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Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía

versión impresa ISSN 0121-215Xversión On-line ISSN 2256-5442

Cuad. Geogr. Rev. Colomb. Geogr. vol.24 no.2 Bogotá jul./dic. 2015

https://doi.org/10.15446/rcdg.v24n2.50220 

DOI: http://dx.doi.org/10.15446/rcdg.v24n2.50220

Aspectos estruturais da construção social do risco ambiental em territórios de classes populares: o caso de São João del-Rei (Minas Gerais, Brasil)

Aspectos estructurales de la construcción social del riesgo ambiental en territorios de clases populares: el caso de São João del Rei (Minas Gerais, Brasil)

Structural Aspects of the Social Construction of Environmental Risk in Working-Class Territories: The Case of São João del Rei (Minas Gerais, Brazil)

Lucas Henrique Pinto*
Universida Nacional Autónoma de México (UNAM), México D.F. - México
Eder Jurandir Carneiro**
Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei - Brasil

* É licenciado em filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) (2008) e Doutor em Ciências Sociais e Humanas pela Universidad Nacional de Quilmes (UNQ) (2013) da Argentina, foi bolsista doutoral do Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas (CONICET), atualmente é membro do Centro de Estudos da Argentina Rural (CEAR-UNQ), onde desenvolve pesquisas sobre conflitos ambientais no Brasil e Argentina y becario del programa de becas posdoctorales de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Tem artigos científicos publicados em revistas internacionais e capítulos de livros, além da participação como professor convidado em cursos de mestrado e doutorado no Brasil e Espanha. Endereço postal: Torre II de Humanidades, 4 Piso Circuito Interior. Ciudad Universitaria, Delegación Coyoacán. Universidad Nacional Autónoma de México, México 04510 D.F. Correio eletrônico: lucashpinto@unam.mx
**Possui doutorado em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (2003). Atualmente é professor Associado da Universidade Federal de São João del-Rei. Trabalha na área de Sociologia dos Conflitos Ambientais, mais especificamente sobre as desigualdades e conflitos envolvidos nos processos de construção e apropriação de territórios urbanos. No plano teórico, este trabalho assenta-se nos conceitos de justiça ambiental, conflitos ambientais e território, procurando realizar a crítica das concepções hegemônicas sobre a chamada questão ambiental. é coordenador do Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental (Ninja) da Universidade Federal de São João del-Rei (grupo de pesquisa), que realiza atividades de pesquisa e extensão orientadas para a assessoria a movimentos populares engajados em conflitos ambientais urbanos. Endereço postal: Rua Dora Bittar Brighenti, 86 - Bairro Solar da Serra São João del-Rei - Minas Gerais - Brasil CEP: 36302-620. Correio eletrônico: eder@ufsj.edu.br

Artigo de pesquisa sobre o "risco ambiental" em São João del-Rei, Minas Gerais, que indica a operação de mecanismos produtores de desigualdades ambientais que obrigam as camadas de baixa renda a habitar territórios marcados pela degradação ambiental e pela carência de serviços de infraestrutura urbana.

Como citar este artículo: Pinto, Lucas Henrique y Eder Jurandir Carneiro. 2015. "Aspectos estructurais da construção social do risco ambiental em territórios de classes populares: o caso de São João del-Rei (Minas Gerais, Brasil)". Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía 24 (2): 173-188. DOI: 10.15446/rcdg.v24n2.50220.

Recibido: 18 de jinio de 2014. Aceptado: 12 de septiembre 2014.


Resumo

O presente trabalho resulta de uma pesquisa sobre o "risco ambiental" em São João del-Rei, Minas Gerais, que indica a operação de mecanismos produtores de desigualdades ambientais que obrigam as camadas de baixa renda a habitar territórios marcados pela degradação ambiental e pela carência de serviços de infraestrutura urbana. Observando a construção de alguns bairros populares encontraram-se situações chamadas de "risco ambiental", identificadas através de arquivos e processos do ministério público e entrevistas às comunidades afetadas, entendendo-se como de risco ambiental aquela situação que assim tenha sido nomeada por qualquer ator social envolvido e levada ao conhecimento público. Analisaram-se os diferentes discursos e percepções dos técnicos em conflito e a percepção que a população tem das mesmas situações, das causas e possíveis soluções.

Palavras-chave: desigualdades ambientais, justiça ambiental, Minas Gerais, risco ambiental, São João del-Rei.


Resumen

Este trabajo es el resultado de una investigación sobre el "riesgo ambiental", en São João del Rei, Minas Gerais, que muestra el funcionamiento de mecanismos productores de desigualdades ambientales que obligan a la población de bajos ingresos a habitar en territorios marcados por la degradación ambiental y la falta de servicios de infraestructura urbana. Al observar la construcción de algunos barrios populares se encontraron situaciones de "riesgo ambiental", identificadas a través de la revisión de archivos, procesos en el ministerio público y entrevistas con las comunidades afectadas, entendiendo como riesgo ambiental aquella situación así denominada por cualquier actor social involucrado y llevada al conocimiento público. Se analizaron los diferentes discursos y percepciones de los técnicos y la percepción que la población tiene de las mismas situaciones, las causas y posibles soluciones.

Palabras clave: desigualdades ambientales, justicia ambiental, Minas Gerais, riesgo ambiental, São João del-Rei.


Abstract

This work is the result of an investigation on "environmental risk" in São João del Rei, Minas Gerais, that demonstrated the functioning of mechanisms that generate environmental inequalities. These inequalities force low-income populations to live in territories marked by environmental degradation and a lack of urban infrastructure services. Observations regarding the construction of certain working-class neighborhoods revealed situations of "environmental risk", which were identified through reviews of records, examinations of public ministry proceedings, and interviews with individuals in affected communities. Environmental risk was regarded as any situation identified as risky by a social actor and later publicized. Various statements and perceptions of technicians were analyzed, and the perceptions held by the populace regarding the examined situations, their causes and their possible solutions were assessed.

Keywords: environmental inequalities, environmental justice, Minas Gerais, environmental risk, São João del Rei.


Introdução

O presente trabalho resulta de uma pesquisa desenvolvida nos marcos do Programa Institucional de Iniciação Científica da Universidade Federal de São João del-Rei (PIIC-UFSJ) e do Programa Institucional de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de Minas Gerais (PIBIC-FAPEMIG), no âmbito do Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental -doravante, Ninja- do Departamento de Ciências Sociais da UFSJ.

A preocupação com a questão do "risco ambiental" em São João del-Rei emergiu dos resultados até aqui obtidos com as pesquisas realizadas pelo Ninja na cidade, desde 2004, que indicam, reiteradamente, a operação de mecanismos produtores de fortes desigualdades ambientais que, sistematicamente, colocam as camadas de baixa renda na condição de ter que habitar territórios marcados pela degradação ambiental e pela carência de serviços e equipamentos básicos de infraestrutura urbana. Ao investigar o processo de construção de alguns bairros populares da cidade, encontraram-se vários casos os quais o poder público chama de situações de "risco ambiental", tais como habitações que se encontravam ameaçadas de desabamento pelo avanço de deslizamento de encosta, por inundações de cursos d'água, por solos contaminados, pela presença de esgotos a céu aberto etc.

Com esta pesquisa, procurou-se identificar e fichar os principais casos de risco ambiental na cidade, entendendo- se como "situação de risco ambiental" aquela que assim tenha sido nomeada por qualquer ator social envolvido e por ele levada ao conhecimento público, seja por meio de processos judiciais, através de denúncias, reportagens em meios de comunicação escritos, falados ou mesmo pela sua vocalização pública. Analisam-se os diferentes discursos e percepções dos técnicos e gestores em conflito, a percepção que a população afetada tem das mesmas situações, de suas causas e possíveis soluções.

Criamos também um mapa temático, através de fichamentos dos casos mais relevantes sobre a localização das principais áreas de risco ambiental de São João del-Rei e dos atores e discursos nelas presentes, instrumento que poderá ser apropriado pelos órgãos estatais no direcionamento de políticas públicas para enfrentar essas situações, considerando a pluralidade de pontos de vista nelas implicados. Essas fichas foram catalogadas, principalmente a partir de arquivos de jornais da cidade, processos arquivados no ministério público estadual e entrevistas realizadas durante o trabalho de campo junto às comunidades afetadas.

Neste artigo, será dada atenção às situações de risco relacionadas com a falta ou com a carência de equipamentos e serviços de saneamento básico, com ênfase nas redes de captação e distribuição de água potável e de esgoto em bairros da periferia urbana da cidade, outro artigo com os demais resultados da mesma pesquisa, sobre outros fatores geradores de risco ambiental, foi elaborado por Luiz Felipe Candido.1

Revisão de literatura e discussões teórico-empíricas

A presente pesquisa insere-se no acirrado debate sobre a questão do risco ambiental que, desde meados da década de 1960, com a antropóloga britânica Mary Douglas (teoria cultural do risco), vem sendo discutida pelos pesquisadores na área de sociologia ambiental, tendo se tornado uma discussão central dessa disciplina, principalmente a partir das contribuições de Ulrich Beck, e Anthony Giddens, formuladores da "teoria social do risco" (Beck, Giddens e Lass 1997). Trata-se de uma teoria "cognitivista" do risco, para a qual "a sociedade é destrutível por suas tecnologias e confronta-se reflexivamente com as consequências indesejáveis de sua própria dinâmica produtiva" (Acselrad e Mello 2002, 294; Beck, Giddens e Lass 1997). O risco torna-se, para esses autores, central na discussão da sociedade moderna, em substituição à precedente noção marxista de sociedade de classes. A sociedade seria dividida pela distribuição de riscos, na etapa atual indicada por eles como da "modernização reflexiva":

[…] modernização reflexiva significa a possibilidade de uma (auto) destruição criativa para toda uma era, aquela da sociedade industrial. O 'sujeito' desta destruição criativa não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental […]. Este novo estágio, em que o progresso pode se transformar em autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro e o modifica é o que eu chamo de etapa da modernização reflexiva […]. (Beck, Giddens e Lass 1997, 12)

Como comenta Acselrad e Mello:

Segundo Beck, a chamada sociedade do risco teria surgido no momento em que os riscos se desconectam dos fundamentos da calculabilidade do seguro, de acordo com ele, elementos típicos das sociedades industriais do século XIX. Nesta perspectiva, a crise ecológica contemporânea decorreria do fracasso das instituições responsáveis pelo controle e pela segurança, que sancionam, na pratica, a normalização legal dos riscos que são incontroláveis. (Acselrad e Mello 2002, 50)

Entretanto, há vários questionamentos a essa noção, dentre os quais a de que as críticas formuladas por Beck dirigem-se contra a "racionalidade técnico-científica", e não contra o poder institucional do capital, já que ele considera que é no modo cientifico de pensar, e não na lógica capitalista que o mobiliza que se encontra o foco do risco (Acselrad e Mello 2003, 5).

à perspectiva de Beck contrapõe-se um "construcionismo estrutural", já que concebe as chamadas situações de risco como construções sociais processuais, isto é, como resultado das lutas objetivas pela construção e apropriação dos territórios e, simultaneamente, como produto de disputas simbólicas travadas, em condições de assimetria de poder, pelos atores envolvidos. Nessas disputas, está em causa a afirmação social da classificação e significação dessas situações.2

A construção social3 desta questão apresenta, todavia, discursos distintos, quando não antagônicos, sobre um mesmo fato empírico. De um lado, agentes e técnicos do poder público -tais como funcionários da Defesa Civil, do Corpo de Bombeiros, das Secretarias Municipais de Saúde e do Meio Ambiente etc.- assumem uma visão técnica, lançando mão de determinados indicadores (por exemplo, a composição físico-química dos solos, o grau de declividade dos terrenos etc.), para classificar uma situação como de "risco" e calcular as probabilidades de que certos eventos indesejáveis venham a ocorrer (deslizamentos, desmoronamentos, inundações, surtos de doenças relacionadas à precariedade das condições de saneamento). Essa visão caracteriza-se basicamente como a consideração do risco como:

[…] um evento adverso, uma atividade, um atributo físico com determinadas probabilidades objetivas de provocar danos, e que pode ser estimado mediante cálculos quantitativos de níveis de aceitabilidade que permitem estabelecer [previsões], através de diversos métodos (predições estatísticas, estimações probabilísticas do risco, comparações de risco/beneficio, analises psicométricas). (Guivant 1998, 4)

Já a população que sofre essas chamadas "situações de risco" vê esta condição a partir de outros pressupostos norteadores que não os tecnicamente construídos, não tendo, por conseguinte, a mesma interpretação de estados e/ou situações de risco que os técnicos têm. Nessa perspectiva, a percepção da população é subvalorizada, desconsiderada:

Leigos tendem a ser identificados como receptores passivos de estímulos independentes, percebendo os riscos de forma não científica, pobremente informada e irracional. Estima-se que os riscos percebidos pelos leigos não necessariamente correspondem aos riscos reais, analisados e calculados pela ciência. (Guivant 1998, 4)

Por isso, acima de qualquer suposta objetividade da situação de risco, a percepção que as pessoas, atores sociais envolvidos (técnicos, gestores e população afetada), têm do evento parte de um processo sociocultural que, vivenciado por distintos sujeitos, produzirá diferentes hierarquizações dos riscos prioritários (Guivant 1998, 6). Além disso, tais percepções atribuem às origens das situações entendidas como de risco a distintas causas. Assim, é comum ouvir técnicos e gestores do risco culparem as "condições naturais adversas", a "falta de critério" de quem "resolveu" morar em determinado local e a "falta de educação ambiental", enquanto, para a população afetada, as situações de risco originam-se, na grande maioria dos casos, da falta de infraestrutura básica dos loteamentos por ela habitados, da omissão da prefeitura na correção de tais irregularidades e da ação de indústrias que, mesmo operando, às vezes, dentro do que determina as leis ambientais, causam danos e situações consideradas de "risco" para as populações circunvizinhas. Fatos que se tornam patentes na notícia de capa do jornal Gazeta de São João del-Rei, de 1° de fevereiro de 2003, intitulada "População reclama de descaso - Caieira e Águas Férreas reivindicam mais atenção", que diz:

Além do cheiro de amônia, que é muito forte, existe um outro cheiro muito forte, que não podemos identificar', denuncia a moradora Vânia Lúcia Sousa, do bairro Colônia do Giarola. Maria Trindade, também moradora do bairro Colônia do Giarola há 12 anos, serviçal da escola da comunidade, relata que 'o cheiro oriundo da indústria causa irritação nos olhos e dores de cabeça a alunos, professores e funcionários'. O chefe de relações industriais da CIF (Companhia Industrial Fluminense), Luiz Ricardo Pena, disse que as reclamações dos moradores já foram apuradas e que a CIF 'é uma empresa e toda empresa emite cheiro, mas nós temos uma preocupação muito grande com o meio ambiente', e o mesmo conclui que sua empresa está totalmente de acordo com as normas da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM), que fez uma fiscalização na semana anterior na indústria e 'nenhuma irregularidade foi encontrada.4

Neste exemplo, é possível observar que a população, por ter um discurso leigo em relação às legislações ambientais que regem o que é ou não uma situação de risco à sua saúde, perde parte da legitimidade de seus argumentos, mesmo sofrendo concretamente os danos relatados, frente a um discurso legalista e tecnicista do funcionário da empresa. Logo, existe um negacionismo por parte das empresas e empreendimentos envolvidos contando com a conivência do poder público que tenta invisibilizar certas situações de riscos ambientais denunciadas pelas populações afetadas:

Os responsáveis pela produção de riscos evitam tornar públicos os perigos que criam. Com a desinformação, torna-se incerta a percepção da relação de causalidades entre ação dos empreendimentos sobre o meio e os riscos produzidos para as populações. (Acselrad, Mello e Bezzerra 2009, 81)

O presente trabalho tem como objetivo, portanto, tentar trazer a tona esses casos de risco ambiental, e principalmente como se dá sua construção social relacionada diretamente à precária condição socioeconômica dos principais vitimados por situações de risco ambiental.

Metodologia

Para realização do trabalho, desenvolveram-se as seguintes atividades: 1) levantamento e discussão de bibliografia sobre "riscos ambientais" urbanos, para refinamento do quadro conceitual a ser utilizado nas análises; 2) levantamento em fontes documentais (arquivos de órgãos públicos municipais ligados à gestão do "risco ambiental", jornais locais etc.); 3) observações em bairros de populações de baixa renda, para identificar as seguintes situações de "risco ambiental": a) áreas sujeitas a inundações; b) áreas afetadas por erosões/voçorocas; c) áreas sujeitas a desmoronamento de encostas; d) áreas sujeitas à contaminação de solos e lençóis freáticos por esgotos; 4) levantamento e análise de documentos, relatórios, material de divulgação e informação etc., produzidos pelos órgãos municipais envolvidos na gestão do "risco ambiental" em São João del-Rei, buscando evidenciar suas percepções sobre as situações de "risco" e sobre as populações nelas implicadas; 5) análise de Survey socioeconômico aplicado em famílias de dois bairros atingidos pelas situações de "risco ambiental", para caracterização da situação socioambiental das populações envolvidas e para reconstrução do processo de ocupação habitacional dos territórios em questão, que procurou analisar: a caracterização socioeconômica da população (renda, escolaridade, descrição das condições do imóvel, renda per capita, ocupação profissional, taxa de desemprego); informações demográficas (origem das famílias, dos pais, tempo de moradia, idade, etnia); informações sobre situação socioambiental (lixo, esgoto etc.); percepções da população (avaliações); inserção social e mobilização da população dos bairros estudados. Formou-se assim um banco de dados inédito dessas comunidades.

Deste modo, escolheu-se como ferramenta analítica o survey, que, constitui-se numa técnica de produção de dados para a análise quantitativa em ciências sociais (por isso, o termo questionário não pode ser tomado como sinônimo de survey, já que questionários também se prestam à coleta de informações qualitativas). O survey consiste na aplicação de questionários (de forma presencial ou por meio de correio eletrônico ou convencional) em indivíduos cujo conjunto perfaz uma amostra de um universo maior. Subjaz ao survey o princípio teórico de que indivíduos localizados em posições sociais semelhantes (determinadas pelo perfil da distribuição diferencial de certas "propriedades", como renda, sexo, escolaridade etc.) tendem a compartilhar percepções e avaliações sobre o mundo social. é esse princípio que permite inferir, para uma população-universo, correlações entre posições sociais e opiniões encontradas numa amostra dessa população. Portanto, em tese, quanto mais extensa for a amostra, maior a confiabilidade com que se podem realizar essas inferências. Contudo, na prática, a ampliação da amostra implica o aumento da complexidade do processo de aplicação do survey, assim como dos gastos de recursos financeiros, de força de trabalho e de tempo etc. Dessa forma, o tamanho, a determinação do tamanho da amostra a ser pesquisada depende, também, de considerações práticas, relativas à operacionalização do trabalho.

Para a presente pesquisa, foi possível visitar quase todos os domicílios, ou seja, cerca de 120 domicílios dos bairros Águas Gerais e de 90 no bairro Gameleiras. Responderam ao questionário os chefes de família de 157 (cerca de 75%) dos domicílios. As 53 casas em que não foi possível aplicar o survey dividem-se entre as que se encontravam desabitadas (45) e aquelas cujos chefes de família não quiseram responder às questões (8). A escolha dos dois bairros para a aplicação do survey resultou do contato dos pesquisadores com a área, durante os anos de 2006 e 2007, no âmbito das atividades do programa de extensão "Cidadania e justiça ambiental: ações de mobilização comunitária em São João del-Rei-MG", desenvolvido pelo Ninja da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) (Carneiro 2007). Esse contato, que envolveu a participação dos autores em atividades de mobilização comunitária promovidas pelos moradores, permitiu a constatação empírica de situações generalizadas de riscos de contaminação originados pelas precárias condições de saneamento básico ali prevalecentes.

Dados os objetivos da pesquisa, a consideração da localização espacial dos indivíduos tornou-se essencial para a realização de análises quantitativas que possibilitassem o estabelecimento de correlações entre as diferentes percepções e concepções sobre os riscos de contaminação e a "situação" dos indivíduos. Várias pesquisas têm apontado, de forma consistente, forte correlação entre, de um lado, indicadores de renda e escolaridade e, de outro, a proximidade do local de moradia em relação a situações de risco ou degradação ambiental (Acselrad, Mello e Bezerra 2009).

Por fim, a utilização do survey na pesquisa aconteceu de força associada e complementar a técnicas de pesquisa qualitativas, como, por exemplo, as entrevistas semiestruturadas com chefes de família, evitando-se o vezo do "monoteísmo" metodológico criticado por Pierre Bourdieu (Bourdieu 1989, 25).

As informações coletadas serviram para: a) a análise das percepções e avaliações dos moradores sobre a situação de "risco" e sobre as concepções e ações dos agentes de órgãos públicos municipais implicados na gestão do "risco ambiental"; b) a identificação, nas trajetórias de moradias, dos mecanismos que engendram a desigualdade socioambiental; c) a análise das práticas de manejo e/ou enfrentamento das situações de "risco" encetadas pelos moradores; d) realização, transcrição e análise de entrevistas semiestruturadas com agentes de diferentes órgãos públicos envolvidos na gestão do "risco ambiental" na cidade; e) fichamento das situações de risco, a partir das fontes supracitadas e tomando como recorte cronológico o período que vai de 1997 a agosto de 2007, a fim de melhor discriminar os principais locais de ocorrência dessas situações. Essas fichas constam de um pequeno resumo do caso, sua localização, atores envolvidos, atividade que causou a situação de risco e as fontes em que foram coletadas as informações; f) elaboração de um mapa identificando as diferentes áreas da cidade segundo o grau de ocorrência de situações de risco ambiental.

Análise dos resultados

São João del-Rei é uma cidade brasileira, localizada no Estado federativo de Minas Gerais, na Região Sudeste do Brasil (figura 1).

figura 1

A análise dos dados coletados é bastante enfática ao evidenciar as diferentes percepções que os atores envolvidos (gestores e vítimas) têm da mesma situação de "risco ambiental". Logo, a situação de "risco ambiental" não é um dado objetivo que existiria de forma ontológica, passível de mensuração por indicadores técnicos, e sim o resultado de disputas simbólicas em que se envolvem, em condições assimétricas, "vítimas" e gestores do risco. A análise de algumas das entrevistas realizadas e transcritas permite identificar as principais características do discurso técnico sobre o risco, quais sejam a culpabilização das vítimas da injustiça ambiental urbana, pela atribuição da responsabilidade pelas situações de risco à imprevidência e à falta de informação das populações atingidas e às forças da natureza, como é possível notar em alguns trechos da entrevista realizada com o diretor da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil,5 Tenente Luiz Alberto Honório:

As comunidades, elas fazem muito pouco e poderiam fazer muito mais. Porque pra isso existe o núcleo de Defesa Civil que a gente tem tentado implantar nos bairros, mas não é fácil. Porque a participação da comunidade, ela é muito pouca, infelizmente […] eles não se atêm para os seus próprios problemas. Eles têm dificuldade de até ver o risco […] as lideranças dos bairros, apesar de suas tentativas, também têm muita dificuldade […] é, eles deveriam né?, respeitar o limite […] de inundação dos córregos e do rio. E isso não é feito, infelizmente. Mesmo sabendo que vão ser atingidos pelas águas, eles constrói assim mesmo […] Então, é eles próprio respeitar os limite da natureza, que são as áreas de inundação. Infelizmente, a verdade é que o homem teria que respeitar a natureza. Isso seria o ideal, porque as pessoas erram e depois cobram do poder público uma solução, sendo que o erro inicial foram deles. Quando a gente erra, a gente paga pelas consequências. Faça dia, menos dia, você paga por isso. Um exemplo: se você for […] constrói em local indevido, com certeza você vai sofrer as consequências. (grifo nosso)

O maniqueísmo homem (pobre) mau, natureza boa, contido no discurso do diretor da defesa civil, culpabiliza a população no papel de agente própria de seu sofrimento. Esquecendo que essas pessoas vão morar perto de barrancos e próximas a rios, não pela vista bonita que tais locais oferecem, mas por não terem condições financeiras de habitar bairros com boa infraestrutura, devido ao alto valor de mercado da habitação nesses locais. Logo, condições materiais e objetivas de pobreza, negligenciadas e mitigadas pelos poderes públicos, mercado imobiliário capitalista e gestores são os verdadeiros responsáveis estruturais por tal situação. E não o pai de família que "constrói em local indevido", e que "com certeza vai sofrer as consequências de ter construído em local indevido". Trata-se de uma visão das vítimas como atores irracionais, que querem morar deliberadamente perto da morte.

Também a ação inescrupulosa de outros atores (como os políticos) é vista como causadora de situações de risco, posto que tais atores instrumentalizariam as carências da população de baixa renda, aprovando loteamentos irregulares e não elaborando políticas habitacionais eficazes, evitando que se formem mais bairros sem nenhuma infraestrutura e que apresentem situações de risco. é o que se evidencia na fala do Promotor de Justiça e Curador do Meio Ambiente em São João del-Rei, Antonio Pedro Silva Melo:

Nós temos aqui em São João [del Rei] vários loteamentos que, embora tenham sido feitos com autorização da prefeitura, eu os chamaria de loteamentos clandestinos, por que eles não têm o mínimo que todo loteamento tem que ter. O empreendedor vinha, comprava o terreno, passava a máquina abrindo ruas, colocava lá uma meia dúzia de meio-fio, calçava um pedaço ou asfaltava um pedaço, fingia que tava fazendo um serviço lá por baixo de esgoto e de águas pluviais e passava a vender. Então, hoje, as pessoas construíram nesses lugares. Então, o sistema de esgoto é praticamente do século passado, o sistema de água […]. Não só do século XX só, não, tem coisa aí do século XIX ainda, principalmente nesse miolo da cidade aqui, na parte histórica. Então, é muita coisa que tá totalmente fora da realidade […].

Por fim, percebe-se, nas entrevistas realizadas com populações atingidas, a operação de mecanismos objetivos (ligados ao funcionamento do mercado imobiliário/ fundiário, às ações/omissões do poder público e aos esquemas clientelistas de poder local) que condicionam a alocação e o "aprisionamento" espacial da população de baixa renda nas áreas urbanas sujeitas a inundações, contaminações, deslizamentos, falta de água potável etc. As (in)ações do poder público podem ser vistas na fala de um morador do bairro Águas Gerais e ex-presidente da associação de moradores:

ó, o povo tá […] o povo em geral até na cidade mesmo, tá desacreditado desse pessoal político de hoje, porque é só promessa e não faz nada, entendeu? é uma coisa que a gente tá tentando ver se consegue uma solução pra arrumar aquilo [esgoto] lá, mas o meio político aí tá meio complicado. Depender de prefeitura e DAMAE [Departamento Autônomo Municipal de Água e Esgoto], o trem tá garrado [difícil] mesmo, entendeu? […] O que eu vejo pra eles, é que eles não têm um pingo de interesse lá pelo nosso bairro. Porque um bairro assim pequeno, que tem pouca gente […] então, mais é por causa de política, igual eu te falei, por causa de política, entendeu? […] Os políticos, acho que eles só vê assim, o seguinte: chegou ali, vai dar mais de 1.000 votos pra ele, então ele vai ali e faz. Como ali a comunidade são pouca gente, então o interesse deles por ali é pouco, entendeu?

Podemos ver também situações complexas em relação à ação de empresas, como mineradoras que, através de suas atividades, ocasionaram a queda de partes de uma casa à Rua Marcondes Neves, no Centro da cidade. Segundo declaração da moradora em entrevista realizada no dia 16 de outubro de 2007:

Eu já tinha dado banho nas crianças e eu já ia pro banho, eu falei 'não, eu não vou entrar no banho agora não, eu vou deixar essas criança jantar pra sair daqui, que eu tô achando essa parede muito estranha'. Na hora que eu coloquei o ouvido na parede ela tava ringindo. Aí eu tirei as crianças correndo. No que eu tirei as crianças, a parede abriu tudo. Aí começou a desabar.

No preenchimento das fichas catalográficas foi possível levantar, descrever e relatar muitos casos emblemáticos sobre situação de "risco ambiental" na cidade, observando a forma reiterada como alguns casos repetem-se e a maneira como os gestores públicos procuram "solucionar" esses problemas.

Fichas catalográficas6

No preenchimento das fichas catalográficas dos casos de "risco ambiental", em São João del-Rei, catalogaram-se 85 casos (das mesmas fontes antes citadas na metodologia), encontrando, no período de 1997 a agosto de 2007, 138 ocorrências distintas de atividades geradoras de "risco ambiental", permitindo a divisão da cidade em V regiões (figura 2 ), conforme os diferentes graus de assiduidade das situações de risco ambiental, fatores geradores das distintas situações de risco. Os dados, de forma geral, estão abaixo discriminados nas tabelas 1 e 2.

figura 2

tabelas 1

tabela 2

As regiões (conjunto de bairros) foram estabelecidas levando em conta não só a proximidade geográfica, mas também as similitudes nas situações geradoras de risco ambiental dos bairros pertencentes a cada região. Já sobre os aspectos socioeconômicos, não foi possível demarcar bairros e/ou mesmo regiões inteiras-somente pelo fator socioeconômico, exceto no caso dos Bairros Águas Gerais e Gameleiras onde se conseguiu fazer isso, ao cruzar os dados das fichas de risco ambiental aos resultados do Survey Socioeconômico aplicados nestas comunidades localizadas na Região I da figura 2. Nos outros casos (em que não se contou com dados oficiais, e nem mesmo próprios sobre a condição socioeconômica de muitos bairros nelas implicados), não foi possível fazer uma divisão ou mesmo análise baseada no fator socioeconômico, pois mesmo em regiões caracterizadas predominantemente por bairros de classe média (IV, V), há também residências e/ou bairros carentes, principalmente as que habitam nas margens dos córregos e que sofrem com problemas de enchentes. As regiões I, II, III são predominantemente mais carentes, mas também abarcam famílias de classe média.

Os casos em que os efeitos e/ou as causas extrapolam uma região específica, ou estão na zona rural, foram alocados sob a categoria especial de "Casos em que foi afetada mais de uma Região".

Dividiu-se a classificação das atividades que geram risco ambiental na cidade por indicadores que abrangem as principais atividades geradoras de "risco ambiental", encontradas no preenchimento das fichas (tabela 2).

A presença de um maior número de casos na região IV é derivada, entre outros fatores, da quantidade de bairros que esta abrange e do fato de estarem entre essas comunidades as com maior poder simbólico e político da cidade. Logo, são as mais citadas nas fontes documentais pesquisadas (principalmente nos jornais).

Análise específica de situações de risco envolvendo precariedade/ ausência de rede de esgoto

A questão do saneamento básico mostrou-se como um dos fatores de risco ambiental mais recorrente no preenchimento das fichas. Ao somar os casos relativos a problemas derivados da precariedade da coleta de lixo, da ausência de rede de captação de águas pluviais e da precariedade/inexistência de rede de captação de esgoto, teremos 55 ocorrências, ou seja, cerca de 40% dos 138 casos identificados. Apesar disso, o problema, ao analisar-se a questão de saneamento básico em São João del-Rei, é a escassez de informações que dispõe, a esse respeito, a autarquia municipal responsável. Os dados do Departamento Autônomo de Água e Esgoto -doravante, DAMAE- são muito genéricos. Dizem apenas que não é feito nenhum tipo de análise referente ao esgoto (e as análises da água são muito simplórias), que não há presença de coliformes fecais nas águas e que a mesma é boa para consumo humano, que 100% do esgoto não recebem tratamento e que 90% do esgoto são recolhidos e 95% da cidade tem água tratada pelo DAMAE. Logo, os dados dos bairros, sobre esse aspecto, a seguir analisados, foram obtidos pelas entrevistas realizadas e pela aplicação de um Survey socioeconômico nos bairros Águas Gerais e Gameleiras7.

O caso dos bairros Águas Gerais e Gameleiras8

As condições socioeconômicas de duas comunidades estudadas aqui, a partir da análise do Survey socioeconômico, foram bem taxativas ao comprovarem a relação pobreza/situação de risco, considerando-se as condições dos imóveis,9 tamanho, forma de ocupação, a renda per capita das famílias etc. Constata-se assim efetivamente o perfil econômico dos moradores dos bairros e das classes que sofrem de forma geral este tipo de condição socioambiental. Os dados mostram que a proporção de "pobres" -segundo a definição do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Ministério do Planejamento, ou seja, famílias com renda per capita de até meio salário-mínimo- é de 75% nas Águas Gerais e 68,6% nas Gameleiras (tabela 3). O percentual de famílias situadas abaixo da linha de miséria (renda familiar per capita abaixo de um quarto do salário mínimo)10 das Águas Gerais é quase o dobro do que se verifica nas Gameleiras (46,4% contra 24,3%). Portanto, quase metade dos moradores das Águas Gerais tem condições de vida de tamanha precariedade que se situam em situação análoga à enfrentada pelas populações mais pobres do planeta, tendo em conta somente a renda (Soares 2009) per capita levantada em nossa pesquisa domiciliária (menos de um dólar estadunidense per capita por dia).

tabela 3

A média de moradores por domicílio fica em 3,7% para as Águas Gerais e 3,4% para as Gameleiras. Trata-se de números bastante próximos aos de outros territórios e camadas de baixa renda da cidade, tais como o da Vila Brasil/Novo Bonfim11 (3,06), São Dimas/Cidade Nova (3,64), Vila Nossa Senhora de Fátima (3,53) e conjunto habitacional IAPI/JK (3,62)12 (Pinto e Carneiro 2006). é o que se vê nos quadros 3 e 4 a seguir:

Essas comunidades (Águas Gerais e Gameleiras) podem ser consideradas como pertencentes à "cidade ilegal" (Maricato 2000), que se caracteriza como uma parcela significativa da cidade que cresce sem provimentos urbanos adequados, e sem nenhum tipo de planejamento. Essas áreas são quase sempre aquelas que a especulação imobiliária ou não pode comercializar (devido a legislações ambientais) ou não vê como financeiramente viáveis, tamanha à precariedade física do território para habitações humanas. Contraditoriamente, essas comunidades recebem menos recursos de infraestrutura da prefeitura, pois, segundo representantes do poder público local, "são bairros ilegais" (apesar de os moradores de vários desses bairros, como os das Águas Gerais, pagarem o Imposto Predial Territorial Urbano-IPTU), expondo de forma reiterada populações inteiras a situações de "risco ambiental". Como diz Maricato,

As áreas ambientalmente frágeis - beira de córregos, rios e reservatórios, encostas íngremes, mangues, áreas alagáveis, fundo de vale - que, por essa condição, merecem legislação especifica e não interessam ao mercado legal, são as que 'sobram' para a moradia de grande parte da população. As consequências são muitas: poluição dos recursos hídricos e dos mananciais, banalização de mortes por desmoronamento, enchentes, epidemias etc. (Maricato 2000, 163)

Nesse bairro Águas Gerais, não há rede pública de distribuição de água potável, que é feita por uma precária rede de canos e mangueiras, instalada pelos próprios moradores, que capta a água de uma mina a céu aberto. O esgoto é atirado diretamente das casas no leito do córrego que atravessa o bairro. Como é da nascente desse mesmo corpo d'água que os moradores captam a água para uso residencial, a vazão que sobra é insuficiente, principalmente no período da seca, para fazer escoar o esgoto do bairro, causando doenças e mau cheiro. O bairro já existe há mais de 30 anos, e nesse meio tempo outras comunidades mais novas já conseguiram recursos de infraestrutura urbana ainda inexistentes nas Águas Gerais, como reclama um dos moradores:

E eles olha mais é pro centro da cidade. E sendo que lá, no bairro, lá no meu bairro lá, foi um lugar que, quando os bandeirantes descobriu São João Del Rei, a entrada deles foi por ali também. Eles passaram por ali. Tudo o que abastecia a cidade: alimento, arroz, feijão, carne, tudo, foi tudo encaminhado por ali. Até, quando tinha padaria na cidade aqui, até lenha extraía era dali da terra ali, trazia, vinha por ali também. Então, o interesse deles lá é pouco por isso, entendeu, por que eles tão vendo que ali não vai dar lucro nenhum pra eles. E hoje aqui é um dos bairros mais bonitos, mais antigo da cidade. Você vê que tem bairro aí novo que hoje tem de tudo. O nosso tá deixado. Tem alguma coisa, porque a gente vive brigando, a gente vive lutando. Na minha casa ali, na rua da minha casa ali, antigamente não era rua, era trilha. Hoje a gente tá abrindo [rua] no braço, porque a prefeitura não faz nada. é complicado.

Geralmente, as pessoas que ocupam loteamentos considerados ilegais (caso das Águas Gerais) ainda têm que lutar contra a marginalização de suas moradias por parte de ONGs conservacionistas, empresas ligadas a ecoturismo e redes hoteleiras, que querem o "ambiente limpo" e sem a ação "predatória" dessas pessoas "sem educação ambiental", "que incomodam os visitantes" e "prejudicam a natureza". Essas atitudes refletem uma espécie de higienização promovida pelas autoridades da área de urbanismo e pela grande mídia, com vistas a impedir que o crescimento de bolsões de pobreza, principalmente nas grandes capitais e cidades turísticas, por serem estas as portas de visita para a entrada dos recursos externos, seja prejudicial na competição interlocal por investimentos (Vainer 2000). Nas palavras de Maricato:

Os moradores já instalados nessas áreas, morando em pequenas casas onde investiram suas parcas economias enquanto eram ignorados pelos poderes públicos, lutam contra um processo judicial para retirá-los do local. Nesse caso eles são vistos como inimigos da qualidade de vida e do meio ambiente. A remoção como resultado do conflito não é, entretanto, a situação mais corrente. Na maioria das vezes a ocupação se consolida sem a devida regularização. (Maricato 2000, 163-164)

E com a consolidação dessa ocupação13, os conflitos entre os atores em relação à percepção do risco se dão de forma patente. Em entrevista feita com Giovanni Anderson de Sousa Cristo, diretor do DAMAE, o mesmo reconhece o bairro Águas Gerais como uma das áreas de maior risco ambiental da cidade, com muita incidência de doenças derivadas do não tratamento da água e do esgoto a céu aberto. O dirigente condena a água utilizada na comunidade em trechos da entrevista que nos concedeu:

Nas Águas Gerais, o maior índice de diarréia é onde não tem água do DAMAE, não tem água, eles pegam lá nas Águas gerais, em uma mina que eles têm lá em cima e faz a captação sem tratamento nenhum e eles utilizam daquilo, é até uma questão de cultura, muitos falam 'não, que a gente não precisa de DAMAE aqui não, que nós vai ter que pagar', mas não é, a questão é que pode fazer uma tarifa, uma taxa social no caso deles, mais bem a nível das condições que eles têm lá, mas aí eles vão ter saúde, quer dizer, eles num tão pagando, não vão pagar uma água, mas em compensação vão ter que tá pagando médico, tendo doença. (grifos nossos)

Já para os moradores, o problema restringe-se ao esgoto, pois, segundo um morador, o bairro tem:

Uma das melhores águas de São João Del Rei […] Então, não tem [problema] […] a água não é tratada […] agora, ela é boa porque ela vem de nascente. Eu te falei, ela é boa, melhor do que essa que o DAMAE abastece a cidade.

Ele continua, respondendo à pergunta de por que para as autoridades não é boa:

Porque o seguinte, cara: uma, que não é eles [os técnicos do DAMAE] que faz uso da água, lá. é a gente, entendeu? Então nós não vê nenhum problema na água. Se tivesse algum problema, a gente mesmo poderia pegar essa água e fazer essa análise […].

Respondendo à pergunta sobre os comprovados casos de verminoses que acometem as crianças do bairro, ele analisa que:

Isso é normal, isso aí é normal. Verme você pega até pelo ar, pela poeira, qualquer coisa você pega, entendeu? E essa água, há muito tempo, quando havia uma outra associação que acabou, foi feita essa análise dessa água em Brasília e não constatou nada […] água de boa qualidade.

Para os técnicos em saneamento básico da cidade, os riscos são a água e o esgoto no bairro, de forma mais enfática a água, pois, segundo eles, o esgoto é um problema que afeta toda a cidade, onde 100% do esgoto não são tratados. Logo, para a população do bairro o que realmente é fator de preocupação, em oposição ao discurso técnico (que coloca a água como o pior fator de risco), é o esgoto. Nas palavras do mesmo morador:

O esgoto lá é perigoso. Porque nesse esgoto é que pode tá o verme que pode atingir a comunidade ali, entendeu, e outros tipos de doença. Porque nesse esgoto, através desse esgoto aí, pode ter pernilongo, entendeu? às vezes, até o mosquito da dengue mesmo. Já teve casos de dengue lá. E outros tipos de verme, que pode atingir a comunidade lá. Não só a pessoa humana mesmo, como os animais mesmo […].

Essas informações exemplificam a pertinência da abordagem construcionista do risco, pois deixam claro que moradores e técnicos discordam frontalmente em relação aos fatores de risco ambientais mais sérios e que, portanto, deveriam ser prioritariamente enfrentados.

Conclusões

O caráter de "risco" da situação não resulta de uma "tomada de consciência" de um suposto significado unívoco e intrínseco a determinadas condições objetivas, "Risco é um vocábulo polissêmico e, portanto, dá margem a muitas ambiguidades", (Castiel 2002, 117). Pelo contrário, os significados dessas condições estão permanentemente em jogo nas lutas simbólicas (Bourdieu 1989), travadas entre os diferentes atores envolvidos. Por conseguinte, a concepção de um morador de que sua situação não é de "risco" iminente, a despeito dos laudos técnicos (emitidos por agentes da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, engenheiros etc.), pode ser compreendida se se considera do ponto de vista do morador em questão, a existência de outros "riscos" piores, acarretados pelo fato de sair de sua moradia: o fato de não ter para onde ir e mesmo pela consideração do valor simbólico trazido pelo sacrifício exigido para construir um lar que pessoas "desconhecidas" dizem que deve ser abandonado.

Em outras situações, muito comuns no bairro Águas Gerais, como as de não tratamento de água potável, que no entender técnico especializado pode trazer diversos "riscos" de contaminação à saúde humana, moradores da comunidade dizem ser aquela "muito boa para o consumo", pois "sempre a consumiram e nunca deu nada". Através de entrevistas e um contato mais direto com a comunidade é possível concluir que tal argumentação, na maioria dos casos, dá-se pelo medo de que, se a empresa municipal de saneamento básico começar a distribuir e a tratar a água e o esgoto, os moradores correrão o risco de não poder pagar a conta e ficar sem esses serviços básicos, ou que, para pagar a conta de água/esgoto, tenham que correr o "risco" de não ter dinheiro para comprar comida, roupas etc.

Do ponto de vista dos moradores das Águas Gerais, esses são riscos mais graves que o de pegar uma "doença hipotética, porque ninguém nunca pegou"14. Riscos que permanecem imperceptíveis aos olhos dos técnicos e das classes mais abastadas.

O exemplo é indicativo de um fenômeno apontado por outras pesquisas sobre a construção social do risco ambiental, qual seja a presença de um contra-discurso produzido pelos moradores a partir da vivência da situação e da avaliação racional de uma multiplicidade de riscos a que simultaneamente está exposta sua integridade física e moral. é precisamente esse contra discurso, via de regra, negligenciado pelos gestores públicos e pelas pesquisas científicas sobre o risco ambiental, que a presente pesquisa pretendeu evidenciar.


Notas:

1 Grande parte dos dados utilizados para o presente trabalho foi pesquisada conjuntamente a Luis Felipe Candido, que também era bolsista do projeto de pesquisa, tendo ele elaborado outro artigo junto a Eder Carneiro sobre os casos de riscos ambientais não abordados no presente trabalho. Por conseguinte, as fontes que contarão com a participação de Luis Felipe levam também à sua referência, mesmo ele não tendo participado da elaboração do presente artigo.

2 No campo das ciências sociais, a discussão sobre a questão do risco inclui uma vasta bibliografia que começa a se formar ainda nos 1960. Considerações críticas sobre a concepção objetivista de Beck, feitas a partir da abordagem da construção social do risco, estão, entre outros, em Acselrad e Mello (2002), Vargas (2006).

3 Essa construção social dá-se, segundo uma visão sócio-construtivista, por indivíduos organizadores ativos de suas percepções, impondo seus próprios significados aos fenômenos (Widavsky 1991 citado por Guivant 1998, 5).

4 [No Discurso empresarial] "Usa-se a noção de incômodo, mais do que de insalubridade. Odores químicos são desagradáveis, mas não insalubres; fábricas de produtos químicos tóxicos não são consideradas danosas à saúde, desde que 'bem administradas'. Havia uma convicção por parte dos cientistas de que os danos tenderiam a ser totalmente controlados com o desenvolvimento da química." (Acselrald, Mello e Bezzerra 2009, 108)

5 "Para planejar ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas, dentro dos princípios da administração pública e ciente da sua responsabilidade social, o Executivo Municipal através da Lei n.° 4.056 de 29 de agosto de 2006 e decreto n.° 3.304 de 09 de outubro de 2006, criou e regulamentou a Coordenadoria Municipal de Defesa Civil para dar resposta à situação adversa e tendo como uma de suas atribuições, a execução das ações de Defesa Civil no âmbito do município de São João del-Rei, em consonância com o previsto na LEI n.° 12.608, de 10 de abril de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (CONPDEC)" em http://www.saojoaodelrei.mg.gov.br.

6 Foi disponibilizado no final do trabalho um modelo da ficha usada no preenchimento dos 85 casos de risco ambiental levantados.

7 Survey domiciliar aplicado nos bairros Águas Gerais e Gameleiras, no âmbito do programa de extensão "Cidadania e justiça ambiental: ações de mobilização comunitária em São João del Rei- MG", que contou com bolsa e apoio da Pró-Reitoria de Extensão da UFSJ durante o ano de 2006.Cf. (Pinto e Carneiro 2006)

8 Bairros localizados na Região I da figura 2.

9 Nas Águas Gerais cerca de 42% das casas não têm qualquer revestimento externo, nas Gameleiras, cerca de 10% Cf. (Pinto e Carneiro 2006).

10 O acirrado debate sobre critérios e consensos em torno à construção de linhas de pobreza ver Soares 2009.

11 Bairros localizados na Região IV da figura 2.

12 Bairros localizados na Região III da figura 2.

13 Por parte também da própria prefeitura que consolida essas ocupações ao cobrar dessas pessoas IPTU, mesmo sem reverter nada (ou quando muito uma parcela ínfima) deste imposto a essas comunidades "ilegais".

14 "é possível perceber a emergência de discursos populares de resistência à ideologia do risco, ao recusarem as características inerentes aos pressupostos da probabilidade." (Castiel 2002, 116)

ficha


Referencias

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