SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 issue2Significado do trabalho dos profissionais de enfermagem no hospital geralValidez e confiabilidade do SERVQHOS para enfermagem em Boyacá, Colombia author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Avances en Enfermería

Print version ISSN 0121-4500

av.enferm. vol.28 no.2 Bogotá July/Dec. 2010

 

Motivações e experiências do ensino da ética/bioética em enfermagem

Motivaciones y experiencias de la enseñanza de la ética/bioética en enfermería

Motivations and experiences of ethics/bioethic subjects in nursing

FLÁVIA REGINA SOUZA RAMOS1, SORAIA DORNELES SCHOELLER2, LAURA CAVALCANTI DE FARIAS BREHMER3, RUBIA FERNANDA CARDOSO AMARAL4, THAYSE APARECIDA PALHANO DE MELO5

1 Enfermeira doutora em enfermagem, pós doutora em Educação (Universidade de Lisboa), professora associada do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-graduação PEN/UFSC, pesquisadora CNPq, líder do Núcleo de Pesquisa sobre Trabalho, Cidadania, Saúde e Enfermagem Sociedade - Grupo PRÁXIS - PEN/UFSC. flaviar@ccs.ufsc.br, Lagoa da Conceição. Florianópolis, SC. Brasil.
2 Enfermeira. Doutora em enfermagem. Professora do Departamento Enfermagem UFSC. soraia@ccs.ufsc.br Bela Vista, Palhoça, SC. Brasil.
3 Enfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina/PEN/UFSC. Bolsista CNPq. laurinhacf@gmail.com Centro, Florianópolis, SC. Brasil.
4 Enfermeira. Acadêmica de Enfermagem, Bolsista de Iniciação Científica CNPq/UFSC. rubiafca@hotmail.com Estreito. Florianópolis, SC. Brasil.
5 Enfermeira, Acadêmica de Enfermagem, bolsista de Iniciação Científica CNPq/UFSC. thaysepalhano@hotmail.com Estreito, Florianópolis, SC. Brasil.

Recibido: 5-04-10     Aprobado: 5-11-10


Resumo

O artigo trata de recorte de uma pesquisa sobre o discurso da ética no processo de formação do enfermeiro.

Objetivo: este estudo buscou caracterizar os professores quanto a experiências e motivações para o ensino da ética e bioética nos cursos de enfermagem.

Metodologia: Desenvolveu-se como estudo de caso, com etapa documental e grupo focal com 50 professores de 6 cursos de Santa Catarina (Brasil).

Resultados e discussão: apesar de condições de precariedade há uma intenção de fixação e dedicação de enfermeiros à carreira docente, motivada pelo desejo de ser docente para contribuir com a mudança e o desenvolvimento da profissão ou pelas perspectivas profissionais e natureza do trabalho docente. Embora haja diferentes experiências no ensino de ética os professores percebem-se atuantes na formação ética do enfermeiro, especialmente por considerarem o cotidiano da vida acadêmica e assistencial como espaço da formação ética, assim como, os valores, postura e exemplo como expressão da atuação docente na formação ética.
Conclusões: a reflexão da formação ética da(o) enfermeira(o) não deve se limitar a discussão dos conteúdos e estratégias pedagógicas envolvidas no ensino da ética e da bioética, daí a importância de problematizar a ética na experiência educativa e visualizar o discurso que vem sendo construído pelos sujeitos professores.

Palabras chave: educação em enfermagem, ensino, ética, bioética

Resumen

El artículo trata de un pasaje de una investigación sobre el discurso de la ética en el proceso de formación del enfermero.

Objetivo: este estudio buscó caracterizar a los profesores en cuanto a sus experiencias y motivaciones en la enseñanza de la ética y bioética en las carreras de enfermería.

Metodología: Se desarrolló como estudio de caso, con etapa documental y grupo focal con 50 profesores de 6 programas de Santa Catarina (Brasil).

Resultados y discusión: a pesar de las condiciones de precariedad existe una intención de fijación y dedicación de enfermeros a la carrera docente, motivada por el deseo de ser docente para ayudar a generar un cambio y desarrollar la profesión y por las perspectivas profesionales y la naturaleza del trabajo docente. Aunque existan diferentes experiencias en cuanto a la enseñanza de la ética, los profesores se perciben a sí mismos como actores en la formación ética del enfermero, especialmente, por el hecho de considerar la cotidianidad de la vida académica y asistencial como espacio de formación ética, y, asimismo, los valores, la postura y el ejemplo como expresión del desempeño del docente en la formación ética.

Conclusiones: la reflexión de la formación ética del enfermero o enfermera no se debe limitar a debatir sobre los contenidos y estrategias pedagógicas involucradas en la enseñanza de la ética y de la bioética, de allí la importancia de problematizar la ética en la experiencia educativa y visualizar el discurso que los sujetos profesores vienen construyendo.

Palabras clave: educación en enfermería,  enseñanza, ética, bioética (fuente: DeCS, BIREME).

Abstract

This paper deals with a research on the discourse of ethics in the nurse education process.

Objective: this study sought to characterize professors in terms of their teaching experiences and motivations in nursing courses.

Methodology: case study with a documentary stage and a focus group with 50 professors from 6 courses of Santa Catarina (Brazil).

Results and discussion: Despite the precarious conditions, nurses seem to be willing to dedicate themselves to teaching career paths since they wish to contribute to change and develop the profession or because of the professional perspectives and nature of the teaching career. In spite of the different experiences in teaching ethics, professors perceive themselves as stakeholders in the ethics formation of nurses, especially as they consider the daily academic and welfare life as a venue for ethical formation, as well as the values, positions, and example as the expression of the influence of teaching performance on ethics formation.

Conclusions: the reflection over ethics formation should not confine to the discussion of the pedagogical contents and strategies involved in teaching ethics and bioethics, hence, the importance of discussing about ethics in educational experience and envisage the speech being built by these professors.

Keywords: Education, Nursing , Teaching , Ethics, Bioethics

INTRODUÇÃO

O campo da educação tem sido exemplar para demonstrar alguns aspectos do intenso processo de transformações das políticas sociais públicas no Brasil. A formação profissional, especialmente o ensino superior no nível de graduação, incorpora dimensões próprias ao contexto histórico educacional brasileiro e, também, dimensões políticas referentes ao contexto econômico supranacional. Por exemplo,  as novas configurações do mundo do trabalho, com características mundiais e locais que impactam, de forma bastante desigual, os modos de produzir e distribuir bens materiais e imateriais, bem como na governabilidade nacional para gerir e controlar tais impactos. Num palco de questionamentos e de tentativas de construção de novas relações entre o mundo do trabalho e o mundo da educação, se coloca à universidade responsabilidades originais.

Este artigo apresenta resultados de uma investigação cujo objeto de estudo é duas destas responsabilidades originais, ou melhor, o ponto de encontro ou articulação entre elas: o processo de mudança dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) dos cursos de enfermagem, tendo como referência as Diretrizes Curriculares Nacionais (Resolução CNE/CES 03/2001) e o desafio da formação ética dos enfermeiros.

O cenário de mudanças e de intenso comprometimento dos profissionais com a implantação das diretrizes curriculares e de PPP nos cursos de graduação em enfermagem tem provocado rupturas nos modos tradicionais de pensar esta formação profissional, bem como o espaço e potencial da ética nesta formação. Uma preocupação evidenciada há muito por um pequeno grupo de professores e pesquisadores está agora, como nunca antes, visibilizada para a grande comunidade acadêmica profissional. Embora a visibilidade deste desafio não signifique, por si só, seu adequado enfrentamento, já é um indicativo de um cenário diferenciado. A produção de conhecimentos que venham a instrumentalizar escolas, professores e profissionais, quanto a esta demanda, talvez agora seja ainda mais premente.

Em resposta a este desafio foi desenvolvida investigação que objetivou “Conhecer a inserção do discurso ético no processo de formação do enfermeiro nas Escolas de Santa Catarina, em especial a partir da implantação das diretrizes curriculares”. Como recorte deste estudo, aqui será abordada a categoria que se refere à caracterização dos professores quanto a experiências e motivações para o ensino da ética e bioética nos cursos de enfermagem.

Embora a importância do ensino de ética e bioética seja incontestável, o esforço de tematização deste tema no meio científico ainda não foi acompanhado de um intensivo investimento em pesquisas focalizadas sobre o mesmo. Isto caracteriza uma insuficiência de estudos que relacionem a ética/bioética ao processo de formação em enfermagem no Brasil. Destaca-se estudo pioneiro que, em 1984, aborda o ensino de ética na formação do enfermeiro e o pensamento ético veiculado em publicações da profissão no país. Para a autora, até as décadas de 70 e 80, o ensino da ética foi pautado numa vertente conservadora e autoritária, apesar de novas influências críticas (1). Também na formação de médicos, os estudos pioneiros foram desenvolvidos na década de 80 e 90, tanto apontando para a necessidade de reforma do ensino deontológico ou de um modelo ético à luz dos interesses da sociedade quanto defendendo a abordagem da bioética nestes cursos (2).

Já na década de 90, Dallari (3) buscou detectar o impacto social que poderia ser creditado ao ensino ou à maneira de ensinar a ética na área da saúde na América Latina. Considerou que este foi historicamente negligenciado e pouco desenvolvido e, especialmente no campo da saúde, encontra-se defasado em relação às necessidades sociais, característica de uma formação essencialmente técnica e de um insuficiente investimento em pesquisa e formação em ética/bioética. Para Ramos e Azevedo (4), um enfoque diferenciado do ensino de ética deve criar a possibilidade de construir um encontro reflexivo entre os sujeitos: professor-aluno. Isto só poderá alcançar-se quando a reflexão ética permeie uma educação para a autonomia e a construção de uma nova identidade profissional, refletida e moralmente edificada por sujeitos de razão, argumentação e ação.

Estudos mais atuais foram os de Rego (5) na medicina e de Ramos (6) em cursos de enfermagem e medicina. Este último discute a inserção dos temas éticos/bioéticos nas propostas de formação profissional com o intuito de problematizar o modo como os desdobramentos (estratégicos e tecnológicos) deste discurso penetram no processo de construção dos sujeitos trabalhadores da saúde e geram determinados modos de conceber e intervir destes sujeitos.

METODOLOGIA

O estudo se definiu por um desenho de pesquisa do tipo estudo de caso, entendido como pertinente ao exame de acontecimentos contemporâneos, sem a pretensão de manipulação ou controle de comportamentos ou variáveis, mas lançando mão de amplas possibilidades de evidências e fontes (documentos, entrevistas, entre outros) que esclarecem sobre processos sociais complexos (decisões, programas, processos educativos, eventos ou instituições) (7).

Em sua etapa documental, o estudo integrou 26 cursos de graduação em enfermagem do estado de Santa Catarina, dos quais 6 compuseram a unidade menor a ser estudada em maior profundidade. Nesta foi desenvolvido grupo focal com professores interessados na temática em estudo, totalizando 50 participantes. Nesta etapa, desenvolvida entre abril a dezembro de 2008, também foi aplicado um questionário, composto de questões abertas, que foi respondido por 48 professores e permitiu o tratamento de dados relativos à categoria em questão nesse texto.

 O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (Parecer 075/07). Todos os sujeitos expressaram seu consentimento por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) aos quais foram dadas as garantias de respeito de direitos e preservação da identidade pessoal e institucional. Para análise dos dados foi utilizado o software Atlas-Ti 5.0 (Qualitative Research and Solutions).

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Perfil geral

Os participantes caracterizaram sua atividade docente como Dedicação exclusiva (24), Atividade principal (13), Atividade complementar (7) ou Outros (2). Apesar de a maioria possuir vínculo com Instituição de Ensino Superior privada, prevalece a dedicação exclusiva ou duplo vínculo empregatício em que o trabalho docente é o principal. Dadas as condições de precariedade (contratos provisórios, sem estabilidade e como horistas) parece existir uma intenção de fixação e dedicação de enfermeiros à carreira docente, nem sempre efetivamente conquistada.

Quanto ao tempo de formação, observa-se que a quase a totalidade dos informantes possui mais de 5 anos de formado.  A maioria (31) possui mais de 15 anos desde a formação. Este elemento é importante quando se considera que a experiência profissional é decisiva no processo de construção de discursos que, de alguma forma, impactam o processo de formação do enfermeiro ou do senso moral desses profissionais. A visão da constituição da expertise como prática moral na enfermagem baseia-se no entendimento da ética como forma de conhecimento conceitual incorporado nesta expertise, ou seja, que considerará tal aquisição em exercícios através dos quais o profissional sintoniza-se/integra-se em modos particulares à situações clínicas, desenvolvidas ao longo da vida profissional (8).

Além disso, experiências negativas, como frustrações e desapontamentos muitas vezes também não são percebidos em sua dimensão moral, apesar de problemas vividos nos cenários de trabalho representarem, comumente, entraves ao exercício moral das enfermeiras, levando a afirmar a impossibilidade de separar problemas éticos no cuidado em saúde do ambiente social e organizacional em que ocorrem, a ponto desse ambiente ser uma influência tão ou mais forte do que os próprios valores e preocupações éticas dos agentes (9).

Motivações para a atividade docente versus motivações para as temáticas da ética e bioética

Um dos aspectos de reconhecida importância para a atuação na formação profissional é a motivação e o significado que tal atividade adquire para o sujeito que a realiza. De modo bastante sintético, tal dimensão subjetiva do trabalho dos professores estudados foi abordada por meio da identificação da principal motivação para assumirem a atividade docente e, posteriormente, para trabalharem com a temática ética/bioética. Embora um conjunto relativamente homogêneo de respostas tenha se formado, foi possível pensar em duas principais ligações do processo de motivação para a atividade docente – uma ligação com a profissão de enfermagem e outra com a carreira docente.

Em onze (11) manifestações, se destacou o sentir-se motivado em ser docente para contribuir com a mudança e o desenvolvimento da profissão, “entusiasmar” e transmitir a “paixão” por melhorar ou por acreditar no potencial humano, técnico e ético da enfermagem, de sua atuação comprometida com a mudança no setor saúde.

A grande maioria expressou sua motivação ligada às perspectivas profissionais e à natureza do trabalho docente. Neste conjunto (36 manifestações), foi possível reconhecer a valorização da busca pelo conhecimento e continua aprendizagem (18), seja por referência a dinamicidade imposta pelo avanço técnico-científico, seja por referência a características pessoais (sede de saber, gosto pela leitura e pelo novo). Outra forma de identificar a atividade docente como fonte de satisfação é justificada pelas interações, trocas e convivências que ela promove, especialmente pelo contato com os jovens em seu amadurecimento (13). Elementos genéricos ou mesmo a relação entre ensino, pesquisa e extensão, valorizadas nas universidades, foram apontados como motivadores para a opção pela atividade docente (5).

A dinâmica que determina a escolha da carreira docente é impulsionada por diferentes lógicas que orientam os itinerários profissionais: a lógica de integração (relacionada à imagem de si mesmos); a lógica de profissionalização (inserção no mundo do trabalho); e a lógica de transformação (função social). Tal escolha pode ser movida pela impossibilidade de concretização de outro projeto profissional e também pela valorização da docên- cia, reconhecida por uma natureza própria, distinta das demais profissões, de contribuição para o bem comum e um status singular associado a tal função social. Especialmente o magistério superior possui valor simbólico e funciona como símbolo de distinção social (10).

Há que se destacar que o trabalho cotidiano da enfermagem é realizado em situações nas quais a ética e bioética se fazem presentes grande parte do tempo. Nesse sentido, o enfermeiro se depara cotidianamente com questionamentos éticos e toma decisões cuja essência é pertencente a este campo e que devem ser vistas e refletidas na academia.

Experiências no ensino da ética  versus atuação na formação ética  do enfermeiro

Os professores participantes foram solicitados a descrever suas experiências no ensino de ética. Entre os 46 respondentes desta questão, apenas 17 identificaram-se como: professores de disciplinas de Ética (como Filosofia para enfermagem, Exercício profissional, Legislação e Ética em enfermagem); responsáveis por conteúdos de ética em módulos integrados e transversais ou no ensino médio ou técnico em enfermagem; ou ainda em situações mais “informais”, como eventos, palestras e capacitações.

Dez professores referiram não possuírem nenhuma experiência no ensino da ética ou bioética. Um grupo maior de professores (19) caracterizou sua experiência como não específica (não estritamente vinculada a tais conteúdos), mas por atuarem em disciplinas que de alguma maneira retomam ou discutem questões éticas (como saúde ambiental, semiologia, Trabalhos de Conclusão de Curso); em experiências de estágio, atividades práticas em diferentes cenários e relações no cuidado; como membro de Comitê de Ética em pesquisa; ou por perceberem tais temas como transversais no currículo, ou como inerente a todo o processo de formação.

“Na experiência de ética na vida diária, no ensino de teoria de enfermagem, em atividades curriculares interativas sob a temática específica de ética e bioética”. (GF 4).

“Nunca ministrei disciplina específica de “ética”, porém na disciplina “saúde ambiental”, o assunto perpassou o conteúdo da disciplina”. (GF 4).

“Sim, o nosso curso considera este tema transversal, na apresentação dos conhecimentos teóricos e nas atividades práticas em campo”. (GF 6).

Quando questionados a falar do modo como percebiam sua atuação na formação ética do enfermeiro, destacaram-se dois grandes sentidos atribuídos pelos professores à sua atuação, ou “como e quando” eles percebem-se atuantes nesta esfera da formação.

Dos 48 professores que responderam a esta questão, 30 fazem uma clara referência ao cotidiano da vida acadêmica e assistencial como espaço da formação ética, embora raramente isto também seja referido como necessidade ainda não concretizada ou para a qual há o sentimento de insegurança e despreparo. Predominantemente, com este sentido são apontadas as diferentes oportunidades, que acontecem “diariamente”, “em todos os momentos” e em diferentes espaços (sala de aula, campos de prática ou estágio, visitas, grupos de trabalho) a formação ética. Ao lado do momento pedagogicamente planejado, como uma série de atividades teóricas e práticas, as relações estabelecidas entre os diversos sujeitos são reconhecidas como potencialmente educativas.

“Entendo que todo momento de formação é uma possibilidade de vivenciar a questão ética. Nos espaços onde acontece a formação. Sala de aula, atividades teóricas e práticas, visitas, estudo de caso. O espaço do pequeno grupo nos grandes grupos, na relação que conseguimos estabelecer entre os sujeitos desses espaços, sejam eles estudantes, trabalhadores, docentes, usuários... incluindo outros cursos”. (GF 3).

“Em todos momentos, não há como separar conteúdos (nenhum) da ética”. (GF 6)

“A todo momento, na relação com a prática vivenciada diariamente, com as várias situações com que o discente se depara no campo de estágio, e com sua própria vida”. (GF 5).

Ao consideraram o espaço de trabalho docente de tal maneira ampliado, em sua atuação frente o desafio da formação ética assumido pelos cursos, os professores não deixam de colocar sua própria presença, pessoal e intencional, como algo que faz diferença neste “todo dia e todo momento”. Assim, o espaço de aprendizagem é um espaço de expressão de si, de seus valores e de sua própria busca de “ser ético”. O ensinar parece se conjugar ao “ser”, em como vive e o que deseja para si.

“Em todos os momentos em sala de aula e estágio, quando procuro ser justa não fazendo mal a mim, nem aos outros que estão na mesma situação (alunos, professor,  pacientes) e sem fazer mal ao entorno (tudo que o envolve)”. (GF 5).

Talvez por esta razão, o contraste entre uma única referência à discussão das vivencias a partir do preconizado no Código de Ética Profissional, enquanto 15 professores destacam valores, postura e exemplo como expressão da atuação docente na formação ética.

“Percebo-me exigente tanto na coerência do que falo e ensino quanto em minhas ações. Percebo-me chata, reflexiva. Minha atuação na formação ética da(o) enfermeira(o) se dá no convívio com alunos e professores, na minha vida, iniciativa, nas aulas, principalmente nas relações”. (GF 5).

“Ele se dá principalmente pelo exemplo, tanto na vida pessoal quanto na profissional. Em discussões com os alunos de maneira ampliada, nas vivencias, nas atitudes. Discuto, principalmente com respeito às relações e o conviver com o outro”. ( GF 2).

 “Eu, o que faço é o que ensino, é o meu olhar e meu relacionamento com os alunos, profissionais pacientes”. (GF 6)

“Penso que, como professora, preciso ser uma referencia ética e moral para os acadêmicos e as condutas no cotidiano servem de exemplo”. (GF 3).

O destaque a este contraste não indica uma ausência da ética normativa, como no caso do Código de Ética profissional, enquanto referência importante, mas sim como estes e outros possíveis fundamentos se integram ao modo como o sujeito vê a si mesmo, a ponto de reconhecer uma identidade “que reflete”, “que é exigente”, que age e se relaciona, como uma presença chave. Se tais códigos e prescrições não precisam ser tão citados, pode ser por já fazerem parte desta presença; ou, outros valores estariam agora em emergência? Valores e crenças são referidos como influência ou bagagem importante nos modos de conviver, perceber a agir frente a ocorrências éticas, seja aqueles transmitidos pela família ou pela formação e vivência profissional. No entanto, o acervo de conhecimentos socialmente aprovados e adquiridos na trajetória profissional e a própria experiência vivida não perdem importância na tomada de decisão e justificação da ação que envolve questões éticas (11).

Não é incomum que a valorização do exemplo do professor seja presumida em práticas que alienam e excluem a educação moral das propostas curriculares, ao tomar o bom exemplo profissional como o encarregado pela formação ética dos estudantes. Este não é o caso do que foi expresso nesta pesquisa, quando o docente inscreve a educação moral no interior da tarefa pedagógica, diz atuar considerando os valores inalienáveis às relações humanas e à educação e, portanto, assume que representa um modelo profissional com influência sobre o educando. Isto fica evidente na análise do currículo vivo e real permite melhor compreensão sobre a dimensão ética da formação profissional, pois privilegia aspectos como as relações de poder, a organização, a cultura, os relacionamentos, os exemplos, enfim, as contradições que interagem com o formalmente previsto (12).

No processo de formação de outros profissionais da saúde, como o odontólogo, por exemplo, também é referido o modo como o professor representa um exemplo ou modelo; uma referência do ponto de vista de competências técnicas, mas também de postura no exercício cotidiano do trabalho e nas relações com os pacientes. Deste modo, se reconhece seu papel de mobilizador da reflexão ética do estudante acerca das vivências do ensino e da prática, assim como de oferecer e compartilhar os subsídios para tal reflexão (13,14). Dito de outro modo, tal tarefa se refere a uma contribuição ativa e intencional na formação ética dos estudantes para atuar como intermediador entre o conhecimento formalizado e os arcabouços cognitivos, culturais e afetivos dos alunos (6).

O discurso que está sendo aprendido e construído, ou os diferentes discursos que se encontram e passam a constituir acessos privilegiados à reflexão dos professores acerca dos desafios da escola e da vida profissional, não está livre de ambigüidades. Estas mesclam inseguranças, reconhecimento das fragilidades do grupo e esperanças depositadas em processos geridos pelo coletivo, como expressão de um pertencimento que desloca e reconfigura capacidades e limites pessoais ao tomá-los na dimensão do empenho grupal.

“Me sinto um pouco insegura, diante da abrangência da temática. Diante disso, procuro me capacitar e participar de discussões junto aos colegas, socializando as dificuldades”. (GF 1)

“No atual currículo o ensino da ética é mais pontual. Poucas vezes há apontamentos nos quais o docente explicita o que está falando em ética. Acredito que no modelo curricular novo haja uma abordagem mais profunda e contínua da ética e bioética”. (GF 3).

“Por ela ser um conteúdo que o grupo de professores, ao construir o PPP, elegeu como fundamental em todas as disciplinas e por acreditar que é necessário para sermos melhores enfermeiros e melhores enquanto pessoas”. (GF 3).

A dimensão ética da formação profissional pode ser entendida como referência à situações de aprendizagem e de vivência da ética em bases não deontológicas (que extrapolam o ensino de normativas e códigos profissionais), mas que se baseiam no compromisso com a realização e ampliação de valores humanizadores e com o processo de construção da identidade profissional durante a formação. Este compromisso se envolve e se expressa em diferentes oportunidades a partir das quais o estudante/profissional pensa e age em face de demandas e contextos profissionais (15).

Tal interpretação encontra suporte na idéia de um ensino de ética que se aprofunda nos valores adotados em torno do compromisso com a excelência da atenção prestada, considerando certos valores que estruturam e dão sentido a ação de cuidar com certas condições/convicções/decisões da pessoa que cuida. Assim, o conceito de profissionalismo – entendido como este compromisso e responsabilidade conseqüente ao assumir o cuidado como “bem intrínseco da profissão” – é razão para que se tome a ética do cuidado como base da prática profissional e condição para a liderança no trabalho coletivo (16).

O que os professores estudados revelaram foi também esta íntima ligação entre seu profissionalismo ou expertise com a capacidade de ser e deliberar em profundo contato com o outro e com os valores que fundamentam o cuidado. Se tais valores se mostram alicerces fundamentais, a abrangência e complexidade das experiências e conhecimentos que estão envolvidos neste cuidado, continuamente exigem mais reflexão e aportes teóricos. Daí as necessidades e inseguranças relatadas e daí também a confiança que motiva este estudo – do ensino da ética e bioética como preocupação central da profissão, que não abrange toda a complexidade da formação ética, mas que pode ampliar seu conteúdo, assim como o cuidado pode, potencialmente, ampliar o escopo da própria bioética, em especial, da visibilidade dos problemas a que pretende responder.

A importância atribuída pelos professores pesquisados versus a concretude das condições de trabalho para realizar esta importância evidencia mais ainda a necessidade de aprofundamento do tema da ética e bioética na formação do enfermeiro e no exercício da profissão. Há que se questionar se o desejo expresso pelos professores encontra eco nas condições de trabalho, sob pena de se construir um discurso contraditório no qual a ética do cuidado pode ser perpassada por muitas situações de excepcionalidade do descuido. Além do disposto nos PPPs, a organização dos conteúdos de ética e bioética nas grades curriculares, o número de alunos por turma para a discussão deste conteúdo, a formação docente para tal, as dinâmicas e didáticas utilizadas e as práticas nos campos de estágio configuram parte destas condições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consideração da experiência do cuidado em seu valor como base enriquecedora da formação ética, ou seja, a forma como foi tratada e valorizada a relação entre as condutas e demandas práticas com o campo da moralidade, não deve implicar o abandono da crítica a que todos continuamos empenhados. Isto significa reconhecer a importância do cuidado como mediador de valores que constroem ações e seres morais, mas também como intercessor entre diferentes efeitos de poder e, em si mesmo, um efeito de poder. O cuidador tem sido construído na relação com o ser cuidado e visto como uma mescla entre ajudante abnegado e entidade profissional, que deve trabalhar pelo melhor interesse do outro e não pelo seu melhor interesse (17). Assim, a moralidade do cuidado, por mais que queiramos valorizá-la, remete à reflexão sobre seus limites e implicações com códigos e valores historicamente providos e desenhados nestas linhas de força em que atuam Estado, ciência e cultura, entre outros tantos desdobramentos.

A reflexão da formação ética da(o) enfermeira(o) não deve se limitar a discussão dos conteúdos e estratégias pedagógicas envolvidas no ensino da ética e da bioética, embora este seja um de seus focos e interesses. Também não pode prescindir da discussão de sua relação com o cuidado. É necessário melhor conhecer os discursos e as experiências que vem sendo desenvolvidas nos cursos de enfermagem para construir instrumentos e projetos que façam sentido neste tempo e lugar. O tema da formação ética deve ser integrado ao da construção da identidade ou do fenômeno identitário, que é, por sua vez “o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições” (18). Daí a importância de problematização da ética na experiência educativa e visualizar o discurso que vem sendo construído sobre a ética pelos sujeitos professores.


REFERÊNCIAS

(1) Germano RM.  A ética e o ensino da ética na enfermagem do Brasil. São Paulo: Cortez; 1993.        [ Links ]

(2) Camargo MCVZA. O ensino da ética médica e o horizonte da bioética. Bioética. 1996; 4(1): 65-70.        [ Links ]

(3) Dallari SG. Perspectivas internacionais no ensino da ética em saúde: entrevistas.  Bioética. 1996; 4(1); 87-95.        [ Links ]

(4) Ramos FRSR; Azevedo, RCS. Educar para a autonomia: uma construção possível no ensino da ética. Rev. Texto & Contexto. 1999;8(1):346-56.        [ Links ]

(5) Rego SA.  Formação Ética dos Médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003.         [ Links ]

(6) Ramos FRSR. O discurso da bioética na formação do sujeito trabalhador da saúde. Trab. Educ. e Saúde. 2007; 5 (1): 51-77.        [ Links ]

(7) Yin RK. Estudo de Caso - planejamento e métodos. 2 ed. Porto Alegre: Bookman; 2001.         [ Links ]

(8) Nelson S.  Embodied knowing? The consititution of expertise as moral practice in nursing. Texto Contexto Enferm. 2007; 16(1): 136-41.         [ Links ]

(9) Lunardi VL et al. A ética na enfermagem e sua relação com poder e organização do trabalho. Rev. Latino-Am. Enfermagem [periódico na Internet].  2007 [citado  jun.2009]; 15 (3): Disponível em:   http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692007000300020&lng=en&nrm=iso.        [ Links ]

(10) Valle IR.  Carreira do magistério: uma escolha profissional deliberada?. R. Bras. Est. Pedagógicos. 2006; 87(216): 178-87.        [ Links ]

(11) Freitas GF; Oguisso T; Merighi MAB.  Motivações do agir de enfermeiros nas ocorrências éticas de enfermagem.  Acta Paul Enferm. 2006;19(1):76-81.        [ Links ]

(12) Finkler M. Formação ética em Odontologia: realidades e desafios. [Tese].  Florianópolis(SC):  Pós Graduação em Odontologia/UFSC; 2009.         [ Links ]

(13) Gonçalves ER. O atendimento a pacientes na clínica odontológica de ensino: a percepção docente sob o olhar da Bioética. [Dissertação]. Florianópolis (SC): Programa de Pós Graduação em Saúde Pública/UFSC; 2005.         [ Links ]

(14) Ramos DLP. Perspectivas Bioéticas na atenção da saúde bucal. In: Fortes P.; Zoboli, E. Bioética e saúde pública. São Paulo: Loyola; 2003..         [ Links ]

(15) Foresti MCPP. Ação docente e desenvolvimento curricular: aproximações ao tema. Rev. ABENO. 2001; 1 (1): 13-16.         [ Links ]

(16) Castell RA.; Piñero, EA.  La ética del cuidado.  Rev. ROL Enf. 2006; 29(3): 191-98.         [ Links ]

(17) Winch S. Constructing a morality of caring: codes and values in australian carer discourse. Nurs Ethics. 2006; 13(1): 5-16.        [ Links ]

(18) Dubar C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes; 2005.        [ Links ]

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License