e como todas as outras formas e meios de investir órgãos de jurisdição prezam pela prevalência do conhecimento jurídico, os conselhos de justiça militar estão em dissonância com as normas (regras e princípios) constitucionais, e em desacordo, especificamente, com o princípio do juiz natural.

Por tudo isso, discordou-se do posicionamento do STF no HC 115530 PR, DJe 158, publicado em 14 de agosto de 2013. Pois o princípio estruturante do Estado democrático de direito é concretizado, dentre outros, pelo princípio geral do devido processo legal, que, por sua vez, é concretizado, dentre outros, pelo princípio da imparcialidade, que, por sua vez, deve ser efetivado pelas regras, dentre outras, as que asseguram o juízo natural, através das regras de investidura e de competência.

Em decorrência da incompatibilidade dos conselhos de justiça com a sistemática constitucional, propõe-se a ampliação da competência dos juízes togados no âmbito da justiça militar. Essa ampliação de competência, ou mesmo a atuação monocrática do magistrado na justiça militar resolveria o problema de se ter um foro colegiado em primeira instância, estabelecido por lei aos militares, sem que para tal haja razão constitucional. Também sanaria a necessidade de se garantir a imparcialidade e a independência funcional do órgão jurisdicional, uma vez que a magistratura já conta com mecanismos, garantias e deveres, nesse intuito e em conformidade com a CF/88.


Citações

1 "O neoconstitucionalismo destaca-se, nesse contexto, como uma nova teoria jurídica a justificar a mudança de paradigma, de Estado legislativo de Direito, para Estado Constitucional de Direito, consolidando a passagem da Lei e do Princípio da Legalidade para a periferia do sistema jurídico e o trânsito da Constituição e do Princípio da Constitucionalidade para o centro de todo o sistema, em face do reconhecimento da força normativa da Constituição, com eficácia jurídica vinculante e obrigatória, dotada de supremacia material e intensa carga valorativa" (Cunha, 2011, p. 40). Volver

2 Magalhães (2007, pp. 52-53) faz uma pertinente crítica em relação aos "regimes de exceção" criados pelos tribunais para desobstrui-los do acúmulo de processos, afirmando ser "preciso enfrentar os problemas do mundo real, pois não se vive no mundo dos princípios". Volver

3 No STF, os ministros ingressam conforme as regras do art. 101 e art. 12,§3°, IV da CF/88, e a sua competência encontra-se delimitada nos art. 96, II, art. 102 e parágrafos e art. 103-A da CF/88; no STJ, além dos magistrados, há os ministros que ingressam conforme as regras do art. 104, parágrafo único da CF/88, estando a sua competência delimitada no art. 105 da CF/88; nos tribunais regionais federais, nos tribunais dos Estados, e do distrito federal e territórios, seus membros que não são magistrados ingressam através do quinto constitucional, conforme o art. 94 da CF/88, e suas competências encontram-se no art. 108 da CF/88, e nas Constituições dos Estados e Distrito Federal, respectivamente. Volver

4 No Tribunal Superior do Trabalho e nos Tribunais Regionais do Trabalho, os que não são magistrados ingressam através do quinto constitucional, conforme art. 111-A, I e art. 115, I da CF/88, respectivamente, sendo a competência da Justiça do Trabalho estipulada no art. 114 da CF/88, que também autoriza que a lei estabeleça competência para processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho; no Tribunal Superior Eleitoral e nos Tribunais Regionais Eleitorais, os que não são magistrados ingressam conforme as regras do art. 119 e do art. 120 da CF/88, respectivamente, e no art. 121 da CF/88 consta a autorização para que a organização e a competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais sejam dispostas por Lei complementar. O art. 5°, XXXVIII da CF/88 restringe a competência do júri "para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida", e autoriza a instituição do júri "com a organização que lhe der a lei". Essa organização, por sua vez, é conferida pelo art. 447 do Código de Processo Penal (CPP). Volver

5 No caso dos juízes militares da União, conforme o art. 124 da CF/88, sua competência é penal e ratione legis, restringindo-se aos "crimes militares definidos em lei", cabendo à lei dispor sobre a sua organização e funcionamento. Essa organização é conferida pela lei 8457, de 4 de setembro de 1992. Sobre o STM, apesar de ter a sua composição estabelecida no art. 123 da CF/88, possui sua competência definida em leis: o Código de Processo Penal Militar (CPPM) regula o processo e o julgamento das causas de competência originária do STM, que são definidas no art. 6° da lei 8457/1992. Quanto à JME, a Constituição autoriza no art. 125, § 3º que seja criada por lei estadual, mediante proposta do Tribunal de Justiça. No mesmo §3°, determina que seja constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito do juízo militar, e pelos conselhos de justiça, mas não especifica a composição destes. Em segundo grau, a Constituição determina que seja constituída pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por um Tribunal de Justiça Militar Estadual se o efetivo militar for superior a vinte mil integrantes. A Constituição também não estabelece qual seria a composição desse Tribunal. Volver

6 Os magistrados, que compõem órgãos monocráticos ou integram colegiados; os membros do Ministério Público e os advogados de "notório saber jurídico", que compõem o quinto constitucional dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios, conforme o art. 94 da CF/88, e compõem um terço do STJ, conforme o art. 104, II da CF/88; também os civis que compõem o STM, "advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada" e "membros do Ministério Público da Justiça Militar", conforme o art. 123, I e II da CF/88, são bacharéis em direito. Volver

7 Ver, a título de exemplo, o decreto 4346/2002 que aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4), o decreto 76 322/1975 que aprova o Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER), e o decreto-lei 142/1977 que aprova o Regulamento Disciplinar da Marinha (RDM), que tratam da classificação de comportamento de seus respectivos militares. Volver

8 Aos magistrados, são asseguradas, conforme o art. 95 da CF/88, as seguintes garantias: "I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, §4º, 150, II, 153, III, e 153, §2º, I". Volver


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