Introdução
A discriminação perpassa as mais diversas formas de relações sociais, inclusive as relações de consumo. A discriminação nas relações de consumo se caracteriza pelo tratamento desfavorável, de conotação negativa, com base em características percebidas, tais como etnia, gênero, idade e orientação sexual (Cardoso et al, 2019). Essas características podem alicerçar a postura de quem atende o consumidor, na forma de uma percepção de inferioridade que culmina com a atitude de diferenciação pejorativa, negativa, desqualifi-cativa ou tratamento desigual, inferior, inclusive ser ofensiva e gerar a exclusão (Crockett et al, 2003; Harris et al, 2005). Esse tratamento pode ser a negação de serviço, atos sutis, a degradação do serviço, entre outros, que prejudicam a vivência desejada (Crockett, 2017; Ekpo et al., 2018).
A discriminação é vivenciada, principalmente, por consumidores estigmatizados ou marginalizados, que são percebidos negativamente, e é resultado da distinção por parte dos funcionários (gerentes, atendentes, vendedores etc.) no momento de atender esses clientes (Walsh & Mcguire, 2007).
A existência de discriminação leva o consumidor a desenvolver emoções negativas, degradando a experiência de consumo. Isso pode gerar uma percepção de sacrifício e insatisfação, levando a uma diminuição gradativa do consumo até a sua total exclusão. Quando os consumidores sofrem discriminação, suas intenções de retornar ou recomendar uma empresa são anuladas ou reduzidas, e eles tendem a manifestar sua insatisfação por meio do boca a boca negativo, da deserção, da mudança de provedor de produtos e da busca de recursos legais (Klinner & Walsh, 2013; Minton et al, 2017; Ro & Olson, 2014; Walsh, 2009; Walsh & Hammes, 2017).
A discriminação quanto ao público LGBTQLA+1 é popularmente conhecida como "LGBTQiA+fobia" e implica a hostilidade e a violência com base na percepção de que todo tipo de orientação sexual não heterossexual é negativo. Do ponto de vista das relações de consumo, a discriminação quanto à diversidade de gênero e sexual é uma prática que ocorre quando o provedor, ao perceber a diversidade, diferencia pejorativamente a oferta ou nega o consumo (Rosenbaum et al, 2021).
Um estudo realizado entre 2017 e 2018 com 22.905 pessoas LGBTQIA+, em 15 países, incluindo o Brasil, com o objetivo de entender a discriminação, o assédio ou o tratamento diferenciado no cotidiano desses consumidores indicou que o percentual que sofreu recusa na oferta de bens e serviços por ter sido visto ou reconhecido como LGBTQIA+ chegou a 16% em alguns países (Out Now Global, 2019). Em se tratando especificamente do contexto brasileiro, o estudo aponta que, como mercado consumidor, o Brasil abriga uma das maiores e mais dinâmicas comunidades LGBTQIA+ do mundo, com reconhecido potencial financeiro, e, como consumidores, altos níveis de despesas e intenções de compra. É possível que, da população adulta total do Brasil, 9,5 milhões de brasileiros fariam parte dessa comunidade, e a sua renda anual é estimada em 141 bilhões de dólares (Out Now Global, 2019). Portanto, entende-se que esse é um segmento de consumidores relevante às organizações e deve receber a atenção adequada (Silva et al, 2018; Boyd et al, 2020; Rosenbaum et al, 2021).
Vários estudos abordam as distintas formas de discriminação no consumo, em diferentes contextos de serviço. Bennett et al. (2015), por exemplo, analisaram a discriminação racial de consumidores; McKeage et al. (2018) observaram as experiências de vulnerabilidade no consumo, e Linzmajer et al. (2020) estudaram o preconceito étnico. Outras pesquisas abordam aspectos variados do fenómeno da discriminação, tais como vulnerabilidade do consumidor, determinates da discriminação percebida, discriminação e injustiça, assédio, entre outros (Crockett et al, 2003; Harris et al, 2005; Baker et al, 2005; Walsh & Mcguire, 2007; Rosenbaum & Montoya, 2007; Walsh, 2009; Williams & Henderson, 2012; Klinner & Walsh, 2013; Walsh & Hammes, 2017; Rosenbaum et al., 2020), bem como expõem o tratamento desigual de clientes minoritários (Brewster & Brauer, 2017).
Ro e Olson (2020) e Rosenbaum et al. (2021) examinaram respectivamente a discriminação contra consumidores gays e lésbicas nos Estados Unidos e na Colómbia, e constataram que, apesar de evidências substanciais sobre a existência de discriminação contra consumidores LGBTQIA+, a pesquisa sobre as suas experiências ainda é escassa. De acordo com Cardoso et al. (2019), a pesquisa voltada à temática da discriminação LGBTQIA+ também é quase inexistente entre estudos brasileiros, considerando o âmbito do marketing e das relações de consumo. Estudos também confirmam que pesquisas com amostras da população LGBTQIA+ são poucas (Tsai, 2011) e que são necessárias mais investigações direcionadas à diversidade em marketing de consumo (Dalpian & Silveira, 2020).
Segundo Rust (2020), diversidade e inclusão são pautas importantes para o futuro do marketing e, em especial, o fenómeno da discriminação exige estudo com maior profundidade. Nesse ínterim, o objetivo do estudo é verificar as relações entre a discriminação percebida pelos consumidores LGBTQIA+ e as consequências emocionais (frustração e desamparo) do processo de consumo discriminatório.
Os resultados da pesquisa podem mostrar que a discriminação do consumidor LGBTQIA+ é uma lente útil para entender as experiências desses indivíduos e as maneiras pelas quais os sistemas de marketing podem ser envolvidos para reformular experiências negativas. Para mais, os resultados podem ainda alicerçar a capacidade das empresas de combater a discriminação, melhorar o atendimento e oferecer bens e serviços de alta qualidade, alinhados com critérios de satisfação e lealdade de consumidores LGBTQIA+. Adicionalmente, busca-se fornecer evidências que podem auxiliar na gestão da inclusão, da igualdade e da diversidade.
Mediante uma perspectiva social, o estudo justifica-se à medida que as constatações poderão apoiar o fomento de políticas públicas e ações governamentais direcio-nadas à prevenção e ao combate da discriminação às pessoas LGBTQIA+. Também podem possibilitar desenvolver estratégias voltadas à conscientização da população empresarial e dos consumidores em geral.
Por fim, sob a ótica das contribuições acadêmicas, esta pesquisa contribui para a agenda de pesquisa em marketing, em comportamento do consumidor e consumo, ao explorar a discriminação contra os consumidores LGBTQIA+ no Brasil, ao mesmo tempo que preenche uma lacuna na literatura, ao investigar a intersecção entre a diversidade sexual e a discriminação no consumo.
Discriminação
A palavra "discriminar" deriva do termo latino "discriminare", que significa dividir, separar, distinguir, ou seja, é fazer uma distinção adversa sobre um indivíduo, para distingui-lo desfavoravelmente de outros (Krieger, 2014). A discriminação expressa a materialização de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao preconceito, e se concretiza na forma de violências interpessoais (Rios, 2007; Carrieri et al., 2014). Engloba, em geral, raça, sexo, identidade de gênero, orientação sexual, estado civil, origem étnica ou social, cor, idade, deficiência, religião, consciência, crença, cultura, língua, natureza estética e aspectos relacionados à aparência física, à condição física e de saúde, ao status e à nacionalidade, separadamente ou em combinação (Krieger, 2014; Menezes et al., 2018; Miconi et al, 2021).
A discriminação é a manifestação do preconceito, e este é inerente à discriminação (Jones, 1997). O preconceito se concentra em atitudes, crenças e ideologias mantidas internamente, e a discriminação é um resultado que explicita o tratamento desigual de pessoas com base na categoria a que pertencem (Ukanwa & Rust, 2020). Allport (1954) afirma que a discriminação expressa distinções prejudiciais que excluem ou segregam determinadas pessoas ou grupos, gerando consequências sociais mais imediatas e sérias do que o preconceito.
O preconceito manifestado por meio de atitudes discriminatórias, percebido e considerado pelos alvos como injusto, é operacionalizado por intermédio da diferenciação pejorativa ou do tratamento desigual, tratamento inferior no caso do alvo do preconceito, assim como ofensivo e capaz de gerar exclusão (Harris et al., 2005).
Sob esse enfoque, a discriminação consiste em comportamentos negativos que incluem evitar, excluir ou até mesmo atacar fisicamente outros indivíduos e que estão baseados em suas características percebidas (Allport, 1954). A discriminação LGBTQIA+ é correlacionada ao preconceito quanto ao gênero, à identidade/expressão de gênero e à diversidade sexual. As questões de gênero, identidade de gênero e orientação sexual são construções sociais e culturais amplamente consolidadas e reproduzidas. Esses conceitos podem assumir diferentes sentidos e contextos, bem como serem definidos por diferentes perspectivas. A discriminação com relação ao público LGBTQIA + é popularmente conhecida como "homofobia" ou "LGBTQiA+fobia" e implica discriminação e violência com base na percepção de que todo tipo de orientação sexual não heterossexual é negativa (Palan, 2001; Butler, 2003; American Psychological Association, 2008; Butler & Rios, 2009; Reis, 2018).
Segundo McKeage et al. (2018), os indivíduos não conformes ao binarismo de gênero enfrentam discriminação, sistemática e estrutural, na sociedade. O fato de o objeto da discriminação estar relacionado à diversidade sexual pode advir da construção da sexualidade enquanto objetivo moral, enraizada em normas sociais impostas, ideologia política, conservadorismo social ou heterocis-normatividade (Li et al., 2020). Assim, as pessoas com identidades/expressões de gênero ou orientação sexual desviantes do padrão heteronormativo acabam passando por um processo de discriminação (Cardoso et al., 2020). Para Walsh (2009), isso ocorre no consumo porque o provedor se identifica com padrões heteronormativos e não deseja se "associar" com outros padrões de sexualidade, expressando o seu sentimento por meio de um comportamento discriminatório. A heteronormatividade é definida como a visão de que a heterossexualidade institucionalizada constitui o padrão para arranjos sociossexuais legítimos (Ingraham, 1994). Assim, a heteronormatividade pune a homossexualidade ou as sexualidades que são percebidas como desviantes dos arranjos sociossexuais-padrão. Para mais, a heteronormatividade tóxica é considerada uma norma de controle social simbólica, discursiva, psíquica, psicológica que induz à violência contra a comunidade LGBTQIA+ (Li et al, 2020).
Discriminação percebida pelo cliente
No campo do marketing, a discriminação nas relações de consumo é denominada de "marketplace discrimination", descrita como o tratamento diferencial baseado em traços percebidos de uma certa pessoa ou de um grupo de consumidores, produzindo reações que podem ser favoráveis ou desfavoráveis nas relações interpessoais de clientes versus os prestadores/atendentes/vendedores de produtos (Crockett et al, 2003; Krieger, 2014; Miconi et al, 2021).
A partir do enfoque de quem recebe a discriminação, tem-se a discriminação percebida por clientes e consumidores. Esta se refere à percepção que o consumidor tem de que é tratado de forma diferente ou injusta, em virtude de sua associação a um determinado grupo. Implica a rejeição ou a exclusão do grupo-alvo e de seus membros, podendo prejudicar a experiência de consumo, bem como o bem-estar psicológico ao ameaçar a satisfação das necessidades de inclusão e aceitação (Cardoso & Rocha, 2020).
Klinner e Walsh (2013) apontam três modos da discriminação percebidas pelos consumidores: o tipo de discriminação alegada (sutil ou explícita), o nível de serviço (degradação ou negação) e a discriminação por suspeita criminal (presente ou ausente). Perante isso, desenvolveram uma revisão sistemática da literatura e identificaram três formas de discriminação: i) observação crítica (por exemplo, nas lojas durante as compras), ii) declarações verbais prejudiciais (por exemplo, calúnia racista e comentários) e iii) mau atendimento. Elas correspondem aos três tipos de discriminação no consumo: discriminação aberta, evidente ou explícita, discriminação no nível do serviço e discriminação sutil.
A discriminação explícita abrange manifestações declaradas, evidentes, claras e diretas, tais como agressão verbal, humilhação, olhares e gestos ofensivos dos funcionários, ataques físicos ou verbais, na forma de insultos xenófobos, misóginos ou homofóbicos. A discriminação relacionada ao nível do serviço significa que um cliente de um grupo estigmatizado experimenta um nível de serviço mais baixo do que um cliente de um grupo não estigmatizado, pior qualidade do produto, preços mais altos ou negação de serviço. Finalmente, a discriminação sutil é ambígua e indireta, dificilmente reconhecível, mas indubitavelmente percebida por quem a recebe (Rosenbaum & Montoya, 2007; Walsh, 2009; Klinner & Walsh, 2013).
Mediante tais constructos, Klinner e Walsh (2013) propõem que as três formas dão suporte a uma análise multidimensional da discriminação percebida pelo cliente. Para tanto, os autores desenvolveram e validaram uma métrica de discriminação percebida pelo cliente, a qual mede as diferenças individuais na propensão dos clientes a se sentirem tratados diferencialmente no mercado, em especial durante as interações de serviço.
A métrica supracitada, intitulada "Perceived Customer Discrimination" (PCD), é composta por três grandes blocos de questões com a utilização da escala Likert de cinco pontos, ancorada pelos termos: 1 = nenhuma, 2 = baixa, 3 = média, 4 = elevada, 5 = muito elevada. A primeira parte é constituída pelas perguntas referentes ao perfil (idade, gênero e educação). Na sequência, são expostas as questões relativas à discriminação, por meio de três dimensões (discriminação explícita, nível discriminatório de serviço e discriminação sutil). Por fim, dois blocos de questões abordam os resultados emocionais do processo discriminatório, frustração e desamparo (Klinner & Walsh, 2013).
Nesse contexto, frustração e desamparo são emoções negativas que forçam os clientes a perceber a impossibilidade de alcançar uma meta desejada ou evitar a discriminação por meio de suas próprias ações (Klinner & Walsh, 2013). A frustração configura-se como um impedimento que o indivíduo enfrenta durante o processo de obtenção de uma meta ou objetivo. As pessoas tornam-se frustradas quando querem algo e não conseguem alcançar (Ladeira et al., 2016). O comportamento de consumo é influenciado pelo processamento da frustração, pois, durante o processamento da frustração, a probabilidade de comprometimento com a escolha de um produto ou serviço reduz significativamente, resultado da capacidade da frustração de mediar comportamentos (Lee et al., 2013). A causa final do desamparo é uma avaliação subjetiva, não uma condição objetiva (Klinner & Walsh, 2013). Tal como a frustração, o desamparo é uma reação afetiva a um evento externo. Ao contrário da frustração, que é uma emoção relativamente forte que resulta de uma barreira e/ou impedimento (Naidoo & Mwaba, 2010; Klinner & Walsh, 2013), o desamparo é uma perda de controle que tende a ocorrer quando uma pessoa percebe baixo potencial para lidar com uma situação (Gelbrich, 2010).
Além disso, Gelbrich (2010) conceitua frustração como uma emoção retrospectiva que atribui incongruência de objetivos a fatores situacionais (por exemplo, funcionários de serviço), e desamparo, como uma emoção prospectiva que resulta de uma avaliação das possibilidades de opções futuras. Em resumo, a frustração é uma emoção negativa provocada pela incapacidade percebida de alcançar a consecução do objetivo, o desamparo é uma emoção desagradável resultante da incapacidade de influenciar resultados (futuros).
Os estudos existentes acerca de marketplace discrimination consideram, quase exclusivamente, a lealdade e a satisfação do cliente com relação à discriminação percebida pelo cliente (Walsh, 2009), ignorando amplamente as respostas emocionais. Klinner e Walsh (2013) conjuntaram que essa abordagem é insuficiente, uma vez que a discriminação percebida pelo consumidor é um evento psicologicamente estressante que resulta em reações emocionais, as quais, provavelmente, promovem reações comportamentais negativas, tais como o boca a boca negativo, a ruptura comercial, os processos judiciais (quando for o caso), entre outros.
Hamilton e Hassan (2010) observam que a maioria das estratégias de enfrentamento utilizadas nos contextos sociais pode ser vista como formas de proteger e aprimorar o autoconceito social. A orientação sexual é uma característica estigmatizável, que pode levar uma pessoa a ser desacreditada quando é revelada (Chrobot-Mason et al., 2001). O público LGBTQIA+ é chamado de "minorias invisíveis", porque as orientações sexuais não podem ser facilmente identificadas apenas pela aparência física. Esse estigma e invisibilidade fornecem um contexto no qual pessoas que se identificam como LGBTQIA+ lidam com possíveis discriminações por meio do gerenciamento de identidades que envolvem o controle da divulgação de informações sobre a orientação sexual de alguém (Ro & Olson, 2014; 2020).
Ainda sobre a métrica PCD (Klinner & Walsh, 2013), é válido ressaltar que ela foi publicada no Journal of Business Research e incitou o desenvolvimento de outros estudos que a utilizaram. Tais estudos foram desenvolvidos em diferentes países e contextos, mas, em geral, ao analisá-los, pode-se observar a predominância de pesquisas com a temática da discriminação étnico-racial nos Estados Unidos, seguida por avaliações das mais diversas formas de prestação de serviços e de percepções de discriminação dos consumidores. Por exemplo, Ro & Olson (2020) realizaram um estudo ("Gay and lesbian customers perceived discrimination and identity management") que aborda a questão da hospitalidade e como os clientes gays e lésbicas percebem atitudes e comportamentos potencialmente discriminatórios dos funcionários desses serviços.
Apesar de potencialmente semelhante, a pesquisa aqui desenvolvida amplia essa proposta, pois inclui todo o universo LGBTQIA+ (não somente gays e lésbicas), apresentando uma análise interseccional de gènero, identidade/ expressão de gènero e orientação sexual, e a relaciona à discriminação percebida pelo consumidor no Brasil, pois o enfrentamento da discriminação experimentada por indivíduos e grupos requer ferramentas adequadas às diversas situações em que se apresenta.
Procedimentos metodológicos
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa quantitativa, realizada a partir de um survey online. Para a divulgação e a aplicação do instrumento de coleta de dados, foram selecionados grupos/comunidades online da rede social Facebook. Dessa forma, foram escolhidas as 20 maiores comunidades e páginas (em número de participantes) voltadas ao lifestyle LGBTQIA+.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi um questionário, viabilizado pelo Google Forms. O questionário era composto de questões sociodemográficas (sexo biológico, identidade de gênero, orientação sexual, status de relacionamento, idade, ocupação profissional, escolaridade, estado e cidade) e relacionadas aos construtos da PCD: discriminação explícita (cinco itens), discriminação no nível do atendimento (cinco itens), discriminação sutil (três itens), resultados emocionais (cinco itens) e uma pergunta aberta (Deixe seus comentários, críticas e sugestões). Os itens foram operacionalizados por meio da escala do tipo Likert de cinco pontos via método de mensuração da intensidade da discriminação percebida pelo consumidor (1 = nenhuma, 2 = baixa, 3 = média, 4 = elevada, 5 = muito elevada). Os itens que compõem a escala podem ser observados na tabela 1.
Dimensão | Variáveis |
---|---|
Discriminação explícita | Sofri agressão verbal por parte dos funcionários. |
Os funcionários me insultaram. | |
Os funcionários me humilharam. | |
Os funcionários foram ofensivos comigo. | |
Houve a ocorrência explícita de discriminação. | |
Discriminação no nível do serviço | Os funcionários geralmente não atendem às minhas necessidades ou problemas. |
A forma de atendimento dos funcionários costuma ser desrespeitosa. | |
Os funcionários costumam ser pouco acessíveis para comigo. | |
Os funcionários muitas vezes me fazem esperar mais para ser atendido. | |
O nível do atendimento é inferior, em virtude de eu me identificar como LGBTQIA+. | |
Discriminação sutil | Percebo várias formas sutis de discriminação. |
A forma de olhar dos funcionários é depreciativa. | |
O tom de voz dos funcionários é grosseiro e discriminativo. | |
Resultados emocionais | Desconfortável/receoso. |
Frustrado/desapontado. | |
Irritado/com raiva. | |
Vulnerável/indefeso. | |
Impotente/incapaz. |
Fonte: elaboração própria.
Cabe ressaltar que o procedimento de tradução utilizado para a PCD foi a retrotradução dos itens, a qual foi realizada por profissionais com formação em Letras.
Definidas as dimensões e as variáveis, o instrumento de coleta de dados foi validado por meio de pré-testes junto a pesquisadores com experiência sobre a teoria em questão.
Tal validação analisou a clareza dos itens, a pertinência prática, a relevância teórica, bem como foi realizada uma apreciação geral sobre o conteúdo dos itens, respeitando o processo de validação qualitativo de métricas apregoado por Cassepp-Borges et al. (2010).
Na sequência, o instrumento de coleta de dados foi disponibilizado nas comunidades/páginas supracitadas, em dezembro de 2019 e janeiro de 2020, totalizando uma amostra de 210 respondentes válidos. Ademais, a pesquisa foi aplicada em âmbito nacional, adotando-se o critério de publicações diárias do instrumento. Durante as publicações, antes do link de acesso para o instrumento, explicitou-se o termo de consentimento livre esclarecido, em que havia um texto que convidava para participar da pesquisa, seguido de uma explicação da finalidade da pesquisa, sua característica acadêmica, anonimato, questões éticas, entre outros aspectos, bem como o esclarecimento de que, para participar, era necessário se identificar como pertencente ao público LGBTQIA+.
A análise dos dados fez uso de estatísticas descritivas e da técnica não paramétrica de correlação de Spearman. A estatística descritiva, de acordo com Silvestre (2007), "é constituída pelo conjunto de métodos destinado à organização e a descrição dos dados por meio de indicadores sintéticos ou sumários" (p. 4). Nesse caso, empregam-se os cálculos de média aritmética (escore médio) e de porcentagem dos dados. A opção pela técnica não paramétrica de correlação foi feita, pois os dados não apresentaram distribuição normal (Field, 2018).
Resultados e discussões
Esta seção está estruturada em duas partes. Inicialmente, apresenta-se o perfil sociodemográfico dos respondentes; na sequência, discutem-se a intensidade de discriminação percebida e as consequências emocionais.
Perfil sociodemográfico
Os resultados da análise descritiva das variáveis socio-demográficas indicam uma proeminência do sexo biológico masculino (60%), com identidade de gênero homem (56,75%) e orientação sexual homossexual (61,04%). Além disso, pouco mais da metade dos respondentes (50,98%) se situa no intervalo de faixa etária de 15 a 26 anos; 62% é o somatório do grau de instrução superior incompleto e completo; 45,79% têm ocupação estudante/estagiário, com uma renda que varia de R$ 998,00 (USD$ 185,48) até R$ 2.994,00 (USD$ 556,44)2, isto é, 72,40%, e status de relacionamento solteiro(a) (44,63%), seguido de relacionamento sério (28,22%).
No que se refere à representação geográfica dos respondentes, observa-se a distribuição em diversos estados nacionais, sendo que a maior adesão foi Santa Catarina (41,23%), seguida por Paraná (12,55%) e Minas Gerais (11,42%).
Assim, a sumarização do perfil sociodemográfico indica que não necessariamente pessoas do sexo biológico masculino (60%) se identificam com a identidade de gênero "homem" (56,75%), corroborando a afirmação de que sexo biológico e identidade de gênero podem ser independentes, como enfatizam American Psychological Association (2008), Butler e Rios (2009) e Reis (2018). Caracteriza ainda uma população jovem, pertencente às classes C e B3, com predominância de formação no ensino superior.
Intensidade de discriminação e consequências emocionais
Em se tratando dos possíveis atos de discriminação percebidos pelo público LGBTQIA+, foi requisitado aos participantes da pesquisa que considerassem o atendimento recebido, comparando-o com o atendimento do público em geral. Além disso, foi postulado aos respondentes que pensassem em todas as suas relações de consumo/atendimento, em lojas de varejo ou serviços, ocorridas nos últimos 12 meses. Com base em suas respostas, foram formulados os gráficos a seguir.
O primeiro bloco de questões se refere aos atos de discriminação explícita, conforme pode ser observado na figura 1.
No contexto da discriminação explícita, caracterizada por Rosenbaum e Montoya (2007) e Walsh (2009) como a que envolve situações e momentos constrangedores (manifestações declaradas, evidentes, claras e diretas) ao cliente, constatou-se sua baixa percepção em suas formas de apresentação. A saber, 71,4% declararam não ter sofrido agressão verbal por parte dos funcionários; 78,5% afirmam não ter recebido insultos por sua condição sexual; 79,5% apontaram não ter sido alvo de humilhação; 68,5% dos respondentes assinalaram que não houve a ocorrência de atitude ofensiva por parte dos funcionários; de forma geral, 69% salientaram que não experienciaram nenhuma ocorrência explícita de discriminação.
Tais resultados podem ser justificados pela tratativa legal da homofobia no Brasil, pois, apesar de não haver uma lei própria para tal ato discriminatório, desde o dia 13 de junho de 2019, a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), homofobia e transfobia passaram a ser enquadradas como crime de racismo, com pena prevista de até cinco anos de reclusão do agressor, a depender da gravidade do caso (Lima & Lima, 2020).
Para além desse fato, outro ponto que pode justificar a não percepção de discriminação explícita ampara-se nas respostas dos participantes deste estudo quanto a evitar situações de risco, por temer serem vítimas de violência, preconceito e discriminação. Assim, constata-se a existência de um comportamento preventivo por parte do público LGBTQIA+, bem como a adoção de estratégias específicas de sobrevivência, entre elas, a mais ressaltada é a de negação da sua própria condição sexual, em que muitos afirmam que "não posso ser eu".
O segundo bloco de questões concerne aos atos de discriminação no atendimento propriamente dito, conforme pode ser observado na figura 2.
No nível do atendimento, Klinner e Walsh (2013) ressaltam que tal discriminação pode ser percebida a partir do mau atendimento como um todo, por parte dos funcionários e atendentes do estabelecimento de serviço. Nesse sentido, os resultados da presente pesquisa evidenciam que essa discriminação não se apresenta como prevalente em nenhuma das situações em estudo. Segundo os dados cole-tados, 54,7% discordam que os funcionários não atendem suas necessidades; 58,5% não passaram por nenhuma situação de atendimento desrespeitoso; 59% discordam que os funcionários tenham sido pouco acessíveis, ou que tenham os deixado esperando mais para serem atendidos (53,8%); ou, ainda, 56,6% negam ter recebido um atendimento inferior por se identificarem como LGBTQIA+.
No entanto, é válido ressaltar que, quanto à variável "Atendimento inferior por eu me identificar como LGBTQIA+", 5,7% e 17,8% dos participantes classificaram a discriminação como elevada ou muito elevada, respectivamente. A partir dessas evidências, conjectura-se que o objeto da discriminação pode estar relacionado à diversidade de gê-nero e sexual, o que corrobora com os achados do estudo de Cardoso e Rocha (2020).
A não percepção de discriminação no atendimento pelos respondentes desta pesquisa pode ser justificada por alguns fatores do contexto brasileiro. Além da criminalização da homofobia e da transfobia no Brasil, a partir de junho de 2019, como já citado anteriormente, ressalta-se que, antes de tal fato, já havia registros do enquadramento da homofobia em casos de discriminação como dano moral e/ ou material por parte dos magistrados brasileiros, levando alguns estabelecimentos a indenizarem clientes LGBTQIA+ que se sentiram lesados em suas experiências de consumo (O Globo, 2018; ConJur, 2019).
Outro ponto importante de ser frisado refere-se à necessidade de se considerar o alto potencial lucrativo que o público LGBTQIA+ pode trazer para os estabelecimentos comerciais que os recepcionarem da melhor forma, como apontam as pesquisas de Silva et al. (2018), Boyd et al. (2020) e Rosenbaum et al. (2021).
Dessa forma, em consonância com a regra tácita de que os atendentes devem tratar seus clientes como gostariam de ser tratados, as empresas devem buscar aprimorar sua qualidade no atendimento ao passo em que constroem boas experiências e geram satisfação de seus clientes, objetivando sua fidelização e boa propagação do marketing boca a boca.
Por fim, o terceiro bloco de questões investigou a discriminação sutil, conforme pode ser observado na figura 3.
Quanto a esse tipo de discriminação, ressalta-se que, assim como caracterizada por Rosenbaum e Montoya (2007), Walsh (2009) e Klinner e Walsh (2013), ela pode ser dificilmente reconhecível para quem não a está sofrendo, mas mostra-se indubitavelmente percebida por quem a recebe. Nesse cenário, os dados da pesquisa evidenciam que a percepção de formas sutis de discriminação é a que apresenta a maior intensidade de discriminação geral, quando compara a discriminação explícita (figura 1) e no nível do atendimento (figura 2). Além de, numa análise global, utilizando a comparação antes mencionada, também ser a que apresenta o maior nível de discriminação percebida pelo público LGBTQIA+.
Em se tratando dos dados obtidos, observa-se que, apesar de 34,2% não perceberem discriminação em formas sutis, 36,1% não identificarem discriminação por olhares depreciativos e 55,7% afirmarem não ter percebido discriminação por tom de voz grosseiro e discriminatório.
Houve um percentual considerável de participantes que afirmaram ter percebido tais situações em intensidade baixa (25,7%, 22,8% e 23,8%, respectivamente) e média (24,7%, 25,5% e 14,2%, respectivamente).
No que se refere à intensidade baixa, 25,7% dos participantes identificaram esse nível em formas sutis de discriminação, 22,8% em forma de olhar depreciativa e 23,8% acerca de tom de voz grosseiro e discriminatório. Já a percepção da intensidade média de discriminação foi assinalada como 24,7% (formas sutis), 25,2% (olhar depreciativo) e 14,2% (tom de voz grosseiro e discriminativo).
Os dados discutidos na presente análise indicam destaque para os níveis que variam entre nenhum, baixo e médio de discriminação, e a discriminação sutil é a mais percebida. Ademais, o constructo com maior intensidade de discriminação percebida pelos consumidores LGBTQIA+, muito elevada, refere-se à dimensão de discriminação no nível do atendimento, a saber: atendimento inferior por eu me identificar como LGBTQIA+.
Sob esse enfoque, uma perspectiva de minimização sugere que membros de grupos minoritários negam ou deixam de reconhecer que eles são alvos de discriminação. Como resultado, os clientes (gays e lésbicas) tendem a minimizar a discriminação direcionada a eles pessoalmente, enquanto permanecem vigilantes quanto à discriminação que é dirigida contra o seu grupo como um todo (Ro & Olson, 2020). Ao encontro disso e corroborando com as evidências aqui expostas, Corrigan e Matthews (2003) e Meisenbach (2010) afirmam que clientes LGBTQIA+ mascaram sua orientação sexual quando interagem com funcionários de serviços e percebem um "clima social" de heteronorma-tividade. Esse comportamento visa evitar censura, condenação e permite resguardar conflitos ou outras situações negativas, a fim de se distanciar de estigma e discriminação.
Para mais, é salutar ressaltar que 30% dos entrevistados que assinalaram ter percebido níveis nenhum e baixo de discriminação afirmaram "não se assumir/manifestar/caracterizar como pertencente ao público LGBTQIA+", justamente para não sofrer nenhum tipo de discriminação.
Diferentemente de outros públicos minoritários que não têm como encobrir o motivo do preconceito, por exemplo, pessoas negras, quanto à discriminação racial (racismo), ou pessoas gordas, quanto à discriminação corporal (gor-dofobia), o público LGBTQIA+ muitas vezes o faz para evitar maiores agravos, conforme observa-se na fala dos respondentes: "eu noto que em alguns lugares eu tento parecer hétero justamente para não sofrer preconceito das pessoas"; "não sou agredido diretamente, pois não tenho o 'traço visível' que desperte no outro o comportamento discriminatório"; "acredito que pessoas 'mais discretas' com relação a isso sofram menos ataques preconceituosos que pessoas que fazem questão de expressar isso, seja o comportamento, seja vestuário, seja companhia etc."; "para a maior parte das respostas respondi baixo ou nenhum, pois, mesmo pertencendo à comunidade LGBTQIA+, ainda me encaixo dentro de um padrão, portanto não recebo muitos olhares ou discriminações durante atendimento. No entanto, essa discriminação é bem evidente com outras pessoas da comunidade, e isso eu percebo constantemente". Esses comentários foram filtrados de alguns respondentes que voluntariamente expressaram na pergunta aberta do instrumento de coleta de dados, pontos ricos que reforçam os dados.
As pesquisas de Ro e Olson (2020) contribuem para o entendimento dos níveis nenhum e baixo de discriminação percebida, pois, segundo os autores, isso é advindo do fato de existir, por parte de gays e lésbicas, uma estratégia de gerenciamento de identidade, a estratégia de aprovação, a qual inclui "esconder" a orientação sexual, evitar perguntas pessoais e "comportar-se" como heterossexual; muitos ficam "no armário" para evitar problemas físicos, desaprovação social e discriminação. Ao se "comportarem" propositalmente como heterossexuais, em situações de consumo, clientes LGBTQIA+ percebem menos, sofrem menos e/ou minimizam atitudes potencialmente discriminatórias.
Além disso, o espaço do instrumento de coleta de dados intitulado "Deixe seus comentários, críticas e sugestões" proporcionou informações importantes. A partir de uma análise de conteúdo das respostas nesse espaço e do cruzamento dessas respostas com os dados quantitativos obtidos no survey, pode-se inferir que pessoas mais velhas e pertencentes a classes sociais A e B sofrem menos discriminação do que jovens e pertencentes a classes sociais c e D. A discriminação também é menos comum entre mulheres, pessoas brancas e com maior grau de instrução.
Outro fator importante colocado se refere ao fato de cidades grandes serem bem menos discriminatórias, quando comparadas a cidades menores. Além disso, que atos discriminatórios acontecem, sobretudo, em espaços públicos. Outra questão apontada pelos participantes da pesquisa foi a falta de treinamento de funcionários e pessoas envolvidas no atendimento; segundo eles, falta capacitação, debate, conscientização e esclarecimento.
Mediante os très tipos de discriminação percebida, Klinner e Walsh (2013) colocam que existem dois resultados emocionais principais, os quais são a frustração e o desamparo. As decorrèncias envolvidas com a frustação são: frustrado/desapontado, irritado/com raiva e desconfortável/receoso. Por sua vez, as repercussões do desamparo são vulnerável/indefeso, impotente/incapaz e derrotado/ subjugado. Assim, a tabela 2 demostra a frequência das principais consequências emocionais evidenciadas na presente pesquisa.
Consequências emocionais | Frequência (%) | ||||
---|---|---|---|---|---|
Nenhuma | Baixa | Média | Elevada | Muito elevada | |
Desconfortável/receoso | 26% | 19% | 23% | 19% | 13% |
Frustrado/desapontado | 30% | 20% | 19% | 20% | 11% |
Irritado/com raiva | 33% | 19% | 18% | 15% | 15% |
Vulnerável/indefeso | 30% | 20% | 20% | 15% | 16% |
Impotente/incapaz | 34% | 22% | 16% | 10% | 17% |
Derrotado/subjugado | 42% | 24% | 11% | 10% | 12% |
Fonte: elaboração própria.
As evidências apontam que, em todas as decorrências da frustração e do desamparo, os respondentes apontam, em sua maioria (isto é, mais de 50%) intensidade baixa ou nenhuma, com exceção apenas do desconforto e do receio, que aparecem com frequência média, como a segunda mais prevalente. Ainda assim, observou-se baixa percepção de consequências emocionais quanto à discriminação percebida pelo público LGBTQIA+, o que pode ser justificado pela baixa ou inexistente percepção de discriminação sofrida pelos respondentes deste estudo nos últimos 12 meses, como apresentado anteriormente.
Na sequência, optou-se pela aplicação da técnica de correlação bivariada de Spearman, como alternativa não paramétrica para observar o nível de correlação entre as variáveis "Discriminação explícita", "Discriminação no nível do atendimento", "Discriminação sutil", "Desamparo" e "Frustração". A matriz de correlação pode ser observada na tabela 3.
Fatores | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 |
---|---|---|---|---|---|
1. Discriminação explícita | 1 | ||||
2. Discriminação no nível de serviço | 0,66** | 1 | |||
3. Discriminação sutil | 0,60** | 0,71** | 1 | ||
4. Desamparo | 0,41** | 0,40** | 0,46** | 1 | |
5. Frustração | 0,43** | 0,44** | 0,54** | 0,77** | 1 |
Nota: ** a correlação é significativa no nível 0,01.
Fonte: elaboração própria.
Nos coeficientes de correlação supracitados, valores acima de 0,50 são considerados altos, e valores entre 0,30 e 0,50 são considerados médios (Field, 2018). Assim, a correlação das variáveis de discriminação com o desamparo e a frustração é média (<0,50), com exceção da correlação entre discriminação sutil e frustração, considerada alta (>0,50).
Conclusões
A conduta homofóbica é ato atentatório ao artigo 3°, IV, da Constituição federal, o qual descreve como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Portanto, cabe à sociedade, às ciências sociais, ao judiciário (em especial), entre outros, posicionar-se contra o extremismo imposto pelo conservadorismo e pela ortodoxia, punindo qualquer iniciativa de perseguição e hostilidade contra quem assume posição sexual diversa do padrão modelar heteronormativo, garantindo a todos o direito à convivência, cumprindo a promessa constitucional de igualdade e de organização da sociedade com vistas à felicidade.
Sob esse enfoque, o objetivo do presente estudo foi verificar as relações entre a discriminação percebida pelos consumidores LGBTQIA+ e as consequências emocionais (frustração e desamparo) do processo de consumo discriminatório. Isso posto, os resultados obtidos indicam baixa ou nenhuma percepção de discriminação explícita ou no nível do serviço, enquanto a discriminação sutil é percebida em nível médio, baixo ou nenhum pelos respondentes deste estudo. O desenho correlacional do estudo não permite a afirmação de que a discriminação (antecedente) se encontra associada causalmente à frustração e ao desamparo (consequentes), mas indica que essas variáveis são correlacionadas.
Os resultados também fornecem evidências empíricas de que a discriminação sutil é a mais notada. Ademais, o cons-tructo com maior intensidade de discriminação percebida pelos clientes LGBTQIA+ está contemplado na dimensão de discriminação no nível do atendimento, a saber: atendimento inferior por eu me identificar como LGBTQIA+ (17,8%).
Nesse ínterim, uma análise superficial dos resultados poderia indicar que os níveis de discriminação observados são baixos e, por isso, aceitáveis, enquanto, na verdade, eles sugerem a existência de discriminação. Em uma sociedade ideal, a intensidade de discriminação percebida conjecturável seria "nenhuma". Portanto, é salutar compreender que, uma vez percebida a discriminação, ainda que em níveis mais baixos, o indivíduo discriminado não apenas desenvolve emoções negativas, como também, em outros momentos em que tal consumo seja necessário, começa a dispender e perceber sacrifícios para realizar tais atos de consumo, o que pode significar em uma diminuição gradativa, e até exclusão total, de tal prática de consumo num futuro próximo.
Tais resultados apontam para a necessidade de mais estudos e pesquisas que coloquem em pauta, debatam e ampliem o entendimento sobre o tema. De tal forma que possam apoiar o fomento de políticas públicas e ações governamentais de combate à violência às pessoas LGBTQIA+; o desenvolvimento de estratégias para a conscientização da população; alicerçar os profissionais e pesquisadores de marketing quanto a experiências de consumo negativas de clientes minoritários e vulneráveis; qualificar e preparar as empresas para gerir o combate à discriminação, entre outros.
Do ponto de vista das implicações gerenciais, são necessárias reflexões coletivas acerca dos danos da discriminação à saúde mental da vítima e à economia das empresas, políticas antidiscriminatórias, políticas e ações de promoção da inclusão e diversidade, além de práticas de gerenciamento de atendimento. A gestão e os profissionais de marketing devem compreender a experiência LGBTQIA+ em seus pontos de venda e se esforçarem para a inclusão e a igualdade (Boyd et al., 2020). Esforços organizacionais, como treinamentos, sistemas de gerenciamento da discriminação, e práticas de gerenciamento das relações de consumo podem ajudar a aumentar a conscientização sobre práticas discriminatórias e diminuí-las (Ro & Olson, 2020).
Dito isso, é válido possibilitar a construção coletiva do conhecimento a respeito do sistema moderno/colonial cis-hétero-branco/heteronormativo que normatiza as práticas sociais, mercadológicas, discursos, relações, instituições e subjetividades. Nesse sentido, é oportuno trazer para o marketing uma perspectiva decolonial e interseccional, o que implica que toda a diversidade de raça, gê-nero, identidade de gênero e orientação sexual, ocupe o lugar de sujeitos de pesquisa.
Finalmente, nota-se que estudo não esgotou a literatura sobre o tema, visto que o corte para a investigação se limitou ao período analisado, bem como a amostra sele-cionada. As discussões aqui apresentadas precisam ser ponderadas com suas limitações e os resultados alcançados não são conclusivos. O delineamento de levantamento é uma limitação intrínseca do estudo, que, como toda pesquisa científica, apresenta limitações. Entretanto, considera-se que, dentro das possibilidades, o estudo apresenta contribuições relevantes para o avanço do conhecimento científico, a partir dos dados e das análises aqui apresentados. Nesse sentido, ressalta-se que, apesar de a amostragem não probabilística impedir a generalização dos dados, o cenário aqui apresentado representa uma realidade vivenciada pelos participantes desta pesquisa e que não deve ser desconsiderada. Por isso, para além dessas limitações, indica-se que uma abordagem amos-tral aleatória (ou aleatória estratificada) deva ser considerada por estudos futuros. Sugere-se ainda a realização de estudos experimentais para o alcance de evidências de causalidade.
Embora esta pesquisa tenha buscado aumentar a compreensão das experiências de consumo discriminatórias de clientes LGBTQIA+, ainda restam muitas lacunas sobre a extensão da discriminação do consumidor e quais seriam os métodos eficazes para identificar e reduzir as consequências negativas. Nesse ínterim e com base nas limitações do presente estudo, seguem algumas sugestões de pesquisas futuras.
Primeiro, seria interessante ampliar os estudos de discriminação percebida por clientes LGBTQIA+ no sentido de incluir a discriminação cometida por outros clientes no ambiente de consumo. Para mais, sugerem-se investigações que foquem em como os funcionários LGBTQIA+, de serviços e varejo, podem enfrentar interações discriminatórias com os clientes no momento do atendimento. Segundo, novas pesquisas poderiam examinar os fatores individuais e situacionais que levam as pessoas LGBTQIA+ a escolher estratégias de gerenciamento de identidade e as consequências potencialmente discriminatórias delas no processo de consumo. Em terceiro lugar, a pluralidade e a diversidade presentes dentro da comunidade LGBTQIA+ incitam uma compreensão mais aprofundada das diferentes experiências discriminatórias de consumo, por exemplo, as diferenças de percepção e os níveis de discriminação explícita, no atendimento e sutil entre lésbicas, gays, transexuais, transgêneros, travestis e queers. Em quarto lugar, é necessário o desenvolvimento de literatura académica em marketing sobre minorias, diversidade, discriminação, vulnerabilidade, marginalização e estigmatização do consumidor, com foco na incorporação das diferenças entre "exclusão" e "falta de inclusão". Em quinto lugar, são necessárias investigações qualitativas que possibilitem uma compreensão mais profunda e detalhada do tema. Por fim, são incentivadas iniciativas de pesquisas de construção e adaptação de instrumentos/métricas voltados à discriminação percebida pelo público LGBTQIA+.