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Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía

versão impressa ISSN 0121-215Xversão On-line ISSN 2256-5442

Cuad. Geogr. Rev. Colomb. Geogr. vol.32 no.2 Bogotá jul./dez. 2023  Epub 19-Mar-2024

https://doi.org/10.15446/rcdg.v32n2.95846 

Artículos

Os movimentos socioterritoriais e a luta contra a fome durante a pandemia do novo Coronavirus no Brasil*

Socio-Territorial Movements and the Combat Hunger During the New Coronavirus Pandemic in Brazil

Movimientos socioterritoriales y lucha contra el hambre durante la pandemia por el nuevo coronavirus en Brasil

Aline Albuquerque Jorge¤ 
http://orcid.org/0000-0001-6867-3162

Angela dos Santos Machado§ 
http://orcid.org/0000-0001-9831-5307

¤ Universidade Estadual Paulista (UNESP), Presidente Prudente - Brasil. aline.albuquerque@unesp.br - ORCID: 0000-0001-6867-3162.

§ Universidade Estadual Paulista (UNESP), Presidente Prudente - Brasil. angela.s.machado@unesp.br - ORCID: 0000-0001-9831-5307.


Resumo

No Brasil, a classe trabalhadora vem perdendo direitos e sofrendo com a descontinuidade de políticas públicas. As ações do governo atual têm refletido no aumento da extrema pobreza e, consequentemente, no retorno do país ao mapa da fome. A pandemia do novo coronavírus agravou essa conjuntura. É nesse contexto que as doações de alimentos realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e outros movimentos socioespaciais e socioterritoriais se configuram em importantes ações de solidariedade voltadas ao combate à fome. Este trabalho objetiva analisar criticamente e dimensionar as doações de alimentos do MST. Para isso, foram realizadas pesquisa bibliográfica e entrevista semiestruturada. Também foram levantadas e sistematizadass notícias divulgadas pelo MST, referentes às doações realizadas no período de março de 202o a março de 2021. A pesquisa aponta que as doações de alimentos são uma forma de luta e de denúncia da ausência do poder público e expressam solidariedade. Essas ações reafirmam a necessidade da reforma agrária.

Ideias destacadas:

artigo de reflexão que aborda as ações de solidariedade realizadas pelo MST no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil. Partimos de uma perspectiva em que entendemos os movimentos sociais por meio da geografia, assim discutimos os conceitos de espaço, território, movimentos socioespaciais e socioterritoriais, além das ações concretas do MST.

Palavras-chave: Brasil; coronavírus; doação de alimentos; espaço; Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; movimentos socioespaciais; movimentos socioterritoriais; território

Abstract

In Brazil, the working class has been losing rights and suffering with the discontinuation of public policies. The current government's actions have been reflected in the increase of extreme poverty and, consequently, in the country's return to the hunger map. The new coronavirus pandemic has aggravated this circumstance. It is in this context that the food donations made by the Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) [Landless Rural Workers Movement] and other socio-spatial and socio-territorial movements constitute important solidarity actions aimed at combating hunger. This work seeks to critically analyze and dimension the MST'S food donations. To do so, we executed bibliographic research and semi-structured interviews. It also sought and systematized news articles published by the MST, referring to donations made from March 2020 to March 2021. The survey indicates that food donations are a form of resistance and denouncement of the public power's absence and expressing solidarity. These actions reaffirm the need for a land reform.

Highlights:

reflection paper that addresses the solidarity actions executed by the MST in the context of the COVID-19 pandemic in Brazil. We come from a perspective in which we understand social movements through geography, thus discussing the concepts of space, territory, socio-spatial and socio-territorial movements, as well as the MST'S concrete actions.

Keywords: Brazil; coronavirus; food donation; space; Landless Rural Workers Movement; socio-spatial movements; socio-territorial movements; territory

Resumen

En Brasil, la clase trabajadora ha estado perdiendo derechos y sufriendo con la discontinuidad de las políticas públicas. Las acciones del gobierno de Jair Bolsonaro se reflejaron en el aumento de la extrema pobreza y, consecuentemente, en el retorno del país al mapa del hambre. La pandemia del virus Sars-Cov-2 empeoró esa coyuntura. En ese contexto, las donaciones de alimentos realizadas por el Movimiento de los Trabajadores Rurales sin Tierra (MST) y otros movimientos socioespaciales y socioterritoriales constituyeron importantes acciones de solidaridad dirigidas al combate del hambre. Este trabajo tiene el objetivo de analizar críticamente y dimensionar las donaciones de alimentos del MST. Para eso, se realizó una investigación bibliográfica y entrevistas semiestructuradas. Además, se recogieron y sistematizaron las noticias divulgadas por el movimiento, referentes a las donaciones realizadas entre marzo de 2020 y marzo de 2021. La investigación indica que las donaciones de alimentos son una forma de lucha y de denuncia frente la ausencia del poder público y expresan solidaridad. Esas acciones reafirman la necesidad de reforma agraria.

Ideas destacadas:

artículo de reflexión sobre importantes acciones de solidaridad del Movimiento de los Trabajadores Rurales sin Tierra (MST) para enfrentar la pandemia de COVID-19 en Brasil. Con el fin de entender los movimientos sociales a través de la geografía, se discuten los conceptos de espacio, territorio, movimientos socioespaciales y socioterritoriales, además de las acciones concretas del MST.

Palabras clave: Brasil; coronavirus; donación de alimentos; espacio; Movimiento de los Trabajadores Rurales sin Tierra; movimientos socioespaciales; movimientos socioterritoriales; territorio

Introdução

Este trabalho apresenta análises sobre as ações de solidariedade protagonizadas pelos movimentos socioespaciais e socioterritoriais, durante a pandemia do novo coronavírus (SARS-COV-2), que causa a COVID-19. As ações de solidariedade analisadas são aquelas voltadas ao combate à fome, que se traduzem na doação de milhares de toneladas de alimentos in natura, marmitas, cestas, entre outros, em todo o país. Tendo em vista a necessidade de estabelecer um recorte, o trabalho dedica-se às ações realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tanto de forma individual como em conjunto com outros movimentos e instituições do campo e da cidade.

A importância dessas ações só pode ser compreendida no contexto político brasileiro. Desde o retorno do ideário neoliberal, ocasionado pelo golpe parlamentar-jurí-dico-midiático que desistiu a presidenta Dilma Rousseff e colocou Michel Temer na presidência da república, a classe trabalhadora do campo e da cidade vem perdendo direitos e sofrendo com a descontinuidade de políticas públicas. Esse processo foi aprofundado no governo de Jair Messias Bolsonaro, iniciado em 2019, que também, com base na lógica neoliberal, tem como projeto político-econômico a redução do papel do Estado, a retirada de direitos sociais e o aumento de encargos que prejudicam a população mais pobre.

Além disso, o governo Bolsonaro se pauta em um discurso ideológico de ataque à reforma agrária e aos movimentos socioespaciais e socioterritoriais, bem como aos povos indígenas e quilombolas. Diante desse cenário, a classe trabalhadora tem enfrentado o desemprego, a inflação, a desvalorização da moeda e as constantes altas dos preços dos alimentos, até mesmo daqueles que fazem parte da dieta básica da população. Com isso, a extrema pobreza vem aumentando no Brasil. Consequentemente, assim como declarou o ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), em entrevista ao portal de notícias Brasil de Fato, o país retornou ao mapa da fome, isto é, à relação de países que têm mais de 5 % da população ingerindo menos calorias do que o recomendável, relação a qual o país havia deixado de fazer parte em 2014 (Brasil de Fato 2020b).

A conjuntura de extrema pobreza foi agravada pela pandemia do novo coronavírus, iniciada no Brasil no final de fevereiro de 2020. A partir desse momento, além de lidar com os riscos da doença, os trabalhadores enfrentaram novo aumento da taxa de desemprego, que levou muitas famílias a ficarem sem fontes de renda, desassistidas pelo poder público e em condições de insegurança alimentar. O governo Bolsonaro assumiu uma postura "negacionista" com relação à crise sanitária, desrespeitando recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). O governo se posicionou contra o uso de máscaras e o isolamento social, incentivou a população a usar medicamentos que não possuem eficácia comprovada para o tratamento da doença, ocasionou aglomerações, tentou se isentar da responsabilidade e trocou o ministro da saúde mais de uma vez, em momentos críticos, devido às divergências relativas ao posicionamento sobre como tratar a pandemia.

Todos esses fatores fizeram com que o Brasil fosse considerado o país com a pior gestão da pandemia em um grupo de 30 nações (Congresso em Foco 2021). Também, fez com que até 31 de março de 2021 o país registrasse o total de 12.748.747 casos e 321.515 óbitos (Coronavírus Brasil 2021). Grande parte das vítimas são moradores das periferias, povos indígenas e quilombolas, moradores de rua e outros grupos vulneráveis, que em muitos casos não tiveram condições de tomar os devidos cuidados, em razão da falta de assistência do Estado. É nesse contexto que as doações de alimentos realizadas pelo MST e por outros movimentos e instituições se revelam como importantes ações de solidariedade voltadas ao combate à fome. Compreendemos que essas ações além de ajudar a população mais vulnerável em um momento de crise, também são formas de denunciar a ausência do poder público e de reafirmar a necessidade da reforma agrária e do cumprimento da função social da terra. Por meio dessas ações, o MST constrói articulações com diversos movimentos, inclusive, ligados a outros espaços (movimentos indígenas, urbanos, sindicais etc.), possibilitando o fortalecimento e a luta em torno de pautas em comum. Da mesma forma, cria espaços comunicativos e de socialização política com a população periférica, indígena, quilombola, entre outros, e contribui para a desconstrução da imagem negativa do movimento, produzida através de diversas ações midiáticas em consonância com os interesses dos governos e dos setores ligados a agricultura capitalista.

Entende-se que os conceitos de movimento socioes-pacial e movimento socioterritorial são importantes para discutir o MST, pois objetivam contribuir para uma leitura geográfica dos movimentos que, além das formas de organização e das relações sociais, preocupa-se com os espaços e os territórios produzidos/construídos pelos movimentos (Fernandes 2005). Por essa razão, antes mesmo de aprofundar nesses conceitos, é importante esclarecer de que modo se entende o espaço e o território na geografia.

O trabalho é sustentado em fontes bibliográficas, como as publicações de Raffestin (1993), Fernandes (2005), Santos (2006), Torres (2011), Halvorsen, Fernandes e Torres (2019), dentre outros. Para dimensionar a abrangência das ações de solidariedade, foram analisadas e sistematizadas notícias provenientes das redes sociais oficiais do MST1 referentes às doações de alimentos realizadas. Dessa forma, o trabalho tem como recorte as notícias divulgadas pelo movimento no período de março de 2020 a março de 2021. É válido destacar que as doações de alimentos ainda não se encerraram, portanto, o intervalo de tempo selecionado corresponde a necessidade de cessar a escrita.

Além disso, com o objetivo de sanar dúvidas que surgiram na construção dessa publicação, foi realizada uma entrevista semiestruturada com uma liderança ligada à coordenação nacional do MST, que participou ativamente das doações. Em razão da impossibilidade de realizar encontros presenciais, devido à pandemia, a entrevista foi efetuada por telefone. O conteúdo das declarações é bastante relevante, por isso, ao longo do texto são citados alguns trechos transcritos na íntegra. Para preservar a identidade da camponesa entrevistada, a identificação de seus relatos é efetuada com uso de nome fictício.

O trabalho segue dividido em quatro partes. Na primeira, discutem-se os conceitos de espaço e território que orientam a pesquisa. Na segunda, abordam-se os conceitos de movimento socioespacial e movimento so-cioterritorial, explicando de que forma e por qual razão o MST se enquadra nessa abordagem. Na terceira, apresenta-se um resumo dos governos, desde Fernando Henrique Cardoso até Jair Messias Bolsonaro, destacando a maneira como esses governos trataram a questão agrária e se relacionaram com os movimentos de luta pela terra. Na quarta, são apresentados e analisados dados referentes às doações de alimentos em escala nacional.

Espaço e o território na geografia

Espaço e território são categorias de análise geográfica e conceitos amplos utilizados por diversas áreas do conhecimento, a partir de diferentes significados. Dependendo da corrente teórica e da intencionalidade de quem os aplicam, esses conceitos podem ser trabalhados como uma totalidade ou apenas como uma dimensão das relações sociais (Fernandes 2005; Saquet 2009). Por esse motivo, é importante iniciar esse trabalho esclarecendo quais são as concepções de espaço e território adotadas.

Com base em Fernandes (2005, 2008) e Santos (2006), entende-se o espaço como espaço geográfico, o qual contém a materialidade e a imaterialidade, isto é, "contém todos os tipos de espaços sociais produzidos pelas relações entre as pessoas, e entre estas e a natureza" (Fernandes 2005, 26). Conforme explica Santos (2006), o espaço geográfico é formado "por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá" (39).

Na definição de Santos (2006) estão contempladas a natureza e a sociedade. Por sistemas de objetos, entende-se todos os objetos naturais e técnicos. Em outras palavras, são os elementos da natureza e os objetos produzidos pelas relações sociais. Já os sistemas de ações correspondem às ações executadas pelos sujeitos, empresas e instituições, resultantes das necessidades naturais ou criadas, que podem ser materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais, morais e afetivas.

Os sistemas de objetos condicionam a maneira como as ações são realizadas, paralelamente, os sistemas de ações levam à criação de novos objetos ou ocorrem a partir dos objetos preexistentes (Santos 2006). Esse ponto explicita a indissociabilidade entre esses sistemas, que se dá "de modo contraditório e solidário expresso pelas conflitualidades geradas pelas diferentes intencionalidades" (Fernandes 2008, 275). A interação entre os sistemas de objetos e os sistemas de ações é o que movimenta o espaço, fazendo com que ele esteja em constante transformação. Nesse sentido, "o ponto de partida contém o ponto de chegada e vice-versa, porque o espaço e as relações sociais estão em pleno movimento no tempo, construindo a história" (Fernandes 2008, 275).

De acordo com essa significação, o espaço é uma totalidade, portanto é multidimensional. Além disso, também é pluriescalar ou multiescalar, o que significa que está organizando em várias escalas de modo descontínuo ou contínuo (Fernandes 2005). É a partir do espaço que se forma o território (Raffestin 1993; Fernandes 2005, 2008; Torres 2011). Em outras palavras, o território é um a posteriori, se constitui em uma fração de espaço, seja geográfico, político, cultural, dentre outros (Raffestin 1993; Fernandes 2005, 2008; Torres 2011).

Assim como assevera Saquet (2009), apesar de espaço e território serem conceitos diferentes, eles estão interligados, uma vez que o espaço é indispensável para a produção do território. Segundo Raffestin (1993), o território consiste em um espaço apropriado concreta ou abstratamente e determinado por relações sociais. Desse modo, são as relações sociais que transformam o espaço em território e o contrário idem, sendo que "da mesma forma que o espaço e o território são fundamentais para a realização das relações sociais, estas produzem continuamente espaços e territórios de formas contraditórias, solidárias e conflitivas" (Fernandes 2005, 28).

Mesmo sendo uma fração do espaço, o território é uma totalidade e, consecutivamente, é multidimensional, pluriescalar ou multiescalar (Raffestin 1993; Fernandes 2005, 2008; Saquet 2009; Torres 2011). Todas as dimensões do território (econômica, política, social, cultural e ambiental) estão interligadas, por isso, não há como explorar uma delas sem atingir as outras. Assim como as dimensões, as diversas escalas também estão interligadas, o que justifica o fato de uma ação política ter desdobramentos em vários níveis (local, regional, estadual, nacional e internacional) (Fernandes 2008, 2009).

Da mesma forma que a multidimensionalidade e a (pluri)multiescalaridade, o poder é outra qualidade do espaço e do território (Santos 2006; Fernandes 2008). De acordo com Raffestin (1993), o poder é inerente a todas as relações sociais, sendo exercido a partir de inumeráveis pontos, de modo intencional e não subjetivo. As relações de poder determinam a soberania, que se configura em uma propriedade exclusiva do território, podendo ser explicada como a autonomia dos diferentes sujeitos na tomada de decisões referentes a seus territórios. Nas palavras de Fernandes:

Quando nos referimos ao território em sua multies-calaridade, ou seja em suas diversas escalas geográficas, como espaço de governança de um país, de um estado ou de um município, o sentido político da soberania pode ser explicitado pela autonomia dos governos na tomada de decisões. Quando nos referimos ao território como propriedade particular individual ou comunitária, o sentido político da soberania pode ser explicitado pela autonomia de seus proprietários na tomada de decisões a respeito do desenvolvimento desses territórios. (Fernandes 2008, 277)

As relações de poder também determinam as territorialidades, quer dizer, as formas de uso do território. Raffestin (1993) define as territorialidades como as ações humanas, realizadas individual ou coletivamente para gerir o espaço de existência e produção. As disputas e os conflitos permanentes que envolvem o território fazem com que as territorialidades variem no tempo e no espaço, conforme os processos de dominação (Saquet 2007). Ou ainda, fazem com que existam territórios onde se desenvolvem múltiplos usos (multiterritorialidades), como uma rua que "pode ser utilizada com o tráfego de veículos, para o lazer nos finais de semana e com a feira livre acontecendo um dia por semana" (Fernandes 2005, 29).

Com base em todos esses elementos, o território não se restringe apenas ao espaço de governança, ou seja, ao território do Estado, como interpreta vários estudiosos, em uma visão ainda predominante, por exemplo, na geografia anglófona (Del Biaggio 2016; Halvorsen 2019). Conforme assevera Fernandes (2008), conceber o território somente como espaço de governança é ignorar os diferentes territórios. É uma concepção reducionista, "um conceito de território que serve mais como instrumento de dominação por meio das políticas neoliberais" (278).

Desse modo, enquanto o espaço é perene, o território é intermitente, sendo que o espaço de governança é somente um tipo de território, e em seu interior se organizam distintos territórios produtores e produzidos por relações sociais diferentes (Fernandes 2005, 2008, 2009). Afirmar que o território não é exclusivamente produto, mas também produtor de relações sociais, significa adotar uma abordagem que supera o significado de território como repositório das relações sociais, leitura também predominante na geografia anglófona, como salientam Del Biaggio (2016) e Halvorsen (2019).

O espaço de governança, enquanto território do Estado, compreendendo as diversas unidades territoriais (países, estados e municípios), consiste no que Fernandes (2008, 2009) chamou de primeiro território. Em seu interior se organiza o segundo território, formado por todas as propriedades particulares individuais ou coletivas, podendo ser contínuo ou descontínuo, total ou parcial, pertencente as pessoas ou a instituições. Nos espaços fixos do primeiro e do segundo território é produzido o terceiro território, caracterizado por ser fluxo/ móvel, sendo que suas "fronteiras se movimentam de acordo com as ações institucionais e as conflitualidades" (Fernandes 2008, 280-281).

Todos esses tipos de territórios materiais estão interligados, por isso, as ações políticas realizadas em um deles produzem desdobramentos nos outros. Além dessas formas materiais, também existem os territórios imateriais, formados no espaço social, pertencendo "ao mundo das ideias, das intencionalidades, que coordena e organiza o mundo das coisas e dos objetos: o mundo material" (Fernandes 2009, 211). Os pensamentos, teorias, conceitos, ideologias, métodos e paradigmas constituem o território imaterial, fazendo com que esse seja a base de todas as outras ordens de território, revelando também a indissociabilidade entre a materialidade e a imaterialidade (Fernandes 2009).

A existência ou a destruição dos diversos territórios (i) materiais são determinadas pelas relações que movimentam o espaço físico e/ou social. As ações de construção ou expansão do território são representadas pela territorialização, já as ações de destruição ou refluxo são representadas pela desterritorialização. Quando os territórios são destruídos e depois são reorganizados/reconstruídos em outros espaços, temos a reterritorialização (Fernandes 2005). Exemplos de como esse processo de construção, destruição e reconstrução de territórios acontece na sociedade podem ser capitados através das disputas e conflitos entre camponeses e proprietários fundiários ligados à agricultura capitalista. Os territórios campesinos e do agronegócio são diferentes, são constituídos por relações e intencionalidades divergentes, por isso, possuem distintas formas de organização do espaço e do trabalho (Fernandes 2008, 289).

Os movimentos socioterritoriais são formados a partir dos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR). Esses movimentos produzem/ constroem espaços e territórios, revelando que não é apenas o Estado e as estratégias dominantes de mediação e controle que produzem o território (Fernandes 2005; Halvorsen 2019; Halvorsen, Fernandes e Torres, 2019). Com base nessa linha de pensamento, na seção seguinte serão discutidos os conceitos de movimento socioespacial e movimento socioterritorial.

Movimentos socioespaciais e movimentos socioterritoriais: uma contribuição teórica da geografia

Primeiramente, vale ressaltar que o estudo dos movimentos sociais tem uma sólida base oriunda das ciências sociais que, na maioria das vezes, parte de análises a-espaciais, isto é, não aparece menção específica ao espaço.

Os sociólogos, na construção do conceito de movimento social, preocuparam-se predominantemente com as formas de organização e com as relações sociais para explicar as ações dos movimentos. Essa é uma possibilidade, que contribui parcialmente para a compreensão dos espaços e dos territórios produzidos/construídos pelos movimentos. Mas não é satisfatória. As formas de organização, as relações e as ações acontecem no espaço. Elas se realizam no espaço geográfico e em todas as suas dimensões: social, político, econômico, ambiental, cultural etc. (Fernandes 2005, 30)

A geografia, que tem o espaço como objeto de estudo, trouxe uma importante contribuição teórica para os estudos dos movimentos sociais, a partir da construção dos conceitos de movimento socioespacial e movimento socioterritorial.

O conceito de movimento socioespacial aparece pela primeira vez no texto do geógrafo francês Jean-Yves Martin, em 1997, denominado Ageograficidade dos movimentos socioespaciais, em que movimento socioespacial é o conceito utilizado para se referir às lutas por espaços de vida e de trabalho, tais como dos movimentos sem-terra e sem teto.

Posteriormente, Fernandes (1999) defende a tese de que o MST é mais do que um movimento socioespacial, sendo um movimento socioterritorial, pois o território é sua razão de ser, é seu objetivo final e o meio estratégico de sua luta, ou seja, por meio das ocupações de terra (processo de territorialização) o movimento se apropria do espaço e constrói seus territórios.

Vale ressaltar que todos os movimentos são socioes-paciais porque não existe movimento social sem espaço: qualquer movimento produz um espaço e uma espacialidade. Mas, nem todos têm o território como trunfo, quer dizer, nem todos os movimentos são socioterritoriais. Um movimento socioterritorial também é socioespa-cial (porque não existe território sem espaço), mas nem todo movimento socioespacial é socioterritorial (por exemplo, um movimento que luta pelos direitos humanos, mas não tem o território como objetivo estratégico) (Fernandes 2005).

Fernandes (2000), no texto Movimento social como categoria geográfica, preocupou-se em buscar um método de análise autenticamente geográfico para os estudos dos movimentos sociais, baseado em dois processos: espacia-lização e territorialização. Partindo das experiências do MST, evidenciou como ocorre a formação de espaços comunicativos e de socialização política, bem como os tipos e formas dos processos espaciais de luta.

O debate entre Martin e Fernandes resultou no texto Movimento socioterritorial e "globalização": algumas reflexões do caso do mst (2004), em que os autores seguem na reformulação de um conceito sociológico (movimento social) para conceitos geográficos (movimento socioespacial e movimento socioterritorial). É importante mencionar que o conceito geográfico não tem o objetivo de se contrapor ao referencial teórico das ciências sociais, mas apenas oferecer uma análise espacial para os estudos do tema.

As ciências sociais possuem um vasto referencial teórico e conceitual que é a base para os estudos dos movimentos sociais, desde os paradigmas norte-americanos clássicos (os interacionistas da Escola de Chicago) e contemporâneos (Mobilização de Recursos e Mobilização Política) até os paradigmas europeus Marxista e dos Novos Movimentos Sociais (Gohn 1997).

Por muito tempo, a geografia teve como referência esses estudos vindos de outras disciplinas e de outros países (Pedon 2013). Contudo, conforme afirma Santos (2006), conceitos de uma disciplina são apenas metáforas nas outras, por mais que essas disciplinas tenham proximidade. Portanto, apenas a geografia pode construir suas próprias categorias de análise. Daí a enorme contribuição dos autores que se preocuparam em entender as relações espaciais produzidas pelos movimentos sociais.

Em estudo recente, Halvorsen, Fernandes e Torres (2019) avançam na reflexão sobre os movimentos so-cioespaciais e socioterritoriais oferecendo eixos de análise que podem ser utilizados em outros estudos sobre movimentos sociais. Esses eixos são: 1) entender como o espaço e o território fazem parte da estratégia primordial para a conquista do projeto político do movimento; 2) compreender a formação de identidades espaciais e territorialidades, isto é, de que modo o contato social cria relações fortes e subjetividades políticas; 3) como essas novas subjetividades políticas produzidas nos espaços e territórios produzem novos valores que são importantes para a mobilização e os objetivos estratégicos do movimento. Esses valores podem se traduzir em ações, tais como a criação de autonomias, fundos de solidariedade, cooperação, práticas pedagógicas, novos mercados etc.; 4) a possibilidade de criação de novas instituições, isto é, novas relações, regras e normas (explícitas ou implícitas) que geram saberes coletivos que vão sendo socializados dentro de um grupo e produzem ações fundamentais para a criação e transformação de sua institucionalidade. Assim, é por meio do processo de TDR que se constroem as instituições de um movimento.

Vale explicar mais detalhadamente o item quatro. Por exemplo, "o MST se institucionalizou territorializando as práticas e infraestruturas necessárias à sustentação do movimento" (Halvorsen, Fernandes e Torres 2019, 1461).2 Quer dizer, isso aconteceu enquanto solucionava problemas referentes à produção agrícola, infraes-trutura, educação, saúde, dentre outros, criando suas próprias instituições (cooperativas, escolas, lojas etc.), passando a atuar em múltiplas dimensões do território (social, econômica, política, cultural e ambiental) e se relacionando com outros movimentos, partidos políticos e governos. Todas essas relações podem conformar novas instituições (territorialização), extingui-las (des-territorialização) ou reconfigurá-las (reterritorialização).

Os eixos analíticos propostos por Halvorsen, Fernandes e Torres (2019) proporcionam um direcionamento para a compreensão do porquê o território é um componente necessário para entender os movimentos sociais. Assim, é possível pensar o território como estratégia e como tática.3 Tática no sentido de facilitar a criação de subjetividades políticas e afetivas/emocionais que levam as pessoas a protestarem diante das injustiças sociais. Essas subjetividades são mais do que um elemento psicológico individual, pois se constituem em um importante elemento de sustentação do movimento. No que se refere à estratégia, os movimentos socioterritoriais possuem uma estratégia estritamente territorial, pois o objetivo central é a conquista de territórios, elemento primordial para o triunfo do seu projeto político. Portanto, os eixos analíticos propostos ajudam a pensar como e por que o território facilita a mobilização.

Vale ressaltar que a luta dos movimentos socioterri-toriais não é apenas pela terra em si, mas pelo território em toda a sua complexidade, isto é, o território material e imaterial em suas distintas dimensões (política, econômica, social, ambiental e cultural). É uma luta pela apropriação e organização de seus próprios territórios onde sejam garantidos serviços de saúde, educação, trabalho, renda, lazer e cultura. Nesse sentido, o MST não se restringe apenas à reinvindicação pela reforma agrária, mas busca uma mudança estrutural da sociedade que perpassa pela construção de outra relação com a terra e com a comida. Assim, o movimento constrói ações a fim de gerar um debate público sobre importantes questões sociais como, por exemplo, a produção de alimentos, a problemática dos agrotóxicos, a soberania alimentar, dentre outros.

As intencionalidades, ideologias e a correlação de forças nos governos fazem com que, em alguns momentos, os movimentos consigam avançar em suas pautas e na construção/expansão de seus espaços e territórios. Já em outros, os movimentos são atingidos com a descontinuidade das políticas públicas conquistadas e com a destruição/refluxo de seus espaços e territórios. Dessa forma, nas páginas seguintes será contextualizada e discutida, mesmo que resumidamente, a maneira como os governos têm tratado a questão agrária e se relacionado com os movimentos, em especial com o MST.

Os movimentos socioespaciais e socioterritoriais no Brasil

O MST é um dos principais movimentos de luta pela reforma agrária em um país que possui uma das maiores concentrações fundiárias do mundo. Segundo o censo agropecuário realizado em 2017, o índice de Gini para a concentração de terras foi o maior da série histórica, monitorada desde 1985, atingindo o número de 0,867 (O Globo 2019). Além disso, o MST é um dos exemplos mais nítidos de movimento socioterritorial no Brasil, tendo em vista que a conquista de territórios é o objetivo central de suas ações (Halvorsen, Fernandes e Torres 2019). Desde a sua criação, a ocupação de terras é a estratégia central do movimento, sendo essa uma forma contundente de pressionar o poder público. As ocupações e demais ações realizadas pelo MST e outros movimentos fez com que o Estado fosse obrigado a responder com a criação de assentamento rurais, os quais "formaram a espinha dorsal da reforma agrária no Brasil" (Halvorsen, Fernandes e Torres 2019, 1460).4

A pressão social exercida por meio das ocupações fez com que o governo de Fernando Henrique Cardoso, mesmo se caracterizando como um governo neoliberal, criasse em seus seis primeiros anos (1995-2000) 3.505 assentamentos rurais, assentando 373.210 famílias, número consideravelmente superior comparado aos governos anteriores (Sarney e Collor/Itamar) (Oliveira 2007). Contudo, o número de famílias sem-terra era muito maior do que a projeção realizada pelo governo. Conforme os movimentos visualizaram a possibilidade de conquistar frações de território, as ocupações se avolumaram. Com isso, o governo Cardoso decidiu mudar a estratégia e criminalizar as ocupações como modo de controle (Oliveira 2007; Halvorsen, Fernandes e Torres 2019). Assim, no período de 2000 a 2002, foram criados pelo governo Cardoso diversos mecanismos para desestabilizar os movimentos de luta pela terra, sobretudo, o MST. Dentre esses mecanismos, estão o aumento da violência policial e a edição da Medida Provisória 2109, que proibiu a realização de vistorias para fins de desapropriação em imóveis ocupados por dois anos (Presidência da República 2001). Ademais, articuladas com grandes órgãos da imprensa, foram realizadas diversas ações midiáticas com a finalidade de construir a imagem negativa de que os trabalhadores sem-terra eram "invasores" e "oportunistas", destruindo qualquer forma de apoio popular as ocupações (Oliveira 2007; Halvorsen, Fernandes e Torres 2019).

Após o governo de Fernando Henrique Cardoso, iniciou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, marcado por uma grande expectativa por parte dos movimentos, considerando que Lula, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), sempre manteve uma postura favorável aos movimentos socioespaciais e socioterritoriais. Em razão da perspectiva de criação/expansão dos territórios camponeses, as ocupações, que haviam diminuído no segundo mandato de Cardoso, voltaram a crescer. Nos primeiros quatro anos de mandato (2003-2006), o governo Lula assentou 270.090 famílias, número que apesar de estar abaixo da meta estipulada no ii Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborado em 2003, incentivou que novas ocupações de terra ocorressem (Oliveira 2007; Halvorsen, Fernandes e Torres 2019).

No segundo mandato de Lula (2007-2010), o número de famílias assentadas caiu consideravelmente (107.757), o que segundo Halvorsen, Fernandes e Torres (2019) 5 está relacionado com a "nova conjuntura política em que o governo Lula buscou fortalecer alianças com representantes do agronegócio (proprietários de terras, corporações nacionais e multinacionais) que tinham pouco interesse na reforma agrária" (1462). No governo subsequente, de Dilma Rousseff (2011-2016), também filiada ao PT, as alianças com os setores ligados ao agronegócio permaneceram, o que refletiu em uma redução ainda maior do número de famílias assentadas (47.916), gerando uma atmosfera de tensão na relação dos movimentos com o governo (Halvorsen, Fernandes e Torres 2019).

Mesmo sem fazer a reforma agrária da forma como prometido na campanha eleitoral, os governos petistas sempre mantiveram o diálogo com os movimentos, principalmente com o MST. Durante o período de 2003 a 2016, os movimentos avançaram na participação referente às tomadas de decisões e na qualificação, ampliação e construção de políticas públicas de sustentabilidade da agricultura camponesa, dentre elas, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Assim como salientam Halvorsen, Fernandes e Torres (2019):

Esses programas são todos resultados de negociações entre o MST (e outros movimentos socioterritoriais) e o Estado e representam passos cruciais para a institucionalização da reforma agrária e do modelo da "família agrícola". Essas políticas abriram novas possibilidades para a terri-torialização da produção agroecológica que se tornou uma característica central do campesinato agrícola no Brasil. A apropriação do espaço em busca de projetos políticos é essencial para a transformação da realidade e constitui a razão central para a continuidade da existência do MST. (1463)6

Desde o golpe parlamentar-jurídico-midiático de agosto de 2016 que destituiu a presidenta Dilma e colocou Michel Temer na presidência da república, tivemos a retomada do ideário neoliberal, seguido do fortalecimento das alianças entre o governo e os setores do agronegócio, o que pode ser interpretado como uma forma de "pagamento" pelo apoio manifestado à Michel Temer e a expressiva votação dos parlamentares ligados a Bancada

Ruralista a favor do processo de impeachment da presidenta Dilma (Leite, Castro e Sauer 2018). A virada política ocasionada com a ascensão de Temer à presidência trouxe sérias consequências para a classe trabalhadora na cidade e no campo. De um lado, o governo concedeu uma série de vantagens para o agronegócio, como descontos de até 95 % para a quitação de débitos de produtores rurais inscritos na Dívida Ativa da União, redução dos mecanismos de controle fundiário e ambiental de unidades de conservação, ampliação das explorações em áreas sensíveis da Amazônia etc. (Leite, Castro e Sauer 2018). De outro lado, sob o pretexto da crise econômica, importantes órgãos para a agricultura camponesa e para a reforma agrária foram desmontados ou tiveram suas funções restringidas. Por exemplo, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi extinto e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) sofreu reduções orçamentárias, o que comprometeu a desapropriação e criação de novos assentamentos, a assistência técnica e extensão rural para a reforma agrária e a educação do campo. Consecutivamente, as políticas de sustentabilidade da agricultura, como o PAA, o PNAE e o PRONERA, passaram por um processo de disrupção por meio de abruptos cortes no orçamento (Leite, Castro e Sauer 2018).

A eleição de Jair Messias Bolsonaro em 2018 aprofundou os privilégios do agronegócio e o desmonte dos órgãos e políticas públicas destinadas à agricultura camponesa. Bolsonaro se caracteriza como um governo de extrema direita com uma agenda econômica neoliberal. Durante a campanha, Bolsonaro recebeu apoio de diversas organizações ligadas aos ruralistas e ao agronegócio, dentre elas, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a União Democrática Ruralista (UDR). Paralelamente, Bolsonaro adotou um discurso ideológico contra os movimentos e os povos campesinos e tradicionais, chegando a defender o uso de armas de fogo contra as ocupações e que as ações do MST deveriam ser tratadas como terrorismo (De Olho nos Ruralistas 2018; Fernandes et al. 2020). Após a eleição, Bolsonaro criou diversos mecanismos para atender os interesses do agronegócio e dos ruralistas. Como exemplo das ações do governo, podemos destacar a liberação massiva de agrotóxicos, sendo que somando 2019 e 2020, 503 produtos foram autorizados no país (G1 2019). Outro ponto são as alterações nas regras de regularização fundiária propostas, primeiro, pela Medida Provisória 910 e, depois, pelo Projeto de Lei 2633/20, que, em resumo, facilitam a grilagem de terras.

Enquanto o governo favorece o modelo produtivo do agronegócio, ele exclui completamente a agricultura camponesa. Uma das primeiras ações do governo foi paralisar a reforma agrária, suspendendo todos os processos de compra e desapropriação de terras. Além disso, a capacidade operacional do INCRA foi ainda mais reduzida, sendo que importantes funções atreladas a reforma agrária, tais como a destinação de terras públicas e a seleção de famílias para assentamentos, foram passadas para o Ministério da Agricultura, historicamente comprometido com os interesses dos ruralistas (Santos 2020; Fernandes et al. 2020).

Os cortes orçamentários nas políticas voltadas à agricultura camponesa também foram intensificados. Alguns programas foram extintos, como o caso do programa Terra e Sol. Outros foram bastante reduzidos, por exemplo, o PRONERA (Santos 2020). O aumento da violência contra acampamentos e assentamentos tem sido outro traço marcante desse governo, seja pelas ações de despejo realizadas pelo Estado ou pelas ações efetuadas pelos pistoleiros, contratados por ruralistas, que se sentem confortáveis para praticar ameaças, assassinatos, intimidações e outras ações, considerando a postura do governo (Brasil de Fato 2020c; Brasil de Fato 2020d).

O aprofundamento da agenda neoliberal de Temer por Bolsonaro não tem afetado somente os movimentos, mas o conjunto da classe trabalhadora no campo e na cidade, sobretudo considerando a perda de direitos trabalhistas, o aumento do desemprego, a inflação, a desvalorização da moeda e as constantes altas dos preços dos alimentos, incluindo aqueles que compõem a dieta básica da população. Essa situação está refletindo no aumento da extrema pobreza no país, sendo que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Agência IBGE 2020), em 2019, o Brasil já possuía 13.689 milhões de pessoas em condições de extrema pobreza, o que significa que essa parte da população vivia com menos de USD 1,90 por dia. A tendência é que esse número tenha crescido em 2020 e que continue aumentando em 2021, em função da pandemia do novo coronavírus (SARS-COV-2) que causa a COVID-19 e da ausência ou da implantação de forma bastante restrita de políticas públicas voltadas a garantia de renda para os mais vulneráveis.

A somatória desses fatores tem contribuído para o retorno do Brasil ao mapa da fome, que consiste na relação de países que têm mais de 5 % da população ingerindo menos calorias do que o recomendável. Em 2014, o país havia deixado de fazer parte dessa relação (Brasil de Fato 2020b). Desde o início da pandemia, em fevereiro de 2020, Bolsonaro assumiu uma postura "ne-gacionista", desrespeitando e se posicionando contra as recomendações da OMS, como o isolamento social. O presidente também incentivou a população a utilizar medicamentos que não possuem eficácia comprovada para o tratamento da doença, ocasionou aglomerações, tentou se isentar da responsabilidade com relação à crise sanitária e trocou o ministro da saúde mais de uma vez, em razão de divergências relativas a como a pandemia deveria ser tratada. Esses fatores levaram o Brasil a ser considerado o país com a pior gestão da pandemia em um grupo composto por trinta nações (Congresso em Foco 2021). Consecutivamente, fez com que até 31 de março de 2021 o país registrasse o total de 12.748.747 casos e 321.515 óbitos (Coronavírus Brasil 2021). Grande parte das vítimas são moradores das periferias, povos indígenas e quilombolas, moradores de rua e outros grupos desas-sistidos. É nesse contexto que as doações de alimentos realizadas pelo MST e outros movimentos se configuram em importantes ações de solidariedade e combate à fome. Essas ações são analisadas na próxima seção.

As doações de alimentos do MST frente a pandemia do coronavírus e a "pandemia da fome"

Assim como sugere o título da reportagem do Brasil de Fato (2020a), junto com a pandemia do coronavírus, parte da população brasileira enfrenta uma "pandemia da fome", a qual os movimentos socioespaciais e socio-territoriais buscam combater por meio de doações de alimento realizadas em todo o país. No período selecionado para a análise (março de 2020 a março de 2021) foram identificadas 474 ações que resultaram na doação de 1.760 toneladas e 595 quilos de alimentos in natura, 98.102 marmitas, 9.646 cestas de alimentos, 8.275 pães, 2.738 cestas básicas, 487 kits de alimentos e produtos de higiene, 22.936 litros de leite e centenas de cafés da manhã solidários, realizados principalmente no estado do Maranhão. É bastante provável que o total de ações e de alimentos doados sejam maiores do que os números levantados, tendo em vista as ações que foram realizadas mas não divulgadas e alguns casos em que a publicação não informava a quantidade de alimentos doados.

As doações foram destinadas às famílias de bairros periféricos, moradores de ocupações urbanas, asilos de idosos, hospitais públicos e Santa Casas, entregadores de aplicativos em greve, abrigos, comunidades indígenas, moradores de rua, dentre outros. Além dos alimentos e refeições, o movimento também organizou e participou de doações de recargas de gás de cozinha, preparados homeopáticos, luvas, máscaras, álcool em gel, sabão caseiro e água sanitária, sendo esses últimos quatro, produtos essenciais para a proteção contra o coronavírus.

Muitas das ações realizadas foram provenientes da articulação do MST com outras instituições e movimentos, dentre eles, o Movimento dos Pequenos Agricultores, o Movimento dos Atingidos por Barragens, a Comissão Pastoral da Terra, a Via Campesina, o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos, a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas, a Rede Agroflorestal, o Levante Popular da Juventude, a Central Única dos Trabalhadores, o Movimento pela Soberania Popular na Mineração, o Movimento de Mulheres Camponesas, o Grupo de Estudos Na Luta da Universidade Federal do Paraná, o Sindicato dos Petroleiros do Paraná e Santa Catarina, o Sindicato dos Bancários, o Conselho Indigenista Missionário, o Centro de Referência da Assistência Social e a Igreja Católica.

Grande parte das ações se concentraram em torno de datas significativas, como o Dia Internacional da Mulher (8 de março), o Dia do Trabalho (1° de maio), o Dia Internacional do Agricultor e da Agricultora Familiar (25 de julho) e o Dia Nacional da Luta Pela Reforma Agrária (17 de abril), data escolhida em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás ocorrido em 1996 no Pará, em que dezenas de camponeses sem terra foram assassinados por forças policiais. Conforme é possível verificar na Tabela 1, a maior quantidade de doações ocorreu entre abril a julho. Esse também foi o período do lançamento de campanhas oriundas das articulações entre o MST e outros movimentos e instituições, como Mulheres Sem Terra: Contra o Vírus e as Violências, Periferia Viva, Mãos Solidárias e Vamos Precisar de Todo Mundo.

Tabela 1 Principais doações efetuadas pelo MST durante a pandemia no Brasil (2020-2021) 

Mês Toneladas (in natura) Marmitas (unidades) Cestas (unidades)
Mar. 2020 1.000 8.000 -
Abr. 2020 384.530 10.750 1.080
Mai. 2020 136.520 5.400 550
Jun. 2020 362.195 1.650 1.000
Jul. 2020 428.780 6.050 2.700
Ago. 2020 101.100 29.000 90
Set. 2020 97.750 8.100 231
Out. 2020 21.830 7.400 200
Nov. 2020 7.600 3.000 -
Dez. 2020 132.690 5.452 3.100
Jan. 2021 9.000 - -
Fev. 2021 14.800 4.500 70
Mar. 2021 62.800 8.800 625
Total 1.760.595 98.102 9.646

Dados: 473 notícias divulgadas pelo MST e organizadas pelas autoras.

Assim como explica em entrevista a camponesa Margarida Moura, a concentração das doações entre os meses de abril e julho se justifica por esse ser o período no qual em vários estados do Brasil os camponeses conseguem obter maior produtividade devido às condições climáticas e outras características naturais. Outro motivo apontado pela camponesa é a organização interna do movimento, que construiu jornadas unificadas de doações de alimentos em diversas regiões como forma de lembrar datas que simbolizam lutas por diferentes espaços e territórios, tais como as citadas, todas situadas no período mencionado.

Vale ressaltar o papel de destaque das mulheres no que se refere à preparação das refeições, como demonstra a Figura 1. Isso pode estar relacionado à tradicional divisão sexual do trabalho que atribui às mulheres tarefas mais relacionadas ao cuidado da saúde, da casa, da família, do lote etc. Apesar da paridade de gênero ser cada vez mais discutida dentro do Movimento e das mulheres também estarem na linha de frente de outras formas de luta, como foi visto na ocupação do Ministério da Agricultura em Brasília em março de 2020 durante a Jornada Nacional de Lutas das Mulheres Sem Terra (Rede Brasil Atual 2020).

Muitas ações de doação de alimentos foram realizadas pelas mulheres durante a jornada de lutas relacionada ao Dia Internacional da Mulher, que em 2020 teve lemas como "Mulheres pela vida, semeando a resistência contra a fome e as violências", no Paraná, e, em 2021, "Mulheres na luta pela vida, fora governo Bolsonaro! Em defesa do SUS! Vacina para todos e auxílio emergencial já! Água é um direito, contra a privatização da CEDAE!", no Rio de Janeiro.

Podemos perceber a diversidade das pautas das mulheres, que perpassa a violência de gênero, a defesa da saúde e dos bens essenciais para a vida. A mobilização das mulheres não se restringiu ao Dia Internacional das Mulheres, pois elas estiveram atuantes durante todo o período da pandemia, como pode ser observado nas divulgações realizadas pelo movimento em suas redes sociais (Figura 1). De acordo com o depoimento da camponesa Margarida Moura: "a participação das mulheres do movimento sem-terra é sempre uma ação de vanguarda. As mulheres sempre estiveram presentes nas ações do movimento, especialmente quando a gente debate esse tema da solidariedade, da cooperação, da agroecologia, da produção de comida.

Fonte: MST (2021).

Figura 1 Mulheres Sem Terra preparam mil marmitas para doação em Londrina-PR.  

Além do Dia Internacional da Mulher, o Dia do Trabalho em 2020 também foi marcado por várias ações de solidariedade do MST, assim como a entrega de marmitas aos trabalhadores informais e desempregados. A distribuição de marmitas também foi uma forma de apoiar a greve dos entregadores de aplicativo contra a precarização do trabalho (Figura 2).

Fonte: MST (2020a).

Figura 2 Distribuição de 250 marmitas aos entregadores de aplicativo em Maceió-AL.  

As ações de solidariedade se constituem em uma importante forma de diálogo com a sociedade a respeito de diversas questões atuais que envolvem as relações de trabalho, de gênero, dentre outras. A partir da organização coletiva, formam-se espaços comunicativos e de socialização política (Fernandes 1999) dentro e fora do movimento, isto é, nos assentamentos e acampamentos que doam a comida, nas cozinhas onde as refeições são preparadas e nas ruas, onde os movimentos interagem com a sociedade, divulgam a sua produção de alimentos, criam debate político e apoiam outras pautas de luta.

Conforme o relato de Margarida Moura, a solidariedade é uma prática permanente do MST, sendo compreendida como um valor humanitário. Segundo as palavras da camponesa, "solidariedade não é dar aquilo que está sobrando, solidariedade é dar aquilo que a gente tem, inclusive aquilo que pode nos fazer falta, [...] a gente entende que nesse momento o que a gente precisa fazer é cumprir com a nossa tarefa histórica de produzir alimento saudável para o povo brasileiro".

As ações de solidariedade vêm demonstrando ser uma verdadeira forma de luta do movimento e um mecanismo de denúncia das ações e omissões do Estado que atentam contra a vida. Um exemplo emblemático são os acampamentos ameaçados de despejo que conseguem produzir, mesmo nas difíceis condições de um acampamento, e, ainda, doar alimentos para famílias carentes. Além de ajudar essas famílias, os acampados conseguem obter uma visibilidade positiva sobre a importância da manutenção das famílias na terra para a produção de alimentos e evidenciar a desumanidade dos despejos, sobretudo no contexto de pandemia. Desse modo, percebe-se que o movimento adapta suas formas de luta segundo as necessidades que a realidade impõe. Não que haja um abandono das tradicionais estratégias de luta (ocupação, bloqueio de rodovias, marchas etc.), mas o movimento consegue acompanhar as novas demandas até mesmo no que se refere à utilização das mídias sociais para a comunicação com a sociedade, as formas de produção agroecológica e a inovação de mercados para comercialização de seus produtos. Talvez, por essa sua capacidade de adaptação, o MST seja hoje um dos movimentos socioterritoriais protagonistas do campo brasileiro.

As novas subjetividades políticas formadas vão se traduzindo em novos valores que geram mobilizações e ações, tais como as de solidariedade, que vão transformando a própria institucionalidade do movimento, criando novos saberes que vão sendo socializados pelo coletivo, como bem observado por Halvorsen, Fernandes e Torres (2019).

Além de lutar pelos seus próprios territórios, o movimento se solidariza com outras lutas territoriais, como a dos indígenas, que foram duramente atingidos pela co-ViD-19 e abandonados pelo Estado. Exemplo disso são as doações de cinco toneladas de alimentos realizadas em Curitiba e Piraquara (Paraná) em 14 de abril, data importante para a luta indígena (Figura 3).

Fonte: MST (2020b).

Figura 3 Doação de cinco toneladas de alimentos para comunidades indígenas urbanas no estado do Paraná.  

Vale ressaltar que as ações de solidariedade aconteceram em todo o país, mas tiveram uma contribuição maior da região Sul do Brasil, responsável por mais de 50 % das doações de alimentos in natura, quase 45 % das marmitas e 50 % das cestas. A região Nordeste também se destacou na doação de quase 40 % dos alimentos in natura. A região Sudeste foi a segunda maior doadora de marmitas (36 %) e de cestas (35 %). Na Figura 4, na Figura 5 e na Figura 6 são espacializadas as doações de alimentos in natura, cestas e marmitas realizadas em todo o país.

Dados: redes sociais do MST (2020, 2021).

Figura 4 Alimentos in natura doados pelo MST na pandemia (mar. 2020 a mar. 2021).  

Dados: redes sociais do MST (2020, 2021).

Figura 5 Cestas de alimentos doadas pelo MST na pandemia (mar. 2020 a mar. 2021).  

O protagonismo da região sul nas doações pode estar relacionado ao fato de a região ser pioneira na luta pela reforma agrária, onde justamente o MST foi fundado, por isso os assentamentos rurais são mais consolidados e há importantes cooperativas agrícolas. Vale ressaltar também que as doações de cestas e marmitas tiveram maior concentração nas capitais Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.

Em 17 de abril de 2020, as cooperativas do MST doaram 1.500 litros de leite para o Hospital das Clínicas de Curitiba (Figura 7), como parte de suas ações de solidariedade e em memória do Massacre de Eldorado dos Carajás. Para além de solidariedade, as doações de alimentos realizadas pelo MST durante a pandemia possuem um significado político. Essas ações evidenciam a importância e a necessidade da reforma agrária.

Dados: redes sociais do MST (2020, 2021).

Figura 6 Marmitas doadas pelo MST na pandemia (mar. 2020 a mar. 2021).  

Fonte: MST (2020c).

Figura 7 Doação de 1.500 litros de leite para hospital em Curitiba-PR.  

Grande parte da extensão do território brasileiro é ocupado pelo agronegócio, milhões de hectares de monocultura de soja, milho e cana-de-açúcar, dentre outros, além de áreas improdutivas que não cumprem sua função social. O MST disputa esses territórios com o objetivo de transformar a realidade do campo brasileiro e produzir comida ao invés de commodities e, assim, cumprir a função social da terra, conforme estabelecido pelo artigo 186 da Constituição Federal do Brasil. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: 1) aproveitamento racional e adequado; 2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; 3) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e 4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (Presidência da República 1988).

Vale destacar o projeto de Reforma Agrária Popular do MST, cujo objetivo é a produção de comida saudável, diversificada e a preço justo para alimentar os próprios produtores e a classe trabalhadora urbana. Além disso, a produção agroecológica tem ganhado cada vez mais espaço dentro do Movimento. O MST, por exemplo, é o maior produtor de arroz agroecológico da América Latina, com aproximadamente 27 mil toneladas por safra destinadas, principalmente, para a alimentação escolar (Zarref 2018).

A produção nos territórios da reforma agrária cumpre a função social da terra e garante comida de boa qualidade para a sociedade. Muitos dos alimentos doados são orgânicos ou agroecológicos, contribuindo não apenas para saciar a fome, mas para repor adequadamente os nutrientes necessários para uma boa saúde. Nesse sentido, as ações do movimento diferem muito da imagem negativa construída pela mídia, pelo agronegócio e pelos governos que o associa a crimes e terrorismo. O MST tem demonstrado humanidade e solidariedade em tempos tão difíceis da pandemia de COVID-19.

Considerações finais

Esse artigo realiza uma análise crítica das ações de solidariedade efetuadas pelo MST frente a crise econômica, social e sanitária estabelecida pela pandemia da COVID-19 e agravada pela forma de gestão neoliberal do governo Bolsonaro. O país, que já vinha enfrentando uma onda de retrocessos e perdas de direitos sociais desde 2016, chegou ao seu limite em 2020 e 2021 com a avalanche de mortes, o colapso do sistema de saúde e o retorno do país ao mapa da fome.

Em razão da importância dos movimentos socioes-paciais e socioterritoriais na luta pela justiça social, consideramos que as doações de alimentos realizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra têm grande importância social e política, uma vez que estabelece espaços comunicativos e de socialização política com diferentes segmentos da sociedade, abrindo caminho para a denúncia do descaso público com a saúde e com a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores. Esses espaços constituídos pela solidariedade também fortalecem as ações em conjunto com outros movimentos sociais, instituições e grupos que lutam por territórios, justiça e dignidade. Além disso, abrem um importante diálogo com a sociedade a respeito da importância da reforma agrária, da produção de comida saudável e da soberania alimentar.

A análise realizada neste artigo parte de uma perspectiva geográfica, enfatizando a importância do espaço e do território para a constituição de sociabilidades e subjetividades políticas que sustentam a mobilização e geram novas institucionalidades capazes de produzir as adaptações necessárias ao processo de luta mediante as transformações da sociedade. Nossa análise está fundamentada na noção de que o MST é um movimento socioterritorial, portanto, os territórios são o ponto de partida, o caminho estratégico e o ponto de chegada do movimento. O território perpassa todas as suas ações e estratégias, inclusive, quando realiza as doações dos alimentos produzidos nos territórios da reforma agrária.

Assim, mais do que números, as doações de alimentos do MST significam os resultados da reforma agrária alimentando quem mais precisa em um momento tão triste como o da pandemia. Nesse sentido, as ações de solidariedade do Movimento reforçam a importância e a necessidade da reforma agrária no Brasil.

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* Este trabalho é oriundo de duas pesquisas de doutorado financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), número do processo (2020/15045-3) e número do processo (2020/14998-7).

1O trabalho utiliza duas fontes de informação: a página do MST (https://mst.org.br/noticias/) e o Instagram (https://www.instagram.com/movimentosemterra/).

2No original: "The MST institutionalized by territorializing those practices and infrastructures necessary to sustain the movement". Tradução das autoras.

3Reflexão realizada por Sam Halvorsen na disciplina Contested territories: Anglophone debates in conversation with Latin American epistemologies, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Presidente Prudente, em 2020.

4 No original: "Have formed the backbone of agrarian reform in Brazil". Tradução das autoras.

5No original: "New political conjuncture in which Lula's go vernment sought to strengthen alliances with large agribusiness (national and multinational land owners) who had little interest in agrarian reform". Tradução das autoras.

6No original: "These programs are all the result of negotiations between the MST (and other socioterritorial movements) and the state and represent crucial steps toward the institutionalization of both agrarian reform and the model of the 'agricultural family'. These policies opened up new possibilities for the territorialization of agro-ecological production that became a central feature of the agricultural peasantry in Brazil. The appropriation of space in pursuit of political projects is essential for the transformation of reality and constitutes the central reason for the ongoing existence of the MST". Tradução das autoras.

COMO CITAR ESTE ARTIGO Jorge, Aline Albuquerque; Machado, Angela dos Santos. 2023. “Os movimentos socioterritoriais e a luta contra a fome durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil”. Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía 32 (2): 438-456. https://doi.org/10.15446/rcdg.v32n2.95846

Aline Albuquerque Jorge Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA), da Rede DATALUTA e do Coletivo de Mulheres da Rede DATALUTA. Trabalha com temas como reforma agrária, movimentos socioespaciais e socioterritoriais, modernização agrícola, assentamentos rurais, agroecologia, soberania alimentar, entre outros.

Angela dos Santos Machado Licenciada (2014) e mestre (2020) em Geografia na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Atualmente, doutoranda em Geografia na mesma instituição. Participa do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Projetos de Reforma Agrária (NERA) e Rede DATALUTA. Investiga os temas movimentos socioterritoriais, lutas por terra, reforma agrária e mercados campesinos.

Recebido: 18 de Maio de 2021; Revisado: 13 de Julho de 2021; Aceito: 07 de Fevereiro de 2023

* Correspondencia: Aline Albuquerque Jorge, Calle Arthur Whitaker, n.° 129, cep: 19060-440, Presidente Prudente, São Paulo, Brasil.

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