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Avances en Enfermería

Print version ISSN 0121-4500

av.enferm. vol.29 no.2 Bogotá Jul./Dec. 2011

 

Violência familiar na perspectiva do pensamento complexo*

Violencia familiar en la perspectiva del pensamiento complejo

Domestic violence in the perspective of complex thinking

Dirce Stein Backes1, Matheus Viero2, Caroline Paim3, Esther Correa4, Julia Bopp5, Nathalia Soldera6

* Trabalho de Pesquisa realizado como atividade conclusiva da disciplina "Desenvolvimento Profissional III", do Curso de Enfermagem do Centro Universitário Franciscano - Unifra, Santa Maria, RS, Brasil.

1 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Curso de Enfermagem da Unifra, Santa Maria, RS, Brasil. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Empreendedorismo Social da Enfermagem e Saúde - Gepeses. Orientadora do trabalho. backesdirce@ig.com.br, Santa Maria, RS, Brasil.

2 Acadêmico do último semestre do Curso de Enfermagem da Unifra, Santa Maria, RS, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica e integrante do Gepeses. enf.matheusviero@gmail.com, Santa Maria, RS, Brasil.

3 Acadêmica do último semestre do Curso de Enfermagem da Unifra, Santa Maria, RS, Brasil. carolcipaim@gmail.com, Santa Maria, RS, Brasil.

4 Acadêmica do último semestre do Curso de Enfermagem da Unifra, Santa Maria, RS, Brasil. estheroc1989@yahoo.com.br, Santa Maria, RS, Brasil.

5 Acadêmica do último semestre do Curso de Enfermagem da Unifra, Santa Maria, RS, Brasil. julia_bopp@hotmail.com, Santa Maria, RS, Brasil.

6 Acadêmica do último semestre do Curso de Enfermagem da Unifra, Santa Maria, RS, Brasil. pequenafs2008@hotmail.com, Santa Maria, RS, Brasil.

Recibido: 13-07-09 Aprobado: 7-10-11


Resumo

Tendo em vista as múltiplas dimensões que envolvem o ser humano e os fenômenos sociais, este trabalho objetivou compreender o significado da "violência familiar", a fim de ampliar e contextualizar o cuidado de enfermagem nos diferentes espaços de inserção social. Os dados foram coletados por meio de uma entrevista semi-estruturada com indivíduos, do município de Santa Maria-RS, Brasil, entre os meses de maio e junho de 2009. Os dados codificados e analisados sob o referencial teórico da análise temática resultaram em quatro eixos temáticos: questionando o papel da mídia; percebendo a influência do meio; repensando os métodos de ensino-aprendizagem e violência silenciosa. Os resultados evidenciam que contemplar as múltiplas variáveis que envolvem o fenômeno "violência" implica a apreensão do indivíduo, seja ele vítima ou agressor, como um ser singular e multidimensional, bem como na articulação dos diversos saberes profissionais.

Palavras chave: violência, enfermagem de atenção primária, pesquisa em enfermagem, Brasil.

Resumen

Tomando en cuenta las múltiples dimensiones que involucran al ser humano y los fenómenos sociales, este trabajo tiene por objetivo comprender el significado de la "violencia familiar", a fin de ampliar y contextualizar el cuidado de enfermería en los diferentes espacios de inserción social. Los datos se recolectaron a través de una entrevista semi-estructurada con individuos del municipio de Santa Maria - RS, Brasil, entre los meses de mayo y junio de 2009. Los datos codificados y analizados bajo la referencia teórica del análisis temático resultaron en cuatro ejes temáticos: cuestionamiento sobre el papel de los medios; percepción de la influencia del medio; reconsideración sobre los métodos de enseñanza-aprendizaje y violencia silenciosa. Los resultados demuestran que contemplar las múltiples variables que involucran el fenómeno "violencia" implica la aprehensión del individuo, bien sea éste la víctima o el agresor, como un ser singular y multidimensional, así como en la articulación de los diversos saberes profesionales.

Palabras clave: violencia, enfermería de atención primaria, investigación en enfermería, Brasil. (Fuente: DeCS, BIREME)

Abstract

Taking into account the multiple dimensions involving the human being and social phenomena, this paper aims to shed light on the meaning of "domestic violence" in order to broaden and contextualize nursing care in the different areas of social inclusion. Data were collected through a semi-structured interview with individuals in the municipality of Santa Maria - RS, Brazil, between May and June 2009. The data, coded and analyzed under the theoretical framework of thematic analysis, resulted in four themes: questioning the role of the media, perception of the influence of the media, reconsideration of teaching-learning methods, and silent violence. The results show that analyzing the many variables involved the "violence" phenomenon requires a perception of the individual, either victim or aggressor, as a unique and multidimensional being, as well as of the articulation of the various professional areas.

Keywords: violence, primary care nursing, nursing research, Brazil.

INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno que vem crescendo significativamente nos diferentes espaços e classes sociais, configurando índices que merecem a atenção tanto das autoridades governamentais instituídas quanto de pesquisadores, estudiosos, profissionais da saúde e, principalmente, do enfermeiro por estar inserido ativamente nos diferentes espaços sociais.

Pesquisa recentemente realizada com moradores da região central do município de Santa Maria-RS, evidenciou que famílias em situações de risco ou exclusão socialregistram percentuais assustadores: 39,4% são indicados de medidas socioeducativas, 33,1% apresentam situação de maus tratos (violência sexual, física e psicológica), 9,7% registram a ocorrência de trabalho infantil e outras situações, tais como o uso abusivo de drogas e outros (1).

Com base nestes e outros indicadores de vulnerabilização familiar e social, torna-se cada vez mais difícil definir "violência". Para estudiosos mais críticos o termo é potente demais para que um consenso sobre sua definição seja possível (2).

Partindo da sua etimologia, o termo "violência" provém do latim violentia, relacionado a vis e violare e porta os significados de força em ação, força física, potência, essência, mas também como algo que viola, profana, transgride ou destrói a vida em suas diferentes dimensões. Assim, violentia parece denotar um vigor ou força que se direciona à transgressão ou destruição de uma ordem dada ou "natural". O limitante representado por essa ordem e sua perturbação (pela violência) é percebido de forma variável, cultural e historicamente (3).

Para alcançar um entendimento maior a cerca da complexidade que envolve o fenômeno "violência" é preciso, gradativamente, compreender os diferentes acontecimentos intra e extrafamiliares envolvidos e que, na maioria das vezes, abarca uma complexa rede multifatorial, incompreendida e insustentável quando abordada isoladamente. Logo, somente um pensamento amplo e multidimensional pode dar conta de uma realidade complexa e, a priori, incompreendida à luz de olhares simplificadores ou redutores. Dito de outro modo, é somente um pensamento também complexo e multidimensional que pode dar conta do fenômeno "violência" e compreender o ser humano, seja ele vítima ou agressor, como um ser uno, complexo e multidimensional.

O pensamento complexo, diferentemente do olhar simplificador, é capaz de lidar com as incertezas, as contradições e, ainda, apreender os fenômenos sociais a partir das múltiplas relações, interações e associações. É, portanto, o pensamento capaz de reunir - complexus: aquilo que é tecido conjuntamente -, de contextualizar, de globalizar, mas, ao mesmo tempo, reconhecer o singular, o individual, a partir de uma compreensão sistêmica, interdisciplinar e transdisciplinar (4-5).

Acredita-se que a inserção precoce dos acadêmicos de enfermagem/saúde nos espaços sociais vulneráveis, constitui-se em uma atitude pró-ativa capaz de comprometer o futuro profissional com as questões relacionadas à cidadania, sustentabilidade e transformação social. Não basta formar "bons profissionais técnicos". É preciso formar profissionais comprometidos com as questões sociais. Pela possibilidade de compreender o indivíduo como um ser integral e integrador, a enfermagem tem potencialidades humano-interativas capazes de fomentar políticas públicas sociais e de saúde que estejam voltadas para as reais necessidades dos indivíduos, famílias e comunidades (6).

Para dar conta dessa realidade é preciso, no entanto, enquanto profissionais da saúde/enfermagem, adentrar novas concepções e olhares, como já fora dito, capazes de compreender e responder à complexidade do real em que se encontram os indivíduos, vítimas de violência de toda ordem. É preciso adotar referenciais capazes de compreender as certezas e incertezas, a ordem e a desordem implícita no processo de ser e vir a ser das vítimas e agressores. Referenciais, portanto, comprometidos com uma nova forma de construir conhecimento pelo foco no ser humano e não apenas no fato "violência", como um fim em si mesmo.

O conhecimento complexo permite ao ser humano avançar no mundo concreto e real dos fenômenos sociais, num esforço por compreender melhor a si mesmo, o outro e a realidade de forma contextualizada (7). Compreender, por sua vez, inclui, necessariamente, um processo de empatia, identificação e de projeção, elementos esses considerados fundamentais para o desenvolvimento de competências profissionais humano-interativas comprometidas com a cidadania. É preciso gradativamente ultrapassar a causalidade linear dos fenômenos sociais emergentes, para apreender a causalidade circular que compreende tanto a dimensão individual e familiar quanto a dimensão social e global do fenômeno "violência" (8-9). Significa dizer, em outras palavras, que é preciso superar as ações pontuais e as práticas tradicionais verticalizadas que focalizam a violência como um fim em si mesmo e não o sujeito - ser singular - sujeito e protagonista da sua própria história.

Para o idealizador do pensamento complexo (5), somente uma reforma do pensamento é que permite o pleno emprego da inteligência para responder às contradições sociais e permitir a (re) ligação de duas ou mais culturas dissociadas. Trata-se de uma transformação não programática, mas paradigmática concernente a nossa aptidão para organizar nosso conhecimento (10).

A partir do exposto, questionamo-nos enquanto acadêmicos e pesquisadores: qual o significado de "violência familiar"? Qual o papel do enfermeiro neste campo de inserção social? Como compreender a violência familiar no sentido de ampliar e contextualizar o cuidado de enfermagem nos diferentes espaços de inserção social?

O estudo se justifica, mais especificamente, pelo fato de não haver um número relativamente suficiente de trabalhos focados na questão "violência" como um fenômeno complexo e multidimensional, ou seja, como um fenômeno que transcende as linearidades do saber tradicional reducionista. Acredita-se que o estudo, a partir do pensamento complexo, poderá ampliar a concepção de "cuidado integral de enfermagem" pela possibilidade de compreender tanto o "agredido" quanto o "agressor" envolvidos na violência.

OBJETIVO

Compreender o significado de "violência familiar", a fim de ampliar e contextualizar o cuidado de enfermagem nos diferentes espaços de inserção social.

METODOLOGIA

Tratase de um estudo exploratório descritivo, de abordagem qualitativa, pela possibilidade de compreender o significado das múltiplas facetas envolvidas no fenômeno "violência familiar".

A pesquisa qualitativa, diferentemente dos métodos quantitativos, não busca enumerar, medir eventos ou incidentes para a análise dos dados. Seu foco de interesse é a compreensão dos significados dos fenômenos na perspectiva dos participantes, de modo a contribuir significativamente na ampliação dos fatores que envolvem a violência, nesse caso, a violência a partir de uma análise multidimensional (11).

Os dados de pesquisa foram coletados no município de Santa Maria, região central do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no período de maio a junho de 2009, por meio de uma entrevista com as seguintes questões norteadoras: O que significa violência para você? Do seu ponto de vista, o que influencia o crescimento da violência na cidade? Qual o papel do enfermeiro neste processo? Os participantes do estudo foram oito homens e quatorze mulheres, todos adultos, convidados aleatoriamente na principal "praça" do centro de Santa Maria, os quais circulavam por este espaço em dias e horários previamente agendados e que aceitaram o convite informal, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Para a análise e interpretação dos dados, foi utilizada a Análise Temática que consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação, cuja presença ou frequência acrescentem perspectivas significativas ao objeto de estudo em questão (12). A noção da temática está associada a uma afirmação que diz respeito a um determinado assunto, podendo ser apresentada por uma palavra, frase ou ideia. Desse modo, a operacio-nalização do processo de análise seguiu as três etapas do método. Na primeira etapa, denominada de pré-análise, buscou-se fazer uma leitura exaustiva dos dados, seguida da organização do material e a formulação de hipóteses. Na segunda etapa - exploração do material - buscou-se codificar os dados brutos. Na terceira e última fase, buscou-se interpretar e delimitar os eixos temáticos pela compreensão dos significados estabelecidos.

A saturação dos dados foi alcançada com vinte e duas (22) entrevistas, considerando-se para esta, a repetição dos dados e o não-surgimento de novas informações.

Para cumprir os critérios éticos, foram atendidas as recomendações da Resolução CNS n. 196/1996, que prescreve a ética em pesquisa com seres humanos. Observaram-se questões referentes à solicitação de autorização aos participantes e à solicitação de autorização ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Franciscano (Unifra), a fim de validar a proposta de trabalho e poder divulgar as informações. Aos sujeitos da pesquisa foram esclarecidos os objetivos e a metodologia proposta, bem como assegurado o direito de acesso aos dados.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Unifra, sob o número 061/2009. Para preservar o anonimato, as falas dos participantes serão identificadas ao longo do texto com a letra "P" (participante), seguida de um algarismo (P1, P2...).

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Os dados codificados e analisados resultaram em quatro eixos temáticos, quais sejam: questionando o papel da mídia; percebendo a influência do meio; repensando os métodos de ensino-aprendizagem e violência silenciosa, os quais serão apresentados e discutidos a seguir.

Para alcançar uma visão ampliada e contextualizada do tema "violência", é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e re-dutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus - o que é tecido junto (8). Em outras palavras, a partir da compreensão de que é impossível conhecer as partes sem conhecer o todo tanto quanto conhecer o todo sem conhecer as partes (8).

Questionando o papel da mídia

Os participantes em geral evidenciaram que a mídia, ou seja, os meios de comunicação social, representa um papel importante no crescimento da violência, sobretudo na comunidade local. Alguns enfatizaram que a mídia potencializa os eventos catastróficos ao invés de potencializar as coisas boas que acontecem na cidade e que, muitas vezes, "procura coisas negativas quando poderiam mostrar tantas coisas positivas que acontecem no dia a dia" (P6).

Um dos entrevistados salientou que as coisas poderiam ser expostas pela mídia, "mas não motivadas pelo sensacionalismo de como se divulgam as informações" (P9), com a descrição de antes, com coisas subentendidas. Enfatiza, ainda, que os "tempos mudaram e que há uma ou duas gerações poucas crianças chegaram a ver alguma vez imagens de pessoas recebendo tiros, sendo esfaqueadas ou estupradas diante de seus olhos" (P9). Atualmente, a maioria das crianças assiste à violência na rede de comunicação social, com frequência e em detalhes. As coisas mais simples, como os desenhos animados e as brincadeiras infantis, deram lugar às corridas, disputas e às batalhas insistentes por determinado comando (16).

A violência, nos diferentes cenários e sob as diferentes dimensões, tem recebido um forte incentivo através da mídia, principalmente no que diz respeito à influência na educação de adolescentes e adultos. O Programa do Adolescente da Organização Pan-americana da Saúde (Opas/OMS) vem apontando a questão da violência na mídia como uma das prioridades de investigação, diagnóstico e prevenção a ser tratada pelo setor de saúde pública e juvenil (13). Essa preocupação é justificada pela grande circulação de produtos midiáticos violentos, distribuídos pelos diferentes meios de comunicação (videogames, internet, TV e outros.) e com um fluxo cada vez maior e mais difícil de controlar a qualidade destes conteúdos em circulação. Além do mais, em sendo a violência uma produção histórico-social, são necessários investimentos constantes na interpretação das novas formas de sua apresentação/representação e de suas intrincadas articulações. A proposta central da saúde pública, ainda que seja difícil defini-la sob a ótica positivista, é a qualidade da vida. E interessam ao campo da saúde todos os dispositivos sociais que possam contribuir para melhorar a existência individual e coletiva.

Na infância e na adolescência, esses dispositivos devem ser obtidos através do crescimento e do desenvolvimento. A convivência com os diferentes meios de comunicação faz parte do cotidiano dos diferentes grupos societários. É importante, nessa direção, que a televisão, enquanto um dos meios de comunicação mais utilizados, não seja um veículo que reproduz cenários ou fatos, mas sim que seja, antes de tudo, um veículo produtor de sentidos e construtor de valores.

A teoria da aprendizagem social demonstra que as crianças e adolescentes, em especial, imitam o que veem na tela ou incorporam padrões de comportamento por ela propostos. Essa mídia em evolução transforma, muitas vezes, o que deveria ser um alerta em ações desenfreadas ou em medo que, como sentimento, tem por objetivo evitar perigos e servir como sinal de alerta a qualquer ação imprudente. É essa mídia, em ascensão crescente, que atinge cotidianamente um grande e variado público que acaba algumas vezes ditando formas de comportamento humano não desejadas (14).

Salienta-se que as reações ao medo podem, por colocarem pessoas em estado de alerta, trazer consequên-cias diversas tanto às formas de reclusão ou submissão quanto às voltadas à violência como resposta aos estímulos externos (15). E o que era para ser diversão se transforma em ações agressivas, e cada vez mais, seguimos o que a mídia enfoca, seja em uma dita moda, em um determinado comportamento e até mesmo nos tipos de violência dia a dia relatados e com uma imensa divulgação dada pelos meios de comunicação.

O aumento da violência, sobretudo nos grandes centros urbanos, assim como o primado avassalador dos meios de comunicação sobre as formas de acesso dos jovens e adultos às regras de relacionamento intersubjetivo, colocam a mídia no centro das interrogações sobre o fenômeno da violência (17).

Vivenciamos realidades distintas e ao mesmo tempo contraditórias e paradoxais. Dito de outro modo, vivencia-se duas histórias distintas. A de verdade e a criada pelos meios de comunicação. O paradoxo, o drama e o perigo estão no fato de que conhecemos cada vez mais a história criada pelos Meios de comunicação e não a de verdade. A história das singularidades e subjetividades humanas (18). Logo, como compreender este paradoxo por meio de um olhar simplificador e disjuntivo? Como transcender a concepção mercadológica simplificante que reduz o ser humano a um "objeto" de bem de consumo? Qual o papel do enfermeiro enquanto educador e promotor de vida e saúde dos indivíduos, famílias e comunidades?

Percebendo a influência do meio

Para os entrevistados, a violência se expressa de diferentes modos e nos mais diferentes espaços. Pode caracterizar-se por um trauma, uma atitude, um gesto, tanto na família quanto na escola, nos espaços públicos, praticada pelos pais, professores e amigos. Outras vezes se manifesta por indivíduos em condições econômicas desfavoráveis, desemprego, injustiça social, dentre outros.

Grande parte dos entrevistados acredita que se uma criança é violenta fora de casa, é porque sofreu, a priori, algum tipo de violência dentro da própria casa/família. A violência mais forte e agressiva para alguns participantes é aquela que envolve as crianças, conforme segue um dos relatos: "Pelo fato delas não terem como se defender, pois elas têm receio de chegar a um adulto e contar o que está acontecendo com elas por medo de serem violentadas novamente, então elas acabam tendo seus medos, e seus anseios, ou seja, elas não expõem o que estão passando na sua casa ou escola, então descarregam fora" (P4). Mas isso também ocorre em outros tipos de violência como a sexual contra a mulher, pois as pessoas que sofreram algum tipo de violência têm receio de tornar público o que aconteceu por medo de sofrerem nova ação violenta.

Para tanto, é preciso analisar o passado de cada pessoa, a fim de compreender por que ela se torna violenta. De acordo com o pensamento complexo, não basta compreender a ação pela ação. É preciso apreender a multiplicidade de fatores que envolvem uma ação, isto é, indo da parte ao todo como do todo às partes (8). O indivíduo "violento", muitas vezes, vivenciou alguma agressão psicológica na infância ou adolescência, a qual acabou gerando um trauma, afetando a sua convivência saudável com as outras pessoas do seu entorno social. Nessa direção, o enfermeiro ocupa um papel importante, por ser um dos profissionais que visa à singularidade e integralidade do cuidado ao ser humano, a partir da contextualização dos fatos e acontecimentos.

Na lógica do pensamento complexo, a compreensão simplificada dos fatos leva ao enfraquecimento da percepção global, a qual leva ao empobrecimento do senso de responsabilidade. Nessa perspectiva, o pensamento complexo instiga-nos à inteligência geral, a fim de compreender e apreender com sabedoria os problemas especiais. Todo conhecimento constitui, ao mesmo tempo, uma tradução e uma reconstrução a partir de sinais, signos, símbolos, sob a forma de representações, ideias, teorias e discursos (8).

Repensando os métodos de ensino-aprendizagem

Na compreensão de grande parte dos entrevistados, é preciso que sejam repensadas as abordagens educacionais, considerando que "a educação, antigamente, era melhor... havia respeito entre professores e alunos... havia uma hierarquia, era mais rígida, os pais estavam mais presentes na vida dos filhos" (P17).

Pelo olhar da complexidade, no entanto, os modelos educacionais do passado, pautados pela linearidade, rigidez e hierarquia precisam ser questionados. Mas precisam ser repensados, também, os métodos de ensino-aprendizagem atuais, os quais, em alguns casos, empobrecem o SER em detrimento do fazer pelo fazer ou do ter pelo ter, sem a preocupação com o todo.

Os entrevistados evidenciam, ainda, que é difícil encontrar pais que não trabalhem o dia inteiro, deixando, assim, seus filhos com babás, avós, pessoas que não se

envolvem diretamente com o processo educacional da criança ou adolescente. Para alguns entrevistados, muitos pais atribuem a responsabilidade de educar unicamente à escola. "Eu fui educador até uns tempos atrás, e então os pais chegavam lá e diziam 'olha eu pago a escola para o meu filho, e exijo que façam aquilo que eu quero, se meu filho não passa no fim do ano, o culpado é você'" (P15). O pensamento complexo remete à "cabeça bem feita"8. na qual não existe espaço para culpados, mas, sim, para a reflexão e continua auto-avaliação e retro-alimentação. Existe espaço para a reflexão e continua autoavaliação e retroalimentação. Logo, remete à necessidade de ensinar o que chamamos de ecologia da ação: a atitude da compreensão que se toma quando uma ação é desencadeada e escapa ao desejo e às intenções daquele que a provocou, desencadeando influências múltiplas que podem desviá-las até o sentido oposto ao intencionado.

Educação e violência, dois temas convergentes, mas, ao mesmo tempo, antagônicos. O que uma coisa tem a ver com a outra? Em primeiro lugar, a educação não é só aquilo que aprendemos em sala de aula, ou deveríamos aprender, na escola formal. Além da escola, existem outras vertentes que também contribuem para a educação moralizante ou desumanizante e que também são culpadas por esta patologia social, tais como a família, a igreja, o Estado, a economia, os serviços de saúde. É preciso compreender que todos esses elementos são necessários para entender que a vida não é apreendida somente nas ciências formais (8). Nessa direção, a responsabilidade pela educação é uma função tanto dos pais quanto dos educadores formais ou informais, bem como da sociedade em geral. Sem uma educação verdadeiramente humana e humanitária não pode haver práticas humanizadoras, livres da violência ou de qualquer forma de agravo à dignidade do ser.

Violência silenciosa

De acordo com os entrevistados, a violência se expressa de várias formas, dentre elas a violência silenciosa. Uma das entrevistadas evidenciou este processo silencioso ao mencionar que não compactua com certas atitudes da sua irmã, mas que está vivenciando uma "guerra interior" que mal consegue admitir e controlar, ao relatar:

"A minha violência ficou calada. Ela ficou silenciosa. Só que em alguma hora ela vai se estourar, em alguma hora eu vou esquecer os meus sentidos de fazer a coisa certa... tipo eu vou estourar eu vou querer bater na minha irmã, vou querer xingar ela porque ela tá fazendo coisa errada só que não está vendo que tá fazendo. Só que se ela fosse uma criança, se fosse uma adolescente tu entenderia porque seria uma fase, entendeu? Mas ela não é... é uma mulher formada, já é adulta. Então no momento que essa minha violência tomar voz coisas boas não vão sair. Tipo e eu não gostaria que esse dia chegasse mas se for o caso." (P18).

Este e outros relatos evidenciam que a violência se expressa de diferentes formas, nas diferentes idades, nos diferentes cenários e nas diversas circunstâncias da vida. Se para alguns ela é a manifestação externa, para outros ela reflete um estado interior que envolve sentimentos, pensamentos e emoções. Para outros, ainda, é um estado de ser e conviver consigo e com o outro.

A violência silenciosa se dá a partir do momento em que o indivíduo não expõe os seus sentimentos, tornando-se prisioneiro de suas próprias emoções até construir um casulo em torno de si e, dessa forma, comprometer as suas relações e interações sociais. Estes sentimentos reprimidos, contudo, quando liberados, na maioria dos casos são expressos de forma agressiva ou violenta. Outras vezes, os sentimentos reprimidos podem internamente aparecer em forma de depressão, ansiedade, pensamentos suicidas ou estresse pós-traumático. Nessa direção, os profissionais de enfermagem e da saúde têm uma importante função de delimitar estratégias no sentido de romper com o silêncio (19).

De acordo com alguns entrevistados, a violência hoje, mais do que nunca, expressa-se como um "grito de socorro". Logo, cabem aqui os seguintes questionamentos: de que forma apreendemos os diferentes gritos de socorro que chegam a nós a qualquer hora do dia e das formas mais diferentes possíveis? Que estratégias empreendemos enquanto profissionais da saúde/enfermagem para dar voz à violência silenciosa ou reprimida que, frequentemente, manifesta-se na forma de uma doença psíquica, espiritual ou física? De que forma apreendemos a violência do dia a dia - pelo olhar da simplificação ou pelo olhar da complexidade? Que tipo de violência reproduzimos em nossas relações e interações familiares, escolares e sociais?

A violência não ocorre de forma isolada nem de forma disjuntiva e descontextualiza. É um fenômeno por si só complexo, isto é, singular e multidimensional, compreendido somente à luz de referenciais, igualmente complexos, capazes de provocar o ser humano a dialogar com as certezas e incertezas, com a ordem e a desordem, bem como integrar os diferentes saberes profissionais.

Nessa perspectiva, é preciso levar em conta que cada indivíduo vivencia a experiência da violência de uma forma, considerando vários fatores: a história de vida do indivíduo e de sua família, seu contexto sociocultural, assim como as condições do meio e outras. Expressar a violência ou silenciá-la será consequência dessas peculiaridades objetivas ou subjetivas. Na situação de violência, seja ela expressa ou silenciada, estão presentes, além dos componentes orgânico-funcionais, elementos de ordem social, cultural, bem como aqueles de natureza íntima relacionados ao modo como cada indivíduo, em sua singularidade, vivencia essa situação específica (20).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista as múltiplas dimensões que envolvem o fenômeno "violência", o desafio de construir um cuidado de enfermagem ampliado e integrador mostra-se fundamental. Cabe considerar que essa construção é relevante, particularmente, no atual contexto de saúde, uma vez que a construção do cuidado integral é um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde, tanto no que se refere à organização integrada dos serviços, em seus distintos níveis de atenção, quanto à perspectiva de compreender o indivíduo em sua singularidade e multidimensionalidade. Nesse processo, as ações inter-disciplinares mostram-se como estratégias importantes e necessárias para o alcance do cuidado integral e integrador.

No presente estudo, a "violência" se apresenta como um fenômeno complexo que precisa ser discutido à luz de referenciais que abarcam a multidimensionalidade do indivíduo, da família e da comunidade. Em outras palavras, de referenciais que ampliam os olhares para além do agressor e agredido. De referenciais, portanto, capazes de promover a integração dos diferentes saberes e setores sociais, tais como a mídia, a escola, a família e os mais diferentes espaços públicos, uma vez que a violência não atinge apenas a vítima, mas também a família e a sociedade como um todo.

O trabalho evidencia, também, que a violência pode ser comparada ao "tecer de uma rede", que liga e interliga diversos segmentos sociais. Da mesma forma, evidencia significados subjetivos os quais se expressam das mais diversas formas, seja por meio de manifestações físicas, seja por meio de atitudes ou por meio da repressão silenciosa.

Nesse contexto, o profissional enfermeiro ocupa um espaço importante, pela capacidade de compreender o individuo como um ser singular e multidimensional. Para tanto, faz-se necessário uma percepção sistêmica da realidade, no sentido de desenvolver uma atitude pró-ativa e empreendedora nos diferentes espaços de inserção social, particularmente nas escolas, creches, unidades de saúde, estratégia saúde da família , dentre outras. De outro modo, é preciso contar com o apoio integrado e articulado dos demais profissionais da saúde, bem como das diferentes áreas do conhecimento, a fim de responder aos fenômenos sociais de forma ampliada e contextualizada.

Acredita-se que, como acadêmicos de enfermagem e futuros componentes de uma equipe de saúde, essa experiência tenha contribuído para a formação profissional, estimulando o trabalho em equipe e ampliando o olhar complexo sobre casos de violência em suas diferentes formas de expressão. Espera-se, também, que este artigo seja um incentivo para outros acadêmicos da área da saúde na busca do conhecimento a cerca da violência e, a partir do pensamento complexo, poder ampliar a percepção de "cuidado integral de enfermagem", pela possibilidade de compreender as diferentes variáveis que integram o fenômeno da violência individual, familiar e social.

O reconhecimento sobre a importância de dispor dados qualitativos a cerca dos múltiplos fatores que envolvem o fenômeno "violência" possibilita o desenvolvimento de práticas mais acolhedoras, voltadas para as reais necessidades dos seres humanos. Acredita-se, em suma, que quanto maiores às discussões e debates a cerca da temática em questão, tanto maiores as possibilidades de acerto, isto é, tanto maior o envolvimento e comprometimento dos profissionais no sentido de participarem ativamente do planejamento, monitoramento e avaliação das políticas públicas em prol da cidadania e bem-estar social.

REFERÊNCIAS

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