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Revista Colombiana de Psicología

Print version ISSN 0121-5469

Rev. colomb. psicol. vol.25 no.2 Bogotá July/Dec. 2016

https://doi.org/10.15446/rcp.v25n2.51980 

Doi: http://dx.doi.org/10.15446/rcp.v25n2.51980

Comunidade e Resistência à Humilhação Social: Desafios para a Psicologia Social Comunitária

Community and Resistance to Social Humiliation: Challenges for Community Social Psychology

Comunidad y Resistencia a la Humillación Social: Retos para la Psicología Social Comunitaria

BERNARDO PARODI SVARTMAN
LUÍS GUILHERME GALEÃO-SILVA
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Como citar o artigo: Svartman, B. P. & Galeão-Silva, L. G. (2016). Comunidade e resistência à humilhação social: desafios para a psicologia social comunitária. Revista Colombiana de Psicología, 25(2), 331-349. doi: 10.15446/rcp.v25n2.51980

A correspondência relacionada com este artigo deve estar dirigida ao Dr. Bernardo Svartman, e-mail: bernardo@usp.br ou luisgaleao@usp.br. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, bloco a, sala 103. São Paulo, SP. CEP 05508-030.

ARTIGO DE REFLEXÃO
RECEBIDO: 21 DE JULHO DE 2015 - ACEITO: 28 DE ABRIL DE 2016


Resumo

Este artigo apresentará uma reflexão sobre as características e os desafios presentes no campo da psicologia social comunitária contemporânea. Partindo de uma análise sobre o contexto histórico de surgimento e desenvolvimento da disciplina no Brasil e tomando como referência as pesquisas referentes à humilhação social, discutiremos 3 sentidos do conceito de comunidade que podem orientar as atuais experiências de pesquisa e intervenção: como horizonte ético de convivência, como espaço coletivo de elaboração do sofrimento da humilhação social e como orientação utópica de crítica e transformação social. Concluímos argumentando que esses 3 sentidos de comunidade ajudam a embasar as atuações de psicólogos comunitários junto aos movimentos sociais, em práticas de educação popular e nas políticas públicas de saúde, cultura e assistência social.

Palavras-chave: Psicologia social comunitária, comunidade, humilhação social, transformação social.


Abstract

This article reflects on the characteristics and challenges present in the field of contemporary community social psychology. From an analysis of the historical context of the rise and development of the discipline in Brazil and using research on social humiliation as reference, we discuss three senses of the concept of community that can orient present research and intervention experiences: as a co-existence ethical horizon, as a collective space for coping with social humiliation, and as a utopic orientation of social criticism and transformation. We conclude that these three senses of community help form the basis for the actions of community psychologists, together with social movements, in the practices of popular education and in public health, culture and social welfare policies.

Keywords: Community, community social psychology, social humiliation, social transformation.


Resumen

El artículo presenta una reflexión acerca de las características y los retos presentes en el campo de la psicología social comunitaria contemporánea. Al partir de un análisis sobre el contexto histórico de surgimiento y desarrollo de la disciplina en Brasil y tomando como referencia las investigaciones referentes a la humillación social, discutiremos 3 sentidos del concepto de comunidad que pueden orientar las actuales experiencias de investigación e intervención: como horizonte ético de convivencia, como espacio colectivo de elaboración del sufrimiento de la humillación social y como orientación utópica de crítica y transformación social. Concluimos argumentado que estos 3 sentidos de comunidad ayudan a formar la base de las actuaciones de psicólogos comunitarios junto a los movimientos sociales, en prácticas de educación popular y en las políticas públicas de salud, cultura y asistencia social.

Palabras clave: Psicología social comunitaria, comunidad, humillación social, transformación social.


O Campo da Psicologia Social Comunitária: Relações entre sua História e os Desafios Contemporâneos de Atuação

Este artigo discutirá as relações entre o conceito de comunidade e os principais desafios de atuação e pesquisa presentes no campo da psicologia social comunitária contemporânea. A reflexão a respeito desse assunto envolve necessariamente a investigação da história de formação e desenvolvimento dessa área de conhecimento: como se trata de uma psicologia realizada em contextos políticos específicos e que pressupõe a participação ativa de diversos atores e lideranças comunitárias na realização de pesquisas ou intervenções, suas características são delineadas numa relação íntima com o momento histórico na qual se constrói. A história da psicologia comunitária será, por essa razão, pluralista, fazendo com que o relato e a discussão dessas diferentes histórias tornem-se um elemento fundamental para o desenvolvimento da própria disciplina (Kelly & Chang, 2008). As transformações do contexto político desde seu nascimento determinaram que os problemas enfrentados pelos psicólogos comunitários contenham simultaneamente elementos de continuidade e ruptura, e isso se reflete na elaboração de novas formas de atuação e na produção de novos conhecimentos. A partir dessa análise da história da disciplina, discutiremos o entrelaçamento de três dimensões do conceito de comunidade, descritos abaixo, que seguem atuais e podem ajudar no planejamento das intervenções e pesquisas contemporâneas.

  1. Comunidade entendida como um espaço de convivência e de sustentação de experiências humanas fundamentais, por isso, espaço fundamentalmente ético de convívio.
  2. Comunidade entendida como espaço de elaboração do sofrimento da humilhação social e, por essa razão, espaço que articula transformações psíquicas a formas de atuação política mais conscientes e organizadas.
  3. Comunidade entendida como horizonte utópico inspirador de transformações sociais, como ideal organizador de práticas críticas de educação popular, o que permite a articulação entre os fatores imediatos desencadeadores de luta dos diferentes grupos e a compreensão do funcionamento da totalidade social.

Ao final do artigo, discutiremos exemplos de pesquisas e atuações contemporâneas que se beneficiam da orientação e da articulação oferecida por essas três dimensões do conceito.

Apesar do caráter pluralista da história da psicologia comunitária, como enfatizado anteriormente, a revisão bibliográfica permite identificar alguns elementos que conferem certa unidade ao campo, como por exemplo, o desenvolvimento de trabalhos e pesquisas conduzidos em parceria com as comunidades, o rompimento da tradicional hierarquia de poder-saber presente na academia, a formação de grupos de pesquisa que transcendem os limites e as demarcações das especialidades disciplinares, assim como a utilização e o incentivo do compromisso político coletivo muito mais que a aspiração a uma neutralidade política e ideológica (Freyer, 2008). Todos esses elementos novamente confirmam o núcleo histórico da disciplina e a importância de se investigar suas diferentes histórias de formação, pois essa discussão apoia simultaneamente a criação de novos "futuros potenciais" para o campo (Freyer, 2008).

Justamente pelo fato de que a psicologia comunitária seja devedora do contexto histórico e político no qual se desenvolve, torna-se possível afirmar que algumas características dessa área são comuns no continente latino-americano. Para assinalar essas contribuições e uma certa identidade, passou a ser conhecida como psicologia social comunitária. Essa psicologia busca desde seu nascimento investigar os problemas sociais e políticos que marcam a região e pensar formas de atuação que busquem enfrentar esses problemas (Montero, 2005 Wiesenfeld, 1998). O ciclo de regimes ditatoriais que assolou o continente entre as décadas de 1960 e 1980 e que configurou uma nova ordem do colonialismo mundial, representou para Martín-Baró o contexto político que exige pesquisa e intervenção dos psicólogos sociais comunitários. Reconheceu que uma das tarefas da psicologia social nesse contexto de luta contra as novas formas de colonização política e econômica seria a de ajudar a

[...] desmantelar o discurso ideológico que oculta e justifica a violência, desmascarar os interesses de classe que estabelecem a desigualdade social e as atitudes discriminatórias, apontar os mecanismos e racionalizações através dos quais a opressão e a repressão se legitimam e se perpetuam. (Martín-Baró, 2003, p. 218)

Não por acaso seus estudos abrangem assuntos ligados aos impactos da guerra civil em El Salvador e aos efeitos das estratégias de propaganda e do terror político sobre a população. Esse contexto mais geral de surgimento do campo na América Latina encontra elementos em comum com o contexto mais específico no Brasil: compartilhando aspectos da história dos outros países do continente, o contexto político de surgimento da psicologia comunitária no Brasil está ligado à luta pela redemocratização do país durante o período da ditadura civil-militar e isso fez com que suas preocupações fossem mais voltadas para mudanças e transformações sociais, se comparada com a psicologia desenvolvida no hemisfério norte (Góis, 2005; Lane, 1996).

Como afirma Martín-Baró (1990/2009), um dos principais problemas a ser enfrentado pela psicologia na América Latina é a opressão social vivida cotidiana e ancestralmente pelas classes pobres nos países dessa região. Uma pergunta parece ser fundamental para a psicologia social comunitária nascente: a psicologia pode colocar-se a serviço dos grupos sociais oprimidos e fazer outra coisa que não naturalizar e individualizar os efeitos da injustiça social? Sem dúvida, o contexto político e os movimentos sociais dos anos 1960 e 1970 tiveram grande influência sobre esse conjunto de questionamentos e sobre a forma como a psicologia social comunitária buscou elaborar respostas a eles (Andery, 1984; Lane, 1996; Montero, 2006; Sawaia, 1996). Nesse contexto específico de lutas populares contra os regimes ditatoriais e contra as novas formas de colonização econômica e política, a psicologia comunitária descobriu um conjunto de temas que lhe confere identidade: a pesquisa e a atuação engajadas no combate às diversas formas de dominação econômica e política, presentes na desigualdade de classes, na discriminação étnica e racial, de gênero e de orientação sexual. A compreensão desses problemas não só envolve a análise da conjuntura política presente, mas também a análise do desenvolvimento histórico daqueles, muitas vezes remontando ao passado colonial dos países latino-americanos.

Essas preocupações políticas foram acompanhadas por um movimento de crítica à mera importação das teorias das metrópoles e à adesão descontextualizada a seus métodos e conclusões. Os aspectos que marcaram a psicologia social comunitária em seu início foram:

  1. a busca de teorias, métodos e práticas que permitissem fazer uma psicologia que contribuísse não apenas a estudar, mas principalmente a oferecer soluções aos problemas urgentes que afetavam as sociedades latino-americanas (Montero, 2005);
  2. uma crítica à perspectiva subjetivista da psicologia social psicológica e às formas de atuação predominantes (Montero, 2006);
  3. o desenvolvimento e a utilização de metodologias de pesquisa e intervenção (por exemplo, a pesquisa-ação) adequados para se superar a dicotomia entre sujeito e objeto e o problema do caráter descontextualizado da produção acadêmica na área (Montero, 2006).

A partir desses objetivos delimitados inicialmente, duas questões tornam-se fundamentais para o desenvolvimento da disciplina:

  1. como desenvolver a práxis de uma psicologia social crítica, distinguindo-se, portanto, dos modelos que simplesmente replicam as formas de atuação tradicionais dos psicólogos num novo contexto ou simplesmente se caracterizam como formas de militância nas comunidades (Freitas, 1998).
  2. como definir o que é comunidade e os métodos de pesquisa e atuação mais apropriados a esse campo (Freitas, 1998; Gonçalves & Portugal, 2012).

A revisão bibliográfica parece indicar que estes foram os desafios mais importantes encontrados pelos psicólogos ao longo do desenvolvimento da disciplina.

A investigação de sofrimentos gerados pelos mecanismos de dominação e opressão social assim como dos processos comunitários pelos quais são enfrentados, tema delimitado na própria formação da disciplina, determinou que a discussão das transformações históricas de seu próprio objeto se apresentasse como uma tarefa permanente para o campo (Scarparo & Guareschi, 2007). Passados agora mais de cinco décadas do surgimento da psicologia comunitária, é possível perceber que os desafios conceituais ligados ao seu nascimento ainda são atuais e exigem uma reflexão ligada às transformações sociais e políticas contemporâneas.

Se no momento de nascimento da psicologia social comunitária as políticas públicas não estavam voltadas para a garantia de acesso da população aos direitos sociais básicos (Gonçalves, 2010), a partir da redemocratização ocorrida no Brasil no final da década de 1980, novos campos de atuação, diretamente ligados às políticas públicas de saúde, cultura, garantia de direitos e de assistência social, abriram-se para os psicólogos sociais comunitários. Nesses campos, torna-se um desafio atual pensar como sua atuação pode estimular a formação de espaços de participação, espaços capazes de articular a afirmação dos direitos sociais e políticos e a manutenção da luta contra a opressão social. Como afirmam diversos estudiosos desse contexto político contemporâneo, os problemas da desigualdade e da dominação não desaparecem com o fim da ditadura. Na realidade, esse período histórico deixou várias marcas de continuidade na vida social e política, que, acompanhados pelo desenvolvimento de uma política econômica neoliberal ao longo dos anos 1990, determinam no seu conjunto importantes entraves às conquistas de direitos sociais e políticos (Teles & Safatle, 2010). Surge, a partir de então, um problema de pesquisa atual no campo da psicologia social comunitária que também encontra correspondência nos demais países da América Latina: como investigar e compreender as demandas de participação popular na gestão da vida pública e na formulação de políticas que representem efetivamente a garantia de direitos no campo da saúde, da educação, da cultura e da assistência social?

A psicologia comunitária contemporânea começa a sistematizar suas contribuições na compreensão e no desenvolvimento da participação popular no âmbito de políticas públicas sociais, não apenas no Brasil, mas também em outros países da América Latina (Ansara & Dantas, 2010; Inzunza & Constanzo, 2009; Rodríguez, 2013; Ximenes, Cidade, & Nepomuceno, 2015). No entanto, como é possível observar nessas pesquisas, mesmo nos casos em que existe a intenção de estimular a participação popular no planejamento e na execução das políticas públicas por parte de um governo, isso não significa a ausência de contradições e conflitos entre os princípios da psicologia comunitária e a efetivação de tais políticas. Os estudos recentes apresentam e discutem o campo de conflitos no qual se desenvolvem as políticas públicas, determinando como um desafio para os psicólogos a busca de uma prática que potencialize "processos interacionais alinhavados pelo diálogo e pela colaboração entre uma heterogeneidade de atores sociais" (Ximenes, Paula, & Barros, 2009, p. 698).

Apresentaremos a seguir uma breve discussão sobre como os principais movimentos sociais surgidos no Brasil ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980 ajudaram a construir, conforme expressão de Maritza Montero (2005), uma certa "cultura comunitária" que irá influenciar as características da psicologia comunitária nascente e os movimentos sociais e as instituições que se apresentam atualmente como campos importantes de atuação e pesquisa dos psicólogos comunitários. Essa influência se revela inicialmente na maneira pela qual as práticas de resistência desses movimentos tornaram visíveis sofrimentos que são políticos (Carreteiro, 2003; Gonçalves, 1998; Sawaia, 1999) e evidenciaram mecanismos de dominação presentes na vida cotidiana. Apesar das variadas e importantes contribuições à investigação desses sofrimentos políticos no campo da psicologia social e comunitária, escolhemos, neste artigo, aprofundar a análise do problema da humilhação social, tal como investigada por José Moura Gonçalves Filho (1988, 2007). Pretendemos, a seguir, analisar as relações entre esse fenômeno e as práticas comunitárias de resistência, de forma a permitir a formulação de um conceito operativo de comunidade. Por último, pretendemos discutir as consequências dessas formulações para a atuação e a pesquisa contemporânea. Essa recuperação histórica justifica-se pelo fato de que quase todos os atuais campos de atuação e pesquisa se relacionam de maneira profunda com esses movimentos surgidos no período de consolidação da disciplina, seja porque alguns movimentos sociais contemporâneos surgem como síntese de continuidade e transformação daqueles, seja porque as políticas públicas na área da saúde, cultura e assistência social (campos que se abrem atualmente para a atuação dos psicólogos comunitários) foram, em alguma medida, influenciadas pelas suas lutas. Dessa forma, poderemos analisar os elementos de continuidade e ruptura que os próprios desafios políticos impuseram ao desenvolvimento do campo da psicologia comunitária.

As Lutas Populares nas Décadas de 1960 a 1980 e suas Influências na Consolidação e nas Atuações Contemporâneas da Psicologia Social Comunitária no Brasil

O contexto de resistência à ditadura civil-militar definiu em grande medida os objetivos e as características das lutas populares nesse período. A literatura que aborda os movimentos sociais brasileiros nas décadas de 19060 a 1980 revela que a extrema repressão política do período bloqueou os canais institucionais de representação popular (partidos, câmaras legislativas, sindicatos ou associações de massas), fazendo com que a expressão das lutas populares tivesse que se reorganizar à margem das vias institucionais (Brant, 1983). Esse contexto de extrema repressão política e de bloqueio da representação institucional teve uma série de consequências, como por exemplo, a fragmentação da expressão política dos interesses populares (gerada pela dificuldade de centralização dos conflitos e de comunicação entre os movimentos) e a formação de grupos de base apoiados em laços primários de solidariedade (laços de parentesco, vizinhança, compadrio ou amizade) que permitiam certa proteção imediata ante o clima social de medo (Brant, 1983).

Outro ponto fundamental para a compreensão das características dos movimentos sociais do período é o fato de que, nesse contexto político, eles precisaram contar com a proteção de instituições reconhecidas para organizarem suas lutas. É nesse sentido que a presença da igreja católica nos bairros pobres da cidade, por meio das comunidades eclesiais de base, foi fundamental para as organizações populares de bairro. Em outros casos, os novos movimentos buscaram transformar por dentro antigos canais de luta cooptados naquele momento pelo poder repressivo, como ocorreu, por exemplo, no surgimento do novo sindicalismo em São Paulo e na região do ABC (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul).

No caso dos movimentos sociais que contaram com o apoio de instituições sociais consolidadas, é importante observar que a reformulação discursiva e prática dessas instituições trouxe consequências para as formas de organização popular do período. Este é o caso dos movimentos sociais ligados direta ou indiretamente às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os teólogos, militantes e estudiosos leigos descrevem uma íntima relação entre movimentos sociais da década de 1960 e 1970, movimentos que poderiam ser descritos como "cristianismo para libertação", e o nascimento da teologia da libertação (Löwy, 1991). É notável a grande influência de certos elementos da análise marxista sobre a forma como a teologia é pensada e colocada em prática (Betto & Boff, 2010). As práticas das CEBs e das pastorais são inspiradas, num movimento dialético, por uma visão do cristianismo que não pode ser conciliada com as estruturas injustas da sociedade. Por essa razão, sua prática está ligada à participação local e à auto-organização da população que luta pela sua libertação e rejeita formas vanguardistas de militância.

No contexto histórico específico da ditadura brasileira, o papel das CEBs será, a partir de então, fundamental. Elas permitiram a discussão dos problemas vividos cotidianamente pelas pessoas nos bairros periféricos, incentivaram uma forma de participação popular na reivindicação de melhorias para os bairros e deram respaldo às manifestações de insatisfação, às reivindicações junto ao poder público e às discussões críticas sobre o período político. O principal ganho psicossocial de seu funcionamento se refere à proteção e à visibilidade social e política que conferiram aos movimentos populares contestatórios num período de extrema repressão política. Como afirma Vera Silva Telles (1994): "eram percebidos [os movimentos populares e especificamente as CEBs ] como algo que parecia romper com uma realidade instituída na qual o sentimento de impotência e descrença nas possibilidades de interferência nas condições dadas, de trabalho e de vida, era predominante" (p. 238). A matriz de pensamento da teologia da libertação e sua principal forma de atuação, as CEBs, tiveram uma grande importância sobre o quadro atual dos movimentos sociais e sobre as perspectivas de atuação dos psicólogos sociais comunitários. Por um lado, importantes movimentos sociais contemporâneos nasceram apoiando-se nesse espaço aglutinador, como o próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST) e sua relação com a pastoral da terra, assim como vários Fóruns Sociais nas metrópoles (entidades que organizam as lutas dos movimentos sociais de um mesmo território) também tiveram sua origem ligada a esses espaços. Essa corrente teve uma importante influência na conformação atual da psicologia social comunitária a partir da formação de uma psicologia da libertação e do desenvolvimento dela na direção de uma Escola da Libertação (Goes, Ximenes, & Moura Jr., 2015).

Com relação às formas de militância dos grupos de esquerda, independentemente da delimitação dos campos de alianças políticas definidas por cada organização, houve um claro movimento no sentido de ligar-se às formas elementares de reaglutinação do movimento operário e, em menor medida, da organização popular nos bairros (Sader, 1988; Telles, 1994). A educação popular foi uma das maneiras encontradas para realizar esse processo. Mesmo que a maioria dos militantes marxistas não concordasse plenamente com as formulações e as práticas da pedagogia proposta por Paulo Freire, a possibilidade de trabalhar no campo da alfabetização ao mesmo tempo que se buscava formas de conscientização política nas organizações de base, aproximou as novas formas de militância de esquerda e as atividades de educação popular. Dessa forma, os militantes sobreviventes de grupos revolucionários desorganizados nesse momento juntam-se às práticas de educação popular nas organizações de bairro e nas oposições sindicais para começar um trabalho de base e introduzem, nesse campo, análises marxistas da conjuntura social (Sader, 1998). Essa aproximação entre as novas formas de militância de esquerda e as práticas de educação popular lançaram um desafio que poderia ser entendido como um princípio de coerência: os meios de realização de militância não podem ser contraditórios quanto aos seus fins, e isso exigiu a elaboração de práticas de educação inovadoras e relacionadas às atividades comunitárias de resistência política.

Além desses três importantes movimentos citados, um outro grupo de movimentos sociais também terá importante influência sobre as características atuais do campo da psicologia social comunitária: o movimento da reforma sanitária, da luta antimanicomial e a militância para construção e implementação do Sistema Único de Saúde (SUS)1. Contribuindo para enfrentar o regime militar, as lutas de coletivos organizados pela construção de políticas públicas de caráter democrático no campo da saúde coletiva e no campo da saúde mental também tiveram o papel de introduzir noções como as de controle social, participação popular e atividades comunitárias nas práticas de saúde. O contexto de luta política do período influenciou novas discussões sobre as relações entre saúde mental, exercício de cidadania, justiça social e práticas coletivas, o que promoveu ações e reflexões inovadoras nessa área (Scarparo, 2005, p. 142). Nesse processo de constituição do sus e mais especificamente da luta antimanicomial, forma-se um campo de conflitos entre projetos e concepções de saúde pública, forma-se uma "arena de disputa política" (Scarcelli & Junqueira, 2011), que introduz no campo da psicologia a necessidade de uma reflexão sobre os princípios a serem adotados no acesso a saúde: universalidade, equidade e integralidade. Logo, alguns desafios surgem na elaboração das práticas dos psicólogos no âmbito da saúde coletiva, como por exemplo, o desafio de estabelecer uma forma de atuação que não seja meramente "complementar" às formas já estabelecidas de saber e fazer nesse campo (Scarcelli & Junqueira, 2011).

Nessa confluência de novos atores e lutas políticas, os psicólogos são confrontados com a necessidade de melhor compreender sofrimentos que são politicamente determinados, ou seja, gerados por situações de dominação ou opressão social. Além disso, a noção de comunidade se apresenta inicialmente ligada a processos coletivos de resistência e de luta pelo direito à cidade, e isso pressupõe uma luta contra as forças que impedem o acesso a direitos sociais básicos (como moradia, saúde, cultura) e algum nível de compreensão, ainda que inicial, dos mecanismos pelos quais o capital se apropria do espaço urbano, de sua construção e distribuição de serviços, como mercadorias rentáveis no ciclo de sua reprodução (Harvey, 2014).

Essas matrizes teóricas e práticas estão intimamente relacionadas à conformação do campo contemporâneo de atuação e pesquisa na área.

  1. As CEBs e a teologia da libertação deixaram suas marcas em importantes iniciativas atuais de lutas populares, como o MST e os diversos Fóruns Sociais nas cidades e no campo. Os fóruns sociais se apresentam atualmente como espaços articuladores de diversos grupos e movimentos que lutam para garantir o acesso a direitos fundamentais que se encontram ameaçados.
  2. O novo sindicalismo foi fundamental para apoiar o desenvolvimento da economia solidária, o avanço das pesquisas e as atuações no campo da saúde do trabalhador.
  3. As práticas de educação popular são evocadas pelos Centros de Juventude e Centros da Criança e do Adolescente, sendo que muitas destas instituições surgiram a partir das CEBs e outros movimentos sociais do mesmo período e hoje estão conveniadas às secretarias de assistência social municipais para condução de atividades na proteção social básica e proteção especial.
  4. A reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, com suas associações de usuários e trabalhadores, mantêm-se na luta contra o arrefecimento e o caráter inconcluso da implementação da nova política pública em saúde mental, os quais são muitas vezes causados pelo avanço de formas de privatização e precarização das condições de trabalho nessa área.
  5. Outro aspecto importante é a observação de que essas pautas hoje começaram a estabelecer conexões entre si no seio dos movimentos sociais e instituições: por isso é possível encontrar iniciativas de economia solidária em políticas públicas de saúde mental, práticas de educação popular nas políticas de assistência social e integração de várias lutas por direitos sociais nos Fóruns mencionados.

É preciso levar em conta também que algumas pesquisas na área das ciências sociais realizaram um balanço desses movimentos sociais após o período de redemocratização do país e avaliaram que muitos deles mantiveram-se ligados a práticas clientelistas e limitados a uma visão instrumental da atividade política (Telles, 1994). Esse balanço da presença de traços corporativos, clientelistas e instrumentais nas ações políticas dos movimentos sociais não devem ser tomados como simples "falhas" ou "deficiências" desses grupos, mas como índices da dificuldade histórica de criação de espaços de efetiva participação na vida pública e na definição de políticas do Estado. Este parece ser sem dúvida um desafio enfrentado pelos movimentos sociais contemporâneos gestados nas décadas de 1970 e 1980 e que coloca um problema importante de investigação para a psicologia social comunitária: como manter aceso o espírito crítico de participação popular e de contestação social nas atividades políticas? Como não sucumbir ao poder reificante gerado pela incorporação de grupos militantes à máquina estatal? Como articular lutas pontuais e concretas à tentativa de transformações estruturais da sociedade?

O conceito de comunidade assume, nesse campo teórico e político, um sentido articulador de novas práticas da psicologia social engajadas nas lutas por transformação social características de cada período histórico. A partir disso, justifica-se a discussão das diversas contribuições da psicologia comunitária para a compreensão dos sofrimentos ligados à desigualdade social, para a definição do conceito de comunidade e para a articulação desses temas na atuação do psicólogo em contextos políticos de resistência assim como a discussão da continuidade e da transformação das lutas pelo direito à cidade travadas pelos movimentos citados.

Sofrimentos Políticos: a Humilhação Social e o Sentido de Comunidade

O engajamento dos psicólogos em movimentos sociais neste contexto dos anos 80 e 90 permitiu a elaboração de algumas respostas a estas perguntas citadas nos dois parágrafos anteriores. Tomamos em nossa experiência de atuação em psicologia comunitária um conjunto de formulações desenvolvidas por José Moura Gonçalves Filho (1998) sobre o problema da humilhação social. A sua pesquisa tem como ponto de partida a observação participante num Centro de Juventude (CJ) da zona sul de São Paulo formado a partir das atividades de uma CEB. É uma pesquisa exemplar do engajamento do pesquisador nas atividades comunitárias desenvolvidas nesse contexto e levou a uma reflexão sobre o problema da humilhação social e sobre as práticas comunitárias de luta política. Essas reflexões permitem pensar algumas características da história do campo da psicologia comunitária e os desafios contemporâneos da disciplina.

A humilhação social é apresentada pelo autor como um problema ao mesmo tempo político e psicológico. Trata-se de um sofrimento político porque a "humilhação crônica, longamente sofrida pelos pobres e seus ancestrais, é efeito da desigualdade política, indica a exclusão recorrente de uma classe inteira de homens para fora do âmbito intersubjetivo da iniciativa e da palavra" (Gonçalves Filho, 1998, p. 15). É também um fenômeno psicológico porque a humilhação social conta "como uma modalidade de angústia disparada pelo enigma da desigualdade de classes" (Gonçalves Filho, 1998, p. 15).

Essa definição da humilhação social está articulada à compreensão do problema da dominação, sendo este último fenômeno entendido como um problema eminentemente político: o impedimento de participação no governo do trabalho e da cidade. Esse duplo impedimento está articulado à desigualdade de classes, às várias formas de preconceito e à maneira pela qual a organização econômica se relaciona com a vida política, uma vez que o impedimento de participação nos ambientes de trabalho se apoia na divisão entre patrões e empregados, no trabalho subalterno e desqualificado, o que garante a submissão e a desigualdade de poder; o impedimento de participação na cidade se apoia no seu desenho e no seu funcionamento atualizando constantemente a diferença entre ricos e pobres, entre quem é visto e quem permanece invisível, entre quem desfruta de seus benefícios e quem é incluído marginalmente na brutal desigualdade do acesso aos direitos e aos serviços públicos básicos e na maneira pela qual o Estado representa com predominância interesses de grupos econômicos dominantes. Em poucas palavras, essa articulação entre desigualdade econômica e política encontra expressão na enorme vulnerabilidade socioeconômica e civil que caracteriza a realidade brasileira (Kowaric, 2009). A partir dessas breves indicações, torna-se possível avançar sobre a compreensão da desigualdade social, tema tão caro à produção da psicologia social comunitária.

Desigualdade social é expressão que descreve o estado de grande disparidade entre pessoas, uma situação de desnivelamento. [...] A igualdade foi recusada, foi recusado o igual direito de agir e falar, o igual direito de tomar parte nas iniciativas e decisões. A igualdade foi recusada e afirmamos a dominação. Justamente, se desejarmos um exame mais assertivo do fenômeno, precisamos apontar e discutir o que a desigualdade social torna manifesto: a dominação. [...] A dominação é fenômeno político por excelência. Igualdade não é condição sobretudo econômica, cultural ou profissional: é condição política". (Gonçalves Filho, 2007, p. 208)

A dominação encontra desdobramentos psicossociais. Os sentimentos determinados pela humilhação social foram compreendidos pelo pesquisador a partir de longa convivência com as pessoas engajadas no trabalho do CJ e na convivência com elas nos diferentes espaços da cidade: o sentimento dos ambientes citadinos como expulsivos, tantas vezes acompanhado pelo sentimento da impossibilidade de fruição dos bens públicos; o sentimento de invisibilidade pública, entendido como o congelamento do poder de aparição de alguém ao ser abordado como inferior ou subalterno; o sentimento de não possuir direitos, sempre precedido pelo sentimento de vigilância (o sentimento de ordens, comandos ou reprimendas sempre iminentes; Gonçalves Filho, 1988).

Especialmente importante para pensarmos as possibilidades de resistência abertas pelo funcionamento dos movimentos sociais do período são os relatos do sentido de comunidade para aqueles cidadãos e a recepção comunitária experimentada pelo pesquisador. A principal marca da recepção comunitária refere-se à inclusão do pesquisador numa organização do trabalho em que ninguém está autorizado a mandar em ninguém, e todos de sua parte podem mandar no trabalho.

O julgamento e a decisão deixavam de contar como privilégio reservado a chefes ou profissionais gabaritados. Nas conversas, interessava a multiplicação das vozes, o encontro e o desencontro de pensamentos, não sua igualação. Os nomes de cada um eram mais empregados do que os nomes dos cargos. (Gonçalves Filho, 2003, p. 214)

Nota-se a tentativa de impedir o estabelecimento de relações meramente instrumentais entre as pessoas e de instaurar uma forma de convivência em que as pessoas não têm seu campo de ação e aparição limitado ao desempenho de um cargo ou função. Estas são características fundamentais de situações comunitárias, como indicou por exemplo Martin Buber (2008) em seus textos sobre o assunto. A pesquisa sobre humilhação social evidencia as condições sociais e políticas que podem nos aproximar ou distanciar dessa forma de convivência.

Como afirma o autor, os momentos em que se constituíam assimetrias também chegavam a ocorrer, mas ficavam sem apoio institucional. Esses momentos também ofereciam possibilidades para ajuda do psicólogo. Apresenta-se a possibilidade de pensarmos a diferença entre o militante truculento e a experiência de convivência comunitária: numa comunidade há regras a respeitar, mas que são mais a expressão de um espírito do que a garantia dele. A seguir, pretendemos discutir três diferentes sentidos assumidos pelo conceito de comunidade a partir desta pesquisa-ação e que, de certa forma, se relacionam para compor o contexto de atuação e de pesquisa dos psicólogos comunitários: a experiência de comunidade como horizonte ético de convivência, como espaço coletivo de elaboração do sofrimento da humilhação social e como orientação utópica de crítica e transformação social.

A Noção de Comunidade como Condição Ética de Convivência

Vários trabalhos no âmbito da psicologia social comunitária enfatizam o caráter acima de tudo ético que orienta suas intervenções e pesquisas, e esse termo assume significados distintos e complementares (Goes et al., 2015; Guareschi, 2008; Montero, 2005). Além da ênfase na transformação do horizonte epistemológico e nas escolhas políticas relacionadas à luta contra a desigualdade, a própria organização da convivência instaurada pelos grupos de resistência ajudou a configurar um dos sentidos do termo. Nas comunidades brasileiras cuja formação foi influenciada historicamente pelasCEBs ocorre uma proximidade do "sentimento religioso de fraternidade e o sentimento cívico de solidariedade" o que permite a observação nesse contexto de uma "espessura política da amizade" (Gonçalves Filho, 2003). A noção de amizade política é uma importante característica da convivência comunitária capaz de enfrentar o problema da dominação. A sociedade capitalista tem como norma a competição entre os seus membros, e, de maneira geral, a amizade fica reservada aos relacionamentos íntimos. A proximidade afetiva em espaços públicos é percebida na maioria das vezes como interesseira. Não se trata aqui do vínculo por interesses que caracterizam os sócios ou os lobbys na política. Deixa-se de perceber que no convívio público a amizade política significa um sentimento necessário para o convívio e o respeito.

A noção de amizade política tal como formulada, influenciada de forma decisiva pela compreensão da amizade como amor mundi presente na obra de Hannah Arendt (Aguiar, 2011), revela a necessidade que temos de convivência comunitária para crescermos na experiência de enraizamento no mundo. A primeira noção de comunidade refere-se, portanto, à constatação de que a vizinhança humana e o convívio igualitário e desinteressado são necessários para o reconhecimento e a garantia da experiência de humanidade no outro e em si próprio. No campo e nas cidades contemporâneas, a mercantilização das relações sociais determina que essa vizinhança seja progressivamente substituída por uma experiência de comunicação e avaliação de riscos que cria uma coabitação sem convivência.

Para o autor, é possível identificar um conjunto de traços que caracterizam a condição humana, certas experiências para as quais nascemos mais ou menos preparados, mas que nunca vingariam fora de ligações com os outros, fora sobretudo de alguma comunidade com os outros humanos. Essas experiências surgem e se sustentam nas práticas comunitárias:

Brincar e rir. Apreciar a aparência das coisas, zelar por certas coisas não porque sejam necessárias ou úteis, mas porque são bonitas. Desejar e não apenas consumir ou desgastar. Trabalhar não apenas como quem obtém alimentos ou utensílios, mas também como quem cria mundos, como quem faz cultura. Agir, praticar o inesperado, interromper o maquinismo natural ou social, não viver hoje de apenas repetir ontem. Viver além do imediato, viver do que morreu mas recordamos, viver do que ainda não nasceu mas esperamos. Conversar. Mover-se por motivos políticos, motivos de cidade, que abraçam e ultrapassam motivos só de casa. A hospitalidade para o singular, a percepção e o abrigo de gente como percepção e abrigo de pessoas inconfundíveis. A solidão, a capacidade de estar só ou, como desta vez escreveu Clarice Lispector, a capacidade de "ter loucura sem ser doida". (Gonçalves Filho, 2007, p. 191)

Nesse primeiro sentido apresentado, comunidade refere-se a uma qualidade do vínculo com o outro e com o mundo que sustenta a realidade de nossas experiências humanas fundamentais. Poderíamos afirmar que uma das características desse vínculo é seu caráter de gratuidade, ou seja, a possibilidade de que a troca e a comunicação não se originem a partir de motivos interesseiros ou instrumentais, mas se apoiem no respeito e no desejo da alteridade, algo que aparece radicalmente nos diversos matizes da experiência amorosa (a amizade na esfera privada, as relações familiares, a amizade política no sentido anteriormente apresentado). A identidade nesse campo de vínculos não se liga a marcas de pertencimento social, antes, liga-se à percepção do rosto e de sua inconfundível aparição singular.

A primeira noção de comunidade nos faz pensar na possibilidade de atuação dos psicólogos em contextos em que seja possível ajudar a construir uma práxis dialógica (Freire, 2011), uma práxis de comunicação igualitária que sustente, apoie e desenvolva esse conjunto de experiências que caracterizam a condição humana. Trata-se, portanto, de uma forma de atuação na qual o vínculo e a parceria experimentada no convívio possam ser fiadores de traços de humanidade. É uma perspectiva presente no paradigma comunitário-solidário proposto por Pedrinho Guareschi (2008). Temos indícios de que muitas atividades culturais e políticas realizadas em organizações comunitárias na cidade representam atualmente essa luta por ampliação de espaços coletivos que permitem a concretização dessas experiências psicossociais. Essa motivação de convivência comunitária nas cidades pode ser relacionada ao que os estudiosos de processos urbanísticos denominam como a construção coletiva de comuns urbanos (Harvey, 2104). Alguns exemplos atuais importantes em São Paulo são os saraus de poesia e literatura que se desenvolvem nas periferias da cidade, os projetos de convivência de alguns parques e equipamentos urbanos (por exemplo, hortas urbanas), os pontos de cultura da cidade e os projetos terapêuticos dos Centros de Convivência e Cooperativismo (CECCOS) que integram a rede de saúde mental. Essas iniciativas coletivas muitas vezes precisam resistir aos ataques da própria dinâmica econômica e política da cidade: na cidade capitalista, sempre sofrem a ameaça de serem incorporadas ao ciclo de reprodução do capital na produção da cidade, como quando um evento comunitário ou um equipamento valoriza uma região e isso desperta o interesse de incorporadoras e construtoras que os transformam em capital simbólico de futuros investimentos, muitas vezes desencadeando processos de "gentrificação".

Comunidade como Resistência à Humilhação Social

Uma segunda compreensão do sentido de comunidade aparece juntamente com a constatação dos efeitos do funcionamento do CJ sobre a vida de seus participantes. A participação igualitária no governo do trabalho instaura as condições para uma elaboração grupal do sofrimento da humilhação social. É possível observar que o funcionamento comunitário de alguns movimentos sociais representa uma tentativa de enfrentar coletivamente os sentimentos ligados à humilhação social. A angústia ligada à mensagem de não contar com um igual em diferentes situações sociais, o sentimento de invisibilidade e de não possuir direitos, passa a ser metabolizado pelo trabalho do grupo e alimenta a força de sua atividade política. Como afirma José Moura Gonçalves Filho, a partir do trabalho no CJ, "[...] as cotidianas privações na casa e no bairro passam a ser compreendidas como injustiças na cidade, como o efeito da desigualdade de classes, como os saldos da organização capitalista do trabalho e da iníqua distribuição de propriedade, rendas e bens" (Gonçalves Filho, 2003, p. 220). A passagem de uma forma de compreensão à outra envolve alterações da percepção de si mesmo, dos outros e da cidade, um conjunto de transformações que se realizam apenas a partir da elaboração de sofrimentos, um processo afetivo e cognitivo que exige condições grupais para sua realização.

Numa sociedade dividida em classes e marcada por preconceitos e estereótipos, a primeira noção de comunidade apresentada (condição ética) não pode se realizar sem representar uma luta contra o que a impede. Dessa forma, uma segunda possibilidade de compreensão do sentido de comunidade e da atividade comunitária se insinua articulada à primeira: um grupo de resistência que elabora coletivamente o sofrimento determinado pela humilhação social e conquista, nesse processo, a motivação política para enfrentar situações de opressão. Essa dimensão de resistência psicossocial também pode ser entendida como uma característica importante da psicologia social comunitária (Freitas, 1998; Scarparo & Guareschi, 2007).

A angústia desencadeada pela mensagem enigmática da desigualdade de classes necessita de um espaço comunitário de elaboração. O sentido do termo elaboração pode ser pensado a partir do referencial psicanalítico: a possibilidade de decifração de enigmas e eventos traumáticos que abatem, ferem e atacam por dentro porque, após nossa exposição a eles, não contamos com recursos individuais imediatamente necessários para traduzi-los, metabolizá-los e integrá-los à nossa vida psíquica de forma a minimizar seu impacto. A elaboração de um sofrimento político depende sempre de uma práxis coletiva, porque todo enigma e violência presentes nas expressões concretas e cotidianas de rebaixamento dependem, para seu enfrentamento, de parceiros que ajudem a dar um sentido e uma resposta coletiva à dominação.

De certa forma, o sentimento de invisibilidade pública, o sentimento dos espaços da cidade como repulsivos e o sentimento de não possuir direitos formam-se a partir de situações inter-humanas de dominação; justamente por isso, dependem igualmente de iniciativas políticas coletivas para que sejam enfrentados. A experiência de falar e agir entre iguais, ser visto pelo outro como alguém digno de respeito, decifrar a história dos processos de dominação são apoios psicossociais necessários à atividade política de enfrentamento do processo de dominação social (Gonçalves Filho, 2003). Na prática comunitária, podem existir momentos em que se torna fundamental uma atividade coletiva de elaboração do sofrimento da humilhação, muitas vezes ligada a um trabalho de rememoração compartilhada desses episódios entre seus participantes, e essa atividade, que é cognitiva e afetiva, permite a liberação de uma quantidade de energia psíquica que se volta para uma atuação política mais consciente com relação às injustiças que devem ser enfrentadas pelo grupo.

Essa dimensão da experiência comunitária permite pensar que profissionais preocupados com a dimensão da resistência no sentido comunitário podem, sem necessariamente assumirem o papel de coordenadores de atividades nas comunidades, ajudar o grupo a compreender a influência de sofrimentos sociais sobre os fatores de sua dinâmica que o aproximam ou distanciam da tarefa, fatores que facilitam o trabalho de aprendizagem e de atuação cooperativa. Como já haviam salientado os autores ligados à teoria dos grupos operativos, todo trabalho grupal desperta ansiedades e medos relacionados à realização da tarefa, como o medo da perda de esquemas referenciais operativos consolidados ou então o medo do ataque que vem do sentimento de vulnerabilidade ante o que ainda não se conhece (Bleger, 2007; Pichon-Rivière, 2005). Essa importante tese, que encontra diversos desdobramentos teóricos e técnicos nos trabalhos com grupos, pode ser enriquecida pela compreensão de que, em contextos comunitários, a elaboração de sofrimentos políticos pode ocorrer de forma a diminuir o volume de ansiedade e angústia despertadas no trabalho político dos grupos.

Comunidade como Horizonte Utópico de Transformação Social

As lutas por transformações sociais desenvolvidas por comunidades políticas de resistência envolvem em maior ou menor grau um horizonte utópico de atuação. Essa terceira dimensão do sentido de comunidade encontra-se essencialmente ligada à teoria marxista: a utopia da superação da desigualdade de classes e outras formas correlatas de dominação. Essa é a dimensão da esperança na transformação social presente na educação popular (Freire, 2011), na psicologia da libertação (Martín-Baro, 2009) e na psicologia comunitária (Guareschi, 2008). É identificável a compreensão de que a radicalidade da experiência de humanidade e da superação do problema da humilhação social dependeriam efetivamente de uma organização econômica e política que representasse a superação do antagonismo de classes, a superação da divisão entre patrões e empregados e de todas as formas de desigualdade política (Gonçalves Filho, 2003).

Essa dimensão do conceito de comunidade é essencial para uma reconfiguração das outras duas como dimensões da resistência ante a dominação. Isso significa que os dois sentidos anteriormente descritos precisam ser entendidos em sua dimensão negativa, ou seja, como aproximações nunca plenamente realizáveis e que, ao mesmo tempo, podem estabelecer as bases sobre as quais se compreende a necessidade de superação das contradições sociais. Nesse processo, vislumbra-se essa dimensão utópica do conceito de comunidade, pois ela permite carregar de negatividade as suas formas atuais, direcionando-as para uma prática com sentido subversivo e contestatório radicais. Comunidade, no sentido mais forte do termo, significa uma forma de organização social radicalmente democrática, o que implica a efetiva superação da desigualdade de classes e das diversas formas de dominação presentes na vida social, entre elas, o impedimento de participação no governo do trabalho e da cidade.

Nesse sentido, é possível observar que a intenção inicial que animou as práticas de educação popular apoia-se nessa compreensão de que apenas por meio da formação de vínculos comunitários pode-se vislumbrar uma práxis de transformação social que não incorra em dois erros: a transformação das pessoas e grupos em instrumentos de uma ação política ou a utilização da propaganda como forma de gerar adesão das pessoas a um projeto político. Os escritos de Paulo Freire ajudam a entender essa posição: afirmam que a educação para a transformação não pode reduzir o outro à condição de instrumento de uma ação política, antes, deve permitir uma verdadeira mudança de consciência na qual o sujeito passa a ser responsável pela transformação da qual participa pessoalmente. O próprio processo de busca pela superação das contradições sociais, quando coerente com aquilo que almeja, já aproxima os homens da experiência da liberdade (Freire, 2011).

Quando nos contrapomos à propaganda e à instrumentalização, quando enfatizamos a necessidade de formação de vínculos comunitários no trabalho de transformação social, "outra coisa não estamos tentando senão defender o caráter eminentemente pedagógico da revolução" (Freire, 2011, p. 75). Poderíamos acrescentar que a dimensão ética e a de elaboração da humilhação social poderiam igualmente estabelecer as bases para compreensão da opressão e da dominação, preparar a crítica radical das condições sociais que perpetuam as injustiças e desigualdades. No entanto, essa compreensão não seria apenas teórica, mas também estaria relacionada com a dimensão experiencial das práticas de solidariedade, das contradições e das dificuldades vividas nos processos comunitários. Nesse processo, a noção de comunidade aparece simultaneamente como o vínculo que apoia a reflexão e como uma utopia ainda não alcançada, mas que orienta a práxis apontando no horizonte a construção de uma organização social que efetivamente sustente a experiência de uma comunidade democrática.

Na própria teoria marxista, é possível identificar a utopia de uma sociedade emancipada a partir da organização de um novo modo de produção em que a experiência de uma comunidade democrática pudesse finalmente existir. Como afirmou Michael Lowy, o "anticapitalismo romântico é a fonte esquecida de Marx [itálico no original], fonte tão importante para seu trabalho quanto o neo-hegelianismo alemão ou o materialismo francês" (Löwy, 2008, p. 43). Isso significa que a teoria marxista abriga no seu horizonte utópico não apenas critérios econômicos ligados à distribuição justa da riqueza social, mas também critérios que permitirão pensar uma nova forma de organização da produção não mais guiada pelo princípio do lucro, o que permitirá o desenvolvimento de formas de convívio comunitário na cidade e no trabalho (Megil, 1970).

As propostas marxistas são essencialmente contestadoras da civilização industrial-capitalista, representam uma crítica contundente à crescente quantificação da vida, ao caráter desumanizante do trabalho, à predominância do caráter abstrato e quantitativo das trocas sociais (Löwy, 2008). Essa crítica apoia-se na ideia de que o trabalho deveria se organizar a partir da associação democrática e igualitária dos trabalhadores dentro e fora dos ambientes de trabalho. A utopia socialista não deve ser entendida como a negação dos avanços tecnológicos (avanços fundamentais para a diminuição do tempo humano dedicado ao trabalho), mas como a passagem de um estado atual em que os homens e mulheres encontram-se submetidos à máquina social de produção para um outro em que os avanços fossem controlados pelos homens vinculados democrática e comunitariamente. Em termos comunitários, isso significa que associação de cidadãos e trabalhadores passará a controlar de forma democrática a organização social da produção e não o inverso. No entanto, para que essa passagem seja concebível, deve estar apoiada no máximo de experiência negativa possível que é ao mesmo tempo a práxis social que permitiria o vislumbre de tal emancipação. O campo da economia solidária, quando efetivamente apoiada num projeto radical de superação da desigualdade de classes, oferece um dos espaços atuais em que se vislumbra essa articulação entre atuação e crítica. A partir dessas considerações, pode-se pensar que a educação popular é o momento de reflexão nas diversas práticas comunitárias de resistência que permite compreender os mecanismos de dominação e suas possibilidades de superação. Contudo, não se espera que esses problemas sejam abordados apenas teoricamente, mas sim espera-se que sejam relacionados às práticas de resistência das comunidades, ou seja, suas formas próprias de organizar a participação política e de resolver seus conflitos, e à discussão das mediações entre seus problemas concretos e o funcionamento da totalidade social.

Consequências dessas Dimensões da Comunidade e do Problema da Humilhação Social para a Atuação e a Pesquisa Contemporâneas

Uma das principais consequências práticas das conclusões alcançadas na pesquisa sobre a humilhação social aparece na seguinte afirmação: "os sofrimentos políticos devem ser enfrentados politicamente, mas não devem dispensar serem enfrentados também psicologicamente" (Gonçalves Filho, 2007, p. 210). Há aqui uma indicação de como atuar na área da psicologia social comunitária. Isso significa que um sofrimento político deve encontrar formas políticas de ser enfrentado, deve instaurar iniciativas e formas de ação coletivas. O sofrimento que o psicólogo comunitário pode ajudar a decifrar nunca é somente um sofrimento individual, é dor decorrente de processos de dominação de longa duração, envolvem situações inter-humanas na sua formação e, portanto, também na sua superação. Nesse processo, torna-se fundamental perceber que nossa atividade não deve ficar restrita ao intrapsíquico, ou seja, à individualização do sofrimento social, e também não deve recair no objetivismo de práticas que envolvem simplesmente o engajamento em ações políticas. Nos processos comunitários, interessa observar e pensar nas formas pelas quais essas três dimensões da experiência comunitária anteriormente descritas se articulam em cada contexto específico, o que permite um planejamento e atuação do psicólogo orientado por questões propriamente psicossociais.

Após a redemocratização do Brasil, a abertura de novos espaços de atuação e pesquisa ligados à formulação e à execução de políticas públicas não fez com que imediatamente se transformassem em espaços que acolhessem as demandas e as lutas dos movimentos sociais gestados nos anos 1980 e posteriormente. Ao contrário, revelaram-se como um novo campo de lutas e disputas: por um lado políticas neoliberais com o intuito de privatizar recursos, experiências e espaços públicos; por outro, os movimentos e inciativas populares que visavam garantir que as políticas públicas sejam efetivamente espaços de garantia dos direitos sociais e apoiem transformações mais profundas e estruturais da sociedade. Como observou Francisco de Oliveira (1999), o principal aspecto da política neoliberal é o processo de privatização do público, algo mais radical do que a privatização das empresas estatais, já que esta última é apenas sua forma mais aparente. "A privatização do público é uma falsa consciência de desnecessidade do público" (Oliveira, 1999, p. 68), e essa condução política que parece recuperar fôlego está relacionada à apropriação privada das instituições e dos fundos públicos e à destruição da experiência do comum, portanto, da experiência comunitária em seu sentido político.

Esse contexto de luta e disputa explica em grande medida as contradições apontadas nos estudos recentes em psicologia comunitária, uma vez que o Estado e suas políticas públicas expressam a luta entre interesses econômicos dominantes e interesses populares numa sociedade de classes. Os profissionais que passam a atuar nesse campo não podem deixar de considerar essas contradições na sua atuação. Isso pode surgir, por exemplo, quando políticas públicas de promoção de direitos humanos têm que enfrentar o fato de que a polícia é uma das principais violadoras de direitos humanos nas periferias dos centros urbanos, ou quando os equipamentos da assistência social reproduzem as situações de humilhação social que visavam combater (Araújo, 2014), ou ainda quando a reforma psiquiátrica revela seu caráter inconcluso em função de interesses econômicos e políticos contrários a ela. No Brasil, existe a demanda por equipes multiprofissionais em comunidades nas políticas públicas; isso ocorre no SUS (saúde pública) e no Sistema Único de Assistência Social (proteção social pública). Os psicólogos, juntamente com a equipe de profissionais que atuam nessas áreas, podem desempenhar um papel fundamental nesse contexto para tentar resistir à progressiva assimilação das políticas públicas à lógica de mercado, à reificação presente quando são pensadas nos mesmos termos da racionalidade econômica dominante. Como as políticas públicas expressam as contradições sociais, os movimentos sociais contemporâneos ainda têm um papel fundamental na luta contra as desigualdades sociais por figurarem como atores que efetivamente pressionam essas políticas na direção de efetivação dos diretos sociais e por manterem o horizonte utópico ainda presente nas lutas políticas. Nos diversos Fóruns Sociais, é possível observar a enorme importância dessa atuação no sentido de proposição e fiscalização de políticas públicas. Atualmente, vislumbra-se como uma possibilidade de atuação entre psicólogos que atuam em equipamentos públicos o estabelecimento de parcerias com movimentos sociais no sentido de ampliar a participação democrática na formulação e na execução de suas atividades. É contra esse processo de privatização do público que os movimentos sociais e os trabalhadores de instituições públicas precisam se organizar, buscando articular as três dimensões da experiência comunitária citadas acima com a formulação e a execução de políticas públicas.

A compreensão de necessidades psicossociais e de como elas são negligenciadas na sociedade capitalista leva a uma luta por ampliação do acesso a espaços de convivência pública em que essas atividades possam realizar-se comunitariamente. Nessa acepção, a psicologia comunitária pode ser compreendida como uma forma de atuação do psicólogo em contextos nos quais se busca a afirmação e a sustentação dessas experiências humanas fundamentais. Trata-se de pensar como a organização do trabalho, a participação política, a relação mais ampla com a cultura, como nossa participação nesses diferentes espaços pode ser fiadora de traços de nossa experiência de humanidade. De certa forma, a luta por ampliação do direito à cidade assim como as práticas de saúde preventivas e comunitárias devem levar em conta que o atendimento de necessidades psicossociais dependem do acesso livre, público e comunitário a essas experiências fundamentais.

Nos diversos movimentos sociais, nas práticas preventivas e comunitárias da reforma psiquiátrica, nos movimentos da economia solidária, nas políticas públicas de enfrentamento da vulnerabilidade social, é preciso pensar formas de atuação do psicólogo que promovam experiências comunitárias que ao mesmo tempo se tornem potencialmente espaços de negatividade e crítica, espaços em que possa crescer nossa experiência de comunidade concomitantemente ao crescimento da consciência dos fatores sociais que impedem sua efetivação. Dessa forma, ter a experiência coletiva de nossa condição de humanidade e da elaboração de sofrimentos sociais implica contraditoriamente a formação de comunidades de resistência que apontam para a compreensão da necessidade radical de transformação social. Nesse sentido, comunidade aparece como força negativa, como efetivação das condições que poderiam preparar a superação das atuais contradições sociais. Isso significa que, no âmbito da psicologia comunitária, os psicólogos podem ajudar, na sua prática profissional, a vislumbrar a dimensão psicossocial das atividades de luta e resistência contra processos de dominação.

Por fim, a dimensão utópica da comunidade permite retornar a discussão sobre felicidade e infelicidade numa sociedade injusta. Os sofrimentos causados pela humilhação social podem ser enfrentados e elaborados na práxis de comunidades de destino que, por seu fazer igualitário e solidário, evocam a possibilidade prática de realização da utopia de uma sociedade sem classes e dominação. A psicologia comunitária também tem um lugar nessa dimensão utópica da comunidade na medida em que considera que sua ação tem direção política e ética no sentido de buscar a superação da dominação por meio da igualdade e da solidariedade. Essa superação não pode ser restrita a um território ou grupo, pois enfrentar a humilhação social como um problema psicológico e político leva à inevitável consciência de que apenas numa sociedade que supere a desigualdade de classes, na qual não exista discriminação de gênero, raça e orientação sexual, haverá as condições para a sua efetiva superação.


Notas

1 O sus foi criado em 1988 pela Constituição Federal Brasileira e, como afirma o site do Ministério da Saúde, é um sistema público que tem como objetivo oferecer acesso integral, universal e gratuito à saúde para toda a população brasileira.


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