SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 issue2A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NA PUBLICIDADE EXTERIOR E NAS INTERVENÇÕES URBANAS: UM ESTUDO COMPARATIVO, INTERSECCIONAL E MULTIMODAL ENTRE AS CIDADES DE NATAL, RECIFE (BRASIL) E BARCELONA (ESPANHA)TELEJORNALISMO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL. UMA ANÁLISE DA COBERTURA DA POSSE DE JAIR BOLSONARO E DO PAPEL DESEMPENHADO PELOS TELEJORNAIS AO INFORMAR author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Investigación y Desarrollo

Print version ISSN 0121-3261On-line version ISSN 2011-7574

Investig. desarro. vol.31 no.2 Barranquilla Jul./Dec. 2023  Epub Nov 12, 2023

https://doi.org/10.14482/indes.31.02.001.528 

Artículos de Investigación

ENTRE O ESPÍRITO PÚBLICO E O DISCURSO POLÍTICO: AS ESTRATÉGIAS DE COMUNICAÇÃO DA PANDEMIA NO CANAL DE JAIR BOLSONARO NO TELEGRAM

Entre el espíritu público y el discurso político: las estrategias de comunicación de la pandemia en el canal Telegram de Jair Bolsonaro

Francisco Sérgio Lima de Sousa1 
http://orcid.org/0000-0001-8756-0366

Márcia Vidal Nunes2 
http://orcid.org/0000-0003-3318-4937

1 Universidade Federal do Ceará, Brasil. Graduação em Comunicação Social-Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestrado pela mesma instituição. Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC (PPGCOM/UFC) . Orcid: 0000-0001-8756-0366. sergiolsousa@gmail.com

2 Universidade Federal do Ceará, Brasil. Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará, mes trado e doutorado em Sociologia pela mesma instituição. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (PPGCOM/UFC). Orcid: 0000-0003-3318-4937. marciavn@hotmail.com


RESUMO

Este artigo analisa a comunicação feita pelo ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, sobre a Covid-19. O corpus do estudo se circunscreve às mensagens publicadas pelo político no Telegram, durante os 100 primeiros dias de sua atuação na plataforma. Analisamos o fenômeno a partir dos conceitos de comunicação pública e governamental (Duarte, 2007; Brandão, 2007, 2016; Oliveira, 2013) e comunicação política (Gerstlé, 2005; Freeman, 2019), confrontandoos com entendimentos sobre o populismo (Waisbord, 2018; 2020; Laclau, 2005; Jagers & Walgrave, 2007; Innerarity, 2015). O estudo utiliza como metodologia a análise de conteúdo (Benoit, 2011; Alonso, 2012; Sampaio & Lycarião, 2021). Os resultados mostram que Bolsonaro não produz comunicação pública ou governamental, mas sim comunicação política a partir de seu canal na plataforma, que é usado para estabelecer uma disputa narrativa pela construção de sentidos da população sobre a crise sanitária.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação pública e governamental; comunicação política; populismo; Bolsonaro; Telegram

RESUMEN

Este artículo analiza la comunicación realizada por el expresidente brasileño Jair Bolsonaro, sobre el Covid-19. El corpus del estudio se circunscribe a los mensajes publicados por el político en Telegram durante sus primeros 100 días en la plataforma. Analizamos el fenómeno a partir de los conceptos de comunicación pública y gubernamental (Duarte, 2007;Brandão, 2007, 2016;Oliveira, 2013) y comunicación política (Gerstlé, 2005;Freeman, 2019), confrontándolos con comprensiones de populismo (Waisbord, 2018;2020;Laclau, 2005;Jagers & Walgrave, 2007eInnerarity, 2015). El estudio utiliza como metodología el análisis de contenido (Benoit, 2011;Alonso, 2012;Sampaio & Lycarião, 2021). Los resultados muestran que Bolsonaro no produce comunicación pública o gubernamental, sino comunicación política desde su canal en la plataforma, que se utiliza para establecer una disputa narrativa para la construcción de significados de la población sobre la crisis sanitaria.

PALABRAS-CLAVE: Comunicación pública y gubernamental; comunicación política; populismo; Bolsonaro; Telegram

INTRODUÇÃO

O Brasil é o segundo país com mais mortes pela covid-19 no mundo, conforme dados do Coronavirus Resource Center, da Universidade de Johns Hopkins1. No centro das discussões sobre as causas deste alarmante quadro sempre esteve o então presidente da República, Jair Bolsonaro, que, desde o início da pandemia no País, minimizou a gravidade da doença, adotando um posicionamento negacionista. Defendendo-se das críticas, Bolsonaro incentivou a população a desacreditar em parte da mídia profissional, conclamando, em contrapartida, a uma comunicação direta com seus eleitores por meio das mídias sociais, em uma estratégia que adotou desde sua campanha presidencial, em 2018.

Em seu discurso de diplomação como presidente, em 2018, Bolsonaro afirmou: "Senhoras e senhores, vivenciamos um novo tempo. (...) O poder popular não precisa mais de intermediação. As novas tecnologias permitiram uma relação direta entre eleitor e seus representantes"2.

O capitão reformado do Exército investiu nas mídias sociais para divulgar suas posições e atacar aqueles que considerava inimigos. Entretanto, desde pelo menos 2016, Facebook, Instagram, You-Tube e Twitter iniciaram uma política de suspensão ou banimento de vários indivíduos e grupos que descumpriam as políticas destas plataformas. Esse tipo de ação passou a ser intensificado a partir de 2019 (Urman & Katz, 2020), atingindo especialmente pessoas e grupos que compartilhavam discursos extremistas, como supremacistas brancos, antissemitas, integrantes da chamada alt-right, neonazistas e grupos que disseminam ódio na internet (Kraus, 2018).

A esse ato de remoção é dado o nome de deplatforming, ou "deplataformização", em português. A medida vem sendo adotada como antídoto para o ambiente considerado tóxico de certas comunidades online e para discursos extremistas compartilhados por algumas celebridades da web (Rogers, 2020).

Além dos discursos extremistas, um outro fenômeno da comunicação despertou ainda mais preocupação. Em um momento extremamente delicado para a saúde pública mundial, a pandemia da Covid-19, para a qual informações corretas sobre os riscos da doença, suas formas de transmissão e prevenção exercem uma importância de vida ou morte, as campanhas de desinformação3 se multiplicaram.

Frente à dimensão desse problema, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que estávamos diante de uma "infodemia", termo usado para se referir à superabundância de conteúdos compartilhados sobre determinado assunto, alguns acurados e outros sem lastro algum com a factualidade, fazendo com que as pessoas enfrentem dificuldades em encontrar fontes confiáveis de informação quando as necessitam (World Health Organization [WHO], 2020). Conforme a OMS, à noção de infodemia "incluem tentativas deliberadas de disseminar informações erradas para minar a resposta da saúde pública e promover agendas alternativas de grupos ou indivíduos".

No Brasil, a infodemia foi "patrocinada" pelo próprio ex-presidente, conforme já verificado por agências de checagem de fatos e pelos próprios sites de rede social. Em março de 2020, o Twitter excluiu dois posts de Jair Bolsonaro, justificando que estes estariam espalhando desinformação a respeito da Covid-194. Em janeiro de 2021, o mesmo site de rede social (SRS)5 marcou um tweet do ex-presidente que tratava de tratamento precoce para a covid-19 como publicação com informações enganosas e potencialmente prejudiciais6.

Diante desse movimento das plataformas online, Bolsonaro e aliados, desde meados de 2020, têm buscado plataformas com menor atividade de controle sobre as postagens publicadas por seus usuários, seguindo um movimento mundial de integrantes da extrema direita. Tais personalidades começaram a migrar dos aplicativos das grandes companhias de tecnologias, as chamadas Big Tech, para plataformas online alternativas, que ficaram conhecidas como os darker corners of the internet (Rogers, 2020).

O Telegram, o serviço híbrido de mensagens instantâneas (Nobari et al., 2021) e plataforma de transmissão, é um desses espaços alternativos que atraiu grupos extremistas, e vem sendo citado inclusive como a plataforma favorita do Estado Islâmico7 (Rogers, 2020). A razão para isso é o fato de o aplicativo unir ferramentas que facilitam a viralização de conteúdo com uma postura mais leniente a conteúdos radicais. "No Telegram, os usuários podem comunicar-se em grupos ideologicamente homogêneos e distribuir conteúdo extremista sem temer consequências legais, com o anonimato e a homogeneidade ideológica aumentando o potencial de radicalização" (Urman & Katz, 2020).

O Telegram possui funcionalidades extras em relação ao WhatsApp, que o colocam em um meio-termo entre os aplicativos de mensagem instantânea por celular (Mobile Instant Messaging Services) e os SRS. Além das conversas privadas, em grupos ou linhas de transmissão, a plataforma permite a criação de canais de amplo alcance, com perfis públicos verificados e localizáveis através de busca. Estes canais também oferecem a possibilidade de interação por meio de comentários às publicações, funcionalidades semelhantes às oferecidas pelo Twitter, Facebook e Instagram, os quais já vinham sendo amplamente utilizados por Jair Bolsonaro.

Uma diferença fundamental entre WhatsApp e Telegram é que, enquanto grupos formados no primeiro aplicativo podem ter até 256 participantes, este último permite a existência de canais com número ilimitado de inscritos. Assim, o vernáculo da plataforma (Gibbs el al, 2015), ou seja, sua lógica de uso apropriada e performada pelos usuários na prática, atua de forma a incentivar as pessoas a compartilharem os conteúdos a outros grupos e mesmo outros aplicativos -como o WhatsApp, que é bem mais popular no Brasil-, favorecendo o fenômeno da viralização. Isso vem atraindo a atenção de muitos políticos conservadores8 e feito com que ele passasse a ser conhecido como o refúgio de vozes extremistas (Rogers, 2020).

Diante desses fatos, o presente artigo se propõe a compreender as estratégias presentes na comunicação direta feita pelo expresidente à população por meio das postagens que ele divulgou em sua conta no Telegram. A ideia é centrar o estudo nos posts relacionados à pandemia da Covid-19, para analisar como Bolsonaro travou essa disputa narrativa por meio da referida plataforma.

COMUNICAÇÃO GOVERNAMENTAL E PÚBLICA NA PANDEMIA

Bolsonaro trouxe as redes sociais digitais para o núcleo dos processos comunicativos de sua gestão. Ao anunciar em primeira mão através de sites de rede social ações de governo, tais como troca de ministros, novos decretos, sanções presidenciais, antes mesmo de estas decisões serem publicadas no Diário Oficial da União (DOU), o então chefe do Executivo federal carregou de oficialidade as plataformas online.

A questão é que não somente as plataformas online ganharam mais importância dentro das ações comunicativas do Executivo, mas que a própria imagem de Bolsonaro, como personificação do governo, foi revestida de maior relevância. Isso porque ele se tornou um ator de grande centralidade nas redes sociais, um "nó" com grande visibilidade em virtude de seu capital relacional (Recuero, 2009), com poder de influência que lhe garantiu autoridade nestes ambientes online. O que é dito por ele nas redes alcança um número massivo de pessoas, não só em virtude do número de conexões que possuía enquanto presidente, e ainda possui, nestes sites, como pelo fato de suas postagens serem repercutidas na imprensa convencional.

No contexto da pandemia, observou-se uma convergência dos olhares sobre a comunicação do governo para as redes sociais do próprio presidente. Um exemplo disso: enquanto o canal no Telegram do Ministério da Saúde -principal pasta associada ao combate à covid-19 no Brasil- possuía, em 28 de junho de 2020, pouco menos de 1.800 seguidores, o de Bolsonaro já ultrapassava os 743 mil. No período em que avaliamos a comunicação do então chefe do Executivo nacional no citado aplicativo, cerca de 30% de todas as postagens foram referentes à Covid-19. Desta forma, poderíamos refletir se Bolsonaro estaria personalizando, através de suas contas nesses ambientes virtuais, a própria comunicação governamental.

Duarte (2007) conceitua comunicação governamental como aquela que "diz respeito aos fluxos de informação e padrões de relacionamento envolvendo os gestores e a ação do Estado e a sociedade" (p. 2), referenciando Estado como o conjunto das instituições ligadas ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. Trazendo a definição para o contexto brasileiro em análise, observamos um presidente que, inclusive, já contradisse declarações de seu próprio ministro da Saúde em plena pandemia9, trazendo, assim, toda a oficialidade das informações de sua gestão para sua própria pessoa.

Considerando a tendência de centralização da voz do governo na figura do próprio presidente, e acrescentando o hábito (ou estratégia) deste mandatário de publicizar informações oficiais de sua gestão por meio das mídias digitais, a possibilidade de pensar a comunicação de Bolsonaro nas plataformas digitais como comunicação governamental não deveria ser de todo descartada, mas a associação precisaria ser analisada com mais atenção.

Historicamente, a comunicação governamental no Brasil foi de natureza publicitária, empregada para a divulgação das ações do governo, utilizando principalmente a propaganda com veiculação na grande mídia (Brandão, 2007). Essa natureza publicitária é bastante presente na comunicação de Bolsonaro em suas mídias sociais.

Com a institucionalização das redes sociais como instrumento oficial de comunicação do governo, contudo, percebemos uma ruptura nesse processo comunicativo com a sociedade. Se, antes, em um modelo que privilegiava a comunicação de massa, os fluxos de informação intencionavam atingir uma parcela maior da sociedade, hoje, com as redes virtuais, a realidade é outra. O cidadão, como público de interesse da comunicação produzida pelo governo, tem sua centralidade deslocada para os seguidores do mandatário, para o seu público aliado.

Tal mudança distorce também os preceitos da comunicação pública, se é que esta categorização poderia ser aplicada à comunicação feita por Bolsonaro nas redes online. Brandão (2007) aponta que, nos últimos anos, o conceito se aproximou do processo de comunicação instaurado entre Estado, governo e sociedade civil. E esta última tem uma amplitude que não poderia ser resumida a seguidores de um político em uma determinada rede social.

A noção de comunicação pública, muitas vezes, é identificada com aquela feita pelos governos. Para Brandão, o uso de termos como marketing político, propaganda política e publicidade governamental ganharam, ao longo da história do Brasil, a conotação de persuasão, de "manipulação das massas", e a substituição de tais termos por comunicação pública é "resultado de uma necessidade de legitimação de um processo comunicativo de responsabilidade do Estado e/ou do Governo que não quer ser confundido com a comunicação que se fez em outros momentos da história do país" (Brandão, 2007, p. 10).

A autora, por outro lado, defende que, quando a comunicação governamental é praticada por determinado governo com vistas à prestação de contas e ao estímulo ao engajamento da população nas políticas adotadas, ela pode ser entendida também como comunicação pública. Ela entende que um governo produz comunicação pública quando este estimula o debate público, ao trazer à população conhecimentos que são de interesse público.

Em uma obra mais recente (Brandão, 2019), a autora considera que o conceito de comunicação pública, antes considerado fluido, vem se consolidando no Brasil e em vários países. Na América Latina, destaca a autora, este conceito está embasado no entendimento de que a comunicação é um bem público, assim como a informação.

Em tempos de pandemia, nada é de mais interesse público do que informações relacionadas à Covid-19, suas formas de prevenção e o que vem sendo feito pelo Estado no combate à doença. Isso, claro, quando feito de forma responsável, com informações confiáveis e visando o bem da população. Duarte (2007) arremata sua reflexão sobre comunicação pública através da palavra-chave "espírito público", que, segundo ele, trata-se do "compromisso de colocar o interesse da sociedade antes da conveniência da empresa, da entidade, do governante, do ator político" (p. 3).

Para Oliveira (2013), a comunicação pública é mais associada ao que comunica (no caso, assuntos de interesse público), do que a quem a produz. Em outras palavras, ela deve envolver, necessariamente, a ideia de cidadania. Ou seja, ela só é possível em contextos democráticos, nos quais a participação cidadã é garantida.

A figura conhecidamente autoritária de Bolsonaro já é um indício, antes de uma análise mais pormenorizada, de que sua comunicação através das redes não é calcada na noção de participação cidadã. Se o compromisso maior presente ali é regido pelo espírito público ou por conveniência da construção de sua imagem política, a resposta rápida poderia ser inferida através de um olhar a seus posicionamentos que ganham espaço na mídia. Mas a comprovação exige análise científica. E também cabe aqui uma outra discussão: a comunicação do ex-presidente sobre a pandemia, ao se distanciar de sua dimensão cidadã (se assim comprovarmos), estaria enraizada, na verdade, nas bases da comunicação política?

COMUNICAÇÃO POLÍTICA NA PANDEMIA E O POPULISMO À (EXTREMA) DIREITA

Analisar a comunicação de Jair Bolsonaro em uma plataforma virtual sobre a pandemia é, inevitavelmente, lançar um olhar sobre a performance e o discurso político do ex-presidente brasileiro no frontstage do debate público mediado por tecnologias digitais. Isso, se reconhecemos que o problema de ordem sanitária tomou, no país, dimensões político-ideológicas que politizaram, inclusive, prescrições medicamentosas.

A performance, conforme Goffman (1959, como citado em Freeman, 2019, p. 374) é toda a atividade de uma dada pessoa, em uma dada situação, que funciona para influenciar de alguma forma outras pessoas. Goffman elabora uma consideração sobre a distinção entre o comportamento de frontstage e de backstage deste determinado participante. O frontstage seria o espaço onde as suas ações são vistas pela audiência, daí seu comportamento é mais controlado. Já no backstage, sem ser visto, a pessoa tende a ser mais casual.

Quando falamos da comunicação de Bolsonaro enquanto presidente por uma plataforma virtual, estamos falando de um comportamento de frontstage. O que é expresso, em geral, não é espontâneo, mas estudado, definido não somente por ele, mas por uma equipe de profissionais. O que chegava aos seguidores era um trabalho, muitas vezes, feito por uma assessoria de comunicação de ministérios e autarquias públicas, que era compartilhado pelo então mandatário. Diferentemente do comportamento que apresentava em reuniões fechadas ou mesmo quando interpelado pela imprensa ou correligionários, nas redes digitais e plataformas online, Bolsonaro tinha a oportunidade de refletir e elaborar melhor que comunicação ele queria passar para seu público.

Entretanto, ainda que não necessariamente elaborado exatamente por Bolsonaro, o que era publicado em seu perfil ou canal em plataformas digitais recebia sua validação, tornando-se parte de seu discurso político. Para Freeman (2019), "o discurso é a forma mais proeminente da ação política" (p. 376), pois não há ação política sem discurso. O discurso, afirma, refere-se à construção de sentidos, a estabelecer definições para as situações.

Se a pandemia do novo coronavírus ganhou contornos políticos que não se podem ignorar, também não seria possível analisar o discurso de Bolsonaro sobre esta realidade sem referenciar os conceitos de comunicação política. Gerstlé (2005) considera por comunicação política as estratégias de comunicação empregadas por atores na busca de que outras pessoas sigam suas percepções públicas. É "um conjunto de esforços baseados em recursos estruturais, simbólicos e pragmáticos para mobilizar apoios e fazer prevalecer uma definição da situação que, espera-se, contribua para a solução de um problema coletivo e/ou tornem eficazes as preferências de um ator, ou seja, de seu poder" (p. 32).

A comunicação política, portanto, está relacionada com a luta pelas representações coletivas. O papel cognitivo e simbólico da comunicação é maximizado aqui nesta disputa narrativa pela percepção pública da realidade, que objetiva a "manipulação das impressões políticas", segundo defende o autor.

Maria Helena Weber (2011) pontua que a comunicação dos estados democráticos, além de obedecer às estratégias políticas e institucionais de visibilidade pública e de prestação de contas, também busca a disputa de opinião, o apoio e votos. Como já discutido aqui, Bolsonaro personificou a comunicação de seu governo em suas mídias sociais e foi por meio delas que travou uma disputa de interpretações sobre a realidade com a imprensa.

O descrédito que era apresentado pelo então presidente a parte da imprensa profissional também se manifestou de forma recíproca. Em junho de 2020, os veículos "G1", "O Globo", "Extra", "Estadão", "Folha e UOL", em uma iniciativa inédita, decidiram formar um parceria para coletar dados sobre a pandemia com as secretarias estaduais de saúde10, após decisão do governo de restringir dados oficiais sobre a Covid-19. A ação lançava ao público uma desconfiança sobre os dados do governo e marcou o posicionamento crítico de parcela considerável dos grandes veículos de comunicação brasileiros quanto à gestão do governo Bolsonaro no enfrentamento da crise sanitária.

A resposta do governo se dava com força nas redes de Bolso-naro, que buscava defender sua gestão e, ao mesmo tempo, criticar a imprensa que por várias vezes chamou de "esquerdista", "militante" e geradora de fake news.

Na disputa por essa interpretação da realidade, Bolsona-ro aliava informações de seu governo com tentativas de persuasão fortemente ancoradas na simbologia do conservadorismo (ou ultra-conservadorismo), do neoliberalismo (especialmente ao defender a não-intervenção do Estado na economia por meio de medidas de lockdown), acionando ainda as insígnias do patriotismo (Gonçalves & Neto, 2020) para construir seu enquadramento da realidade.

Nesse processo, defende Waisbord (2018; 2020), ele seguiu uma cartilha semelhante a outros líderes mundiais tidos pelo autor como populistas, tais como o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o presidente da Polônia, Andrzej Duda, e o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán: o ataque às instituições democráticas (a imprensa, especialmente), a distorção dos fatos ou a escolha de determinados fatos que confirmem suas narrativas e, especialmente, o uso das plataformas virtuais para a pavimentação de suas ideias.

O populismo, segundo Laclau (2005), é tido como uma estratégia política para criar uma ideia de "povo" e unificar uma nação através de demandas que não estariam sendo atendidas pelo "sistema". O líder populista, portanto, unificaria a diversidade da população por meio do que o autor chama de significantes vazios. No caso de Bolsonaro, a ideia de "cidadão de bem" unificaria a nação em prol da luta pelos valores de "Deus, pátria e família"11.

Jagers e Walgrave (2007), por sua vez, identificam o populismo como um estilo de comunicação política que busca uma aproximação maior com os eleitores. Nesta concepção, políticos e eleitores seriam aliados na luta contra um inimigo comum. Essa interpretação condiz com a estratégia de Bolsonaro de buscar proximidade com seus apoiadores por meio das redes sociais, descredibilizando também, nesse processo, o papel intermediador da imprensa. Como inimigo a ser combatido, o ex-presidente elegeu a esquerda, a qual poderia trazer ao Brasil o "fantasma do comunismo".

A mobilização de emoções de seus interlocutores é outro traço marcante de líderes populistas (Innerarity, 2015) como Bolso-naro, que utilizam da instrumentalização desses sentimentos para a persuasão da população.

Em sua campanha presidencial de 2018, Bolsonaro se apropriou do sentimento de antipetismo (aversão a candidatos e simpatizantes do Partido dos Trabalhadores - PT) para fortalecer sua candidatura, instigando o ódio à esquerda (em especialmente ao PT), em momentos como quando, em um discurso público, pega um tripé de uma câmera e afirma: "Vamos fuzilar a petralhada"12. Durante a pandemia, já como presidente, usou imagens de pessoas com fome e desempregadas para atiçar as emoções de seus apoiadores contra as medidas de lockdown decretadas por governadores de estados.

Metodologia

A presente pesquisa traz uma análise sobre as estratégias de comunicação de Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, entendendo que os conteúdos compartilhados pelo ex-presidente não buscam apenas informar seus seguidores, mas pautar o debate público, construir sua narrativa da realidade e influenciar, convencer a população de seus posicionamentos. O estudo, portanto, segue a tradição sociopsicológica das teorias de comunicação, ao pensar a comunicação como instrumento capaz de mobilizar, ou mesmo manipular, comportamentos para se obter certos objetivos (Craig, 1999).

O corpus do estudo está limitado às postagens feitas pelo ex-presidente em seu canal oficial no Telegram (Jair Bolsonaro 1) nos 100 primeiros dias de sua atuação na plataforma, ou seja, de 11 de janeiro a 20 de abril de 2021, seguindo assim uma amostra proposital (Benoit, 2011). Ao longo deste período, Bolsonaro realizou 1.652 postagens na plataforma, das quais, 484 foram identificadas como relacionadas ao tema da pandemia, ou seja, cerca de 30% do total de mensagens.

A pesquisa aqui presente tem abordagem quantitativa e qualitativa, trazendo como método a análise de conteúdo. Acreditamos que esta escolha nos permitirá uma discussão sobre os significados impressos nas mensagens, em suas mais diversas formas, sejam elas por meio de texto, imagens com textos e vídeos (Benoit, 2011).

A coleta das postagens seguiu regras previamente estabelecidas em um livro de códigos elaborado previamente para esta pesquisa, o qual define o que foi considerado como postagem sobre a pandemia. A extração foi feita de forma manual, pois as ferramentas computacionais disponíveis não permitem uma análise subjetiva dos sentidos encontrados no post. Como informa o livro de códigos, a detecção de uma postagem sobre o tema analisado não considera apenas palavras-chave como "Covid-19", "coronavírus" ou "pandemia", mas todo um universo semântico relacionado à crise sanitária (como "máscara", "álcool", "aglomeração", "fique em casa"...).

Algumas vezes, a referência à pandemia é expressa sem a utilização dos referidos termos ou de outros semelhantes a eles. Exemplo disso é através do uso de imagens, quando Bolsonaro, em certo momento da pandemia, publica uma foto de celebridades que defendem o isolamento social (medida criticada por ele) flagradas em locais públicos sem o uso da máscara. Para fazer a crítica, o político usa como único elemento textual a palavra "hipocrisia".

De posse do material de análise, empreendemos uma análise temática, que nos permite descobrir os núcleos de sentido da comunicação. Os temas foram definidos por indução, após análise prévia do material, e medimos a frequência de aparição dos posts em cada uma destas categorias.

Consideramos estratificar o material inicialmente em cinco unidades de registro: Ações do governo contra a covid-19, Críticas à imprensa; Lockdown/isolamento; Tratamento precoce; e Temas diversos13 (Tabela 1). Diante de uma substantiva prevalência de postagens na primeira unidade, distribuímos esse conteúdo em cinco subcategorias: Recursos financeiros aos estados14; Medidas econômico-financeiras15; Ações emergenciais16; Vacina/vacinação e Sistema público de saúde17 (Tabela 2).

Tabela 1 Categorias de análise 

Ações do governo contra a covid-19 377 77,89%
Críticas à imprensa 15 3,10%
Lockdown/isolamento 44 9,09%
Tratamento precoce 18 3,72%
Temas diversos 30 6,20%
TOTAL 484 100%

Fonte: Nossa Pesquisa.

Tabela 2 Subcategorias de "Ações do governo..." 

Recursos aos estados 19 5,04%
Medidas econômico-financeiras 22 5,83%
Ações emergenciais 135 35,81%
Vacina/vacinação 150 39,79%
Sistema público de saúde 34 9,02%
Ações diversas 17 4,51%
TOTAL 377 100%

Fonte: Nossa Pesquisa.

Para chegar aos resultados, realizamos um teste de confiabilidade, utilizando como medida de fiabilidade o critério da estabilidade. Segundo Alonso (2012, p. 32):

La estabilidad es el grado en el que un proceso permanece inmutable a lo largo del tiempo. Los datos para medir la estabilidad provienen de la repetición del mismo proceso en dos puntos temporales (test y re-test). Aplicado a la codificación manual, esto significa que un codificador realiza la codificación de un mismo texto dos veces, la segunda vez algunos días (o semanas) después de la primera.

O critério da estabilidade foi escolhido por ser recomendado para pesquisas individuais (Sampaio & Lycarião, 2021), que é o caso deste artigo, o qual é proveniente de uma tese de doutorado em desenvolvimento. O primeiro teste foi realizado em julho de 2021. O segundo, feito pelo mesmo codificador, em janeiro de 2023. Os resultados foram os seguintes:

As únicas inconsistências que mereceram atenção entre as duas análises disseram respeito a algumas postagens que se encontravam na categoria "Ações do governo contra a Covid-19". Elas se explicam pelo fato de as mensagens tratarem de mais de um assunto das subcategorias previamente definidas. Para resolver o problema, tais postagens foram agregadas em uma subcategoria criada posteriormente, denominada "Ações diversas". Equalizada a questão, os resultados podem ser considerados fiáveis, conforme Sampaio e Lycarião (2021), por, ao final, não haver desvios relevantes entre as codificações.

Benoit (2011, p. 269) conceitua análise de conteúdo como a "medição das dimensões do conteúdo de uma mensagem ou mensagem em um contexto". Consideramos essa definição importante por destacar a dimensão do contexto na análise. Por esta razão, a observação dos fatos associados às postagens feitas por Bolsonaro no Telegram foi necessária não somente para produzir inferências sobre o sentido dessas mensagens, mas também para categorizar estes posts, uma vez que as postagens em algumas categorias, muitas vezes, só puderam ser diferenciadas por meio da consideração do contexto em que elas foram publicadas.

ANÁLISE DAS POSTAGENS DE BOLSONARO

Analisando os 100 primeiros dias de Jair Bolsonaro no Telegram, observamos que o então presidente publicou uma média de 17 postagens por dia no aplicativo. Esta primeira constatação confirma algo já previsto, uma vez que o vernáculo (Gibbs et al, 2015) deste serviço de mensagens instantâneas incentiva os "nós" de maior centralidade na rede (Recuero, 2009) a compartilharem conteúdos com maior frequência em vista do potencial de multiplicação dessas mensagens na própria plataforma e mesmo fora dela.

Em suas mensagens relacionadas à Covid-19, Jair Bolsonaro busca, acima de tudo, munir seus seguidores de informações sobre ações de sua gestão no enfrentamento à pandemia. Esta é a primeira apreciação que podemos fazer após a exploração do material segmentado em categorias. Um total de 77,89% de todas as mensagens do corpus da presente pesquisa estão relacionadas a esse fim.

Estas postagens versaram principalmente sobre dois assuntos: vacina/vacinação (39,79%) e ações emergenciais (35,81%). Quanto ao primeiro, as mensagens mostram a evolução da vacinação no Brasil - apresentando, quase que diariamente, um "vacinômetro" que traz o número de doses aplicadas -, as negociações e as compras de imunizantes com as empresas, as ações de vacinação em diversos postos pelo País e o discurso reiterado de que o Brasil seria um dos países que mais vacinam no mundo (figura 1).

Fonte: Jair Bolsonaro 1 (2021, março 5).

Figura 1 Postagem de 5 de março de 2021 

É importante ressaltar que, em 13 de abril de 2021, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, para investigar omissões e irregularidades nas ações do governo federal durante a pandemia. A maior parte das mensagens desse corpus, portanto, se dá no período anterior ao início desses trabalhos, mas já havia antes disso muitos questionamentos por parte da imprensa, de congressistas e outros atores da sociedade civil quanto à eficácia das ações da gestão Bolsonaro em relação à crise sanitária, e o atraso na compra de vacinas vinha sendo uma das principais críticas. Então, podemos entender que o volume de mensagens no Telegram do ex-presidente relacionado a esse tema seja justificado pela tentativa de refutar tais acusações, ainda que isso não seja feito de forma direta.

Já as mensagens sobre ações emergenciais se referem a temas como as medidas feitas pelo governo diante da crise de falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, deflagrada em janeiro18, as ações de distribuição de alimentos a famílias que estavam sem renda diante das medidas de lockdown, a entrega de equipamentos de oxigênio e de kits de intubação, entre outros assuntos semelhantes.

Destacamos ainda a recorrência de mensagens relacionadas à atuação das Forças Armadas, que são de onde o então presidente vem e de onde toma emprestado parte do simbolismo de sua persona (figura 2). Imagens de equipes da Aeronáutica, da Marinha e do Exército em ação no transporte de alimentos, medicamentos e vacinas e nas próprias campanhas de vacinação pelo país são apresentadas em mensagens que buscam retratar uma ilustração de heroísmo, patriotismo e de "trabalho incansável" por parte destes atores. Foram 109 mensagens do tipo, que representam 22,1% de todas as postagens feitas por Bolsonaro sobre a pandemia19.

Fonte: Jair Bolsonaro 1 (2021, janeiro 5).

Figura 2 Postagem de 14 de janeiro de 2021 

As demais mensagens da categoria tratam de recursos destinados por Bolsonaro aos Estados -através dos quais ele, muitas vezes, busca eximir-se da responsabilidade da crise, imputando-a a governadores- e medidas econômico-financeiras, como auxílios financeiros à população (a exemplo do auxílio emergencial de R$ 600), redução de impostos e ajuda a setores econômicos diretamente afetados pela pandemia. As postagens sobre o sistema público de saúde mostram aportes financeiros e estruturais a hospitais brasileiros, além de contratação de profissionais de saúde.

A categoria em análise mostra uma intenção semelhante ao que caracterizou, historicamente, a comunicação governamental no Brasil: a prestação de contas das ações do governo. As postagens carregam uma natureza publicitária, pois através delas o ex-presidente busca exaltar seus feitos, criando uma percepção de proatividade da gestão diante da crise.

Contudo, as postagens de Bolsonaro diferem da noção de accountability, que implica o reconhecimento da responsabilidade da autoridade pública sobre questões que afetam a sociedade (Gerstlé, 2005), com ética e transparência na apresentação de dados. Bolso-naro, por outro lado, terceiriza a culpa da crise a governadores e busca contrapor a imagem negativa que, no período, vinha sendo imputada a ele por parte da imprensa, a qual questionava a suposta inoperância do governo e o responsabilizava pela situação caótica por que passava o país.

As críticas às medidas de lockdown e isolamento social são outra marca da comunicação do ex-mandatário no Telegram (figura 3). Estas medidas sempre foram manifestamente questionadas por Jair Bolsonaro, que sempre defendeu a manutenção das atividades econômicas.

Fonte: Jair Bolsonaro 1 (2021, fevereiro 28).

Figura 3 Postagem de 28 de fevereiro de 2021 

Repetidamente usando a frase "todo trabalho é essencial", Bolsonaro criticou as medidas tomadas pelos governadores, afirmando que estas seriam a causa de danos maiores ao País, como a fome e o desemprego. Como uma estratégia populista (Jagers & Walgrave, 2007), Bolsonaro buscou colocar os governadores como os inimigos dos brasileiros na luta contra a pandemia, especialmente aqueles de estados do Nordeste (em sua maioria, de esquerda), que, com decretos de lockdown, teriam prejudicado a população.

Bolsonaro compartilhou mensagens de pessoas declarando que queriam voltar a trabalhar e de pessoas passando por dificuldades por estarem sem renda. Um padrão percebido nessas mensagens é a evocação das emoções. Ele trazia histórias individuais de sofrimento para sensibilizar a população contra estas medidas. Como discutimos anteriormente, esta é outra marca comum da política que vem sendo feita por líderes populistas (Waisbord, 2018, 2020; Innerarity, 2015).

Também como característica dessa forma de fazer política, está a crítica à imprensa. Ao apresentar informações favoráveis à sua gestão, o ex-presidente ia afirmando, insistentemente, que tais temas "propositalmente" não seriam apresentados na imprensa convencional, que acusava de ser "ativista" e "mentirosa", chegando a usar o termo "blogueiros" para se referir a jornalistas profissionais.

O chefe do Executivo traz reportagens positivas à sua gestão feitas pela TV Brasil, empresa estatal, ou de canais como a Record, então aliada do governo20, para tecer comentários reprobatórios à maior parte da imprensa, especialmente à Rede Globo, mencionada indiretamente ao utilizar expressões como "certa/determinada emissora de TV" ou a "TV que quer matar o seu país". Os embates públicos e notórios de Bolsonaro com a Globo nos permitem inferir que, nas citadas afirmações, as referências foram a esta emissora.

Outra categoria se refere à defesa do tratamento precoce, a qual foi feita por Bolsonaro desde meados de 2020 em diversas redes sociais digitais e em declarações públicas. Nestas mensagens, ele apresentou estudos científicos que comprovariam a eficácia desse tipo de tratamento e usou falas de cientistas que defendiam esse protocolo (figura 4). Uma destas postagens também foi feita em sua conta no Twitter e foi marcada pelo próprio site como "publicação de informações enganosas e potencialmente prejudiciais relacionadas à covid-19", ferindo, assim, as regras da plataforma.

Fonte: Jair Bolsonaro 1 (2021, janeiro 11).

Figura 4 Postagem de 11 de janeiro de 2021 

Bolsonaro chegou a defender que "o tratamento precoce salva vidas", afirmação negada pela comunidade científica. E aqui encontramos uma contradição: mesmo minimizando a importância da ciência por diversas vezes durante a pandemia, o ex-presidente recorreu exatamente a instâncias científicas para legitimar seu posicionamento, quando convinha à sua narrativa.

Também nesta unidade estão mensagens sobre ações diplomáticas com Israel, onde se buscavam novos tratamentos à doença, como um spray nasal contra o novo coronavírus21, o qual ainda estava em fase de estudos, sem nunca haver sido objeto de artigo publicado em revistas científicas até então. O produto nunca teve acordo fechado com o Brasil.

As postagens sobre tratamento precoce podem ser consideradas como campanhas de desinformação, por defenderem protocolos não aceitos pela comunidade médica internacional e pelo potencial prejuízo que podem trazer à população. Aqui, percebemos que a comunicação de Bolsonaro não esteve pautada no interesse da sociedade, afastando a possibilidade de que sua atuação nesta plataforma pudesse ser pensada como comunicação pública.

Por fim, na unidade de registro "temas diversos", incluímos as postagens que agregam as diferentes categorias apresentadas. Muitas vezes, eram posts das lives semanais do ex-presidente, através das quais ele tratava de diversos assuntos, ou discursos feitos em público, nos quais se referia a vários desses temas relacionados à pandemia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Telegram é um instrumento em meio a tantos outros disponíveis na rede para que o capitão reformado possa estabelecer sua comunicação direta com seus apoiadores. Compreendendo o poder da comunicação mediada pela internet e a força que as plataformas virtuais exercem hoje na opinião pública, Bolsonaro buscou estar presente em todas elas (ou no máximo que pôde), percebendo as vantagens específicas que cada uma delas oferece. Através do serviço de mensagens instantâneas em análise, Bolsonaro abasteceu seus seguidores de um número elevado de informações sobre as ações de seu governo no combate à covid-19, construindo um enquadramento no qual sua gestão foi apresentada como bem-sucedida e proativa no enfrentamento da pandemia.

Apesar de o principal objetivo do ex-presidente através das mensagens pelo Telegram parecer uma prestação de contas à sociedade, o que aproximaria essa atuação do entendimento histórico de comunicação pública no Brasil, não houve transparência na apresentação desses dados. Alvo de questionamentos dos mais diversos segmentos da sociedade quanto sua atuação no combate à doença, Bolsonaro usou seu canal para construir uma espécie de "realidade paralela", que funcionou mais como uma tentativa de, indiretamente, refutar as críticas que recebia.

Também identificamos que não houve um "espírito público" na ação comunicativa de Jair Bolsonaro. Ao defender tratamentos sem comprovação científica e ao ir contra medidas de refreamento da contaminação pelo vírus defendidas por autoridades sanitárias de todo o mundo, o então chefe do Executivo brasileiro contribuiu para a desinformação da população. Uma comunicação que não tem o foco no cidadão não pode ser chamada de comunicação pública. Também não é comunicação governamental. O que Jair Bolsonaro produziu em seu canal no Telegram foi puramente uma comunicação política.

Ao trazer para o núcleo de sua estratégia comunicativa a disputa narrativa sobre as construções de sentido da sociedade sobre a pandemia, Bolsonaro se colocou no papel central de sua própria comunicação. Descredibilizando a imprensa e o saber científico, terceirizando a responsabilidade pela administração da crise sanitária e manipulando os sentimentos da população a seu favor, o ex-presidente brasileiro atuou como um líder populista conservador ciente das características e possibilidades da nova ecologia midiática.

REFERÊNCIAS

Alonso, S. (2012). Análisis de contenido de textos políticos: un enfoque cuantitativo (Vol. 47). CIS. [ Links ]

Benkler, Y., Faris, R., & Roberts, H. (2018). Network propaganda: Manipulation, disinformation, and radicalization in American politics. Oxford University Press. [ Links ]

Benoit, W. L. (2010). Content Analysis in Political Communication. Sourcebook for Political Communication Research: Methods, Measures, and Analytical Techniques, 268. [ Links ]

Brandão, E. P. (2007) Comunicação pública: conceito incomum. En J. Duarte, Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. São Paulo: Atlas. [ Links ]

Brandão, E. P. (2019). Comunicação Pública: 17 anos depois. Cidadania Comunicacional: Teoria, epistemologia e pesquisa. A. Moraes e L. Signates (Orgs.). Goiânia: Gráfica UFG. [ Links ]

Craig, R. T. (1999). Communication theory as a field. Communication theory, 9(2), 119-161. [ Links ]

Duarte, J. (2007). Comunicação pública (pp. 47-58). São Paulo: Atlas . [ Links ]

Freeman, R. (2019). Meeting, talk and text: policy and politics in practice. Policy & Politics, 47(2), 371-387. [ Links ]

Gerstlé, J. (2005). La comunicación política. Traducción de Hernán Soto. Chile. LOM Ediciones. [ Links ]

Gibbs, M., Meese, J., Arnold, M., Nansen, B., & Carter, M. (2015). # Funeral and Instagram: Death, social media, and platform vernacular. Information, communication & society, 18(3), 255-268. https://www.researchgate.net/publication/304169468_Funerals_and_Instagram_Death_Social_Media_and_Platform_Vernacular. [ Links ]

Gonçalves, L. P. & Neto, O. C. (2020). O Fascismo em Camisas Verdes: do integralismo ao neointegralismo. Editora FGV. [ Links ]

Innerarity, D. (2015). La política en tiempos de indignación. Barcelona: Galaxia Gutenberg. [ Links ]

Jagers, J. & Walgrave, S. (2007). Populism as political communication style: An empirical study of political parties' discourse in Belgium'. European Journal of Political Research, 46 (3), 319-45. [ Links ]

Jair Bolsonaro 1 (2021, janeiro 11). Conceituada revista científica internacional atesta que o medicamento antiviral nitazoxanida é capaz de reduzir a carga viral em pacientes infectados pelo coronavírus [Telegram]. Recuperado de: https://web.telegram.org/z/#-1273465589. [ Links ]

Jair Bolsonaro 1 (2021, janeiro 14). Força Aérea Brasileira atinge 350 horas de voo em apoio ao estado do Amazonas na Operação CO-VID-19 [Telegram]. Recuperado de: https://web.telegram.org/z/#-1273465589. [ Links ]

Jair Bolsonaro 1 (2021, fevereiro 28). O povo quer trabalhar [Telegram]. Recuperado de: https://web.telegram.org/z/#-1273465589. [ Links ]

Jair Bolsonaro 1 (2021, março 5). Vacinas (a verdade) [Telegram]. Recuperado de: https://web.telegram.org/z/#-1273465589. [ Links ]

Kraus, R. (2018). 2018 was the year we (sort of) cleaned up the internet. https://mashable.com/article/deplatforming-alex-jones-2018/?europe=true. [ Links ]

Laclau, E. (2005), La razón populista/On populist reason. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. [ Links ]

Nobari, A. D., Sarraf, M. H. K. M., Neshati, M., & Daneshvar, F. E. (2021). Characteristics of viral messages on Telegram; The world's largest hybrid public and private messenger. Expert Systems with Applications, 168, 114303. [ Links ]

Oliveira, M. J. D. C. (2013). Comunicação organizacional e comunicação pública. Comunicação pública: interlocuções, interlocutores e perspectivas. São Paulo-SP, ECA-USP/CECORP. [ Links ]

Recuero, R. (2009). Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina. Coleção Cibercultura, 191. [ Links ]

Rogers, R. (2020). Deplatforming: Following extreme Internet celebrities to Telegram and alternative social media. European Journal of Communication, 35(3), 213-229. https://doi.org/10.1177/0267323120922066. [ Links ]

Sampaio, R. C. & Lycarião, D. (2021). Análise de conteúdo categorial: manual de aplicação. [ Links ]

Tomé, L. (2016). A ascensão do "Estado Islâmico". JANUS 2015-2016-Integração regional e multilateralismo, 10-11. [ Links ]

Urman, A. & Katz, S. (2020). What they do in the shadows: examining the far-right networks on Telegram. Information, communication & society, 25(7), 904-923. [ Links ]

Waisbord, S. (2018). The elective affinity between post-truth communication and populist politics. Communication Research and Practice, 4(1), 17-34. https://doi.org/10.1080/22041451.2018.1428928. [ Links ]

Waisbord, S. (2020). De la simplicidad a la complejidad: lecciones inconclusas de la pandemia para comunicación y salud pública. Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, 19(35). [ Links ]

Weber, M. H. (2011). Estratégias da comunicação de Estado e a disputa por visibilidade e opinião. Comunicação pública, sociedade e cidadania (pp. 101-119). São Caetano do Sul: Difusão. [ Links ]

World Health Organization et al. (2020) Managing the COVID-19 infodemic: Promoting healthy behaviours and mitigating the harm from misinformation and disinformation. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/news/item/23-09-2020-managing-the-co-vid-19-infodemic-promoting-healthy-behaviours-and-mitigating-the-harm-from-misinformation-and-disinformation > Acesso em: 04 jun. 2021. [ Links ]

1 https://coronavirus.jhu.edu/map.html (recuperado em 10 de janeiro de 2023).

2Íntegra do discurso disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/veja-a-integrado-discurso-de-bolsonaro-na-diplomacao-do-tse/ (recuperado em 10 de janeiro de 2022).

3 Benkler, Faris e Roberts (2018, p. 17) conceituam as campanhas de desinformação como a "manipulação intencional de crenças". Segundo os autores, as campanhas de desinformação têm o propósito de manipular e enganar pessoas com fins políticos. Isso pode ser feito por meio de informações com fontes ou conteúdos falsos, ou "sutilmente mascarados ou manipulados para parecerem diferentes do que realmente são" (p. 43).

5 Recuero (2009, p. 101) utiliza a denominação de sites de redes sociais (SRS) para se referir aos "espaços utilizados para a expressão das redes sociais na internet".

7Estado Islâmico no Iraque e do Levante, conhecido também pela sigla ISIS (Islamic State of Iraq and Syria), é uma organização jihadista islamita criada em 2013 e autoproclama-da "califado" em 2014. A organização "evoluiu a partir da al-Qaeda (aQ) no Iraque e ganhou proeminência tirando partido, sobretudo, dos ressentimentos sectários no Iraque e do caótico conflito na Síria" (Tomé, 2016).

11Por diversas vezes, Bolsonaro invoca essa tríade, que é a máxima do Movimento Integralista Brasileiro. Conforme Gonçalves eg Neto (2020, online), o integralismo brasileiro foi "o maior movimento de extrema direita da história do Brasil", surgido na década de 1930 e considerado o braço político e fascista da Igreja Católica.

13Postagens com outros temas que não os citados anteriormente; ou aquelas que envolvem diversos dos temas anteriores.

14Auxílios financeiros destinados pelo governo federal aos estados para o combate à Covid-19.

15Auxílios financeiros diretos à população, redução de impostos e ajuda a setores econômicos diretamente afetados pela pandemia.

16Crise sanitária no Amazonas pela pandemia, entrega de alimentos em virtude do lock-down, entrega de oxigênio, kits de intubação etc.

17Posts que apresentam medidas relacionadas a aportes financeiros e estruturais ao sistema público de saúde, no que se refere ao combate à pandemia (novos leitos, novos hospitais, novos equipamentos médicos, contratação de profissionais de saúde).

19Como este tema estava distribuído entre outras categorias, ele não foi considerado uma unidade de registro.

Recebido: 08 de Dezembro de 2022; Aceito: 24 de Janeiro de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons