AS TECNOLOGIAS de Informação e Comunicação (TICS) têm se tornado parte indispensável do cotidiano dos indivíduos nessa primeira metade do século XXI. Crianças e adolescentes são chamados de nativos digitais por terem nascido em um período em que essas ferramentas tecnológicas já estavam disseminadas (Palfrey & Gasser, 2011). Desse modo, convivem com as TICS de forma natural e constante, fazendo uso principalmente de dispositivos móveis como smartphones, tablets e notebooks (George & Odgers, 2015), para obter e trocar informações, filmes, músicas, séries e jogos, assim como interagir entre pares através de mídias sociais. No entanto, dado que a adolescência é uma etapa de maturação socioemocional, a exposição aos meios virtuais oferece riscos importantes a esses indivíduos (Hamm et al., 2015). Assim, os benefícios oferecidos pelas TICS, como a possibilidade de expansão de contatos sociais, interagem com aspectos negativos, como a vulnerabilidade a agressões no ambiente virtual.
O cyberbullying é uma forma de violência online que tem crescido expressivamente na última década (Smith, Steffgen, & Sittichai, 2013). Diversas definições para o fenômeno podem ser encontradas na literatura (Tokunaga, 2010); no entanto, pesquisadores têm empregado uma conceitualização semelhante à apresentada por Olweus (1993) para o bullying tradicional ou offline. Assim, cyberbullying pode ser definido como comportamentos agressivos, repetitivos e intencionais, realizados através de meios eletrônicos, perpetrados por um grupo ou um indivíduo contra uma vítima que apresenta dificuldade em se defender (Smith, Mahdavi, Carvalho, Fisher, Russel, & Tippett, 2008).
Mesmo compartilhando definição semelhante à empregada para o bullying offline, o fato de o cyberbullying ser realizado através de meios eletrônicos faz com que esse fenômeno apresente especificidades a serem consideradas. Para que um comportamento agressivo seja considerado bullying, ele deve atender a dois critérios fundamentais: (a) Ser repetitivo e (b) apresentar desequilíbrio de poder entre agressor e vítima. No que tange ao aspecto da repetição, um único ato agressivo realizado no ambiente virtual -como o envio de fotos embaraçosas, por exemplo- pode ser repassado diversas vezes e experienciado repetidamente pela vítima. Dessa forma, questiona-se sobre a necessidade de que os atos sejam repetidos pelo agressor para que sejam considerados cyber-bullying (Smith, et al., 2013).
Em relação ao desequilíbrio de poder, no bullying tradicional o poder é exercido por características como força física, popularidade e número de colegas envolvidos na agressão. No cyberbullying, o desequilíbrio de poder está relacionado ao fato de que, em alguns casos, esse tipo de agressão é anônimo e de que o agressor tem mais domínio sobre as TICS do que a vítima (Vandenbosch & Van Cleemput, 2008). Assim, tais características podem acarretar na vítima a sensação de que não há como proteger-se ou evitar novas agressões.
Estudos têm apontado taxas variáveis de prevalência do cyberbullying. Algumas pesquisas indicam ocorrência do fenômeno entre 14% e 25% (Beran, Mishna, McInroy, & Shariff, 2015; Holfeld & Leadbeater, 2015; Landstedt & Persson, 2014), sendo a maior ocorrência entre adolescentes, atingindo um pico entre 13 e 15 anos de idade (Tokunaga, 2010). No entanto, outros estudos apontam prevalências mais altas, que podem variar de 40 a 70% (Beran & Li, 2005; Juvonen & Gross, 2008). Essas diferenças nos percentuais de ocorrência do fenômeno podem estar relacionadas a características das amostras e a variações metodológicas. Por sua vez, diferenças entre os sexos ainda não estão bem estabelecidas. Enquanto algumas pesquisas não encontraram diferenças em relação a sexo (Beran et al., 2015; Smith et al., 2008), outras indicam que meninas tendem a estar mais envolvidas do que meninos (Beckman, Hagquist, & Hellström, 2013; Calvete, Orue, & Gámez-Guadix, 2015; Smith et al., 2008).
No que se refere a diferenças culturais e contextuais, ainda são incipientes os estudos empíricos sobre cyberbullying realizados em população brasileira e latino-americana. Wendt (2012) identificou, em uma amostra de 367 adolescentes residentes do sul do Brasil, que 75.6 e 72.7% haviam experimentado, no mínimo, um episódio de cyber agressão e um episódio de cyber vitimização, respectivamente, nos últimos seis meses. Por sua vez, um estudo conduzido no Peru indicou prevalência mais baixa, no qual 24.7% dos 826 alunos de 5° e 6° anos pesquisados reportaram vitimização por cyberbullying (Amemiya, Oliveros, Condorimay, Oliveros, Barrientos, & Rivas, 2013). Já no Chile, pesquisadores identificaram que 11.4%, de uma amostra de 1357 adolescentes foram vítimas de cyberbullying (Varella, Pérez, Schwaderer, Astudillo, & Lecannelier, 2014).
Estudos sobre o impacto do cyberbullying têm se concentrado na identificação de dificuldades emocionais, problemas sociais e sintomas psicopatológicos associados (Baker & Tanrikulu, 2010; Jung, et al., 2014; Patchin & Hinduja, 2010). Pesquisas têm indicado relação entre vitimização por cyberbullying e sintomas depressivos, ansiedade, baixa autoestima e dificuldades acadêmicas (Brown, Demaray, & Secord, 2014; Landoll, La Greca, Lai, Chan, & Herge, 2015; Patchin & Hinduja, 2010). Além disso, uma meta-análise conduzida por Van Geel, Vedder e Tanilon (2014), apontou relação entre cyberbullying e ideação suicida, sendo essa associação mais forte que no bullying tradicional.
Teorias cognitivas sugerem que experiências de maus-tratos e suas consequências psicopatológicas tendem a ser mediadas por vulnerabilidades cognitivas, como esquemas disfuncionais, que influenciam na forma como o indivíduo percebe a si mesmo e ao mundo de maneira geral (Calvete et al., 2015; Gibb, 2002). O termo esquema diz respeito a uma forma de representar, categorizar e interpretar o self, os outros indivíduos e o mundo de maneira geral, sendo derivado de experiências passadas e utilizado para organizar e interpretar experiências atuais e futuras (Beck & Alford, 2009; Cole et al., 2013). De acordo com Beck (1976) e Beck e Alford (2009), os esquemas podem estar inativos em um determinado período de tempo, não gerando pensamentos relacionados a eles, e tornarem-se ativos, especialmente quando tocam em aspectos importantes da vida do indivíduo, como, por exemplo, aceitação dos pares. Assim, considera-se que o cyberbulllying pode ser uma fonte de ativação esquemática.
Esquemas Iniciais Desadaptativos e Cyberbullying
Young, Klosko e Weishaar (2003) propuseram um modelo teórico que serviu de base para o desenvolvimento da Terapia do Esquema, atribuindo aos Esquemas Inicias Desadaptativos (EIDS) um papel central no desenvolvimento e manutenção de transtornos mentais e outras dificuldades psicossociais. Os EIDS dizem respeito a um tema ou padrão cognitivo e emocional disfuncional, relacionado a si mesmo ou a outros indivíduos, desenvolvidos durante a infância ou adolescência, a partir do relacionamento com cuidadores ou outras figuras significativas (Schmidt, Joiner Jr., Young, & Telch, 1995; Young et al., 2003).
A partir de sua experiência clínica, Young propôs, após sucessivas alterações, um modelo composto por 18 esquemas, distribuídos em cinco domínios (Santos, Rijo, & Pinto Gouveia, 2009; Young, et al., 2003). Os esquemas surgem a partir de necessidades emocionais básicas dos indivíduos não satisfeitas no início da vida. As necessidades emocionais básicas não-satisfeitas seriam de segurança, estabilidade, cuidado e aceitação, de autonomia, competência e sentimento de identidade, de liberdade de expressão, espontaneidade e lazer e de limites realistas e autocontrole.
O primeiro domínio de esquemas, chamado de Desconexão e Rejeição, agrupa os EIDS Abandono/Instabilidade, Desconfiança/Abuso, Privação Emocional, Defeito/Vergonha e Isolamento Social/ Alienação. Esses esquemas são formados a partir da não satisfação de necessidades de estabilidade, apego, segurança, empatia, aceitação e respeito (Young et al. 2003). Indivíduos com tais padrões de processamentos cognitivo e emocional tendem a acreditar que as pessoas são imprevisíveis, abusivas e privadoras e a sentirem-se sozinhos, inadequados e diferentes dos demais (Van Genderen, Rijkeboer, & Arntz, 2012).
O domínio Autonomia e Desempenho Prejudicados é composto pelos EIDS Fracasso, Dependência/Incompetência, Vulnerabilidade ao Dano e à Doença e Emaranhamento/Self Subdesenvolvido (Van Genderen et al., 2012; Young et al., 2003). Tais esquemas relacionam-se a percepções do indivíduo de ser incapaz de lidar com demandas do ambiente.
O terceiro domínio, Limites Prejudicados, é composto pelos esquemas de Arrogo/Grandiosidade e Autocontrole/Autodisciplina Insuficientes (Van Genderen et al., 2012; Young et al., 2003). O EID de Arrogo/Grandiosidade corresponde a percepções de que se é merecedor de tratamentos especiais e benefícios. Já o esquema de Autocontrole/Auto-disciplina insuficiente relaciona-se à grande dificuldade do indivíduo em disciplinar-se a realizar atividades difíceis ou trabalhosas, sem receber uma recompensa imediata.
O domínio de Direcionamento ao Outro agrupa os EIDS Subjugação, Autossacrifício e Busca de aprovação (Van Genderen et al., 2012; Young et al., 2003). Esse domínio abarca esquemas relacionados à busca de satisfação e aprovação de terceiros, em detrimento da satisfação de necessidades próprias.
O quinto domínio, Hipervigilância e Inibição, corresponde aos esquemas de Inibição Emocional, Padrões Inflexíveis, Negativismo e Postura Punitiva (Van Genderen et al., 2012; Young et al., 2003). Esses esquemas relacionam-se à excessiva rigidez e temor em agir de forma livre e espontânea.
A partir dessas necessidades não satisfeitas, a criança ou adolescente adquire uma forma de compreender e lidar com o ambiente congruente com essas experiências, sendo esses estilos cognitivos e comportamentais elaborados e mantidos ao longo da vida. Mesmo sendo disfuncionais, os EIDS tendem a se perpetuar e serem resistentes à mudança, visto que estão relacionados ao centro do autoconceito do indivíduo (Schmidt et al., 1995). Além disso, os esquemas, com frequência, possuem um papel adaptativo e protetivo na infância (Farrell, Reiss, & Shaw, 2014). Por exemplo, em termos de sobrevivência a uma situação abusiva, uma criança sente-se mais segura ao acreditar que ela é defeituosa do que os seus cuidadores, visto que depende deles para sua proteção. Assim, diante de situações ativadoras, eles tendem a ocasionar emoções intensas, como ansiedade, tristeza e solidão (Arntz & Jacob, 2013).
Também as relações entre pares desempenham um papel importante no desenvolvimento do adolescente, sendo uma fonte de intimidade, autoestima e pertencimento (Steinerg & Morris, 2001). Além disso, estudos apontam que avaliações positivas dos pares tendem a ativar mais regiões cerebrais ventro-estriatais, relacionadas ao circuito de recompensa, em adolescentes do que em adultos (Smith, Steinberg, Strang, & Chein, 2015; Steinberg & Monahan, 2007). Uma possível explicação para a forte influência dos pares entre adolescentes seria a necessidade de adquirir autonomia emocional de seus pais, sendo os amigos uma forma de preencher essa lacuna (Steinberg, 2014). Por outro lado, experiências de agressão ocorridas nesse contexto podem acarretar prejuízos importantes. Segundo o modelo de Young, embora os esquemas inicias desadaptativos sejam originados principalmente na infância, eles são reelaborados a partir de experiências que o indivíduo vivencia ao longo da vida (Young et al., 2003). Dessa forma, a agressão perpetrada por pares pode representar uma fonte importantes de ativação, manutenção e fortalecimento esquemático.
Alguns estudos buscaram relacionar vitimiza-ção entre pares e vulnerabilidade cognitiva. Cole et al. (2013) identificaram que crianças e adolescentes vítimas de agressão recorrente perpetrada por pares referiram mais cognições negativas acerca de si mesmo e menos percepções positivas do que não-vítimas. Uma pesquisa conduzida por Gibb, Stone e Crosset (2012) corroborou esses achados, demonstrando associação positiva entre ter sofrido agressões indiretas por pares e a atribuição de características negativas a si mesmo. Em relação a estudos que utilizaram os EIDS como construto de avaliação das cognições, Calvete (2014) identificou que experiências de abuso emocional entre pares resultou em maiores escores nos esquemas pertencentes aos domínios de Desconexão/Rejeição, Autonomia e Desempenho Prejudicados e Direcionamento ao Outro. Por sua vez, essa piora nos escores de esquemas não foi observada quando o abuso era perpetrado pelos pais. Em um estudo longitudinal realizado por Calvete et al. (2015), que buscou avaliar o impacto do cyberbullying sobre os EIDS, houve associação entre a vitimização e o aumento de escores nos esquemas de desconfiança/ abuso e defeito ao longo do tempo.
Conforme demonstrado anteriormente, um número considerável de estudos tem indicado associação entre vitimização por cyberbullying e o desenvolvimento de diferentes quadros psicopato-lógicos, como depressão e ansiedade. No entanto, sendo essa relação mediada por diferentes estilos cognitivos, torna-se relevante investigá-los, de modo que se possa melhor intervir e tratar as dificuldades advindas desse tipo de agressão (Gibb, 2002). Por essa razão, o presente artigo tem como objetivo identificar a relação entre cyberbullying e Esquemas Iniciais Desadaptativos em adolescentes brasileiros.
Método
O delineamento utilizado no presente estudo é o levantamento de dados, no qual são coletadas informações padronizadas de uma população específica, através de um questionário (Robson, 1993). As hipóteses dos pesquisadores são:
1. Haverá correlações significativas entre os EIDS e o envolvimento enquanto "vítima" e "agressor".
2. Haverá maiores escores nos EIDS nos participantes envolvidos enquanto "vítimas", "agressores" e "vítimas-agressores" em relação aos "não-envolvidos".
Participantes
Participaram desse estudo 273 estudantes (M=14.91 anos; DP=1.43), selecionados por conveniência, sendo 48.7% da amostra composta por meninas (n=133) e 51.3% por meninos (n=140). Os adolescentes são provenientes de escolas localizadas em dois municípios do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Optou-se por participantes da faixa etária entre 13 e 18 anos, tendo em vista que a literatura científica aponta a maior prevalência de envolvidos no cyberbullying estarem neste intervalo de idade (Slonje & Smith, 2008; Tokunaga, 2010). Foram excluídos da amostra os alunos que possuíam menos de 13 anos ou que demonstraram dificuldades importantes em compreender os instrumentos que compunham o estudo.
Instrumentos
Questionário de dados sociodemográficos.
Desenvolvido para a presente investigação, contém questões sobre sexo, idade, escola e série do participante. Esse questionário buscou também informações quanto a hábitos de uso internet e quanto à supervisão parental das atividades online. Também foram investigados a escolaridade dos pais e informações relacionadas à moradia.
Revised Cyberbullying Inventory - RCBI (Topcu & Erdur-Baker, 2010). O envolvimento no cyberbullying foi acessado através do RCBI, consistindo em 14 itens que buscam avaliar a frequência com que o participante sofreu e realizou diferentes comportamentos de cyber agressão nos últimos seis meses. As questões dizem respeito a formas de agressão virtual (e. g., "Ameaças em sites, redes sociais ou aplicativos -salas de bate-papo, SMS, Facebook, Twitter, Skype, Instagram, Whatsapp, Snapchat, etc."), que devem ser graduadas em uma escala tipo Likert de quatro pontos, que varia de nunca a mais de três vezes. Cada item deve ser graduado duas vezes, considerando tanto a cyber agressão ("Eu fiz isso") quanto a cyber vitimização ("Isso aconteceu comigo"). O processo de validação dessa escala foi realizado em população turca, com idades variando entre 13 e 21 anos (Topcu & Erdur-Baker, 2010). Nessa versão, os alfas de Cronbach obtidos foram de .82 na subescala de cyber agressão e .75 na escala de cyber vitimização. Na presente investigação, será utilizada uma versão do instrumento adaptada por Wendt (2012) a adolescentes brasileiros e à realidade tecnológica atual, cujos alfas foram de .75 e .76 para as escalas de cyber agressão e cyber vitimização, respectivamente.
Questionário de Esquemas para Adolescentes de Young - QEA (Santos et al., 2009). Trata-se de um instrumento de autorresposta, destinado a adolescentes entre 12 e 18 anos. É composto por 54 itens, relacionados a esquemas iniciais desa-daptativos propostos teoricamente por Young et al. (2003) na Terapia Focada em Esquemas. Para cada esquema são apresentadas de duas a quatros afirmativas, dispostas de forma aleatória. Cada uma delas deve ser graduada em uma escala Likert de 6 pontos, que varia de 1 (não tem nada a ver com o que acontece ou aconteceu comigo) a 6 (é exatamente o que acontece ou aconteceu comigo). Essa escala é uma adaptação do Young Schema Questionnaire-YSQ3, originalmente destinado à avaliação de esquemas em população adulta. Foi adaptada e validada por Santos et al. (2009) em adolescentes portugueses, apresentando alfa de consistência interna geral de .93. Tendo em vista que ainda não há uma versão com evidências de validade em população brasileira, a escala foi submetida à adaptação cultural e semântica para o idioma português do Brasil, a fim de se obter equivalência gramatical e de vocabulário (Pedroso, Oliveira, Araujo, & Moraes, 2004). Nessa versão, os coeficientes alfa variaram de .46 (para o esquema de Dependência) a .82 (para o esquema de Fracasso). Alguns coeficientes abaixo de .70 podem ser explicados pelo fato de que cada subescala possuía em torno de três itens, o que, segundo Cronbach (1951), pode contribuir para valores de alfa mais baixos.
Procedimento para Coleta de Dados
A aplicação dos questionários foi realizada coletivamente, em períodos de aula, com duração de aproximadamente 1 hora. Antes de iniciar a aplicação, o pesquisador explicava aos adolescentes o significado de cyberbullying, orientava sobre a forma de preenchimento de cada questionário e informava sobre o sigilo das respostas e o caráter voluntário da participação na pesquisa. Além disso, explicava-se que eles poderiam desistir da pesquisa a qualquer momento, sem sofrer nenhuma consequência. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado por pais ou responsáveis, e o Termo de Assentimento do Adolescente foi assinado pelos próprios alunos, assegurando a concordância em fazer parte do estudo. Em todas as aplicações, ao menos um pesquisador esteve presente para explicar os objetivos da pesquisa, bem como oferecer esclarecimentos sobre possíveis dúvidas.
Análise de Dados
Através do preenchimento do RCBI, foi possível identificar a porcentagem de envolvimento dos adolescentes no cyberbullying. Para que um participante fosse considerado envolvido no fenômeno, ele deveria ter sido vítima e/ou perpetrador de qualquer um dos tipos de agressão online descritos no inventário, com uma frequência mínima de duas ou três vezes, nos últimos seis meses, conforme orientação dos autores da escala (Topçu & Erdur-baker, 2010).
As análises foram realizadas com o auxílio do software estatístico spss 20. Uma vez que os dados não apresentaram distribuição normal e nem homogeneidade de variância, foram realizadas análises de frequência, qui-quadrado, além de testes não-paramétricos (correlação de Spearman e comparação de médias através de Kruskal-Wallis.)
Resultados
O número de participantes por sexo e idade, e as respectivas porcentagens quanto aos diferentes tipos de envolvimento (não-envolvidos, agressores, vítimas e vítimas-agressores) estão descritos na Tabela 1. Ao comparar o envolvimento no cyberbullying por sexo e idade, houve diferenças significativas para ambos, sendo as meninas (p=.02) e os adolescentes mais velhos (p<.01) mais envolvidos no fenômeno que os meninos e os adolescentes mais novos.
As análises Kruskal-Wallis indicaram diferenças significativas entre os grupos de envolvimento no cyberbullying quanto aos escores médios apresentados em cada um dos esquemas. Conforme consta na Tabela 2, os grupos apresentaram escores médios com diferenças estatisticamente significativas nos esquemas de Abandono, Desconfiança, Defeito, Vulnerabilidade Grandiosidade, Autocontrole insuficiente, Autossacrifício, Busca de Aprovação, Negativismo e Padrões inflexíveis.
Análises post-hoc foram realizadas para comparação entre os quatro grupos de participantes: vítimas, vítimas-agressores, agressores e não-envolvidos. As vítimas e vítimas-agressores indicaram maior severidade do que não-envolvidos nos esquemas Abandono, Grandiosidade e Autocontrole Insuficiente. Vítimas também indicaram escores significativamente mais altos do que não-envolvidos no esquema de Autossacrifício e Defeito, assim como maiores escores que agressores no squema de Defeito. Vítimas-agressores apresentaram escores de EIDS significativamente mais altos do que não-envolvidos nos esquemas de Desconfiança, Busca de Aprovação, Negativismo e Padrões Inflexíveis.
Na Tabela 3 são mostradas as correlações entre vitimização e agressão por cyberbullying e os eids. Identifica-se uma associação positiva entre vitimização e quase todos os eids, com exceção de Privação Emocional e Abandono. Houve associação positiva de agressão com os esquemas de Desconfiança, Isolamento, Emaranhamento, Autossacrifício, Inibição Emocional, Padrões Inflexíveis, Grandiosidade, Autocontrole Insuficiente, Busca de Aprovação e Negativismo. Em relação aos eids, as correlações mais fortes encontradas foram entre os esquemas de Negativismo e Desconfiança, e Negativismo e Isolamento Social.
Discussão
O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência do cyberbullying e relações entre envolvimento ou não envolvimento no fenômeno com EIDS apresentados pelos adolescentes. No que diz respeito à prevalência do cyberbullying, 58% dos participantes indicaram envolvimento no fenômeno, ao englobar agressores, vítimas e agressores-vítimas. Esse índice vai ao encontro de percentuais encontrados em uma pesquisa mais recente, que identificou taxas de prevalência entre 40 e 70% (Calvete et al., 2015).
De forma semelhante ao reportado na literatura, o índice de vitimização foi superior ao de agressão. Entretanto, destaca-se o percentual elevado de vítimas-agressores (35% do total da amostra), bastante superior aos índices em torno de 5% encontrados em algumas pesquisas (Jung et al., 2014; Kowalsky & Limber, 2013). Esse dado é relevante para desenvolver estratégias preventivas e protetivas aos adolescentes que compõem esse grupo, tendo em vista que vítimas-agressores podem apresentar mais dificuldades em receber apoio social dos que os jovens que foram apenas vítimas (Kristensen & Smith, 2003).
Também observou-se diferenças estatisticamente significativas em relação ao sexo, estando as meninas mais envolvidas no cyberbullying do que os meninos. Esse dado reforça a tendência apontada em alguns estudos, que indicam maior envolvimento de meninas em cyber agressão (Beckman et al., 2013; Calvete et al., 2015), embora ainda não exista um consenso na literatura em relação a esse aspecto (Slonje, Smith, & Frisén, 2013). Por sua vez, o maior envolvimento dos adolescentes mais velhos no cyberbullying também vai ao encontro da literatura (Tarapdar & Kellett, 2013) embora também para esses casos os resultados variem conforme os instrumentos utilizados e o intervalo de tempo considerado (Garaigordobil, 2015).
Em relação aos EIDS, as análises Kruskal-Wallis demonstraram que adolescentes envolvidos no cyberbullying tenderam a apresentar, de forma geral, escores do QEA mais elevados do que os jovens não-envolvidos. Tanto vítimas quanto vítimas--agressores apresentaram maiores pontuações estatisticamente significativas em diversos EIDS, em comparação aos não-envolvidos. Considerando-se que foram avaliadas experiências de cyber agressão ocorridas nos últimos seis meses, pode-se hipotetizar que os maiores escores no QEA devam-se ao fato de que os esquemas desadaptativos estejam mais ativos nesses dois grupos, em consequência da vitimização por cyberbullying. A vitimização pode contribuir para o desencadeamento de pensamentos, comportamentos e sentimentos que mantenham esquemas pré-existentes em funcionamento e os perpetuem (Young et al., 2003). Assim, percebe-se o potencial do cyberbullying em afetar o sistema de crenças do indivíduo (Calvete et al., 2015).
Vítimas de cyberbullying apresentaram mais pensamentos e sensações associadas ao esquema de Defeito, com escores no QEA sendo significativamente maiores aos indicados por não-envolvidos e agressores. Esse EID relaciona-se à percepção de que se é falho, defeituoso e inferior às demais pessoas, muitas vezes acompanhado de sentimentos de vergonha (Young et al., 2003). Através de experiências repetidas de insultos, críticas e humilhações online, vistas, em muitos casos, por um grande número de expectadores, torna-se compreensível que adolescentes vulneráveis a esse esquema passem a apresentá-lo com maior frequência e intensidade. Em um estudo conduzido por Cole et al. (2013), foi demonstrada associação positiva entre vitimização por pares e percepções negativas a respeito de si mesmos, como ser impopular, indesejável e fracassado. De forma semelhante, Olweus (1993) identificou que indivíduos retraídos, com baixos níveis de autoestima e isolados socialmente tendem a apresentar maior risco de vitimização por bullying (Olweus, 1993). A partir desses dados, verifica-se que o esquema de Defeito pode representar um risco quando associado ao cyberbullying, visto que vulnerabiliza o indivíduo a tornar-se vítima e fortalece-se à medida que ocorre a vitimização.
Vítimas também apresentaram maiores escores que não-envolvidos no esquema de Autos-sacrifício. Esse esquema diz respeito à aceitação e valorização de desejos alheios, em detrimento de suas próprias vontades. Dessa forma, hipotetiza-se que o cyberbullying possa advir de "brincadeiras" (e. g., postagem no Facebook de uma foto que a pessoa considera feia ou embaraçosa) que vão crescendo em nível gravidade por não conseguirem ser barradas pela vítima. Além disso, jovens com características relacionadas a autossacrifício podem ser percebidos pelos demais como um "alvo fácil" para agressões, que não irão se defender devido a suas dificuldades em se posicionar e impor limites. Por outro lado, o cyberbullying constitui-se em uma forma de demonstrar poder e subjugar o outro (Dilmaç, 2014; Smith et al., 2013), de modo que se torna compreensível que as vítimas acreditem que necessitam se submeter aos desejos alheios.
Vítimas e Vítimas-agressores referiram mais características de Abandono, Grandiosidade e Autocontrole Insuficiente do que os demais envolvidos. O esquema de Abandono diz respeito à percepção de que o indivíduo não pode contar com relações estáveis, seguras e duradouras ao longo de sua vida. Calvete (2014) encontrou resultado semelhante ao avaliar o impacto do bullying tradicional em adolescentes espanhóis. Em seu estudo, foi identificado que o abuso emocional perpetrado por pares predisse o agravamento de EIDS, especialmente os que formam o domínio de Desconexão e Rejeição -no qual o esquema Abandono está incluído-. É compreensível, que em resposta ao bullying, o adolescente possa desenvolver a percepção de que é sozinho e de que as pessoas à sua volta são rejeitadoras.
O esquema de Grandiosidade está relacionado à percepção de que se é superior ou especial, de modo que a pessoa compreende que não está sujeita às mesmas regras que os demais (Young et al., 2003). O fato de vítimas-agressores terem apresentado maiores escores nesse esquema pode indicar que a realização de cyber agressão esteja vinculada à crença de que são melhores e mais espertos e, por isso, podem agir da forma que quiserem (Calvete, 2008). Todavia, a análise de correlação apontou uma associação positiva entre os esquemas de Grandiosidade com os esquemas de Isolamento e de Defeito. Desse modo, a Grandiosidade poderia ser uma forma hipercompensatória de lidar com um autoconceito negativo, justificando sua presença tanto em vítimas-agressores quanto em vítimas.
Por outro lado, escores mais elevados no esquema de Autocontrole Insuficiente em Vítimas e Vítimas-agressores requerem investigações adicionais. Pode-se hipotetizar que a característica da autodisciplina insuficiente está relacionada ao cyberbullying na medida em contribui para o jovem não tomar cuidados no ambiente virtual, como não trocar senhas periodicamente, não ser cauteloso em relação às pessoas com as quais permite acesso a seu perfil, etc. (Hinduja & Patchin, 2009). Também pode-se pensar que essa falta de autocontrole pode gerar reações agressivas frente a uma provocação prévia (Runions, 2013), alimentando esse ciclo de violência. Outra hipótese formulada é de que comportamentos ligados à falta de disciplina fora do ambiente virtual, como por exemplo, alunos que não são cooperativos em tarefas ou atividades escolares, poderiam sofrer retaliações virtualmente (Kowalsky & Limber, 2013). No entanto, novos estudos seriam necessários, especialmente de método qualitativo, para melhor investigar essa associação.
Por fim, vítimas-agressores apresentaram escores mais altos do que não-envolvidos nos esquemas de Desconfiança, Busca de Aprovação, Negativismo e Padrões Inflexíveis. De acordo com Young et al. (2003), alguns EIDS podem surgir secundariamente a esquemas iniciais incondicionais, sendo uma forma de lidar com o sofrimento advindo do padrão esquemático. O esquema de Busca de Aprovação é um EID condicional, que diz respeito à busca do indivíduo por receber aprovação e reconhecimento externo, para assim sentir-se uma pessoa com valor (Young et al., 2003). Tendo em vista que estudos apontam associações entre vitimização por cyberbullying e prejuízos na autoestima (Hinduja & Patchin, 2012), a presença desse esquema em vítimas-agressores pode representar esforços desses adolescentes em compensar percepções negativas acerca de si próprios.
Outros autores postulam que um autocontrole insuficiente pode estar ligado a comportamentos agressivos, devido a uma avaliação insuficiente dos comportamentos e à dificuldade em restringir impulsos (Gilbert, Daffern, Talevski, & Ogloff, 2013). Assim, vítimas com Padrões Inflexíveis poderiam ter uma maior tendência em se tornarem agressoras também, ao reagirem à violência sofrida. O negativismo também pode ser gerado devido aos contínuos insultos e humilhações na internet, gerando uma visão negativa de si. Além disso, pode proporcionar uma aprendizagem de que as pessoas prejudicam outras intencionalmente (Calvete et al., 2015), propiciando uma visão pessimista sobre o outro.
Calvete et al. (2015) também identificaram maiores níveis de desconfiança em vítimas de cy-berbullying. Tendo em vista que esse esquema diz respeito à percepção do adolescente de que ele será enganado, traído ou abusado por outras pessoas (Young et al., 2003), faz sentido que características relacionadas a esse eid estejam mais presentes após uma experiência de cyber agressão. Segundo Young et al. (2003), uma das formas de lidar com o esquema de desconfiança é adotar cautela em relação às outras pessoas. Essa hipótese foi corroborada no presente estudo, visto que análises de correlação indicaram associações, de moderadas a altas, desse EID com esquemas isolamento social e negativismo.
Quanto às correlações, a mais elevada entre todas as variáveis foi entre vítimas e agressores (.67). Uma vez que há grande interseção entre esses dois grupos, era esperado que tivessem a maior correlação. Em relação aos esquemas, vítimas tiveram a associação significativa com 16 desses, enquanto os agressores com apenas nove. Entre os esquemas que tiveram associações significativas para ambos, todas as correlações foram mais elevadas para as vítimas, com destaque para Desconfiança (.35), Emaranhamento (.33), Autocontrole Insuficiente (.33) e Aprovação (.30). Esses resultados corroboram a hipótese levantada acima de que pode haver motivações de ordem esquemática por trás de cyber agressões. Entretanto, salienta-se que afirmações de causalidade não podem ser inferidas a partir das análises de correlação. Isto é, a direcionalidade de quanto os EIDS favoreceram um papel de vítima, agressor, vítima-agressor ou não-envolvido, ou o quanto é o tipo de envolvimento que favorece a acentuação de determinado EID é apenas hipotetizada.
Algumas limitações do estudo merecem ser apontadas. Em primeiro lugar, é importante salientar que resultados de investigações envolvendo a temática da violência devem ser analisados com cautela, especialmente no que tange às respostas de agressores. Pondera-se, assim, a possibilidade do fenômeno relativo à desejabilidade social, tendência em transmitir uma imagem culturalmente aceitável e em maior consonância com as normas sociais vigentes, tenha influenciado nas informações referidas (Beretvas, Meyers, & Leite, 2002). Outro aspecto a ser ponderado é de que as variáveis sexo e idade não foram analisadas enquanto possíveis mediadoras das relações entre os eids e o tipo de envolvimento no cyberbullying. De forma semelhante, seriam importantes novos estudos que analisassem o papel mediador dos eids na relação entre cyber agressão e problemas psicos-sociais. Além disso, salienta-se que generalização dos resultados deve ser vista com cautela, uma vez que a amostra não é representativa da população.
Os resultados discutidos acima apresentam contribuições para intervenções no cyberbullying. Os altos níveis de envolvimento em agressões online indicam a necessidade de implementarem-se programas de prevenção, ou de ação para quando o problema já ocorreu. Modelos de intervenção descritos na literatura costumam envolver o desenvolvimento de estratégias de coping para pais, professores e vítimas, que incluem desde utilizar meios tecnológicos para lidar com o ocorrido, como bloquear o ofensor, a comportamentos em relação a buscar instâncias judiciais (Hinduja & Patchin, 2009; Kowalski & Limber, 2013; Völlink, Dehue, McGuckin, & Jacobs, 2016). No entanto, intervenções com os envolvidos em cyber agressão também deveriam contemplar mais diretamente os aspectos cognitivos relacionados à experiência, auxiliando as vítimas na diminuição da valência dos EIDS ativados com a vitimização. Dessa forma, a formulação de uma intervenção embasada na Terapia do Esquema de Young para adolescentes vítimas de cyberbullying poderia contribuir para a diminuição do sofrimento associado a esse tipo de agressão.
Considerações Finais
Estudos acerca do cyberbullying ainda são bastante incipientes no contexto nacional, embora seja um fenômeno que -devido à presença crescente das tics no cotidiano das crianças e dos adolescentes- tem cada vez mais se mostrado presente na realidade dessa população. Menores ainda em número são os estudos que buscam relacionar os papéis de vítima e agressor a padrões de personalidade, destacando a inovação do presente trabalho.
Investigações futuras podem priorizar um delineamento longitudinal, a fim de melhor compreender como se dá a relação entre o cyber-bullying e os EIDS ao longo de um determinado período de tempo. Além disso, abordagens qualitativas poderiam investigar melhor as percepções dos adolescentes acerca do cyberbullying, a fim de poder melhor compreender o fenômeno no contexto brasileiro.
O presente estudo avança no sentido de propiciar um maior entendimento de como tem ocorrido o cyberbullying entre adolescentes brasileiros, bem como suas relações com os EIDS. Desse modo, os resultados dessa investigação podem fomentar projetos de combate e prevenção do cyberbullying, focando também nos EIDS como variáveis de trabalho. Acredita-se que, ao melhor compreender os fenômenos associados a esse tipo de violência, mais efetivas serão as tentativas de identificação e intervenção sobre o fenômeno.