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Cuadernos de Economía

Print version ISSN 0121-4772

Cuad. Econ. vol.34 no.spe66 Bogotá Dec. 2015

https://doi.org/10.15446/cuad.econ.v34n66.49422 

http://dx.doi.org/10.15446/cuad.econ.v34n66.49422

Governos Geisel e Dilma: o poder das finanças

Gobiernos Geisel y Dilma: el poder de las finanzas

Geisel and Dilma governments: The power of finance

Gouvernements Geisel et Dilma : le pouvoir des finances

Angelita Matos Souza a

a Bacharel em Ciências Sociais pelo IFCH-Unicamp; Mestre em Ciência Política pelo IFCH-Unicamp; Doutora em Economia pelo IE-Unicamp. Professora de História Econômica do Brasil na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Rio Claro. São Paulo, Brasil. Correo electrónico: angelita@rc.unesp.com.br.

Aproveito para agradecer comentários e contribuições dos pareceristas anônimos da Revista Cuadernos de Economía.

Sugerencia de citación: Matos Souza, A. (2015). Governos Geisel e Dilma: o poder das finanças. Cuadernos de Economía, 34(66), 545-567. doi: 10.15446/cuad.econ.v34n66.49422.


Resumo

O objetivo principal é identificar a origem do poder das finanças nos dois últimos governos da ditadura militar, sobretudo no governo Geisel (1974-1978), entendido como definitivo para a compreensão da história política e econômica do Brasil nas últimas décadas. Ao final, sugerimos aproximações entre o governo Geisel e os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), possíveis na medida em que ambos praticaram políticas favoráveis ao setor produtivo, sem enfrentamento dos interesses financeiros, afora o breve momento em que o governo Dilma tentou baixar os juros bancários.

Palavras chave: Governo Geisel, autonomia estatal, hegemonia política, Governos do PT.

JEL: N00, O10, O29, E44.

Resumen

El objetivo principal del artículo es identificar el origen del poder de las finanzas en los dos últimos gobiernos de la dictadura militar, especialmente el gobierno Geisel (1974-1978), entendido como decisivo para la comprensión de la historia política y económica del Brasil en las últimas décadas. Al final se sugieren similitudes entre el Gobierno Geisel y los gobiernos del Partido de los Trabajadores (PT), posibles ya que los últimos también adoptaran políticas favorables al sector productivo, sin enfrentamiento de los intereses financieros, aparte del breve tiempo en el que el Gobierno de Dilma intenta bajar los intereses bancarios.

Palabras clave: Gobierno Geisel. autonomía estatal, hegemonía política. Gobiernos do PT.

JEL: N00, O10, O29, E44.

Abstract

The goal is to identify the origin of the political power of finance in the final two governments of the military dictatorship, especially the Geisel government (1974- 1978), understood as definitive in the political and economic history of Brazil in recent decades. We will also highlight similarities between the Geisel and PT governments; that they both adopt policies that are favorable for the productive sector, without opposing bank interests, despite the short time in which the Dilma government tried to lower bank interest.

Keywords: Geisel government, state autonomy, political hegemony, PT governments.

JEL: N00, O10, O29, E44.

Résumé

Le principal objectif consiste à identifier l'origine du pouvoir des finances lors des deux derniers gouvernements de la dictature militaire, en particulier le gouvernement Geisel (1974-1978), compris comme décisif pour la compréhension de l'histoire politique et économique du Brésil des dernières décennies. Finalement sont suggérées des similitudes possibles entre le Gouvernement Geisel et les gouvernements du Parti des Travailleurs (PT), étant donné que ces derniers ont adopté despolitiques favorables au secteur productif, sans affrontement des intérêts financiers, excepté la courte période durant laquelle le gouvernement de Dilma a tenté de diminuer les intérêts bancaires.

Mots-clés : Gouvernement Geisel. Autonomie de l'État, hégémonie politique, Gouvernements du PT.

JEL : N00, O10, O29, E44.

Este artículo fue recibido el 8 de agosto de 2014, ajustado el 26 de diciembre de 2014 y su publicación aprobada el 15 de enero de 2015.


INTRODUÇÂO

O governo Geisel (1974-1978) pode ser entendido como um momento definitivo tanto para história da industrialização brasileira como no contexto da ditadura militar. Nesse governo, além do início do processo de distensão do regime ditatorial, temos a conclusão do processo de industrialização por substituição de importações. A ideia central que pretendemos defender é a de que, a despeito da autonomia para levar a cabo um plano da magnitude do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), a atuação do governo Geisel esteve delimitada pela articulação da economia brasileira ao mercado financeiro internacional. Assim, em que pese o viés industrializante da política econômica, o capital bancário sairá desse governo fortalecido, sobretudo por conta da política de endividamento externo num momentode oferta no mercado financeiro internacional, ao qual o Brasil recorreria, combatendo os efeitos da entrada de recursos com endividamento público interno, dessa forma favorecendo ainda mais o poder dos banqueiros.

De fato, entendemos que, durante os dois últimos governos militares, foi gestado o capitalismo financeiro no Brasil, no sentido da consolidação da influência decisiva dos agentes do capital financeiro sobre os rumos da política econômica estatal1. No bojo dessa mudança, localizamos a gênese da década perdida dos anos 80, as reformas neoliberais da década dos 90 e a transformação do país em paraíso dos juros. Mesmo assim, e sem descurar o papel estimulador da conjuntura de liquidez internacional, é preciso reconhecer que a última onda desenvolvimentista do século XX foi uma opção do governo Geisel, no contexto da América do Sul, a mais promissora. Ao menos, o endividamento proporcionou desenvolvimento e o Brasil terminaria o seu processo de industrialização entre as dez maiores economias do mundo (todavia falido).

Após discorrermos sobre a política econômica nos dois últimos governos militares, paralelos rápidos entre o governo Geisel e os governos do Partido dos Trabalhadores (PT)2 serão apontados, com destaque para o atual, paralelos inspirados por notas na mídia acerca do estilo da presidente Dilma Rousseff: supostamente autoritário/centralizador e pouco cortês no trato com assessores. As dificuldades de diálogo entre governo e empresários também têm sido salientadas, bem como o estado de confiança tíbio da parte dos agentes econômicos. Anotações aqui e ali, que fazem lembrar o estilo Geisel. O penúltimo presidente da ditadura militar gozava da fama de centralizador, descortês com assessores e pouco afeito ao diálogo com empresários. Aliás, seu governo enfrentaria duas campanhas empresariais - antiestatização e pela redemocratização -, expressivas do dissenso no interior do bloco no poder quanto à continuidade do regime ditatorial3.

Ademais da convergência de estilos, interessa indicar dificuldades para conciliação de políticas desenvolvimentistas com interesses financeiros dominantes e mais ainda para contrariar tais interesses a fim de praticar tais políticas4. A impressão é que somente fatores externos podem abrir brechas para políticas de desenvolvimento sem o enfrentamento dos interesses financeiros ou para algum enfrentamento, restando às economias periféricas aproveitar tais brechas. No governo Geisel, existia a oferta de recursos internacionais; nos governos Lula, o crescimento da demanda asiática foi providencial e a maior liberdade para expandir gastos após eclosão da crise financeira em 2008 também se relacionaria às necessidades da economia mundial. Nos dois casos, as políticas governamentais procuraram priorizar interesses do capital produtivo evitando contrariar os do capital bancário. O governo Dilma procurou se desviar um pouco desse caminho e não encontrou apoio sequer entre os segmentos que seriam supostamente beneficiados pela redução dos juros. Faltaram as brechas e o estilo não deve ter ajudado.

BLOCO NO PODER E AU TONOMIA RELATIVA DO ESTADO

Teoricamente, retomaremos a ideia de autonomia relativa do Estado desenvolvida por Poulantzas (1977), que remete às noções de bloco no poder e frações de classe. A despeito das contribuições dos estudos neoinstitucionalistas sobre o tema da autonomia estatal (Skocpol, Evans & Rueschemeyer, 1985) é a noção de base societária que nos interessa, à luz das relações entre Estado e bloco no poder e não da perspectiva desde dentro da instituição Estado e autonomia decisória da tecnoburocracia durante a ditadura militar no Brasil.

Por bloco no poder, devemos entender a condição dominante comum aos detentores dos meios de produção e da riqueza (não uma superaliança de classe), numa unidade que é contraditória e conflituosa, manifesta sobremaneira nas relações com o Estado. Dessa perspectiva, a situação de classe dominante não corresponde a um conjunto homogêneo ou monolítico e a classe capitalista em especial se distingue pelas funções no processo econômico: produtiva, comercial, bancária, agrária; pelas dimensões do capital: grande capital, médio capital ou sistemas de fracionamento relacionados à inserção do país no sistema internacional (às relações com o capital estrangeiro): burguesia nacional, compradora, interna. Sem falar em classes dominantes de outros modos de produção que sobrevivem na formação social capitalista. (Poulantzas, 1977; Saes, 2014).

Neste texto, o sistema de fracionamento ligado às relações com o capital estrangeiro é o que mais importa, pois o processo de desenvolvimento capitalista no Brasil gerou uma burguesia associada e uma burguesia interna que se tornariam forças definitivas na luta política nas últimas décadas. A burguesia nacional, de inclinação nacionalista e anti-imperialista, foi a grande derrotada pelo golpe de 1964, sendo as grandes vitoriosas a burguesia associada, identificada à defesa dos interesses do capital estrangeiro, e a burguesia interna identificada ao grande capital bancário e produtivo5. O que diferencia a burguesia interna da burguesia associada é a sua posição ambígua face aos interesses do capital estrangeiro, com o qual mantém parcerias e interesses comuns ao mesmo tempo em que luta por políticas estatais que protejam as suas posições econômicas internamente da concorrência estrangeira; ela não é eminentemente associada e a sua base de acumulação é sobretudo local.

Tanto a unidade como os conflitos no interior do bloco no poder giram em torno dos interesses das distintas frações burguesas em suas relações com o Estado. O processo de formulação das políticas estatais, mormente da política econômica, constitui um campo de luta no interior da cúpula do Estado, no qual se decidem questões fundamentais relativas aos interesses dominantes. Processo em meio ao qual, a autonomia estatal na condução do processo decisório vai sendo delimitada. Não que a autonomia estatal seja produto apenas do fracionamento e consequentes disputas de interesses entre classes e frações de classe; antes disso, o Estado é uma instituição autônoma, com capacidade decisória distintamente do poder de classe, daí a luta no interior do bloco no poder para controlar diretamente ou exercer influência indireta sobre os ramos estatais decisivos. Como escreveram Codato & Perissinotto:

Na briga política, os grupos políticos e sociais percebem o Estado como uma poderosa organização capaz de definir a distribuição de recursos diversos (ideológicos, econômicos, políticos). Em função disso, lutam entre si para controlar diretamente ou influenciar à distância os diferentes ramos do aparelho estatal (e não necessariamente para dominar). Nesse nível da análise é possível admitir o Estado, de um lado, e a(s) classe(s) em nome da(s) qual (is) ele governa, do outro, como realidades diferentes e autônomas, isto é, separadas. É possível, portanto, pensar no poder de Estado como distinto do poder da classe e em relação conflituosa com ela (2011, p. 44, grifos dos autores).

É certo que, diante de políticas contrárias aos seus interesses imediatos, frações da classe dominante podem responder com boicote econômico (greve de investimentos, aumento dos preços, demissões, fuga de capitais), formação da opinião pública (através dos meios de comunicação de massa) contra medidas estatais, oposição parlamentar, vazamento de denúncias por setores da burocracia etc. Mas também é certo que o Estado não é um mero refém do poder econômico e conta com capacidade para impor políticas -do contrário seria impossível, por exemplo, tributar o grande capital-, cujo êxito está condicionado ao poder das forças sociais que as apoiam, principalmente da capacidade de organização/pressão das classes trabalhadoras em se tratando de políticas envolvendo reformas tributárias, agrárias, salariais, de proteção social.

O bloco no poder, em meio à luta política, vai se configurando desigualmente, à medida que políticas estatais promovem determinados interesses em detrimento de outros - ou seja, realizam a hegemonia no interior do bloco no poder. Poulantzas (1977) seria criticado por estabelecer uma relação estreita entre hegemonia política e interesses economicamente dominantes, enfraquecendo assim a ideia de autonomia ou especificidade do aparelho estatal. Trata-se de uma crítica pertinente ao autor, porém, historicamente não é muito difícil comprovar a relação como tendência dominante, sendo mais acertado mantê-la como tendência dominante a ser comprovada por estudos da política estatal, mormente da política econômica.

De todo modo, no conjunto da obra do autor, é possível resgatar as incertezas impostas pelos conflitos de interesses que envolvem as relações entre Estado (funcionários de carreira e políticos), bloco no poder e classes dominadas, relações que vão conformando a autonomia decisória estatal nas conjunturas concretas. Daí Poulantzas (1977) falar em autonomia relativa do Estado6. À luz dessa ideia é possível defender que, mesmo sob o capitalismo monopolista, o Estado pode praticar políticas econômicas que priorizem interesses do capital produtivo -como se deu no governo Geisel e, mais recentemente, sob os governos do PT-; no entanto, se os interesses financeiros dominantes não são enfrentados, a autonomia estatal para praticar tais políticas na periferia do capitalismo se estreita muito (e se enfrentados, talvez até mais).

Cumpre ainda destacar que alterações no interior do bloco no poder, quanto ao exercício da hegemonia, são definitivas para as mudanças nos regimes políticos (Poulantzas, 1978a, 1978b). Dessa ótica, como já indicado, entendemos que o golpe de 1964 representou a derrota das forças ligadas ao nacional-desenvolvimentismo da fase de transição denominada populista, abrindo para o período de hegemonia da burguesia associada e burguesia interna identificadas ao grande capital7. Já o processo de redemocratização nos anos 80 estaria relacionado aos descontentamentos advindos da preponderância política da burguesia bancária, favorecida pela política econômica dos governos militares. Inclusive, e principalmente, a partir do governo Geisel, que prometera um rearranjo no bloco no poder em favor da produção, mormente da indústria de bens de capital nacional, efetivamente favorecida.

Entretanto, a alteração na correlação de forças no interior do bloco no poder, em benefício de frações ligadas ao grande capital produtivo, era de difícil sustentação sem o enfrentamento dos interesses financeiros, o que provavelmente dependeria da construção de uma base de apoio popular fora do horizonte da ditadura militar. E o fato é que, durante os dois últimos governos militares, foi sendo gestada a transformação do padrão de acumulação vigente desde meados dos anos 50 - assentado no tripé empresa estatal, capital estrangeiro e capital nacional- para o padrão que se consolidaria nos anos 90, com as reformas neoliberais e consolidação de outro tripé: juros altos, metas de inflação, câmbio flexível.

Sob os governos do PT, é possível identificar uma base de apoio popular, o que tem levado alguns analistas a retomar noções de populismo/bonapartismo em estudos sobre os governos Lula (Sallum Jr., 2008; Singer, 2012). Contudo, a mobilização política dessa base de apoio parece fora do horizonte do lulismo (Singer, 2012), não configurando uma alternativa de sustentação para a tentativa do governo Dilma de desequilibrar a solução de compromisso dos governos Lula: entre os interesses das finanças e os do capital produtivo. Mais comprometido com os segundos, o governo Dilma teria buscado uma orientação que contrariava interesses financeiros, sendo seu governo supostamente boicotado8.

GOVERNOS MILITARES

O II PND e as transformações na ordem econômica mundial

A economia brasileira, saída da fase do milagre (1968-1973), caracterizava-se pela liderança no setor produtivo da indústria de bens de consumo durável, sobretudo multinacional. O II PND (II Plano Nacional de Desenvolvimento) elegeria, como setor prioritário, a indústria nacional de bens de capital, sendo que ao Estado caberiam os grandes investimentos em infraestrutura cuja demanda por máquinas/ equipamentos seria atendida preferencialmente pela indústria local, contando para tanto com incentivos governamentais de toda ordem. De forma articulada, o Plano mirava avanços significativos no sistema de transportes e de telecomunicações, bem como a transformação do país num global player relevante, exportador de matérias-primas e manufaturados. Entre os objetivos principais, constavam também a substituição de importações na área de insumos básicos, reduzindo a dependência do petróleo com investimentos em aumento da produção, em fontes alternativas (PROÁLCOOL) e na geração de energia hidrelétrica.

Por trás dos objetivos declarados, o interesse político na manutenção do crescimento da economia, mas também a racionalidade econômica quanto ao projeto de conformação de um parque industrial integrado e de um núcleo tecnológico endógeno com capacidade de inovação. Alguns objetivos seriam relativamente alcançados, outros nem tanto, e o debate sobre o significado do II PND para a história econômica do Brasil está em aberto. Alguns analistas enfatizam motivações eminentemente políticas, mais ou menos racionais; outros destacam a racionalidade econômica e avanços produzidos; ao passo que outros salientam os efeitos posteriores negativos9. Não retomaremos tais análises, para o que nos interessa é suficiente a síntese de Almeida & Belluzzo (2012):

Concentrados na expansão dos setores pesados, os investimentos do II PND em meados dos anos 70 deram impulso a um novo ciclo de exportação de manufaturados de tecnologia madura e de substituição de importações. No entanto, a estratégia escolhida não só provocou a crise da dívida do início dos anos 80, como descurou a incorporação dos setores da chamada Terceira Revolução Industrial, como a eletrônica de consumo, componentes eletrônicos, informatização dos processos produtivos, novos materiais e química fina. A crise da dívida externa e as políticas liberais que se seguiram à estabilização dos anos 90 encerraram uma longa trajetória de crescimento industrial e criaram as bases para o retrocesso da indústria de transformação.

Importa salientar que a trajetória ascendente da dívida externa brasileira a partir de meados dos anos 70 esteve inserida numa conjuntura na qual o capital financeiro internacional buscava emprego para o capital ocioso do Euromercado de dólares, após a alta nos preços do petróleo (petrodólares). A ciranda financeira gestada no governo Geisel está estreitamente relacionada à captura do país por esse mercado, costurada internamente, no último surto desenvolvimentista do Estado brasileiro10. Em meio à desaceleração da economia mundial, combinada à situação de liquidez internacional, políticas de desenvolvimento na periferia, seriam estimuladas. Segundo Fishlow:

Dois mecanismos de ajustamentos alternativos poderiam ter acomodado o domínio das reservas internacionais repentino e sem precedentes por parte dos países produtores de petróleo. Um deles seria uma redução na atividade econômica global suficiente para apagar o excedente ou parte considerável dele. O outro seria a intermediação financeira - o redirecionamento do poder de compra por meio do empréstimo do excedente para países preparados para usar o comércio exterior para importações imediatas. O último recurso de ação cria, inevitavelmente, uma dívida crescente; mas também corresponde a níveis de comércio mais altos e uma fonte do país em déficit pede exportações dos países com excedentes. A dívida dos países em desenvolvimento depois de 1974 era, portanto, uma consequência necessária para sustentar a atividade econômica global (1978, p. 37).

Como afirmamos em outros trabalhos, a hipótese da inversão do papel do Estado na periferia consiste num bom ponto de partida ao entendimento de suas especificidades (Souza, 2001, 2009). A atuação do Estado na periferia seria marcada pela tendência ao desempenho de uma função que os Estados do centro não buscam desempenhar: a de garantia das condições gerais para a acumulação capitalista dependente do capital financeiro internacional11. As formas de desempenho da função dependem dos rumos da luta política local, em meio as relações de dependência externa (com destaque à dependência financeira do Estado), mas dos Estados na periferia do sistema se espera e se impõe o desempenho desse papel.

Dessa perspectiva, a partir de meados dos anos 70, a política de juros altos e o endividamento público interno expressariam a contribuição do Estado brasileiro (não intencional) ao desenvolvimento de um padrão de acumulação novo -a denominada globalização financeira, mundialização do capital, financeirização global. Esse processo amplamente favorável ao domínio do capital financeiro internacional, que quebraria o Brasil nos anos 80, protegeria o grande capital no país dos efeitos da crise. E a herança desenvolvimentista -ao legar um parque industrial relativamente integrado, uma burguesia local robusta, diversificação comercial e potencial econômico sem paralelo no continente- dificultaria reformas neoliberais radicais nos anos 90. Burguesia interna, jornalistas, intelectuais, economistas de oposição, bem como representantes da alta burocracia e segmentos da classe trabalhadora conseguiriam impor resistências às radicalizações neoliberais -à maneira argentina, por exemplo. Do ponto de vista da inserção internacional, é possível afirmar que os dois últimos governos militares estavam inseridos no início, digamos assim, da fase de transição para um padrão de acumulação novo. Os governos do PT, ao contrário, estão inseridos na fase da reprodução desse padrão, num novo patamar do imperialismo12, aberto por algumas decisões políticas, com destaque para a decretação unilateral dos Estados Unidos da inconversibilidade do dólar em 1971, que representou uma primeira vitória da finança concentrada, abrindo caminho para as medidas de liberalização e desregulamentação financeiras a partir de 1979. Para os EUA, a passagem para o regime de taxas flexíveis de câmbio significaria o reforço da predominância do dólar frente a todas as outras moedas, predomínio fomentado pelo crescimento da dívida pública americana a partir de 1980-1982 (Chesnais, 2001)13. O primeiro choque do petróleo, e decorrentes petrodólares, serviriam para o financiamento de políticas econômicas na periferia do sistema, ao passo que o choque dos juros norte-americanos em 1979 levaria os países devedores à beira da bancarrota, promovendo a inversão dos fluxos do capital dos países devedores para o centro capitalista, numa conjuntura de incertezas e desaceleração econômica mundial que atrairá capitais de todo o mundo para os EUA14.

Após breve recessão, na segunda metade dos anos 80, a economia estadunidense seria impulsionada por investimentos tecnológicos de ponta e desenvolvimento de produtos novos, com a Terceira Revolução Industrial espalhando-se pelas demais potências econômicas, acompanhada inclusive por países da periferia asiática. O processo de monopolização econômica avançaria com as transformações científico- tecnológicas em curso, em meio à revolução nos assuntos militares norteamericanos (Revolution in Military Affairs, RAM) e ao próprio fim da divisão bipolar do mundo. As transformações no setor de telecomunicação-informatização elevariam a um novo patamar o domínio das finanças, alterando as formas de articulação com a produção de mercadorias e de espoliação das nações mais pobres pelas mais ricas.

Politicamente, a potência hegemônica foi assumindo a dianteira entre os países devedores, passando a exercer um domínio financeiro-militar sem precedentes, apesar ou graças à condição de maior devedor do mundo. Seus credores principais estão na Ásia -China, Japão e outros países do leste asiático- mas, praticamente, todos os países capitalistas têm acumulado reservas em dólar, aplicadas em parte em ações, obrigações e títulos americanos. Além de também credor dos EUA, o Brasil foi assumindo neste mundo novo a condição de paraíso dos juros, condição gestada nos dois últimos governos militares, consolidada nos anos 90 e desde então insuperável15.

Reestruturação patrimonial do setor privado

Da perspectiva do bloco no poder, a política econômica dos governos militares serviria principalmente ao fortalecimento da burguesia interna identificada com o grande capital bancário. Os mecanismos que mais contribuíram neste sentido foram: 1) A instituição da correção monetária com as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN); 2) Políticas de incentivo ao processo de conglomeração econômica, especialmente no setor bancário; 3) Política de repasse de recursos da poupança financeira em mãos do Estado (que aumentou consideravelmente com as reformas do PA EG) para o Sistema Financeiro Nacional; 4) Política de endividamento externo, público e privado, e o endividamento público interno.

O último item -o único a ser abordado aqui- se converteria no grande veio de riquezas para o setor financeiro a partir do governo Geisel. Com a manutenção do crescimento numa conjuntura internacional adversa, a tendência aos desequilíbrios no balanço de pagamentos se agravaria; a fim de acumular reservas e assim combater riscos cambiais e déficits no balanço de pagamentos, os incentivos à captação externa seriam incrementados. Os empréstimos externos obtidos por meio da Resolução 63 praticamente dobraram: se em 1970 eram de aproximadamente 12,33% do total da dívida externa, em 1980 estavam em torno de 21,9%16. A inflação, estimulada pela entrada de recursos incentivada pelo governo, seria combatida com o lançamento de títulos públicos, cuja rentabilidade compensava possíveis quedas nos lucros do grande capital promovidas pela contração decorrente da política de juros altos17.

O primeiro grande salto no endividamento público interno deu-se no governo Geisel, com um lançamento maciço de letras do tesouro, inaugurando o movimento que ficaria conhecido como ciranda financeira (Cruz, 1984). Os aplicadores em títulos públicos, em especial bancos comerciais, passarão a auferir altos ganhos à custa do endividamento do Estado. Endividamento público via títulos do tesouro e endividamento externo das empresas públicas, pois a despeito dos incentivos, num cenário de perspectivas negativas para a economia mundial, a captação externa pelo setor privado vai diminuindo, ao passo que as empresas públicas são empurradas para o endividamento externo devido às restrições creditícias internas e políticas de contenção de preços/tarifas que reduziam a capacidade de autofinanciamento (sem que a aceleração inflacionária fosse debelada).

A subida geral nas taxas de juros, proibitivas para setores mais debilitados da economia, aumentava a necessidade da política de subsídios para esses setores (especialmente setores exportador e agrário), o que levava a mais lançamentos e expansão da dívida pública. O lançamento de títulos públicos ia sendo absorvido mediante rentabilidade crescente, servindo de piso para as demais taxas de mercado num círculo vicioso difícil de romper. Nem sequer a interrupção do fluxo de capitais externos para o Brasil devido à moratória do México, em agosto de 1982, o romperia. Apenas serviria para a alteração dos objetivos: menos que enxugar a liquidez interna promovida pelo afluxo de capitais, o endividamento público interno transformar-se-ia em mecanismo garantidor dos lucros e riqueza patrimonial ao grande capital por meio do mercado financeiro (Almeida & Belluzzo, 2002).

Segundo Almeida & Belluzzo (2002), o endividamento público crescente asseguraria os lucros do grande capital, a sua sobrevivência e reestruturação em meio à crise da dívida e ajuste recessivo dos anos 1980-1983, permitindo a formação de posições líquidas credoras em seu favor, o que garantiu o sucesso das decisões tomadas no âmbito das grandes empresas a fim de defender o lucro líquido e passar da condição de demandante de crédito para a de aplicadora privilegiada de recursos no mercado financeiro. Mesmo com ajuste recessivo, o grande capital conseguiu preservar e expandir as suas margens de lucro (inclusive aumentando os seus preços num contexto adverso), desendividar-se (ou não se endividar), promovendo a sua reestruturação -cortando gastos, postergando ou cancelando novos investimentos-, mantendo e ampliando seu potencial de acumulação. Especialmente os lucros bancários evoluiriam de forma espetacular ao longo dos anos 80.

Para os autores, os responsáveis pela condução da política econômica julgavam que, preservada a grande empresa privada e restaurado o equilíbrio das contas externas, estariam repostas as condições para que a economia voltasse a crescer. Dessa forma, abrir-se-ia espaço para reações ativas no sentido da ampliação da capacidade produtiva, por meio da sua diversificação rumo a novos investimentos, tecnologias e mercados, promovendo um novo ciclo de crescimento da economia. Entretanto, passada a fase do ajuste, a postura defensiva do grande capital privado não cederia lugar às posturas mais ativas quanto aos investimentos e inovação. Na medida em que os fatores de risco e incertezas não foram removidos e sim agravados pela crise monetária (decorrente da incapacidade de gestão da moeda pelo Estado) e sucessivas tentativas de estabilização (Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Verão), a estratégia persistiu defensiva. Foram mantidos e mesmo ampliados os poderes do grande capital em seus setores e mercados particulares, sem que ocorresse um processo de concentração/centralização e diversificação do capital cujo desdobramento fosse a formação de núcleos econômicos nacionais capazes de patrocinar e capitanear um novo ciclo expansivo. O resultado foi basicamente a reestruturação do setor privado por conta da falência do Estado (Almeida & Belluzzo, 2002).

Campanhas empresariais e o fim da ditadura militar

Na exposição acima, procuramos indicar como a política econômica dos dois últimos governos militares permitiu a preservação e expansão patrimonial ao grande capital em geral. Mas seriam os interesses do capital bancário interno, em consonância com os interesses do capital financeiro internacional, os mais favorecidos. Neste tópico, gostaríamos de retomar a origem do dissenso intrabloco no poder e o seu papel no desfecho do regime ditatorial, processo político passível de ser relacionado à hegemonia dos banqueiros, pois, se no imediato pós-golpe os agentes do grande capital industrial e bancário pareciam exercer em condições de equidade o poder no interior do bloco no poder, no penúltimo governo militar vai ficando claro que não seria mais assim.

No processo de industrialização verificado entre 1956-1961, o setor de bens de capital ocupara uma posição de destaque, situação que se inverteu no pós-64, sobretudo na fase do "milagre", com o despontar da indústria de bens de consumo duráveis. O II PND pretendia reverter esse quadro, fortalecendo a indústria de base nacional a partir, como dissemos, da articulação entre empresas estatais e empresas privadas de bens de capital. Os objetivos prioritários enunciados atendiam aos interesses do setor de bens de capital alojados no Ministério do Planejamento e as metas estabelecidas para o setor coincidem com as medidas propostas por seus representantes em documentos de associações de classe, palestras ou declarações públicas de agentes ligados ao setor, assim como aos interesses das empresas estatais e dos grupos agroindustriais locais (Cruz, 1995, pp. 145-200).

E os interesses de praticamente todas as frações dominantes seriam contemplados, na medida mesmo em que se pretendia manter os níveis de crescimento econômico, dos investimentos públicos, a articulação com o mercado financeiro internacional (buscando nesse mercado recursos suplementares necessários aos projetos do II PND) e ainda se acenava com políticas de desconcentração regional. No entanto, foi durante a última experiência desenvolvimentista do século passado que começou a ruir a base de sustentação política do tripé da economia brasileira, sendo seu marco inicial a campanha antiestatização que desembocaria na campanha pela redemocratização na qual o setor de bens de capital se destacaria18.

Os agentes econômicos ligados ao setor haviam confiado no governo Geisel quanto às metas do II PND e, nos dois primeiros anos do governo, manifestariam entusiasmo diante dos incrementos na indústria de máquinas e equipamentos. O ano de 1976 registraria, contudo, uma mudança no estado de ânimo, provocada pela política de compras em investimentos estatais importantes. Em virtude de acordos firmados pelo governo no exterior, contraindo financiamentos externos vinculados à compra de equipamentos importados, a participação nacional em importantes empreendimentos seria reduzida. Na Usina Siderúrgica de Tubarão, a participação nacional no valor dos equipamentos encomendados seria da ordem de 50%; na Açominas, de 60%; na Hidrelétrica de Tucuruí, de 60%; na ferrovia do Aço, de 50%; nas Usinas Nucleares de Angra II e III, de 30%. Para os agentes do setor, em todos esses empreendimentos a participação da indústria nacional poderia ter sido no mínimo de 85% (à exceção das usinas nucleares, que se situaria em torno de 60%), sendo os percentuais indicados assegurados em geral devido à forte reação contra as importações (Lessa, 1998).

Um amplo leque de descontentamentos começaria a vir à tona. Segundo Codato (1997), descontentamento do conjunto da burguesia quanto às modificações introduzidas pelo governo na condução do processo decisório -entendido como fechamento do processo decisório à participação dos empresários-, acompanhado da insatisfação com a suposta ampliação da presença das empresas estatais na economia. Para o autor, as mudanças na condução do processo decisório - criação do CDE e centralização das decisões pela Presidência -produziram indisposição generalizada presente nas campanhas empresariais contra o governo Geisel. De fato, se existe algo que costuma aborrecer capitalistas (levando-os à indisposição/ boicote de governos) é justamente a busca da centralização e controle do processo decisório da parte de chefes de Estado movidos pela vontade de racionalizar a distribuição dos recursos segundo objetivos traçados.

À reivindicação por maior participação no processo decisório, de mais diálogo, somar-se-ia a contrariedade com a perda de espaço da classe produtora comparada com a posição dos banqueiros. Críticas indicando a derrota política da produção para a finança -notadamente dos agentes ligados à indústria nacional de bens de capital- vão ganhando cada vez mais espaço e aparecendo, em várias versões, afirmações como a de Dílson Funaro: "Estamos transformando o Brasil no paraíso dos agiotas" (Revista Isto É, 08/12/1976).

Vale notar que entre 1974-1976 e no conjunto do período 1976-1980, a indústria de bens de capital cresceu a taxas expressivas, mais do que o setor de bens de consumo, só perdendo para a construção civil, além de a política de endividamento público abrir possibilidades de valorização para o grande capital em geral. Portanto, o problema não era meramente o lucro, que se manteve satisfatório, inclusive durante o período do ajuste recessivo (pelas razões apontadas antes), mas a perda de espaço político justo no governo que havia prometido levar a indústria nacional à posição de destaque. Perda de espaço político, segundo Codato (1997), para barganhar com o governo (devido ao fechamento dos canais de diálogo por um presidente centralizador) e, conforme entendemos, descontentamento com a perda de poder político comparativamente aos banqueiros.

A guinada para o discurso democrático -a segunda campanha: pela redemocratização-, seria a publicação do "Documento dos Oito" no Jornal do Brasil (27/06/1978). Neste Manifesto, além da defesa da democracia como um sistema superior de vida e do ataque cerrado à ciranda financeira, é explicitada a insatisfação com a falta de diálogo e defendida a necessidade de restabelecimento dos mecanismos formais de participação dos agentes econômicos no processo decisório estatal. A campanha pela redemocratização aglutinará basicamente os agentes ligados aos setores não financeiros do capital privado nacional, liderados pelos representantes da indústria de bens de capital. E se o perfil ideológico da primeira campanha dificultava sua intersecção com o partido da oposição -o MDB não possuía uma posição antiestatizante-, o mesmo não ocorreria na campanha pela redemocratização. As condições para a articulação entre agentes econômicos importantes e oposição estavam dadas.

Ao mesmo tempo, a eclosão dos grandes movimentos grevistas conquista o apoio de entidades do mundo civil e acirra o debate público sobre o regime ditatorial; entre capitalistas, as opiniões se dividem, mas não chegam a colocar em causa a recente conversão de nomes importantes do PIB à democracia-liberal, embora haja moderação no discurso (em torno de uma "democracia responsável") e, quanto ao movimento grevista, que seja a solução autoritária em geral recomendada. Ao final, apesar da derrota do movimento por eleições diretas, a oposição conseguiu em parte retirar das mãos dos militares o controle sobre o processo de transição e seu resultado seria uma Constituição democrática avançada, ainda que os direitos civis e sociais sigam de baixa efetividade e qualidade, sem falar nos ataques neoliberais dos anos 90.

Enfim, procuramos expor a gênese do processo de conformação da hegemonia política da burguesia interna ligada ao grande capital bancário, localizando no governo Geisel o momento definitivo, não obstante o sentido desenvolvimentista da política econômica, de encontro ao das reformas neoliberais em curso em países da região. O governo Geisel foi claramente favorável ao grande capital produtivo, elegendo a indústria nacional de bens de capital como segmento a ser priorizado pelo II PND, em articulação com a expansão de empresas estatais. Porém, a sua política econômica acabou por favorecer a conformação da hegemonia política da burguesia bancária, cujos interesses melhor se articulavam aos do capital financeiro internacional.

Num contexto de liquidez nos mercados centrais, em que o capital financeiro buscava aplicar os recursos disponíveis, o Brasil aproveitou para implementar um megaprojeto de desenvolvimento. Certamente, reside aí um dos problemas centrais da política econômica do governo Geisel: a grandiosidade do II PND, tão salientada por Lessa (1998). Provavelmente, se o governo tivesse aproveitado a crise mundial iminente para diminuir ambições (ao invés de fazer dela razão para seguir adiante), mantendo as diretrizes gerais de incentivo ao capital nacional em patamares mais modestos, evitando criar expectativas irrealizáveis, não se teria abusado do endividamento externo, tampouco gerado a ciranda financeira e falência do Estado. "Podíamos perfeitamente ter crescido menos e libertado o financiamento da acumulação de capital dos seus constrangimentos externos" (Mello, 1999, p. 207). Para Mello: "O que os defensores da política econômica do Governo Geisel, como o Antônio Barros de Castro, disseram foi o seguinte: façamos uma abstração, façamos de conta que o Governo Geisel não quebrou o Brasil e nem Estado brasileiro. Supondo isto, foi um sucesso formidável (risos)" (1999, p. 206).

OS GOVERNOS DO PT

O primeiro ano de governo Lula seria marcado pelo ajuste macroprudencial e, por conseguinte, pelo baixo crescimento econômico: de 2,7% em 2002 para 1,15% em 2003. O quadro começaria a melhorar a partir de 2004, especialmente entre 2006- 2008, quando a economia brasileira voltaria a crescer, favorecida pela conjuntura internacional e, internamente, pelas políticas expansionistas adotadas: investimentosem infraestrutura, maior ativismo dos bancos públicos no financiamento da economia, crédito ao consumo, política de valorização do salário mínimo e de reestruturação de carreiras do funcionalismo público (realização de concursos, aumentos salariais), ampliação dos programas de distribuição de renda. Segundo Barbosa, a aceleração do crescimento entre 2006-2008 teria sido motivada sobretudo pelo investimento, que cresceu a uma taxa média de 12,4% no período, e pelo aumento do consumo das famílias, ao ritmo de 6,1% ao ano.

Essa expansão devida à demanda doméstica refletiu o impacto de três fatores sobre a economia brasileira. Em primeiro lugar (...) a taxa de câmbio continuou a cair de 2006 a 2008, o que ampliou o poder de compra das famílias e barateou os bens de capital, gerando aumento do consumo e do investimento privados. Em segundo lugar, o aumento do investimento público e do investimento por parte da Petrobras teve forte efeito de "arrasto" sobre toda a economia. Em terceiro lugar, a aceleração do crescimento aumentou os lucros e salários num contexto de redução da taxa de juros e gerou uma expansão no crédito, que aumentou de 28%, em 2005, para 40% do PIB, em 2008 (Barbosa, 2013, p. 76).

Para Morais & Saad-Filho (2011), a política econômica passaria a ser "híbrida", com adoção de medidas preconizadas pelos desenvolvimentistas de forma complementar às políticas neoliberais herdadas do governo FHC -o tripé metas de inflação, superávit primário, câmbio flexível19. E, diante da eclosão da crise financeira internacional, no final de 2008, as medidas expansionistas seriam alargadas, inclusive porque a necessidade de mitigar a recessão nos centros desenvolvidos mudou o próprio sentido das recomendações do FMI, que passou a ser mais flexível quanto à expansão dos gastos nos países em desenvolvimento, a fim de "contribuir para a solução dos 'desequilíbrios' dos países desenvolvidos" (Bastos, 2012, p. 799). Devido à crise internacional a economia brasileira fecharia 2009 com crescimento negativo; porém, em 2010, por efeito das medidas anticíclicas adotadas, num contexto de elevação dos preços das commodities, o crescimento saltaria para 7,5%, levando a nova onda de políticas restritivas.

De maneira geral, é possível afirmar que a política econômica dos governos Lula oscilou entre medidas expansionistas e contencionistas. Se tomarmos como parâmetro a política de juros, principal expediente contracionista, ela variou conforme o movimento inflacionário: sob os efeitos do ajuste inicial -queda da inflação e apreciação cambial- passou-se à redução progressiva dos juros a partir de meados de 2003: em janeiro de 2003, a Selic estava em 25,50%, em outubro, em 19% e, um ano depois, em 16,25%. O crescimento em 2004 (5,7%) e as expectativas de inflação para o ano seguinte levaram à elevação dos juros ao longo de 2005, chegando a 19,75% e encerrando o ano em 18%. Com o recuo da atividade econômica (3,16%) e a inflação dentro da meta (5,7%), tem início um novo ciclo de baixa, que vai até meados de 2008: dos 18% em dezembro de 2005, cairia para 11,25% em março de 2008, terminando em 13,75%. Em 2009 há desaceleração por efeito da crise e 2010 inicia com a Selic em 8,65%, terminando em 10,66%20.

No primeiro ano do governo Dilma, as medidas de contenção adotadas no ano anterior seriam aprofundadas: elevação dos juros (até meados do ano), da meta de resultado primário, corte nos gastos públicos, paralização dos investimentos em infraestrutura. Serrano & Summa (2012) localizam, criticamente, nessas medidas, a causa principal da desaceleração rudimentar da economia brasileira desde 2011: o objetivo era desacelerar e foi alcançado. Ainda que tenha mantido a política de valorização do salário mínimo e de combate à pobreza por meio da expansão da rede de proteção social, com níveis de desemprego baixos, o governo Dilma seria distinguido pelo fraco desempenho da economia: de 7,5% em 2010 passouse a 2,75% em 2011, 1,03% em 2012 e 2,49% em 2014.

Além das medidas de contenção, uma hipótese complementar a ser levada em conta é a de greve de investimentos (Singer, 2013), um tipo nada incomum de campanha empresarial contra governantes. E aí, o estilo Dilma pode ter influenciado na tomada das decisões de investir. Vale destacar as manifestações de descontentamento com a falta de diálogo, centralismo decisório e aversão ao lucro atribuído ao governo pelos agentes econômicos privados. Como no governo Geisel, é possível que a tentativa de centralização e controle do processo decisório tenha levado à indisposição e boicote do governo. Ademais, maneiras pouco afáveis no exercício do poder podem produzir inação entre servidores e desconfiança geral. Sendo os boatos verdadeiros, o estado de confiança pode ter sido abalado pela maneira como a presidente trataria seus auxiliares: sem demonstrar confiança nos assessores diretos, por que agentes econômicos privados deveriam confiar no governo?

Todavia, pensamos que o definitivo na possível indisposição e boicote do governo seriam decisões tais como a redução na taxa de juros, manobras contábeis (ou contabilidade criativa), oscilações nas políticas de concessões, tentativas de regular para baixo as taxas de retorno dos investimentos, idas e vindas com relação ao setor elétrico, lerdeza nos investimentos de infraestrutura, revisão de contratos suspeitos. No que diz respeito à decisão mais importante, a de reduzir as taxas de juros por meio da utilização dos bancos estatais, ao que tudo indica teria prescindido do diálogo e da tentativa de construção (difícil) de qualquer base social de apoio (elitista e/ou popular). E talvez não se tenha dado a devida importância ao papel do circuito financeiro como lócus da valorização patrimonial da riqueza, ignorando as teias de interesses que sustentam os juros altos no Brasil - da burguesia em geral, classe média alta e mesmo entidades dos trabalhadores. Mas se a forma como foi decidida a política de redução dos juros prescindiu do diálogo e da base social de apoio, o fato é que sua reversão rápida foi determinada pela tendência inflacionária, o que teria pouco a ver com estilos. De todo modo, tivesse a presidente buscado um acordo, pelo menos teria a oportunidade de desistir, ao invés de fracassar.

Quanto à inflação, é preciso considerar a hipótese de subida dos preços como forma de compensação da redução dos lucros no mercado financeiro. Para Cardoso (2014), foi o que aconteceu, pois enquanto no mundo inteiro os investimentos privados diminuem com taxas de juros altas, no Brasil se daria o contrário: os investimentos acontecem com juros altos porque os ganhos no mercado financeiro reduzem os riscos dos investimentos que ainda são financiados pelo BNDES (2010). Não seria a demanda contida pelos juros altos que seguraria os preços e sim o fato de que não seria preciso aumentá-los porque os lucros são assegurados em outro lugar. Agora, quando os juros caem, os preços sobem, daí a inflação e a volta dos juros altos. Na visão do autor, o governo Dilma teria sido punido por fazer o que todo mundo pediu: redução da taxa de juros e desvalorização do real: "(...) Há agentes econômicos com grande poder de veto a medidas que representam, do ponto de vista dos rentistas, perda de renda. Esses agentes não permitiram dólar alto e juro baixo" (Cardoso, 2014).

Enfim, os governos Geisel e Lula puderam promover políticas desenvolvimentistas ou, no caso dos governos Lula, simplesmente crescimento econômico -a julgar pelos que enfatizaram a desindustrialização/reprimarização da economia (Gonçalves, 2012; Sampaio Jr., 2012)- porque condições externas permitiram que isso ocorresse sem o devido enfrentamento dos interesses financeiros. Já o governo Dilma buscou fazer o que se espera de um governo efetivamente desenvolvimentista (ou keynesiano): tentou reduzir os juros e não obteve sucesso prolongado.

CONCLUSÃO

Sem força para romper com as regras do jogo, os meios políticos escolhidos para a consecução do desiderato desenvolvimentista do II PND foram os da contemporização, evitando o conflito com os interesses financeiros estabelecidos, talvez se apostando que o êxito da política econômica promoveria as condições políticas necessárias para rearranjos nas correlações de forças dominantes. No entanto, a expansão da dívida pública interna colada ao processo de endividamento externo favoreceria ainda mais o poder dos banqueiros, além dos lucros não operacionais para o grande capital em geral. Dessa perspectiva, o governo Geisel marca o ponto de viragem, com a gestação do capitalismo financeiro no Brasil, no sentido da consolidação da influência decisiva dos banqueiros sobre os rumos da política econômica estatal. No bojo dessa inflexão, encontramos a gênese da década perdida dos 80 e, em certa medida, as reformas neoliberais dos anos 90, quando se afirmou a hegemonia dos interesses da burguesia associada.

Os governos Lula vão priorizar interesses da burguesia interna ligada ao setor produtivo, sem confrontar os interesses financeiros dominantes, sendo certo que a bonança das commodities foi providencial para sustentar tal solução de compromisso, manifesta para nós na política híbrida destacada por Morais & Saad- Filho (2011). Como escreveu Saes (2014), tendo em vista a posição econômica alcançada pelo Brasil, entre as dez maiores economias industriais do mundo, era inevitável a partilha do espaço econômico entre burguesia associada e interna e, consequentemente, a luta pelo poder político. Segundo o autor, a crise do populismo e o golpe militar de 1964 determinaram a desaparição política da burguesia nacional e a emergência política da burguesia associada, cujo auge político deu se durante os governos Collor e FHC. A chegada do PT ao poder proporcionou para a burguesia interna espaço político e as medidas favoráveis a esse segmento demonstraram que "a hegemonia política da burguesia associada, instaurada a partir da crise final do populismo e da implantação do regime militar, não era um processo irreversível" (Saes, 2014, p. 117).

Além das disputas políticas entre burguesia associada e burguesia interna, devem ser consideradas as disputas no interior de cada segmento, mormente entre frações da burguesia interna no setor produtivo e bancário. A burguesia identificada com o grande capital bancário atua marcadamente como burguesia associada, ao defender políticas de juros altos de interesse do capital financeiro internacional. Porém, costuma assumir posições condizentes com a sua condição de burguesia interna, defendendo a reserva do mercado local para os bancos nativos, contra a concorrência dos bancos estrangeiros. Oscilações que não dizem respeito apenas aos banqueiros e que tornam mais complexas as análises políticas das relações que se estabelecem entre Estado e bloco no poder nas conjunturas concretas. Sob os governos do PT, essas disputas ficaram muito evidentes e foi praticada uma política econômica ao encontro dos interesses da burguesia interna -protegendo bancos nativos, estimulando a conglomeração entre grandes grupos, o expansionismo desses grupos, as exportações de produtos e serviços etc.

Contudo, temos a impressão que os governos petistas, o de Dilma Rousseff em especial, padeceram de certa confusão, tomando por burguesia nacional uma fração da burguesia interna, nomeadamente a ligada ao grande capital produtivo, supostamente identificada com o interesse nacional e contrária à especulação financeira. Críticas aos juros altos da parte de representantes do setor produtivo podem expressar meramente formas de resistência à incontrastável hegemonia do capital financeiro. Daí a insuficiência, por exemplo, da redução dos juros para estimular investimentos, pois discursos muitas vezes não passam de bandeiras de luta, sendo que os agentes ligados ao grande capital em geral ganham muito no circuito financeiro e não têm tanto interesse na redução dos juros, querem apenas o BNDES para eles. Da mesma forma, qualquer retórica nacionalista, muitas vezes adotada pela burguesia interna, não deve ser levada demasiadamente a sério, pois menos que tomada de posições anti-imperialistas pode indicar apenas operações discursivas voltadas para conquistas de políticas econômicas favoráveis aos interesses de frações de classe que têm ou desejam ter negócios/associações com o capital estrangeiro. Ou seja, seria melhor não contar com a existência de uma burguesia nacional no Brasil, desaparecida durante a ditadura militar.

NOTAS DE RODAPÉ

1Isto é, não nos referimos a formação do capital financeiro a partir da fusão entre capitais produtivo e bancário, conforme definição de Hilferding em O capital financeiro, publicado em 1910, retomada por Lenin em Imperialismo: etapa superior do capitalismo, de 1916.

2 O Partido dos Trabalhadores foi fundado em 1980 pelo ex-presidente Lula e figuras eminentes do mundo sindical, do meio universitário-intelectual da esquerda, além de figuras ligadas à igreja católica, mormente a corrente teologia da libertação.

3 Os governos militares em foco, governo Geisel em especial, têm muito mais espaço no texto pois a intenção principal é identificar a gênese do poder dos banqueiros e suas implicações políticas. Quanto à noção de "estilo" apenas retomamos a expressão encontrada na mídia, a exemplo da matéria sobre a presidente Dilma Rousseff, "A afilhada rebelde", na edição 97 (outubro de 2014) da Revista Piauí. Sobre paralelos entre "estilos Geisel e Dilma", ver Jânio de Freitas (2014, 30 de novembro), "Respostas sem berros", no jornal Folha de São Paulo.

4 Sobre o conceito de "desenvolvimentismo", ver Fonseca (2013), que, retomando estudos consagrados, propôs a seguinte definição: "(...) entende-se por desenvolvimentismo a política econômica formulada, de forma deliberada, por governos (nacionais ou subnacionais) para, através do crescimento da produção e da produtividade, sob a liderança do setor industrial, transformar a sociedade com vistas a alcançar fins desejáveis, destacadamente a superação dos seus problemas econômicos e sociais, dentro dos marcos institucionais do sistema capitalista" (p. 28). O crescimento econômico (da produção e da produtividade) seria condição necessária, mas insuficiente, para o desenvolvimentismo, conceito que incorporaria fins desejáveis, "destacadamente a superação dos seus problemas econômicos e sociais" tais como baixa produtividade, concentração de renda, desigualdade social, vulnerabilidades externas (dependência tecnológica, financeira), desigualdades regionais, melhoria de indicadores sociais nas áreas de educação, saúde, saneamento, meio ambiente.

5 Tese defendida por Saes (2014), com o qual concordamos. E, como o autor, preferiremos a denominação de burguesia associada à de burguesia compradora usada por Poulantzas, pois seus agentes podem atuar também no setor bancário e industrial.

6 Como afirmou Décio Saes (1998): "(...) para o Poulantzas, de Poder político e classes sociais, a autonomia relativa do Estado não é um conceito e sim um tema geral a ser explorado em múltiplos registros ao longo de todo trabalho teórico". Conforme entendemos, para Saes a temática da autonomia relativa do Estado, bloco no poder, frações e hegemonia, deve ser estudada empiricamente e analisada da perspectiva histórico-conjuntural.

7 Como salientou Saes: "(...) no processo político real, as diferentes modalidades de fracionamento podem ocorrer simultaneamente, o que torna mais complexa a questão teórica da hegemonia política de fração" (2014, p. 117).

8 Ver por exemplo "Ataque especulativo" de André Singer (2013, 09 de novembro) na Folha de São Paulo; Luiz Carlos Bresser Pereira (2013, 02 de dezembro), "Governo, empresários e rentistas", Folha de São Paulo; Luiz Gonzaga Belluzzo (2013, 29 de dezembro), em entrevista à Folha de São Paulo. Trata-se de uma hipótese aventada pelos autores mencionados que carece de investigações empíricas, nosso projeto de pesquisa atual, sobre os governos do PT, tem entre os objetivos principais levantar o maior número de indicações por meio da ampla pesquisa de fontes primárias à comprovação dessa hipótese mas, por enquanto, não temos como oferecer dados a respeito. Vale registrar que o projeto em curso conta com apoio FAPESP (processo No 2014/01559-4), mas salientamos que as opiniões e hipóteses expressas neste texto são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

9 Dois estudos fundamentais são os de Lessa (1998) e o de Castro & Souza (1985). Entre as análises mais recentes, mencionaríamos Aguirre & Saddi (1997); Fonseca & Monteiro (2008); Gremaud & Pires (1999); Velloso (1998). O estudo de Codato (1997), embora não seja sobre o II PND, é bastante elucidativo no entendimento político do governo Geisel.

10 A ideia de "captura", tomada de Cruz (1984), não implica, evidentemente, passividade por parte do "capturado"; pelo contrário, com créditos abundantes no mercado internacional, o endividamento externo era quase um caminho natural num processo de industrialização dependenteassociado.

11 Segundo Evers (1985, p. 97): "A função do estado (...) se inverte então: a 'garantia de existência e expansão do capital nacional no mercado mundial' passa a ser: garantia da existência e da expansão dos interesses do capital estrangeiro no espaço econômico periférico". Função invertida que não precisa nem deve ser pressuposta (como o faz Evers), mas que constitui um bom ponto de partida para a reflexão e orientação de pesquisas empíricas sobre o Estado na periferia do sistema.

12 A ideia de novo patamar do capitalismo/imperialismo aparece em vários autores; ver François Chesnais et al. (2003); Harvey (2004), que identifica o "novo" como "imperialismo por espoliação" e/ou "capitalismo de rapina"; e Borón (2003), que fala, ironicamente, na globalização como a "etapa superior do imperialismo".

13 Embora, como escreveu Belluzzo (2013, p. 160): "O mundo não convergiu para o regime de taxas flutuantes. Muito pelo contrário: a coexistência entre regimes de taxas de câmbio flutuantes e taxas administradas ou fixas tornou-se a marca registrada da economia mundial".

14 Belluzzo descreve como vai se constituindo e se expandindo, por toda parte, uma engrenagem financeira nova -o "autodesenvolvimento do sistema financeiro" (2013, p. 158)- em torno da dívida estadunidense. Por exemplo: "Carregados de ativos podres latino-americanos e de outros países da periferia, os bancos substituíram em suas carteiras as dívidas dos periféricos por títulos do governo mais poderoso de mundo. A emissão de nova dívida pelo governo norte-americano foi importante para impulsionar o desenvolvimento dos mercados de capitais, ou seja, da securitização e dos derivativos. Os títulos norte-americanos, por sua liquidez e segurança, estimularam a expansão das operações de credito 'securitizadas' (2013, pp. 138-139)."

15 O conjunto de transformações ocorridas nas últimas décadas tem sido bastante estudado; uma obra pioneira e fundamental é a de Chesnais (1996); o último livro do Belluzzo (2013) é interessante por rebater teses recentes de descolamento entre economia fictícia e real, analisando a natureza nova do entrelaçamento das atividades. Fiori, Medeiros & Serrano (2008) abordam o tema da hegemonia americana e, sobre novas formas de espoliação territorial, destacaríamos a obra de Harvey (2004).

16 A reforma financeira do 1o governo militar havia instituído dois mecanismos de colagem da economia local ao mercado financeiro internacional: a Lei 4.131 e a Resolução No 63. O primeiro autorizava o acesso ao crédito externo por empresas não financeiras, o que era mais fácil para as grandes empresas, mormente as multinacionais, portanto favorecidas. A Resolução 63 autorizava a captação de recursos externos pelos bancos comerciais e de investimentos para repassarem internamente, em transações praticamente sem riscos, pela qual recebiam comissões entre 4% e 14% (Souza, 2009).

17 Não obstante, a inflação dobrou, saindo de 34% em 1974 para 77% em 1979, e a dívida externa saltou, no mesmo período, de US$ 20 bilhões para US$ 55 bilhões, assumindo um caráter cada vez mais eminentemente financeiro (dívidas para rolar dívidas).

18 O marco inicial das campanhas pode ser localizado em fins de 1974, com as críticas de Eugênio Gudin à "estatização da economia", publicadas na imprensa conservadora. Ganha espaço nos grandes jornais e revistas a partir de uma série de artigos publicados no O Estado de São Paulo em princípios de 1975, atingindo seu auge na 1a metade de 1976, com a intensa adesão à campanha nos meios empresariais. Ao longo de 1977 acentuam-se as críticas de empresários ao governo e surgem manifestações em defesa da redemocratização do sistema político, bandeira que se tornará dominante no início de 1978; a partir daí, críticas ao regime militar, mais ou menos explícitas, tornaram-se correntes nos meios empresariais e imprensa.

19 Não retomaremos o debate sobre o novo desenvolvimentismo versus neoliberalismo; a esse respeito, ver Bastos (2012); Fonseca, Cunha & Bichara (2013); Gonçalves (2012); Morais & Saad- Filho (2011); Sampaio Jr. (2012). Mas, tomando como referência apenas o volume de recursos desembolsados pelo BNDES no segundo mandato do governo Lula - em grande medida destinado para empresas do setor produtivo -, torna-se duvidoso o acento no continuísmo neoliberal, ainda que seja controversa a de novo desenvolvimentismo. Em 2010, o desembolso do banco ficou em R$ 168,4 bilhões, ao passo que no primeiro ano do governo Lula (2003) fora de R$ 35,1 bilhões (BNDES, 2010). A tese do novo desenvolvimentismo seria controversa sobretudo devido à queda da participação da indústria de transformação no PIB, de 18% para 13,3% entre 2002 e 2013. Mesmo economistas ligados ao governo reconhecem aí um problema central; apenas preferem destacar conquistas ao invés de bater na tecla da desindustrialização e reprimarização.

20 Ver gráfico disponível em: http://www.estadao.com.br/infograficos/confira-a-evolucao-da-selicdesde- o-inicio-do-governo-lula,economia,321172 acesso em 22/12/2014. Ou site do Banco Central: http://www.bcb.gov.br/?COPOMJUROS.


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