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Estudios de Filosofía

Print version ISSN 0121-3628

Estud.filos  no.33 Medellín Jan./June 2006

 

Fecha de recepción: abril 05 de 2005

Fecha de aceptación: agosto 03 de 2005

 

CONSIDERAÇÕES SOBRE O MÉTODO, A ORDEM E O ENTENDIMENTO

EM RENÉ DESCARTES E BENEDICTUS DE SPINOZA* 

 

Por: Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

Universidade Estadual do Ceará —UECE—. Brasil

rochafragoso@terra.com.br

 

Resumen. El ordine geometrica consiste en partir de definiciones y axiomas evidentes por sí mismos. El paralelismo entre ambos órdenes en el sistema de Spinoza, el ordo cognoscendi y el ordo essendi, hace posible postular la intensidad total de lo real, implicando necesariamente una semejanza entre el entendimiento finito, en cuanto productor del primer orden, y el entendimiento infinito, en cuanto productor del segundo orden, ausente en el cartesianismo. Martial Gueroult afirma el método como geométrico en Descartes porque obedece estrictamente a la regla que asegura a la Geometría todo su rigor; mientras que en Spinoza lo es porque, como Geometría, construye los conceptos de los objetos.

Palabras clave. Spinoza, Descartes, Orden, entendimiento divino, entendimiento humano.

 

Summary. The ordine geometrica is a splitting up of definitions and axioms that are self evident. The parallelism between both orders in Spinoza‘s System, the order cognoscendi and the order essendi, enables one to postulate the total intensity of the Real, which necessarily implies a likeness between the finite understanding, inasmuch as it is a producer of the former order, and the infinite understanding, inasmuch as it is a producer of the latter order, which is absent in Cartesian Philosophy. Mortral Gueroult, considers Descartes‘ Method as a geometrical one because it strictly obeys the rule that ensures all rigour in Geometry; while Spinoza‘s is so because, like Gemoetry, he constructs the concepts from the objects.

Key words. Spinoza, Descartes, Order, Divine understanding, Human understanding.

 

Introdução

Com o desmoronamento do sistema Medieval, ruiu também o aceite incondicional da verdade obtida por meio do aparato explicativo silogístico/aristotélico característico da Filosofia Medieval, generalizando–se a crise de autoridade nos diversos setores do conhecimento humano. Na Filosofia, em particular, tal ruína pode ser evidenciada pelos crescentes questionamentos da autoridade escolástica e do conhecimento de base aristotélica, ocasionando no século XVI e início do século XVII, uma intensa busca por um novo método para se chegar à verdade, ao conhecimento verdadeiro ou indubitável.

Nesta perspectiva, René Descartes surgindo como o “astro mais brilhante de nosso século”,[1] vai introduzir o método e a ordem demonstrativa das matemáticas na Filosofia ao qual denomina de método analítico. Benedictus de Spinoza, por sua vez, vai re–elaborar este método e esta ordem cartesiana, colocando–os sob a forma habitualmente empregada por Euclides nos Elementos, e também pelos demais geômetras, na qual as proposições, com suas demonstrações, escólios e corolários estão subsumidas às definições, axiomas e postulados previamente expostos. É o método sintético.

 

1. O “método”

Entretanto, cumpre proceder com ordem: antes de considerarmos a definição do método analítico em Descartes ou a definição do método sintético em Spinoza, devemos considerar o sentido do próprio termo “método”. Este termo, originário do latim methodus, tem um significado etimológico de “necessidade” ou de “demanda”. Por conseqüência, num sentido mais genérico, é definido como um modo de proceder, uma maneira de agir, um meio ou um caminho para se atingir um fim. Neste sentido, método não se distingue de investigação ou doutrina, podendo significar qualquer pesquisa ou orientação a ser seguida para um estudo. É a este significado que se referem as expressões “método dialético” ou “método geométrico”.

Num sentido mais específico, o termo “método” é definido como um programa, um roteiro, que regularia previamente uma série de operações, ou um conjunto de determinadas ações, que se deve realizar em vista de um resultado determinado. Neste sentido, mais restrito, método se refere a uma técnica particular de pesquisa, indicando um procedimento de investigação organizado, passível de ser repetido e de se corrigir, que garanta a obtenção de resultados válidos. É a este significado que se referem as expressões “método silogístico” ou “método residual”, e, em geral, as expressões que se referem a métodos que designam procedimentos específicos de investigação e/ou de verificação.

 

1.1. O método como “ordem”

Em sua obra, La Logique ou L’Art de Penser, Antoine Arnauld e Pierre Nicole vão relacionar o “método” ao “entendimento humano”, ao definirem aquele como uma ação específica deste último. Para estes autores, o método é uma ação do entendimento, ou uma ordem que a razão aplica sobre os conhecimentos dispersos de um determinado assunto, conhecimentos estes já existentes ou previamente adquiridos, visando ordená–los de forma mais adequada para a cognição do assunto determinado. Em suas palavras: “Chama–se aqui ordenar à ação da mente pela qual, tendo sobre um mesmo assunto, como sobre o corpo humano, diversas idéias, diversos juízos, diversos raciocínios, ele os dispõe da maneira mais própria para conhecer esse assunto. É o que também se chama método”.[2] Neste sentido, a ordem será o caminho que se deve seguir para se chegar à verdade nas ciências ou na Filosofia, ou o conjunto ordenado de procedimentos que servem para descobrir o que se ignora ou para provar o que já se conhece. No dizer de Arnauld e Nicole: “Pode–se chamar em geral de método à arte de bem dispor uma série de muitos pensamentos, ou para descobrir a verdade quando a ignoramos, ou para a provar aos outros, quando nós já a conhecemos”.[3]

Por um lado, esta ordem pode ser determinada a priori, e, independentemente de sua aplicação, ser formulada previamente, servindo de programa ou roteiro para as operações do entendimento, que só começariam depois da completa formulação das regras do método. Por outro lado, esta ordem pode não ter nenhum valor independente, por si própria, só podendo ser desenvolvida no decorrer do processo, ordenando os novos conhecimentos que vão surgindo e do qual ela não seria mais do que uma simplificação esquemática. De qualquer forma, seja neste ou naquele caso, geralmente a ordem como método significa a ordem que se deve impor aos diferentes passos necessários para se chegar a um fim determinado.

No primeiro caso, a ordem se constituiria num objeto realmente distinto das suas aplicações. A idéia de método é sempre a de uma direção que se pode definir e é regularmente seguida numa operação do entendimento. Nesta acepção, o método constitui um objeto realmente distinto das suas aplicações e a direção regular seguida pelo entendimento pode ser definida independentemente de qualquer matéria, possibilitando postular–se um “método universal”.

No segundo caso, a ordem não teria uma existência autônoma, por si própria, fora das operações do entendimento, ela não seria mais do que uma abstração puramente verbal e a direção regular seguida pelo entendimento se refere à relação deste com um objeto determinado, ou seja, haveria uma especificidade do método, que, por sua vez, interditaria a postulação do “método universal”.

 

2. Análise e Síntese: “Método” ou “Métodos”?

Para os matemáticos e os lógicos do século XVII, assim como para os teólogos e filósofos, em geral, a diferença entre a análise e a síntese é exposta como a diferença entre dois métodos de ensino, que eram “[...] identificados, respectivamente, com a descoberta e a exposição”.[4] Segundo Abraham Netter, na época de Descartes, “[...] o método seguido em Aritmética e Álgebra por um lado, e aquele, por outro lado, em Geometria, eram considerados pelos matemáticos como dois métodos radicalmente distintos”,[5] sendo a análise e a síntese as operações da Aritmética e da Geometria, respectivamente. As definições de análise e síntese encontradas no livro La Logique, de Arnauld e Nicole, exemplificam adequadamente nossa afirmativa:

Há duas espécies de métodos: um, para descobrir a verdade, que nós chamamos análise ou método de resolução, e que nós podemos também chamar método de invenção; e outro para explicá–la [a verdade] aos outros, quando a encontramos, que nós chamamos síntese ou método de composição, e que nós podemos também chamar método de doutrina.[6]

Neste mesmo texto, na seqüência, os autores vão aprofundar um pouco mais esta definição inicial, escrevendo que “na análise, tanto como no método que chamamos de composição, deve–se passar sempre daquilo que é mais conhecido para aquilo que o é menos, visto que não há verdadeiro método que possa dispensar esta regra”.[7] Referindo à síntese, eles acrescentam a seguir: “Este método consiste principalmente em começar pelas coisas mais gerais e mais simples, para passar para as menos gerais e mais compostas”.[8]

Para Ferdinand Alquié, Descartes também considerava a análise e a síntese como dois métodos distintos. Efetivamente, em sua obra Le Rationalisme de Spinoza, Alquié vai afirmar que Descartes “[...] não distingue duas ordens, mas dois métodos, que um e outro devem respeitar a ordem”.[9] Para fundamentar sua afirmativa, Alquié cita a passagem das Réponses aux secondes objections em que Descartes afirma consistir a ordem apenas “[...] em que as coisas que são propostas primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que elas sejam demonstradas unicamente pelas coisas que as precedem”.[10] E, a seguir, referindo–se à análise e à síntese, vai escrever: “o método de demonstrar é duplo: um se faz por análise ou resolução, e o outro pela síntese ou composição”.[11]

Pelos termos utilizados por Alquié em sua citação, poderíamos ser levados a concluir com este autor que Descartes realmente considera a análise e a síntese como dois métodos separados. Todavia, o termo “método” empregado por Alquié não está presente neste trecho da tradução francesa de Clerselier; donde, não foi a partir desta tradução que o termo foi adotado. Muito provavelmente este termo originou–se numa tradução do próprio Alquié para esta passagem, a partir do original em latim das Meditationes de Prima Philosophia[12] de 1641.[13] Mas, mesmo considerando esta hipótese verdadeira, por si só, sua tradução não nos parece suficiente para a conclusão a que chega Alquié, pois na tradução do trecho citado é possível a utilização tanto do termo “método” (utilizado por Alquié), quanto do termo “maneira” (utilizado por Clerselier na sua tradução). A interpretação à letra do texto da tradução francesa de 1647, acrescida do fato de que esta tradução foi a única “[...] vista por Descartes, e aceita e aprovada por ele”.[14] e, a acreditarmos no livreiro responsável pela publicação desta edição, foi também a única a ser complementada com alguns esclarecimentos do autor acerca dos “[...] seus próprios pensamento”,[15] parece–nos suficiente para negar, ou, ao menos, para pôr em dúvida a conclusão de Alquié. Por conseguinte, entre o termo “método”, empregado por Alquié, e o termo “maneira”, empregado por Clerselier, este último afigura–se–nos como o mais adequado, pela insuficiência de razões apresentadas por Alquié, acrescida do fato de que é muito pouco provável que Descartes negligenciasse na tradução de sua obra ponto tão significativo.

Ao contrário de Alquié, e considerando literalmente o texto das Secondes Réponses da tradução francesa de 1647, na qual Descartes escreve: “Na forma de escrever dos Geômetras, eu distingo duas coisas, a saber, a ordem e a maneira de demonstrar”,[16] consideramos perfeitamente adequado afirmar que para Descartes a distinção entre a análise e a síntese não é uma distinção entre dois métodos (como é para seus contemporâneos), e sim uma distinção entre dois processos diferentes de demonstração, ou melhor, entre duas ordens demonstrativas possíveis num mesmo método: o método geométrico.

 

2.1. Descartes e a análise

Descartes vai tomar como ponto de partida em sua obra maior, as Méditations Metaphysiques, o conhecimento de um efeito que vai sendo metodicamente desenvolvido e ampliado até atingir o conhecimento de sua causa. Este movimento do efeito em direção a sua causa é duplo: vai da dúvida, enquanto ato do pensamento, à sua causa (o sujeito que tem os atos do pensamento); e vai deste sujeito, enquanto efeito, à sua causa: Deus. O primeiro, enquanto movimento interno ao pensamento, corresponde a um solipsismo; o segundo, enquanto movimento externo ao entendimento, em direção a Deus, corresponde à saída deste solipsismo.

O movimento solipsista, ou o primeiro movimento do efeito à causa, ocorre em dois momentos distintos, sendo ambos perpassados pela dúvida. No primeiro momento, o conhecimento do qual parte o cartesianismo é expresso pela dúvida, enquanto ato do pensamento de um sujeito do qual inicialmente só se pode afirmar, de forma confusa, que é o autor do próprio ato de pensar, ou a causa da dúvida. Este é o tema da Primeira Meditação.[17] No segundo momento, esta mesma dúvida, agora enquanto método tem a finalidade de nos libertar “[...] de toda sorte de prejuízos e nos prepara um caminho muito fácil para acostumar nosso espírito [esprit] a desligar–se dos sentidos, [...]”,[18] visando desenvolver até à radicalização este conhecimento inicial, ainda confuso, possibilitando assim extrair a primeira verdade (ainda que temporária), o primeiro conhecimento claro e distinto do sistema, aquele que vai inaugurar a longa cadeia de razões do cartesianismo, o cogito: “Eu sou, eu existo”.[19] Entretanto, o cogito, por ser um efeito, não é a verdade mais importante do sistema cartesiano; ele é apenas a primeira. A verdade mais importante do cartesianismo, aquela que vai ser o suporte da teoria do conhecimento de Descartes, por ser causa, é a idéia de Deus. Mas, mesmo sendo causa primeira, ela só será desenvolvida na Terceira Meditação;[20] é o segundo movimento do efeito (o cogito) em direção a sua causa (Deus), é o movimento de saída do solipsismo cartesiano.

Esta ordem de entrada ou disposição dos temas tratados nas Méditations é determinada, de forma geral, pela ordem geométrica, e de forma mais específica, pela ordem analítica. É determinada pela ordem geométrica, enquanto dispõe “[...] que as coisas que são propostas primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que elas sejam demonstradas unicamente pelas coisas que as precedem [...]”,[21] numa ordenação das razões, cuja direção dirige–se unicamente para a compreensão das próprias razões, conforme elas vão sendo ordenadas pelo entendimento. É determinada pela ordem analítica, pela via da análise, enquanto dispõe o efeito e somente depois, a causa, conforme aos preceitos do procedimento analítico: examinam–se antes os efeitos para depois examinar–se as causas; ou melhor, a ordem é rigorosa: parte–se do conhecimento dos efeitos, em direção ao conhecimento das causas. O contrário, em termos direcionais desta ordem analítica seria a ordem sintética: parte–se do conhecimento das causas, em direção ao conhecimento dos efeitos. É justamente esta que será utilizada por Benedictus de Spinoza em sua obra maior, a Ética.

 

2.2. Spinoza e a síntese

Não obstante as considerações cartesianas, Spinoza escreve a Ética numa ordem geométrica e com as matérias dispostas na ordem sintética. Mais do que uma mera opção ou um simples discordar das objeções de Descartes quanto à disposição sintética, estão implícitos nesta opção spinozista pela síntese as distinções existentes entre os dois sistemas. Dentre elas, podemos citar a dualidade substancial de Descartes e a substância única em Spinoza, a distinção existente entre os conceitos cartesiano e spinozista de “entendimento finito e infinito”, que dada a consideração inicial de Deus como causa imanente em Spinoza, ou como causa transcendente em Descartes, têm em cada um destes autores uma conotação particular.

Por sua vez, a consideração cartesiana de Deus como causa transcendente e a consideração spinozista de Deus como causa imanente, ocasiona a diferença na concepção do entendimento divino e humano na Filosofia de Descartes e de Spinoza. Devido a esta diferença quanto à causalidade, o entendimento divino e o humano serão heterogêneos de uma forma especifica em cada um destes filósofos. Donde, a distinção entre a natureza da causa do entendimento em Descartes e Spinoza terá como conseqüência a não aceitação por parte de Spinoza da heterogeneidade total entre o entendimento divino e humano. Esta especificidade resultará em Descartes na precedência do conhecimento do efeito sobre o conhecimento da causa; em Spinoza, ocorrerá justamente o contrário: a precedência do conhecimento da causa sobre o conhecimento do efeito, ocasionando a recusa spinozista em utilizar o método analítico preconizado por Descartes.

 

3. O Entendimento finito e infinito

De fato, tanto Descartes quanto Spinoza sustentam a heterogeneidade do entendimento infinito e finito, porque em ambos o entendimento infinito é a origem criadora ou produtora, respectivamente, do entendimento finito. Mas, enquanto na Filosofia de Descartes Deus é transcendente, e, portanto, enquanto entendimento infinito, é a causa transcendente do entendimento finito; no spinozismo Deus é imanente, e, portanto, enquanto entendimento infinito, é a causa imanente do entendimento finito.

O fato do cartesianismo considerar Deus como causa transcendente do entendimento finito terá como principal conseqüência a exclusão de toda e qualquer comensurabilidade entre este entendimento e o entendimento infinito. O que, por conseguinte, resultará na incomensurabilidade da ciência humana com a ciência divina, já que a ciência, tanto a humana quanto a divina, está diretamente relacionada com o potencial de seus respectivos entendimentos.[22] Admitir esta incomensurabilidade será admitir a impossibilidade da ciência humana ser verdadeira por si só, independente de um fundamento exterior a ela, pois se a ciência de Deus é o conhecimento verdadeiro que não pode admitir nada de falso e a ciência humana nada tendo de comensurável com ela, não será possível à ciência do homem ser verdadeira por si só.

Em Descartes o entendimento finito é totalmente distinto do entendimento infinito, tanto no aspecto quantitativo quanto no aspecto qualitativo. Quanto ao primeiro aspecto, o entendimento de Deus, por ser causa primeira, é perfeito e ilimitado; o entendimento humano, por ser um efeito, é imperfeito e limitado. Quanto ao segundo, o entendimento infinito, por operar de forma totalmente distinta do entendimento finito, elimina toda e qualquer distinção no que tange à extensão, entre a vontade e o entendimento, pois Deus “[...] ao contrário de nós, entende e quer por operações diferentes, mas entende, quer e faz tudo sempre por uma mesma e muito simples ação; [...]”.[23] No entendimento finito, devido a sua natureza imperfeita, ocorre uma desproporção na extensão da vontade e do entendimento, introduzindo o erro: a vontade, por ser “[...] muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo–a também às coisas que eu não entendo; [...]”,[24] e fazendo com que o homem se engane sempre que formula juízo a respeito de coisas que não são claras e distintamente representadas pelo entendimento. Ao contrário, Deus por ser “[...] soberanamente perfeito, não pode ser causa de erro algum [...]”,[25] não estando “[...] limitado por nenhuma imperfeição”.[26] Toda idéia clara e distinta tem um valor objetivamente certo porque Deus é o autor de toda concepção clara e distinta.[27] Por conseguinte, a garantia de veracidade das idéias claras e distintas do entendimento finito necessariamente transcende a este; pois, se o entendimento finito é passível de erro, imperfeito e limitado, ele não pode garantir apenas por si só a veracidade de nenhuma idéia clara e distinta.

Ao contrário do cartesianismo, o spinozismo, ao considerar Deus como causa imanente do entendimento finito, ocasionará de imediato a inteira comensurabilidade entre o entendimento infinito e o entendimento finito. Esta comensurabilidade é devida à relação existente entre a causa imanente, que pressupõe a manutenção de uma relação com seu efeito, ao contrário da causa transcendente que não pressupõe necessariamente uma ligação com seu efeito, após o surgimento deste.

Uma vez estabelecida esta distinção entre as causalidades, visando unicamente distinguirmos a relação causal transcendente da imanente, denominaremos a relação entre a causa transcendente e o seu efeito como uma relação de causa e efeito; da mesma maneira, sem eliminarmos a relação causal entre o entendimento infinito e o finito, vamos denominar a relação entre a causa imanente e o seu efeito como uma relação do todo com a sua parte. Ora, a transformação da relação entre o entendimento infinito como causa e o entendimento finito como efeito (como na Filosofia de Descartes), em uma relação em que o entendimento infinito será o todo e o entendimento finito será uma parte deste todo, possibilitará a esta parte participar do todo, porque entre ela e o todo estará mantida uma relação, uma medida comum. Tal transformação vai possibilitar que a ciência do homem possa ser verdadeira por si só, independente de um fundamento exterior a ela, porque o entendimento finito será comensurável com o entendimento infinito.

Por conseguinte, nesta relação todo–parte, a distinção entre o entendimento finito e o entendimento infinito ocorrerá apenas no aspecto quantitativo, não havendo distinções no aspecto qualitativo como ocorre no cartesianismo. Esta distinção quantitativa é a marca da heterogeneidade entre os entendimentos: o entendimento finito (que recai apenas sobre as coisas e os eventos que lhe são dados), não pode e nunca poderá conhecer tudo o que entendimento infinito (que recai sobre tudo) conhece, ou seja, a distinção no aspecto quantitativo é apenas na capacidade de possuir idéias adequadas, que é limitada no homem e ilimitada em Deus. Se consideramos o entendimento infinito “[...] enquanto se explica [explicatur] pela natureza do espírito [mentis][28] humano [...]”,[29] o entendimento finito (enquanto percebe as coisas verdadeiramente) é uma parte do entendimento infinito de Deus, sendo idêntico a ele e conhecendo as coisas como Deus as conhece.

4. Spinoza e a “ordem geométrica”

A ordem geométrica, conforme os Elementos de Euclides, consiste em partir de definições evidentes por si mesmas, que não necessitam de demonstração, de axiomas que são proposições ou juízos que também não têm necessidade de demonstração, mas diferenciam–se das definições porque têm uma maior abrangência, de proposições que serão demonstradas a partir dos axiomas, das definições ou de proposições anteriormente demonstradas, acompanhadas por corolários e/ou escólios, que são conseqüências extraídas das proposições ou observações que têm por finalidade explicitar o sentido das proposições antecedentes, esclarecendo o próprio sentido ou resolvendo alguma possível polêmica ocasionada por alguma objeção.

Esta ordem foi descrita por Spinoza em diversas passagens como prolixa,[30] cujo significado, na maioria das passagens, remete à forma alongada em que os temas seriam tratados, que consistia basicamente num desenvolvimento discursivo dos assuntos, sem economia de termos, de explicação ou de raciocínios, ou seja, os temas não seriam expostos de forma concisa ou breve. Semelhante às Regulæ de Descartes, este desenvolvimento discursivo seria basicamente dedutivo e lógico, pois, como vimos, trata–se de partir de idéias simples (as definições e axiomas), acedendo progressivamente às idéias cada vez mais complexas (as proposições, os corolários e os escólios), descobrindo como as idéias simples e as complexas se conectam entre si.

 

Conclusão

Sem deixar de ressaltar que a ordem do conhecimento em Descartes não coincide com a ordem das essências, a partir de sua hipótese acerca das duas ordens cartesianas, a ordo cognoscendi e a ordo essendi, na qual a primeira “[...] é utilizada somente para encadear rigorosamente nossos pensamentos, assegurando a verdade e a certeza, [...]”,[31] enquanto a segunda mostra “[...] como, fora de nós, as coisas decorrem realmente”,[32] Martial Gueroult estabelece a relação entre o método geométrico e a ordem, afirmando que o método é geométrico em Descartes “[...] porque ele obedece estritamente à regra que assegura à Geometria todo o seu rigor”.[33] Ao contrário, em Spinoza, “O método é geométrico, porque, como em Geometria, ele constrói os conceitos de seus objetos, [...]”.[34] Esta afirmativa só é possível porque no spinozismo há uma relação estabelecida entre as duas ordens, ordo cognoscendi e ordo essendi, pela qual “[...] a segunda comanda estreitamente a primeira: a gênese de nossas idéias a partir da idéia de Deus, condição de nosso conhecimento verdadeiro, deve refletir a gênese das coisas a partir de Deus que as produz”,[35] ou seja, conforme a Proposição 7 da Parte 2 da Ética: a ordem e a conexão das idéias são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas.[36] Ora, a afirmação no spinozismo deste paralelismo entre as ordens, a ordo cognoscendi e a ordo essendi, a partir do qual será possível postular a inteligibilidade total do real, necessariamente implica numa semelhança entre o entendimento finito, enquanto produtor da primeira ordem, e o entendimento infinito, enquanto produtor da segunda ordem, que não se encontra em absoluto no cartesianismo, como vimos anteriormente.

 


* Este artículo es producto del proyecto de Investigación “A Liberdade ontológica como fundamentação da Liberdade Política em Benedictus de Spinoza” financiado por la Universidade Estadual do Ceará —UECE—, Brasil (2003–2006).

[1] Segundo Louis Meyer, Prefácio dos PPC, in: Spinoza, Benedictus de. Princípios de la Filosofia Cartesiana (PPC). Pensamientos Metafísicos (CM). Introducción, traducción y notas de Atilano Domínguez. Madrid, Alianza, 1988, p. 129.

[2] Arnauld, Antoine; Nicole, Pierre. La Logique ou L’Art de Penser. Notes et posface de Charles Jourdain. Paris, Gallimard, 1992, Introdução, p. 30, (Grifo do autor).

[3] Op. Cit., Quarta Parte, Cap. II, p. 281.

[4]  Ferreira, Maria Luísa Ribeiro. A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1997, Nota 15, p. 329.

[5] Netter, Abraham. Notes sur la Vie de Descartes et sur le Discours de la Méthode. Nancy, Imprimerie Berger–Levrault et Cie, 1896, p. 7.

[6] Op. Cit., Quarta Parte, Cap. II, p. 281–282, (Grifo dos autores).

[7]  Ibid., Quarta Parte, Cap. II, p. 286, (Grifo dos autores).

[8] Ibid., Quarta Parte, Cap. III, p. 288.

[9] Alquié, Ferdinand. Le Rationalisme de Spinoza. 2 ed. Paris, PUF, 1991, p. 71, (Grifo nosso).

[10] Apud Alquié, Ferdinand, Op. Cit., p. 71.

[11] Conforme originalmente no texto de Ferdinand Alquié: “[...] la méthode de démontrer est double: l’une se fait par l’analyse ou résolution, et l’autre par la synthèse ou composition”. Alquié cita como referência: Descartes, René, in: Œuvres. Publiées par Charles Adam & Paul Tannery. Paris, C.N.R.S. et J. Vrin, v. IX (1982), p. 121.

[12] Para a citação das obras de Descartes, utilizamos a edição de Charles Adam & Paul Tannery, Œuvres de Descartes (conforme descritos na Bibliografia), designada pela abreviatura AT, seguida de um número em algarismo romano correspondente ao volume e do ano de sua publicação, seguido pelo nome da obra citada em francês ou latim, conforme o caso, e o número da página na qual se encontra o texto citado.

[13] Texto original: “Demonstrandi autem ratio duplex est, alia scilicet per analysim, alia per synthesim”. (AT–VII, 1983, Segundæ Responsiones, p. 155).

[14] Conforme citado por Adam & Tannery, “[...] été vue par Descartes, et acceptée et agréée par lui” (AT–IX–1, Avertissement, p. IX).

[15] Conforme o original: “[...] reservé à l’Auteur le droit de revue e de correction. Il en a usé, mais pour se corriger plutôt qu’eux, et pour éclaircir seulement ses propres pensées [...]” (AT–IX–1, Le Libraire au Lecteur, p. 2).

[16] Conforme o original: “Dans la façon d’écrire des Geometres, je distingue deux choses, à savoir l’ordre, & la maniére de démontrer” (AT–IX–1, Secondes Réponses, p. 121).

[17] AT–IX–1, Méditations, Première, p. 13.

[18] AT–IX–1, Méditations, Abregé, p. 9.

[19] AT–IX–1, Méditations, Seconde, p. 18.

[20] AT–IX–1, Méditations, Troisième, p. 27.

[21] AT–IX–1, Secondes Réponses, p. 121.

[22] Isto explicaria a afirmativa de Martial Gueroult acerca do fato da ordo cognoscendi e a ordo essendi não coincidirem em Descartes (Cf. Infra).

[23] AT–IX–2, Principes, § 23, p. 35.

[24] AT–IX–1, Méditations, Quatrième, p. 46.

[25] AT–IX–1, Méditations, Quatrième, p. 49–50.

[26] AT–IX–2, Principes, § 22, p. 35.

[27] AT–IX–1, Méditations, Quatrième, p. 49.

[28] Segundo Robert Misrahi, em Spinoza a tradução do termo mens pelo termo tradicional alma, induz a um contra–senso grave na doutrina spinozista do homem, porque mens significa quase sempre espírito, e o termo em francês âme —assim como o termo em português alma—, provém do latim anima ou animus. Donde, quando Spinoza quer dizer alma, ele emprega anima, como por exemplo em “animi Pathema” na Ética, Parte 3, Definição Geral dos Afetos. (Misrahi, Robert. “Introduction Générale e Annotations”, in: Éthique. Traduction, documents en annotations de Robert Misrahi. Paris, Vigdor, p. 3–172, dec. 1996. Texto eletrônico, 3 disquetes, p. 1305). Já Pierre Macherey, opta por traduzir mens pelo termo âme para, segundo ele, evitar uma ambigüidade, reservando o termo esprit para o termo animus. (Macherey, Pierre. Introduction à l’Éhique de Spinoza. La secondie partie: la réalité mentale. Paris, PUF, 1997, p. 10–11). De nossa parte, sempre que o termo original for mens ele será traduzido por espírito. Para uma visão mais geral desta questão, ver o texto de Emilia Giancotti Boscherini intitulado “Sul Concetto Spinoziano di Mens” (In: Crapulli, G.; Giancotti Boscherini, E. Ricerche Lessicali su Opere di Descartes e Spinoza. Roma, Ed. Dell’Ateneo, 1969).

[29] E2P11C, SO2, p. 94–95 e E2P43D, SO2, p. 123–124. Para as citações internas da Ética, indicaremos a parte citada em algarismos arábicos, seguida da letra correspondente para indicar as definições (d), axiomas (a), proposições (P), demonstrações (D), corolários (C) e escólios (S), com seus respectivos números. Quando necessário, citaremos o original em Latim da edição de Carl Gebhardt, cuja sigla será SO, seguida do número correspondente ao volume (1 a 4), em algarismo arábico.

[30] Cf. o original: “Sed antequam hæc prolixo nostro geometrico ordine demonstrare incipiam, lubet ipsa rationis dictamina hic prius breviter ostendere ut ea quæ sentio facilius ab unoquoque percipiantur”. (E4P18S, SO2, p. 222, grifo nosso). Tradução: “Mas, antes de começar a demonstrar segundo a ordem prolixa dos Geômetras que adotei, inicialmente convém dar a conhecer aqui, brevemente, os ditames da Razão, a fim de que seja mais fácil a cada um perceber o que eu penso”.

[31] Gueroult, Martial. Spinoza. v. 1 (Dieu) e v. 2 (L’Âme). Paris, Aubier–Montaigne, 1997, p. 36.

[32] Op. Cit., p. 36.

[33] Ibid.

[34] Ibid.

[35] Ibid.

[36] Cf. o original de E2P7: “Ordo et connexio idearum idem est ac ordo et connexio rerum” (SO2, p. 89).

 

Bibliografia

1. Alquié, Ferdinand. Le Rationalisme de Spinoza. (2 ed.). Paris, PUF, 1991.        [ Links ]

2. Arnauld, Antoine; Nicole, Pierre. La Logique ou L’Art de Penser. Notes et posface de Charles Jourdain. Paris, Gallimard, 1992.        [ Links ]

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