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Investigación y Desarrollo

Print version ISSN 0121-3261On-line version ISSN 2011-7574

Investig. desarro. vol.27 no.1 Barranquilla Jan./June 2019

 

Reseñas

CALIBÃ E A BRUXA: MULHERES, CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA

Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation

Bárbara Monteiro de Barros da Gama1 

1 Bacharel em Ciências Sociais (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Brasil); Mestranda em Sociologia (Universidade Federal de Minas Gerais -UFMG, Brasil).

Federici, Silvia. (, 2004. )., Calibã e a Bruxa. Tradução: Coletivo Sycorax. SP: Elefante. ,, 2017. .


RESUMO

A obra O Calibã e a bruxa é fruto de um projeto de pesquisa de mais de trinta anos desenvolvido pela historiadora Silvia Federici. Seu objetivo central é repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista com o cuidado de não delimitar e segregar a história das mulheres do setor masculino da classe trabalhadora. Para tal, retoma conceitos marxistas, teorias críticas feministas e uma análise sobre o corpo e sua politização à luz da teoria foucaultiana. Para Federici, existem aspectos que ficam ocultos nas referidas teorias no que tangem a discussões sobre dominação e exploração. Ressalta também o quanto análises sobre o período de caça às bruxas foi negligenciado ao longo dos anos e o que esse período essencialmente tem a contribuir para a análise da consolidação do capitalismo.

O conceito de acumulação primitiva desenvolvido por Karl Marx em sua obra O Capitalé fundamental para os desdobramentos e a compreensão deste processo histórico marcado por violências, dominação e exploração e que redefiniu estruturas da divisão sexual do trabalho. Federici se preocupa com o contexto contemporâneo em que houve a intensificação da violência contra as mulheres e a retomada da caça às bruxas - ainda que em "nova roupagem" - em alguns países, com destaque principal a países que sofreram com a colonização.

PALAVRAS-CHAVE: Acumulação primitiva; caça às bruxas; divisão sexual do trabalho

ABSTRACT

The work Caliban and the witch is the result of a more than thirty years research project developed by the historian Silvia Federici. Its central aim is to rethink the development of capitalism from a feminist point of view with the care not to delimit and segregate the history of women in the working-class male sector. It retakes Marxist concepts, feminist critical theories and an analysis on the body and its politicization in the light of the Foucaultian theory. For Federici there are aspects that are hidden in the said theories in what concerns the discussions on domination and exploration. It also highlights how many analysis on the witch-hunting period has been neglected over the years and what this period essentially has to contribute to the analysis of the consolidation of capitalism.

The concept of primitive accumulation developed by Karl Marx in his work Capital is fundamental for the unfolding and understanding of this historical process marked by violence, domination and exploitation and that redefined structures of the sexual division of labor. Federici is concerned about the contemporary context in which intensification of violence against women and the resumption of witch-hunt - albeit in a "new outfit" - in some countries, with a major emphasis on countries that have suffered colonization.

KEYWORDS: Primitive accumulation; witch-hunt; sexual division of labor

SOBRE A AUTORA E INSPIRAÇÃO DA OBRA

Silvia Federeci é ativista feminista, historiadora, pesquisadora e professora emérita radicada em Nova York e atualmente vinculada à Universidade Hofstrar (N.Y.). Nasceu em Parma, Itália (1942), e em 1967 se mudou para os Estados Unidos para estudar Filosofia na Universidade de Buffalo. Na década de 1980, trabalhou na Nigéria, experiência que a colocou em contato com um período de crise e dívida pelo qual passava o país.

Negociações foram feitas entre o Estado nigeriano, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial que estabeleceram programas de ajustes estruturais para recuperação econômica do país. Tais ajustes propunham caráter disciplinador da população e seu modelo remetia em grande parte a medidas comparáveis às medidas do Estado europeu no período de transição entre feudalismo e capitalismo. Em síntese, o modelo pressupunha um novo ciclo de acumulação primitiva e uma racionalização da reprodução social. Tais medidas impunham a desarticulação de aspectos da propriedade comunitária e de suas relações.

Federici revela que neste momento compreendeu que a luta contra o ajuste estrutural fazia parte de uma grande luta bem mais ampliada. O debate que incluía disciplinar a população passava por uma campanha misógina e tocava todos os aspectos da reprodução da força de trabalho incluindo profundamente estruturas da família, da criação das crianças, do trabalho das mulheres, da distinção demarcada das identidades masculinas e femininas e das relações entre homens e mulheres. Esses mesmos aspectos estavam presentes na origem do capitalismo na Europa e na América no século XVI.

Seu encontro com a Women in Nigeria, primeira organização feminista do país, também foi fundamental para sua compreensão e interesse sobre as lutas e a organização de mulheres em prol da resistência.

Foi a partir dessa vivência que seu interesse em retomar seus estudos sobre a "transição ao capitalismo" despertou, pois percebeu a necessidade de aprofundar suas pesquisas sobre esse período histórico por um viés diferente, abarcando uma perspectiva para além do prisma europeu do século XVI. Por isso, propôs-se à reconstrução das lutas antifeudais da Idade Média e às lutas de resistência do proletariado europeu à chegada do capitalismo. Há uma fundamental preocupação com a reconstrução da memória de uma longa história de resistência que, segundo afirma, corre o risco de ser apagada.

Inspirada na tese de Mariarosa Dalla Costa e Selma James e outras ativistas do Wages for Housework Movement (movimento por um salário para o trabalho doméstico ao qual compõe), Federici se posiciona contra a ortodoxia marxista que delimita a situação de opressão das mulheres e sua subordinação aos homens como resíduo das relações feudais. Uma abordagem mais aprofundada coloca que a exploração das mulheres havia, na realidade, exercido função central no processo de acumulação capitalista. Disciplinar esses corpos era crucial para o sucesso da consolidação do capitalismo, pois as mulheres são produtoras e reprodutoras da mercadoria capitalista mais essencial, a força de trabalho.

ESTRUTURAÇÃO DA OBRA

O título da obra se baseia na peça de Shakespeare "A Tempestade", em que Calibã não representaria somente o rebelde anticolonial, mas seria também um símbolo para o proletariado mundial, especificamente para o corpo proletário como instrumento de resistência à lógica do capitalismo. A peça também traz Sycorax, a mãe de Calibã, na figura de uma mulher considerada bruxa.

A obra de Federici é trabalhada em cinco capítulos, sendo os dois primeiros divididos em uma abordagem inicial dos movimentos sociais e da crise política na Europa medieval e no aprofundamento nas questões ligadas às lutas urbanas, na acumulação de trabalho e no início da degradação das mulheres em decorrência da divisão sexual do trabalho.

Os capítulos três e quatro abordam essencialmente as imposições do Estado para a disciplinarização de corpos e a centralidade no corpo das mulheres que tiveram suas dinâmicas de sociabilidade e de autonomia completamente alteradas. Esse processo de impor disciplina aos corpos dos homens trabalhadores e das mulheres a partir de uma nova lógica que os apartava de um convívio comunal levou à criminalização de corpos e de práticas antes comuns.

O capítulo cinco aborda a internacionalização do capitalismo por meio da colonização e da cristianização. Nesse período, são identificadas medidas impostas ao chamado Novo Mundo que também tinham por objetivo criar espaços específicos para corpos específicos - mulheres no espaço doméstico, destinadas ao cuidado do lar, à reprodução e à criação dos filhos e homens destinados ao espaço público, como força de trabalho.

Há uma abordagem essencial relacionando Estado e Igreja, que expõe as intenções principais ao demonizar e punir corpos que resistiam às imposições e às novas legislações. Fica muito bem delimitado pela pesquisadora o quanto foram construídas estratégias de resistência às tentativas de imposição do novo sistema.

Federici aborda o quase consenso de que a caça às bruxas tenha sido validado na tentativa de destruição do controle que as mulheres exerciam sobre sua capacidade reprodutiva. Esse entrave afetaria a consolidação do sistema patriarcal necessário para a vigência do capitalismo.

O capitalismo representa essa cisão entre trabalho produtivo e reprodutivo por meio do qual as mulheres são excluídas dos meios de produção e do trabalho assalariado. A posição da mulher alocada ao âmbito doméstico recompõe o trabalho produtivo exercido pelo homem na medida em que assegura um ambiente doméstico "bem cuidado" para o retorno dos homens assalariados ao retornarem de seus trabalhos. Essa condição legitima o trabalho escravo da mulher no ambiente doméstico que não é valorizado.

A discordância com a abordagem marxiana está justamente na ausência de interpretação de que o trabalho reprodutivo desempenhado exclusivamente pelas mulheres gera valor tanto quanto o trabalho produtivo, dado que se é também executado um serviço. Há também uma lógica de lucro implícita nas práticas domésticas das mulheres, pois suas atividades não são remuneradas, não entram no cálculo de salário dos trabalhadores.

Enquanto Marx examina a acumulação primitiva do ponto de vista do proletariado assalariado de sexo masculino e do desenvolvimento da produção de mercadorias, eu a examino do ponto de vista das mudanças que introduz na posição social das mulheres na produção da força de trabalho (Federici, 2004, p. 16).

Para a análise da acumulação capitalista, Federici destaca fenômenos relacionados ao desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal baseada na exclusão das mulheres de trabalhos remunerados acarretando um efeito de subordinação e de dependência econômica em relação aos homens; a mecanização do corpo proletário e, no caso das mulheres, na transformação de seus corpos em máquinas de produção de novos trabalhadores.

Outra consequência decorrente da invisibilização do trabalho doméstico é a intensificação da naturalização do trabalho reprodutivo, "aprisionando" ainda mais a vivência das mulheres ao âmbito doméstico.

Federici resgata o papel das lutas que o proletariado travou contra o poder feudal e destaca o papel fundamental da mulher nesse processo. A pesquisadora ainda destaca que na realidade o capitalismo não foi uma solução ao feudalismo, tampouco uma forma mais elevada de vida social, como correntes liberais assim a defendem. Em verdade, o capitalismo surge como uma contrarrevolução em resposta aos conflitos sociais. As relações que as mulheres tinham com o espaço e a proposta de uma vida comunal eram contrárias à ordem capitalista. A ameaça que representavam estava embasada justamente na demonstração de outro mundo possível.

Além de incentivar a tomada de decisão coletiva e a cooperação no trabalho, as terras comunais eram a base material sobre a qual podia crescer a solidariedade e a sociabilidade campesina. Todos os festivais, jogos e reuniões da comunidade camponesa eram realizados nas terras comunais. A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres, que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais dependentes delas para a subsistência, autonomia e sociabilidade (Federici, 2004, p. 127).

As terras comunais representavam o centro da vida social para as mulheres, onde ocorriam trocas com outras mulheres, recebiam-se notícias e conseguiam exercer sua autonomia para além da perspectiva masculina. Esses espaços representavam uma rede de cooperação na Idade Média pré-capitalista. Por mais que já houvesse uma notória divisão sexual do trabalho que atribuía mais direitos aos homens sobre as terras, ainda assim as mulheres tinham esse espaço de inserção e de sociabilidade. As atividades domésticas não eram desvalorizadas e não supunham relações sociais diferentes das dos homens. Todo trabalho era visto como contribuição para o sustento.

É importante salientar que as relações coletivas prevaleciam em detrimento das familiares e a maioria das tarefas realizadas pelas mulheres era em cooperação com outras, constituindo uma fonte de poder e de proteção.

Com a abolição do sistema de "campos abertos" e com a implementação da política de cercamentos às terras comunais, impac-tou-se diretamente no modo de produção agrícola e se acentuaram as diferenças econômicas entre a população rural. A partir deste processo, a coesão social ficou abalada e começou um aumento de vagabundos, de trabalhadores itinerantes, além do abandono de idosos e do aumento de furtos e de dívidas.

A expropriação dos trabalhadores rurais, consequência dos cercamentos, gerou uma mão de obra barata e dependente economicamente sob forma que não existia na época medieval. Houve resistência frente à medida e muitas mulheres encabeçaram o movimento de êxodo para as cidades no final do século XII. No século XV, elas constituíam uma alta porcentagem da população das cidades e com ocupações em trabalhos mal pagos, mas, em contrapartida, a vida nos centros urbanos proporcionava maior autonomia e muitas mulheres ocupavam cargos que posteriormente seriam destinados somente aos homens.

À medida que a independência feminina ganhava espaço, inicia-se uma reação misógina e houve inclusive um período em que os historiadores o definiram por "a luta pelas calças". Fato é que o ambiente dos centros urbanos expunha as mulheres a espaços como o de movimentos populares, sendo que muitos deles eram considerados heréticos.

Enquanto para a Igreja o lugar da mulher era associado à submissão e a espaços sem valor, para o movimento herético elas eram consideradas iguais, com os mesmos direitos que os homens a disfrutar a vida social. É importante destacar que nesse período existem relatos de que as mulheres tentavam controlar sua função reprodutiva e existem muitas referências ao aborto e a métodos contraceptivos. A mudança de postura da Igreja frente a tais práticas mudou drasticamente logo que o controle reprodutivo passou a ser percebido como ameaça à estabilidade econômica social.

Algumas medidas foram tomadas para controlar as reações de jovens e de rebeldes dentre elas a "maliciosa política sexual" que praticamente descriminalizou o estupro nos casos em que as vítimas eram mulheres de classe baixa.

Este exemplo foi destacado para demarcar os recortes de gênero que ficavam cada vez mais acentuados. Essa medida significou a diminuição de tensão social para o Estado enquanto que para as mulheres os impactos foram extremamente degradantes, significando a destruição de sua reputação e uma consequente necessidade de se prostituírem e perderem seu lugar na sociedade.

A fragmentação que a política sexual trouxe impulsionou também a legalização de bordéis municipais que ficaram comuns na Europa. A Igreja apoiou tal medida encarando-a como um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas e dando-lhes mais controle sobre as seitas hereges e a sodomia, o que impactava consequentemente na manutenção da família. Não se pode perder de vista que esse controle promovia também a supervisão da reprodução da força de trabalho a partir do controle do corpo das mulheres.

Em suma, é possível dizer que o perfil da subalternização e da pobreza foi histórico e socialmente moldado ao decorrer dos anos pelo Estado em cumplicidade com a Igreja em um plano violento para a consolidação de um sistema econômico patriarcal.

A "transição" do feudalismo para o capitalismo foi demarcada por iniciativas pontuais das quais se destacam: criação de uma força de trabalho mais disciplinada; dispersão dos protestos sociais; fixação de trabalhadores nos afazeres que haviam sido impostos. A sexualidade perpassou todos esses pontos sendo determinante o caráter misógino e desmoralizante das mulheres frente à sociedade. Além disso, passou-se a haver mediação entre os trabalhadores e o capital quando da implementação da assistência pública pelo Estado. Configurou-se uma nova ordem patriarcal, definida por Federici como "patriarcado do salário", que basicamente impossibilitava que as mulheres tivessem seu próprio dinheiro, pois suas condições materiais ficaram condicionadas ao homem e elas tinham seu trabalho doméstico ocultado. Tais condições levaram à reflexão de que, na transição para o capitalismo, o grupo de trabalhadores que mais se aproximou da condição de escravos foram as mulheres trabalhadoras.

CAPITALISMO E A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Aprofundando a compreensão sobre a politização do corpo, é necessário regressar a contextos específicos. Como abordado anteriormente, devido às ações do Estado e da Igreja para que se mantivesse a ordem que impunha o desenvolvimento do sistema capitalista, foi instaurada uma nova ordem patriarcal. Essa nova ordem tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina. Federici afirma que os homens foram expropriados, sobretudo, como consequência das políticas de cercamento, mas ganharam servas. O trabalho reprodutivo foi degradado a partir deste ponto e houve também o ocultamento do trabalho feminino. Havia um discurso sobre a inferioridade natural das mulheres que justificava tal posição social de desvalorização. As mulheres eram a forma viva da acumulação primitiva, compreendendo por primitiva a forma primeira de acumulação.

Federici aponta que o poder que os homens impuseram sobre as mulheres foi "pago pelo preço da autoalienação" e "desacumu-lação primitiva" de seus "poderes individuais e coletivos" (p. 214).

A discussão sobre a desacumulação é ancorada em três aspectos principais pontuados como: a constituição do corpo proletário em uma máquina de trabalho; a perseguição das mulheres como bruxas e a criação dos "selvagens" dos "canibais" tanto na Europa quanto nos países colonizados, chamados de Novo Mundo.

Essa noção de que o corpo proletário seria visto como máquina de trabalho compõe a noção que levou às políticas e às formas de disciplinar-se o corpo. Federici utiliza de teorias desenvolvidas por Foucault para a compreensão e o aprofundamento dessa perspectiva.

Do mesmo modo que a terra, o corpo tinha que ser cultivado e, antes de mais nada, decomposto em partes, de tal maneira que pudesse liberar seus tesouros escondidos. Pois, enquanto o corpo é a condição de existência da força de trabalho, é também seu limite, já que constitui o principal elemento de resistência à sua utilização. (... ) O corpo tinha que viver para que a força de trabalho pudesse viver (Federici, 2004, p. 255).

A noção presente na Idade Média de que o corpo seria receptáculo de poderes mágicos foi extinta. O corpo mecânico não poderia ser modelo de comportamento social sem que o Estado eliminasse a vasta gama de crenças pré-capitalistas que contradizia a regulação do comportamento corporal fruto da construção da filosofia mecanicista.

O componente da magia não admitia essa separação entre matéria e espírito. A natureza era vista como um universo de signos que escondia virtudes e poderes peculiares. Para a implementação da racionalização, era necessária a abolição das práticas que se utilizavam dessa noção. A magia era vista como poder e instrumento para obter o desejado sem trabalhar, sendo, portanto, incompatível com a disciplina do trabalho capitalista e com a exigência de controle social racionalizada.

A mecanização dos corpos, segundo Foucault, estendia-se para o controle e a repressão dos desejos, das emoções e de outras formas de comportamento. A alienação do corpo produziu o desenvolvimento da identidade individual, concebida como alteridade em relação ao corpo e em constante antagonismo com ele. Ficou marcado o conflito histórico entre mente e corpo, representando o nascimento do indivíduo na sociedade capitalista.

Federici pontua a ausência de uma análise aprofundada da sexualidade nos termos foucaultianos. "A História da Sexualidade", obra de Foucault (1979), registra a virada do século XVIII na Europa em relação ao desenvolvimento do biopoder. O biopoder se exerce por meio da administração e da promoção de forças vitais, como, por exemplo, o crescimento da população (Federici, 2004, p. 26). A questão é que em sua teoria Foucault não abarca violências específicas intrinsecamente ligadas às mulheres, nomeadamente a caça às bruxas. Federici pontua que a análise foi feita de forma a tratar os sujeitos como universais, abstratos e assexuados. Porém, há uma construção específica em torno do corpo da mulher que abrangia um discurso de demonização e de disciplinamento do corpo. A emergência do regime capitalista surge justamente por meio da administração e da promoção das forças vitais e de uma nova lógica de acumulação e reprodução da força de trabalho, impactando diretamente o corpo das mulheres.

Efetivamente, num sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro, a acumulação de força de trabalho só pode ser alcançada com o máximo de violência para que, nas palavras de Maria Mies, a própria violência se transforme na força mais produtiva (Federici, 2004, p. 26).

Invisibilizar as mulheres ao abordar essas origens históricas de acumulação significa negligenciar a apropriação de seus corpos na consolidação do capitalismo. O corpo se tornou significante das relações de classe e das fronteiras redesenhadas que se reproduzem nas relações no mapa da exploração humana (Federici, p. 283).

A bruxaria era considerada um crime especificamente feminino, demarcando novamente a perseguição específica ligada às mulheres e à necessidade do Estado e da Igreja de controle sobre seus corpos. Houve uma demonização das práticas de contracepção e de aborto que estavam diretamente vinculadas a práticas de bruxaria, diferenciando as punições entre heresia e bruxaria - ambas as práticas ameaçavam a implementação e o sucesso do capitalismo, mas ainda assim as punições apresentavam peso maior para as mulheres. A transgressão religiosa e social foi redefinida predominantemente como um crime reprodutivo.

COLONIZAÇÃO E DESDOBRAMENTOS DA VIOLÊNCIA

Federici deixa demarcada a real riqueza proveniente do violento processo de colonização. Para além dos bens materiais, o trabalho acumulado por meio do tráfico de escravos foi o que tornou possível um modo de produção ainda mais vantajoso - em relação a custeio - e que não poderia ser imposto na Europa. Em suas palavras, o capitalismo não teria decolado sem a anexação da América, muito menos sem sangue e suor. Eram utilizadas a imigração e a globalização voltadas a reduzir os custos do trabalho. Desde o começo, foi estabelecida uma hierarquia racial distinguindo os escravos negros e os trabalhadores europeus que eram sujeitos a morarem nas colônias em decorrência de alguma punição.

É relatado que os destinos das mulheres na Europa e dos ameríndios e africanos nas colônias estavam tão intimamente conectados que suas influências foram recíprocas. Com a colonização, os europeus trouxeram para o chamado Novo Mundo a caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio. Dessa forma, romperiam a resistência das populações locais justificando a violência com que todo o processo ocorreu, sobretudo, em relação ao tráfico de escravos. Foi difundida uma ideologia da bruxaria e do racismo, além de uma visão diabólica desses corpos. O diabo frequentemente era retratado como um homem negro.

A Igreja teve papel fundamental para o processo de disciplinarização desses homens e dessas mulheres. A sexualização exagerada das mulheres e dos homens negros também tem origem em sua ocupação na divisão internacional do trabalho que teve seu início a partir da colonização da América.

A definição de negritude e de feminilidade como marcas da bestialidade e irracionalidade era correspondente à exclusão das mulheres na Europa, assim como das mulheres e dos homens nas colônias, devido ao contrato social implícito no salário e à consequente naturalização de sua exploração (Federici, p. 364-365).

Ainda que não existam provas de que a nova ciência estabelecida pelo Iluminismo tenha tido um efeito libertador em relação à perseguição às mulheres ditas bruxas, a visão que surgiu com o inicio da ciência moderna desencantou o mundo. O que acabou com a caça foi a aniquilação do "mundo das bruxas" e a imposição da disciplina social que o sistema capitalista triunfante requeria.

Ainda hoje, séculos após todo o processo de "transição" entre o feudalismo e o capitalismo, é possível detectar aspectos fundantes do período. As medidas violentas para condicionamento de uma nova lógica produtiva ficaram enraizadas.

No Brasil, por exemplo, país fruto da violência colonizadora e da disciplinarização dos corpos, temos uma realidade que expressa o reforço das hierarquias produzidas em prol de um desenvolvimentismo capitalista predatório.

Em 2016, segundo consta no relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBPS) e pelo Ipea, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios segundo informações do Ministério da Saúde. Esta taxa corresponde a trinta vezes a taxa da Europa

Há nesses dados a constatação de uma marcada desigualdade racial, demonstrada pela concentração de homicídios na população negra. Em um período de uma década (entre 2006 e 2016), a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1% e a taxa entre não negros reduziu 6,8%. Outro destaque é para a taxa de homicídios de mulheres negras foi de 71% superior à de mulheres não negras.

Segundo o relatório, a desigualdade racial no Brasil se mostra de forma evidente no que se refere à violência letal e às políticas de segurança. O perfil mais atingido é o de homens jovens e negros. Este grupo é também a maior vítima de violência letal da ação das polícias e predominantemente demarcado como população prisional do Brasil.

O Brasil é o quinto país com maior taxa de feminicídio do mundo segundo dados da Organização Mundial da Saúde. O 12° anuário do Atlas da Violência 2018 (Ipea/FBSP, 2018) revela números assustadores em que a cada nove minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil, a cada um dia três mulheres são vítimas de feminicídio.

A violência é estrutural e a agressão e a violação de direitos continuam sendo empregadas aos mesmos grupos historicamente perseguidos. A caça às bruxas persiste ainda que em nova roupagem.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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