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Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía

versão impressa ISSN 0121-215Xversão On-line ISSN 2256-5442

Cuad. Geogr. Rev. Colomb. Geogr.  n.19 Bogotá jan./dez. 2010

 

(In)segurança alimentar no Brasil: uma análise das políticas públicas dos governos de Lula

(In)seguridad alimentaria en el Brasil: un análisis de las políticas públicas de los gobiernos de Lula

Alimentary (in)security in Brazil: an analysis of the public policies of Lula governments

Antonio Lopes Ferreira Vinhas*
Pontifícia Universidade Católica, Brasil

*Actualmente cursa la maestría en geografía de la Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro (Brasil). Con posgrado en Análisis Ambiental y Gestión del Territorio de la ENCE/IBGE, y en Ciencias Ambientales de la FEUDUC.
Dirección postal: Rua Luiza Prata, 105, cep 21250-400, Parada de Lucas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Correo electrónico: antoniolvinhas@yahoo.com.br

Recibido: 22 de abril del 2010. Aceptado: 2 de agosto del 2010.
Artigo de reflexão sobre a insegurança alimentar no Brasil.


Resumo

O presente artigo tem por objetivo trazer uma discussão sobre a questão da (in)segurança alimentar no Brasil, com a perspectiva de duas hipóteses para justificar a concentração de renda e a concentração agrária. A partir dessas hipóteses se faz uma análise das principais políticas públicas na área de segurança alimentar na gestão dos dois mandatos do presidente Lula: o Programa Fome Zero e o Programa Bolsa Família.

Palavras chaves: Bolsa Família, Concentração Agrária, Concentração de renda, Fome Zero, Segurança Alimentar.


Resumen

Este artículo tiene por objetivo actualizar la discusión sobre la cuestión de la (in)seguridad alimentaria en el Brasil, bajo la perspectiva de dos hipótesis para justificar la concentración de renta y la concentración agraria. A partir de estas dos hipótesis se lleva a cabo un análisis de las principales políticas públicas en el área de la seguridad alimentaria durante los dos mandatos del presidente Lula: el programa Hambre Cero y el programa Bolsa Familia.

Palabras clave: Bolsa Familia, concentración agraria, concentración de renta, Hambre Cero, seguridad alimentaria.


Abstract

This article aims to update the discussion on the issue of alimentary (in)security in Brazil, from the perspective of two hypotheses to justify the concentration of income and the agrarian concentration. From these two hypotheses, an analysis of major public policies implemented during President Lula's two terms, and which regard alimentary security, is carried out: the welfare programs Zero Hunger and Bolsa Familia.

Key words: agrarian concentration, alimentary security, Bolsa Familia, concentration of income, Zero Hunger.


Introdução

Atualmente, as mais variadas definições de segurança alimentar chegam ao consenso que a mesma está ligada ao acesso da população aos alimentos. Desse modo, a falta de acesso produz a desnutrição e até mesmo a fome, que é considerada a pior consequência da insegurança alimentar, pois impede a consolidação do conceito de soberania alimentar do país. Assim, a abordagem teórica sobre (in) segurança alimentar é o ponto de partida conceitual, a qual pretende-se explorar, sob a ótica internacional, de como ocorre, quando começou e as principais hipóteses existentes para explicar essa questão.

No Brasil têm-se produzido diversas políticas para o combate à fome, que é uma forma de amenizar a questão estrutural da insegurança alimentar. A construção de políticas para a promoção de segurança alimentar requer uma análise, no ponto de vista geográfico, levando-se em consideração a histórica questão agrária no país e a concentração de renda, que são as duas hipóteses discutidas que contribuem para fome no cenário brasileiro.

Assim, o enfoque no planejamento dos projetos e programas (políticas públicas) que levem em conta o combate à fome - pois é evidente que ocorre na maior parte do território brasileiro - será o pilar da discussão na questão da insegurança alimentar, que não está ligado à produção de alimentos e, sim à oferta, que é de forma desigual.

Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar as principais políticas públicas no combate à insegurança alimentar no Brasil (o Programa Fome Zero e o Programa Bolsa Família) visando compreender da distribuição desse problema no país, bem como a efcácia dessas políticas públicas, possibilitando até mesmo entender o modelo de Gestão do Estado sob a responsabilidade nos governos Lula. No âmbito desta discussão, propõe-se com este trabalho analisar a questão da insegurança alimentar no Brasil, tomando por base as políticas públicas, levando em conta a dimensão continental e sua diversidade, sem desprezar a historicidade das hipóteses que são tendências do neoliberalismo (Santos e Silveira 2004), como forma de explicar as questões atuais ligadas a esta insegurança que caracteriza o país na contemporaneidade.

Segurança alimentar

O tema "segurança alimentar" tem sido muito debatido no cenário acadêmico e internacional, pela sua importância e complexidade, que podem ser medidas pelo nível das discussões realizadas, como observa-se em Ortiz (2003), Hilares (2003), Joseph (2003) e Food Agriculture Organization (FAO 1993). A maior preocupação demonstrada por diversas áreas de estudos científicos é com a oferta de alimentos e com o que se oferta.

Na literatura é muito comum encontrar trabalhos que trazem uma discussão sobre a fome, que é a pior manifestação da insegurança alimentar. O tema fome foi pioneiro para que hoje se chegasse a uma discussão sobre segurança alimentar, principalmente, em Castro (2005, 32) que afirma que "a fome é um fenômeno geograficamente universal, não havendo nenhum continente que escape à sua ação nefasta, e no Brasil os erros e defeitos são mais graves, onde encontramos estado de fome crônica numas regiões e em outras, sendo mais discretos e, tendo, assim a subnutrição".

Entretanto, trata-se ainda de estudos que valorizam a importância das informações geográficas para o conhecimento das necessidades alimentares no território brasileiro. Importância que deve ser ressaltada quando são citados os aspectos socioculturais, socioeconômicos e climato-botânicos pelo autor. Alguns neomalthusianos ainda insistem que a fome, hoje muito representada pela insegurança alimentar é um fenômeno causado pela superpopulação, teoria esta que é contrariada por Castro (2003, 45) ao relatar que a fome já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do pós-guerra. Para Ziegler (2002, 9), filho de Josué de Castro é um fenômeno social, pois é causada pelo homem.

Historicamente, a fome sempre foi um tema intrigante, proibido muitas vezes de se falar no período de ditadura, outras vezes seguida de explicações utópicas, porém sempre pouco esclarecida, mas com a certeza de que pode-se tornar uma arma poderosa auxiliando um país a dominar o outro, controlando o fornecimento de alimentos, como pode-se observar em Maluf (2000) e Adas (2004, 15) que explicam a formação do conceito de segurança alimentar,que teve início na Europa e estava atrelada à segurança nacional, pois vivia-se um contexto de guerra.

Segurança Alimentar no Brasil

A insegurança alimentar pode ocorrer por fatores variados, como pode-se observar quando Mattei (2006) realiza um estudo comparando o Brasil com a Venezuela e a Colômbia, destacando que no Brasil, o problema está intimamente ligado a fatores socioeconômicos, como a histórica concentração de renda, o baixo poder aquisitivo dos salários e os elevados níveis de desemprego. Estes indicadores são características que refetem a pobreza, que para Santos (2003, 15) é um fenômeno qualitativo que foi transformado num problema quantitativo e reduzido a dados numéricos. No Brasil é um tema que vem ganhando destaque no cenário acadêmico e nacional, seja com novas bibliografas, seminários e até mesmo conferências sob diversos enfoques analíticos no âmbito das diferentes áreas do conhecimento, Maluf (2000), Belik e Maluf (2000), Caume (2006) e Mattei (2006).

Historicamente, este foi um assunto pouco comentado no território nacional, principalmente na época da ditadura militar, com poucos autores ousando a comentar sobre o tema. Sobre a insegurança alimentar, sua pior manifestação é de forma coletiva, conforme pode ser observado de maneira quantitativa com a existência de diversas políticas públicas voltadas a gerir melhor esta situação. Sendo o Brasil um país de dimensão continental, com grandes variações socioeconômicas, a insegurança alimentar dá-se de forma diferenciada em todo o território nacional, fazendo-se necessário um estudo geográfico que leve em consideração a regionalização brasileira em seus aspectos socioeconômicos, socioculturais e físicos, para analisar a efcácia da apli-cação dessas políticas.

Para Castro (2005, 34): "a alimentação do brasileiro tem se revelado, à luz dos inquéritos sociais realizados, com qualidades nutritivas bem precárias, apresentando, nas diferentes regiões do país, padrões dietéticos mais ou menos incompletos e desarmônicos".

Em algumas regiões, os erros e defeitos são mais graves e num estado de fome crônica; em outras, são mais discretos e tem-se a subnutrição. Esse conceito formulado pelo autor só foi possível a partir do conhecimento regional do Brasil, tanto nos aspectos físicos, como nos humanos, deixando claro a evidência de que é preciso ter conhecimento geográfico para tratar-se de um assunto numa escala nacional.

Concentração de renda

Diversas leis têm sido elaboradas em todo o territó-rio nacional, visando a segurança alimentar da popu-lação, desde uma escala local até a escala nacional (Lei 10.836/2004, que dispõe sobre a criação do Programa Bolsa Família). As elaborações das leis comprovam existir insegurança alimentar no país e também o direito ao acesso aos alimentos. Segundo Maluf et al. (2000, 22) "a pobreza é determinante principal da insegurança alimentar, isto é, do não acesso regular a uma alimen-tação adequada, dando origem aos fenômenos da fome e da desnutrição".

Assim, as políticas e os programas de segurança alimentar devem ser capazes de apoiar estratégias de desenvolvimento de médio e longo prazo, ao mesmo tempo em que se implementam ações ou instrumentos de transferência de renda e de alimentos com na-tureza suplementar ou emergencial para fazer frente às carências imediatas geradas pela pobreza. De acordo com Mattei (2006), a insegurança alimentar no Brasil é diferente de outros países latino-americanos porque está ligada ao baixo poder aquisitivo dos salários, aos elevados níveis de desemprego e ao histórico processo de concentração de renda da lógica neoliberal.

O acesso diário à alimentação, no caso do Brasil, depende do poder aquisitivo, ou seja, depende das condições para comprar o alimento (Hofmann 1994). Entretanto, uma grande parte da população brasileira não tem acesso aos alimentos necessários por viverem com baixo poder aquisitivo, caracterizando uma situação de insegurança alimentar. Nesse sentido, a ação do Estado é de fundamental importância, pois este deve ter a preocupação de oferecer oportunidades iguais à sociedade (Claval 1979).

Contudo, as palavras de Castro (2005) citadas anteriormente, de que a fome no Brasil ocorre de forma diferenciada nos estados brasileiros, direciona a discussão para a autonomia das unidades da federação, que para Castro (2005) não são reconhecidas de fato. Assim, o centralismo do Estado brasileiro torna viável a prática da gestão pública que reconhece o direito, mas que não dá oportunidades que de fato visem o bem comum.

Concentração Fundiária

Na atual fase neoliberal que encontra-se a agricultura brasileira, os efeitos são devastadores para a agricultura familiar, que conforme Delgado (2005, 65), "verifica-se abandonada de atividades, desmobilização de estabelecimentos ou na conversão de atividades de subsistência". Dessa forma, nesta conjuntura da realidade agrícola brasileira -que cada vez mais valoriza o aumento da produção, visando o mercado externo e assim, consequentemente, a concentração de terras- os problemas sociais no campo, que já vêm de uma herança da época de ditadura militar, acentuam-se cada vez mais, caminhando para agravamentos específicos de difíceis soluções políticas. Sobre a concentração de terras sabe-se que suas origens são desde o passado colonial com as capitanias hereditárias e o período imperial, com a Lei de Terras (1850), difcultando a compra de propriedades por ex-escravos e imigrantes estran-geiros. Atualmente como pode-se observar no Censo Agropecuário do IBGE (2007), permanece ainda a elevada concentração de terras, com os latifúndios ocupando 44% do campo em 2006, sendo pouco diferente de 1995, que estava em 45,1% do campo.

Sob o enfoque na questão da reforma agrária, esta pode ser considerada uma das mais expressivas causas dos questionamentos pelos movimentos sociais, que supostamente seria uma possível forma de amenizar os conflitos sociais no campo, se é implementada de forma eficaz. Porém, cabe ressaltar que uma falta de política agrícola bem articulada para a situação do camponês e da agricultura familiar, geraram graves consequências, como a urbanização precoce que o país sofreu nos últimos anos e a "expropriação do campesinato", a qual é um fenômeno independente da modernização da agricultura, pois já existia antes desta, conforme afirma Costa e Santos (1998, 110-111).

No Brasil o movimento pela reforma agrária é recente se comparado com a luta pela terra, ganhando força na década de cinquenta, que cresceu paralelo às Ligas camponesas, as formas de organizações e o sindicalismo rural. É nesta época que acentua-se as lutas em escala nacional com os camponeses enfrentando os latifúndios, apoiados pela Igreja Católica e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que tinham interesses políticos, ocorrendo de forma específica em cada estado, conforme Martins (1994, 32), com a valorização das terras pela transbrasiliana em Goiás; no Paraná por questões irregulares de terras e no Maranhão com o processo de grilagem. Isso devia-se a uma falta de legislação específica para as questões do campo, pois o trabalhador rural sempre esteve à margem do poder, sendo visto como obstáculo. Segundo afirma Costa e Santos (1998, 116) "o primeiro passo foi o Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, seguido pelo Estatuto da Terra, em 1964" e "a organização do sindicalismo rural auxiliado pela Igreja Católica", para Delgado (2005, 54). O início da elaboração de legislações, visando o avanço da agricultura também deu início a crises no país, que levou com o golpe, a derrubada do presidente João Goulart em 1964, após assinar o decreto de número 53.700, que determinava que as terras próximas à faixa de dez quilômetros ao lado de ferrovias e rodovias federais, que tivessem algum tipo de investimento do governo, se-riam de interesse da sociedade; contrariando interesses políticos locais em favor de uma possível reforma agrária que não chegou a efetivar-se, encerrando-se o debate político. Este golpe foi um retrocesso para o Brasil, pois o período militar aumentou as desigualdades sociais no campo e abafou os movimentos camponeses, como ocorreu no Rio Grande do Sul.

A abertura política e a modernização da agricultura fzeram com que o debate sobre a reforma agrária re-tornasse ao cenário político. Paralelo à modernização da agricultura desenvolveu-se com outras políticas, como a construção de usinas hidrelétricas, além de rodovias e açudes públicos, que segundo Costa e Santos (1998, 123), "beneficiou os latifundiários tradicionais, com a valorização das terras próximas, levando à especulação fundiária". Dessa forma, o processo de conflito nas áreas rurais desenvolveu-se mais ainda, pois os pequenos proprietários viram-se prejudicados frente à disparidade que se acentuava com a chegada da infraestrutura benéfica aos latifúndios. Além disso, aumentou a miséria e a concentração de riquezas, expulsou trabalhadores, o desemprego no campo, fazendo surgir a figura do boia-fria, que agora faz parte das novas lutas no campo. Surge a organização de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), que na década de noventa já estava territorializado em todo o país, consolidando-se como uma grande força política e dando origem a outros mo-vimentos sociais.

Programa Bolsa Família

O Programa Bolsa família criado em 2003 e oficializado pela Lei n° 10.836/ 04, surgiu da codificação de programas anteriores ao governo Lula, como o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale Gás e Cartão Alimentação. Em 2006 o governo aumentou o benefício para 11,1 milhões de famílias, triplicando os beneficiários em relação a 2003. Dessa forma, os investimentos saltaram de 3,4 bilhões para 8,3 bilhões em 2006 (Mendonça 2009).

Entre as políticas públicas que combatem a insegurança alimentar o Bolsa Família é considerado pelos críticos o mais efciente, pelo viés da distribuição de renda. Para isso, no final do primeiro mandato que ainda contava com a ajuda da CPMF (imposto sobre circulação de cheques) criada no governo Fernando Henrique, porém mantida até então já que era o principal pilar de apoio do programa, para alguns é assistencialista (com viéis eleitoreiro) e para outros é uma política populista.

O volumoso investimento nesse programa deixa caracterizado o investimento social que no final do primeiro mandato garantiu o segundo. O Estado ganha o aspecto de gestão social em 2006, como facilitador (Johnston 1982), através da transferência de renda, tido como o maior do mundo (Mendonça 2009).

O Programa Bolsa Família também deixa caracterizado o Estado como protetor (Johnston 1982) que, embora não alcance a todos os brasileiros em condições de miséria, visa o bem-estar coletivo. Tal fato pode ser observado pelo reconhecimento da própria população beneficiada, conforme às figuras 1 e 2.

A figura 1 mostra a votação no segundo turno de Lula pelo Brasil em 2002, antes de iniciar o primeiro mandato. Em 2006, na figura 1 (mapa 2006), a eleição no segundo turno do segundo mandato expressa ma-ciça votação nas regiões Norte e Nordeste, principalmente. Entretanto, apesar de mosaicos diferentes nos mapas 1 e 2, o percentual de votação em 2002, foi prati-camente o mesmo em 2006 (60,8% e 61,3% respectivamente). Essas mudanças nas bases eleitorais, revelando uma nova distribuição espacial de votos, para Soares e Terron (2008) foi determinante na eleição de 2006 a participação do Programa Bolsa Família na renda local dos municípios, figura 2 (mapa 3).

A apresentação das figuras anteriores não tem a intencionalidade de destacar o uso do Programa Bolsa Família como fator assistencialista de reeleição do presidente Lula, mas sim de trazer à discussão o papel do Estado como Gestor Social, que tem o reconhecimento da sociedade, mesmo através das urnas eleitorais. Esse modelo de Gestão Social, mais caracterizado no segundo mandato, mesmo sem o CPMF (principal imposto que contribuía para o programa) reafirma o papel do Estado de construir formas para gerir as diferenças no território. No âmbito dessa questão, faz-se necessária a presença do Estado no combate à fome, promovendo segurança alimentar, principalmente nos "bolsões de pobreza" (Nordeste) que deve ser constante, (Hofmann 1994). Assim, tem sentido a interação Estado-sociedade, pois está em discussão as partes envolvidas, e não interesses de classes específicas (Tenório e Saraiva 2007).

Programa Fome Zero

O Programa Fome Zero, tido como principal política pública no início do primeiro mandato do governo Lula, foi elaborado como proposta de campanha presidencial em 2000, pela ONG Instituto da Cidadania, presidida pelo então candidato à presidência da república. O projeto que contou com a ajuda de especialistas, retomou a discussão da segurança alimentar no Brasil. O Programa deixava clara a preocupação com a erradicação da fome e da exclusão social.

Quando implementado, estava prevista a ação de todos os ministérios. Assim, o programa previa não somente a distribuição de cestas básicas de forma emergencial, mas também a construção de restaurantes populares, a distribuição de cartão alimentação, construções de banco de alimentação, cisternas e restaurantes populares. Sem dúvida, um plano audacioso, porém com muitas difculdades para ser colocado em prática.

Entre os entraves que contribuíram para o insuces-so do programa está a falta de logística para que os alimentos chegassem ao seu destino em tempo real, já que a esgotada malha rodoviária contribuía para aumentar o problema porque sofria de falta de investimentos em sua expansão para articular as redes estaduais e muni-cipais (Egler 2008). Além disso, a falta de articulação entre as esferas dos governos (federal, estadual e municipal), se unia à falta de organização da sociedade civil a ser atendida, que nos municípios com extrema pobreza, de forma geral possuíam baixa escolaridade. Outras críticas ao programa, como por exemplo, o fato de ser caracterizado de assistencialista, foi visto pelos estudiosos sobre o tema da pobreza com desconfança (Mendonça 2009). Oliveira (2007), ironicamente, adjetiva a política pública Fome Zero como "famigerada", considerando-a como mais um plano excepcional e colocando-a na mesma lista da Transamazônica e do Polonoroeste, que foram experiências desastrosas de governos de décadas passadas. Para Yasbek (2004) o programa não rompe com a lógica neoliberal do Estado monetarista de explorar as classes sociais, no sentido que presta assistência, mas não cria ferramentas para trabalhar as desigualdades sociais.

No entanto, se por um lado há críticas no sentido do programa ser assistencialista, por outro lado (Belik e Graziano 2003) fca claro que uma política pública deve também ter a necessidade de resolução de problemas emergenciais, pois o combate à fome exige medidas de longo e curto prazo. Já para Zimmermann (2009), o Programa foi tido como um dos melhores do mundo, pois na teoria, rompia com a ótica neoliberal, fazendo com que o Estado cumprisse com as suas atribuições institucionais e constitucionais. Porém, reconhece a necessidade de um melhor monitoramento do programa, pois muitos brasileiros que vivem em situações de fome e pobreza, não têm sequer identidade para viabi-lizar um cadastro.

Contudo, o Programa Fome Zero por não ter as expectativas totalmente alcançadas, viabilizou o sucesso do Programa Bolsa Família, que através da percepção do governo da ineficácia do primeiro programa passou a investir maciçamente no segundo, principalmente a partir de 2004 com a Lei de Renda Básica e Cidadania. Dessa forma, o governo Lula não perderia o aspecto de investir nas bases sociais, que sempre foi uma crítica do PT quando não era governo.

Considerações Finais

A segurança alimentar está claramente explícita no cenário mundial como "acesso" à alimentação. A principal preocupação é com relação à oferta de alimentos, embora haja críticas também no que diz respeito à produção e a qualidade dos alimentos ofertados.

A fome existente no Brasil é consequência da inexistência da preocupação do Estado em exercer uma Gestão Social, sobretudo nos governos militares quando esta situação foi agravada pelas políticas assistencialistas ineficazes dos governos, atendendo a lógica neoliberal do mercado internacional. Diversas vezes denunciada por autores como Josué de Castro, a fome no Brasil territorializou-se, assumindo características divergentes no cenário nacional. Entretanto, de maneira geral o consenso é de que está intimamente relacionada à pobreza, gerada pela falta de poder aquisitivo.

Dessa forma, as duas hipóteses levantadas no início da discussão de que o que mais contribuiu e contribui para a insegurança alimentar no Brasil foi, e é a concentração de renda e a fundiária, são confrmadas, inclusive durante a análise das duas políticas públicas, o Programa Fome Zero e o Programa Bolsa Família.

A concentração de renda que historicamente aumentou, tirando o poder aquisitivo do trabalhador é uma problemática que deve ser enfrentada com medidas a curto e a longo prazo. É certo que o problema é histórico e quase sempre foi tratado com descaso, o que levou Castro (1999) a relacioná-lo como uma problemática que impede inclusive o exercício da cidadania. As representações devem atender ao cidadão simultaneamente no lugar habitado por ele, pois este encontra-se muitas vezes territorializado, sem ao menos, ter a noção de seus direitos e deveres enquanto cidadão. É nesse sentido, que Velloso (1992) ressalta a importância das instituições (Congresso Nacional, Judiciário, Igreja, Universidade, entre outros) em relação aos seus papéis, pois quando fortalecidas e com seus papéis construídos e definidos, colaboram eficazmente em encontrar soluções nas negociações de conflitos sociais. A indefinição dos papéis e a falta de contribuição das instituições em relação aos problemas sociais, leva a um retrocesso e relembra o vivido num período recente, muito conhecido como "década perdida". No âmbito dessa questão, o maior foco são os direitos do cidadão, que para Hofmann (1994) devem ser analisados para entender os motivos pelos quais passa fome.

Em muitos municípios do interior do Nordeste, o Programa Bolsa Família, que é o de maior efcácia na questão de transferência de renda, dinamiza a econo-mia desses lugares, criando maiores oportunidades, já que oferecem poder de compra à sociedade. No entanto, faz-se necessário refetir nas palavras de Claval (1979) de que a divisão de renda é proporcionada pela des-centralização de riquezas. Dessa forma, descentralizar riquezas não é a mesma coisa que transferir riquezas, pois a mesma pode acontecer mantendo a centralização da renda, como visto anteriormente através dos dados mostrados. Todavia, quanto maior a concentração de renda, mais exposto estará o país à situação de insegurança alimentar.

Assim como a concentração de renda, a fundiária ocorreu em processo histórico. A principal política para desconcentrar terras, conhecida como reforma agrária não ocorrerá em oito anos de governo, dependerá da vontade política e seu processo também será histórico. Contudo sabe-se que a concentração fundiária contribui para a insegurança alimentar, pois atende à lógica neoliberal de produção para aumentar o superávit primário. Segundo Pessanha e Wilkinson (2005, 7): "a oferta de alimentos pode ser alcançada por meios de instrumentos de políticas agrícolas..." Neste contexto torna-se necessário uma análise também das políticas públicas na questão agrária, onde são relevantes a abordagem da questão da reforma agrária no Brasil e a agricultura familiar, pois são fatores atualmente muito discutidos, que podem amenizar os efeitos causados por essa concentração. Porém, vale ressaltar que aumentar a oferta não quer dizer aumentar a produção, pois Porto-Gonçalves (2004) destaca que os resultados da revolução verde na Índia não reduziram os problemas de fome dos indianos.

No Brasil as políticas atuais de combate à fome têm crescido muito. Das interações entre instituições governamentais e não governamentais, Estado e sociedade civil têm surgido propostas para o combate à insegurança alimentar em programas como os citados anteriormente, em leis como a 11.346, que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar, funcionando ambas ações como resultados dessa interação. É fato que a questão dos planejamentos no Brasil ainda devem ser revistos, tanto em sua fase de elaboração, como de implementação, pois o planejamento é um processo, que deve considerar o antes (diagnóstico) e o depois (uma visão de futuro, o que se deseja alcançar). Sem esses cuidados, cai-se no vazio de planos das décadas anteriores, que na prática deixa-ram apenas a desejar. O primeiro mandato do governo Lula, talvez impulsionado pela euforia de investir pesado nas necessidades sociais, cometeu alguns deslizes como o Programa Fome Zero, no entanto, já no final do primeiro para o segundo mandato, esses deslizes foram de certa forma corrigidos e ações mais cuidadosas funcionaram com o Programa Bolsa Família. É evidente que há muito a se fazer, principalmente para desconcentrar a renda e as terras. Contudo, o passo para uma Gestão Social foi dado para que não se volte à década perdida.


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