Introdução
Proporcionalmente, os idosos são o grupo que mais cresce no Brasil. O crescimento da população idosa leva a preocupações nas áreas social e da saúde, educação, e psicologia que prestam atendimento às pessoas com 60 anos de idade ou mais1.
O processo de envelhecimento pode ser acompanhado pela diminuição do desempenho cognitivo, com a possível influência de diferenças individuais como aspectos sociodemográficos e genéticos, hábitos de vida, e condições de saúde 2.
O declínio cognitivo é umas das principais queixas da população idosa, podendo ocasionar redução da autonomia, da independência, e da adaptabilidade social 3. Ademais, o declínio cognitivo é frequentemente relacionado a complicações oriundas de doenças crônico-degenerativas, como as demências 1. Desse modo, torna-se relevante aprofundar o conhecimento sobre a cognição entre idosos a fim de favorecer o diagnóstico precoce e prevenir o desenvolvimento de demência.
Uma das formas de identificação de possíveis casos de declínio cognitivo em idosos é a aplicação de testes de rastreio levando-se em consideração a heterogeneidade da população estudada em termos de idade, grau de instrução, e questões culturais 4.
Dentre esses testes destaca-se o Mini-Exame do Estado Mental (MEEM), amplamente estudado e utilizado em diversos países para rastreio de declínio cognitivo a partir da avaliação de itens relacionados à orientação no tempo e espaço, memória de curto prazo e de evocação, atenção, cálculo, linguagem, e capacidade construtiva visual na população em geral 5. Pesquisas demonstram a influência da idade e, principalmente, do grau de escolaridade, na pontuação final de desempenho cognitivo entre idosos 1,6.
Em um estudo realizado no Rio Grande do Sul, observou-se maior probabilidade de déficit cognitivo entre mulheres idosas mais velhas, negras ou amarelas/pardas/indígenas, de classe social mais baixa, com menor grau de escolaridade, e sem aposentadoria (p<0,05) 7.
Grande parte das pesquisas com idosos se dedicaram a estudar o envelhecimento em termos cognitivos entre sujeitos que residem em áreas urbanas 6-9. No entanto, estudos sobre cognição em residentes na zona rural observaram déficit cognitivo em sujeitos do sexo feminino com maior grau de escolaridade 10. Em outra investigação, agora urbana e rural, o declínio cognitivo associou-se a maior faixa etária e menos anos de estudo 11. A função cognitiva foi preditora de risco para mortalidade em idosos chineses, 12 o que ressalta a relevância deste tema.
As especificidades da população rural e o acesso restrito a serviços sociais e de saúde podem ter influência sobre sua cognição. Acredita-se que para residir nessa área os idosos precisem de melhor cognição, pois continuam a desempenhar atividades laborais. Assim, estudos sobre as condições de saúde dos idosos residentes na zona rural podem subsidiar políticas de saúde voltadas a essa população.
O presente estudo teve como objetivo comparar as variáveis sociodemográficas e o percentual de erros nos itens do Mini-Exame do Estado Mental (MEEM) entre idosos com e sem declínio cognitivo.
Materiais e Método
Trata-se de um estudo transversal, descritivo e analítico. O estudo incluiu 1 297 idosos cadastrados nas Estratégias Saúde da Família (ESF), com 100% de cobertura no município. Destes, foram excluídos 342; 75 recusaram participação, 117 mudaram de endereço, 57 não foram encontrados após três visitas, 11 morreram, três estavam hospitalizados, e 79 foram excluídos por outros motivos -estavam viajando, residiam na zona urbana, ou eram surdos.
A pesquisa foi realizada com 955 idosos (73,6% da população total) que atenderam aos seguintes critérios: idade igual ou superior a 60 anos, residência na zona rural do município de Uberaba--MG, e cadastro nas ESF.
A coleta de dados foi realizada por 14 entrevistadores treinados tendo como referencial a lista disponibilizada pelas ESF e contendo o nome e o endereço dos idosos cadastrados.
Utilizamos instrumentos estruturados para a coleta das variáveis sociodemográficas (sexo, faixa etária e estado conjugal) e o meem para a avaliação cognitiva dos idosos 13. O MEEM foi adaptado à realidade brasileira 13, sendo composto por questões que abordam orientação para tempo (5 pontos) e lugar (5 pontos), memória imediata (3 pontos) e de evocação (3 pontos), cálculo (5 pontos), linguagem (8 pontos), e capacidade construtiva espacial (1 ponto), com escore variando de zero a 30, onde escore mais alto corresponde a melhor desempenho cognitivo. Para estabelecer o ponto de corte, consideramos a escolaridade do entrevistado: 13 pontos para analfabetos, 18 pontos para sujeitos com 1 a 11 anos de estudo, e 26 pontos para sujeitos com mais de 11 anos de estudo 13. Assim, definimos dois grupos: com declínio cognitivo (105 indivíduos, 11% da amostra) e sem declínio cognitivo (850 indivíduos, 89% da amostra).
Os dados foram digitados em dupla entrada no programa Microsoft Excel ® para verificação das inconsistências, sendo posteriormente transportados e analisados no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 17.0.
Para comparar as variáveis sociodemográficas e a presença de declínio cognitivo, aplicamos o teste qui-quadrado com nível de significância de 95%. Para verificar a média de erros em cada item do MEEM, consideramos a presença ou ausência de declínio cognitivo e o grau de instrução do idoso, formando seis grupos: com declínio cognitivo e analfabetos (n = 26); com declínio cognitivo e 1-11 anos de estudo (n = 71); com declínio cognitivo e 12 anos ou mais de estudo (n = 8); sem declínio cognitivo e analfabetos (n = 209); sem declínio cognitivo com 1-12 anos de estudo (n = 625); e sem declínio cognitivo com 12 anos ou mais de estudo (n = 17). Aos resultados obtidos aplicamos um fator de correção em que as variáveis foram multiplicadas por 100 para obtermos o percentual correspondente à média de erros em cada item. A porcentagem de erros nos itens do MEEM refere-se às respostas obtidas na aplicação do instrumento.
O projeto de investigação foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFTM, n.° 1 477. Os idosos foram contatados em seus domicílios, momento em que foram informados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
A prevalência de declínio cognitivo foi de 11%. Verificou-se maior percentual de declínio entre idosos com idade igual ou superior a 80 anos, menor grau de escolaridade, e viúvos. A Tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dos idosos com e sem declínio cognitivo.
Os idosos analfabetos que apresentaram declínio cognitivo não acertaram nenhuma questão relacionada com atenção e cálculo, e não conseguiram completar o item referente à capacidade construtiva visual. Entre os idosos com declínio cognitivo e 1-12 anos de estudo e os idosos sem declínio cognitivo e 12 anos ou mais de escolaridade, o item do MEEM mais afetado foi o de capacidade construtiva visual. Os idosos com declínio cognitivo e escolaridade igual ou superior a 12 anos apresentaram maior média percentual de erros nos itens atenção e cálculo, seguido de memória de evocação (ver Tabela 2).
Quanto aos idosos sem declínio cognitivo e analfabetos ou com 12 anos ou mais de estudo, os itens do MEEM que se destacaram com os menores percentuais foram a capacidade construtiva visual e atenção e cálculo (ver Tabela 2).
Discussão
Em relação ao sexo, resultado divergente desse estudo, foi encontrado em investigação conduzida com idosos cadastrados nas esf que abrangem as zonas urbana e rural de Dourados (MS), observamos que o declínio cognitivo esteve associado ao sexo feminino (p = 0,024) 9, em linha com estudo realizado em Pelotas (RS) (p < 0,001) 10. Ao contrário, em pesquisa desenvolvida na zona urbana de Bambuí (MG) os homens apresentaram pior desempenho no MEEM 14. A discordância entre estudos pode refletir diferenças culturais relacionadas ao local de moradia dos investigados, considerando zonas urbana e rural. As características peculiares de cada uma das populações estudadas poderiam influenciar a presença ou ausência de associação entre o sexo e o declínio cognitivo 14.
Assim como nossa pesquisa, um estudo realizado com idosos residentes na zona rural da China também verificou associação entre declínio cognitivo e idade (p < 0,001) 12; a mesma associação foi observada em um estudo realizado na Costa Rica (p = 0,0001) 15. No entanto, uma pesquisa realizada em Pelotas (RS) não observou tal associação (p = 0,8) 10. Ressalta-se que a idade é um dos fatores que podem influenciar no desenvolvimento de declínio cognitivo entre idosos 13.
Na zona rural, o acesso restrito a serviços sociais e de saúde podem ter maior influência para idosos mais velhos, devido a sua maior fragilidade ao se aproximarem do fim da vida 16. Nesse sentido, é importante que a equipe de saúde, ao estabelecer o planejamento de ações, identifique o potencial cuidador, preferencialmente no âmbito familiar, estabelecendo a corresponsabi-lização no cuidado de idosos octogenários que apresentem declínio cognitivo 6.
Quanto à escolaridade, pesquisas brasileiras 6,10,14 e internacionais 15,17 são condizentes com os achados desse estudo, uma vez que a menor escolaridade associou-se à presença de declínio cognitivo. A maior atividade cognitiva pode minimizar a perda cognitiva durante a velhice, sendo que a escolaridade desempenha papel protetor principalmente na compreensão oral 18.
É possível que o baixo grau de instrução entre os idosos do presente estudo esteja relacionado a questões culturais do passado, quando mulheres eram criadas apenas para cuidar da casa e da família 19; nos homens, valorizava-se a força física para o trabalho no campo em detrimento do estudo 20.
Em relação à situação conjugal, estudo realizado com idosos residentes na zona urbana de Bambuí-MG também verificou efeito da ausência de companheiro/a ou cônjuge sobre a presença de declínio cognitivo 14. Infere-se que a presença de companheiro/a possa contribuir para maior estímulo cognitivo pela possibilidade de desempenho de atividades conjuntas.
É importante que a equipe de saúde que atua na zona rural esteja atenta aos idosos em processo de luto, identificando suas reais necessidades e fatores que possam levar a um desequilíbrio da saúde. O reconhecimento dos casos de declínio cognitivo é fundamental para o estabelecimento de estratégias de ação no plano terapêutico, incluindo a identificação de familiares ou terceiros que possam oferecer suporte ao idoso com o apoio dos profissionais de saúde.
Entre os idosos analfabetos com declínio cognitivo, a média de erros nos itens atenção e cálculo e capacidade construtiva visual foi mais alta. Esse achado está de acordo com o estudo realizado em uma unidade da rede municipal de saúde do Rio de Janeiro, que avaliou o desempenho de mulheres climatéricas no MEEM; nesse estudo, as mulheres mais idosas e com baixo grau de instrução também obtiveram mais erros nas questões relativas a atenção e cálculo 8.
Este fato pode repercutir em dificuldades relativas ao desempenho de atividades instrumentais da vida diária (AIVDS), como administração de finanças, o que pode limitar sua autonomia. Os profissionais de saúde devem estar atentos a essa situação, buscando junto ao idoso e seus familiares, estratégias que favoreçam a preservação da capacidade de tomar decisões.
O percentual médio de erros neste item foi consideravelmente mais alto quando consideramos a presença de declínio cognitivo e o baixo grau de instrução. Nesse sentido, é importante que as ações de saúde sejam apropriadas aos diferentes grupos, de maneira a considerar as suas diferenças sociais e de saúde. Uma pesquisa da Rede de Pesquisa sobre Estudos da Fragilidade em Idosos Brasileiros (Rede Fibra) observou associação positiva entre o engajamento em atividades avançadas de vida diária e o desempenho cognitivo 21. Assim, salienta-se a importância de se investigar a funcionalidade dos idosos, principalmente em casos de comprometimento cognitivo. Os profissionais de saúde podem desenvolver ações específicas de promoção de saúde, a fim de encorajar a participação dos idosos em atividades de sua preferência.
A capacidade construtiva visual foi o item mais impactado entre os indivíduos com declínio cognitivo e 1-11 anos de estudo e entre os idosos com declínio cognitivo e 12 anos ou mais de estudo, seguido de atenção e cálculo. Assim, é importante que a equipe multiprofissional de saúde aproveite o ambiente físico e as diversas situações da vida diária para realizar atividades individuais ou em grupo que estimulem as habilidades de construção visual. Podem-se utilizar jogos com imagens e formas para favorecer o desempenho neste item, pois o impacto da habilidade de construção visual independe da presença de declínio cognitivo.
Com o avançar da idade ocorre o declínio nas habilidades visuo-espaciais e na velocidade do pensamento; contudo, a habilidade de desenvolver cálculos normalmente é preservada 22. Assim, é possível que a maior média de erros no item de atenção e cálculo entre indivíduos com declínio cognitivo esteja relacionada ao seu menor grau de instrução.
O maior impacto nos itens atenção e cálculo e memória de evocação para os idosos com declínio cognitivo e escolaridade igual ou superior a 12 anos diverge de um estudo brasileiro realizado com idosos residentes na zona urbana do Rio de Janeiro, uma vez que a média de erros foi pequena para esses itens 8. Este fato pode estar relacionado à especificidade da amostra, uma vez que na zona rural a possibilidade de estudo é menor, podendo influenciar o desempenho.
A memória de evocação refere-se à dificuldade de se adquirir, armazenar, e recuperar novas informações. Alterações nessa função podem perturbar relações com os familiares, com a sociedade, e com profissionais de saúde devido ao esquecimento de situações que possivelmente interferem na vida cotidiana, como encontrar-se com outras pessoas, pagar as contas, fechar portas ou torneiras, guardar as chaves, etc 23.
Os itens referentes à capacidade construtiva visual e atenção e cálculo também foram os mais impactados entre os idosos sem declínio cognitivo analfabetos e com 12 anos ou mais de estudo. Uma pesquisa realizada entre idosos na cidade de Chicago (EUA) corrobora parcialmente esses achados, visto que o fator mais fortemente associado à cognição foi o grau de escolaridade, especialmente nos itens referentes às habilidades visuo--espaciais, além da memória episódica e memória semântica 24.
As oficinas de estimulação cognitiva podem ser uma opção eficaz a ser desenvolvida pelos profissionais de saúde com idosos que residam na zona rural, além do atendimento individual ou coletivo com familiares a fim de propiciar maior entendimento e propor soluções viáveis às diversas situações enfrentadas, favorecendo a ampliação da rede de apoio. Podem ser utilizadas técnicas como a enfermagem lúdica, que se fundamenta na atenção social, física e emocional por envolver socialização, cognição, motricidade, e expressões humanas 25.
O lúdico evoca a capacidade de compreensão, orientação, e concentração, além da motricidade, do domínio espacial, e da memória imediata e de evocação. Esses são fatores que contribuem para a prevenção de alterações fisiopatológicas oriundas do envelhecimento 26. No entanto, tais atividades devem ser interessantes e atrativas, favorecendo a participação ativa dos idosos; este tipo de estratégia contribui para a aprendizagem e a interação social, além de favorecer a manutenção do estado cognitivo e funcional do idoso 27.
De forma geral, destaca-se a relevância dos profissionais das ESF para a avaliação dos idosos nessas localidades. Recomenda-se a aplicação de instrumentos de rastreio, como o MEEM, para a identificação precoce dos casos de declínio cognitivo e para orientação dos cuidadores. A qualificação dos cuidadores, a sensibilização da família, os esclarecimentos sobre as questões que acompanham o envelhecimento e a formação de grupos de convivência são alternativas relevantes para a atenção direcionada a esta população 28. Devem-se identificar as preferências do idoso, de modo a implementar atividades que lhe sejam agradáveis. O enfermeiro e a equipe de saúde devem refletir sobre suas intervenções de escolha, pois os idosos possuem necessidades específicas, sendo o grupo um elemento facilitador no processo de cuidado 29.
Vale notar que a escassez de estudos rurais no tema dificultou uma discussão mais aprofundada dos resultados obtidos no presente estudo considerando as especificidades territoriais da zona rural.
Conclusão
Nosso estudo verificou maior percentual de mulheres idosas com declínio cognitivo. Entretanto, não houve relação entre sexo e declínio cognitivo; a associação observada foi entre declínio cognitivo e maior faixa etária, menor grau de instrução, e viuvez.
Em relação à avaliação dos itens do MEEM, segundo a presença de declínio cognitivo e o grau de escolaridade, observamos que para a maioria dos grupos os itens mais afetados foram atenção e cálculo e capacidade construtiva visual. Entretanto, o maior percentual médio de erros nestas questões foi observado no grupo de idosos com declínio cognitivo e baixa escolaridade. Entre os idosos com declínio cognitivo e 12 anos ou mais de estudo, o item mais afetado foi o de memória de evocação.
Esses resultados reforçam a necessidade de implementação de estratégias de ação voltadas aos idosos que residem na zona rural a fim de prevenir o desenvolvimento de declínio cognitivo ou de melhorar aspectos relacionados à cognição daqueles já acometidos.
Sendo assim, sugere-se o desenvolvimento de ações que favoreçam a cognição, principalmente nas áreas de atenção e cálculo, capacidade construtiva visual, e memória de evocação, por meio de jogos e técnicas individuais e em grupo. Destaca-se a necessidade de avaliação periódica das atividades realizadas para identificar os possíveis benefícios dessa prática.
A atuação da equipe de saúde, juntamente com o envolvimento dos familiares, contribui para a ampliação da rede de apoio ao idoso, favorecendo a qualidade de vida e a manutenção da vida em sociedade.
A multiplicidade de pontos de corte no uso do MEEM pode dificultar as comparações entre estudos. A limitação deste estudo refere-se a seu desenho transversal, que impede o estabelecimento de relações de causalidade.