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Revista Colombiana de Psicología

Print version ISSN 0121-5469

Rev. colomb. psicol. vol.29 no.1 Bogotá Jan./June 2020

https://doi.org/10.15446/rcp.v29n1.72405 

Artículos

"Faça o que eu digo, não o que eu faço?" Um Estudo sobre a Transmissão Valorativa entre Pais e Filhos

¿"Haz lo que digo, no lo que hago"? Un Estudio sobre la Transmisión Valorativa entre Padres/Madres e Hijos

"Do What I Say, Not What I Do"? A Study of Value Transmission between Fathers/Mothers and Children

ANA KARLA SILVA SOARES1  * 

THIAGO MEDEIROS CAVALCANTI2 

SANDRA ELISA DE ASSIS FREIRE3 

ALESSANDRO TEIXEIRA REZENDE4 

MARIA GABRIELA COSTA RIBEIRO4 

VALDINEY VELOSO GOUVEIA4 

1 Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul, Brasil

2 Faculdade Santa Maria, Santa Maria, Brasil

3 Universidade Federal do Piauí, Piauí, Brasil

4 Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, Brasil


Resumo

Este estudo objetiva identificar em que medida os valores dos pais/das mães e filhos estão relacionados, considerando o tipo de transmissão (direta ou indireta) e seu poder preditivo. Participaram 204 pares de pais e filhos. Dentre as crianças, a maioria era do sexo feminino (54.7%), com idade média de 11 anos (DP=1.01). Quanto aos pais, a maioria formada por mães (69.6%), com idade média de 38 anos (DP=7.82). Os pais/as mães responderam ao Questionário dos Valores Básicos correspondente ao seu grupo etário e a questões sociodemográficas. Os resultados indicaram que os valores dos filhos são influenciados mais fortemente pelos valores percebidos em seus pais/suas mães do que pelos valores que os pais/as mães priorizam ou almejam para seus filhos, apresentando indicadores significativos nas seis subfunções valorativas. Conclui-se que, por meio do processo de socialização, a criança apreende os valores transmitidos por seus pais/suas mães a partir da observação de seus comportamentos, portanto enfatiza-se que o próprio comportamento é a melhor forma para educar os filhos.

Palavras-chave: Actor-Partner Interdependence Model (APIM); correlação; filhos; pais; transmissão de valores

Resumen

El propósito de este estudio es identificar en qué medida los valores de los padres/madres e hijos se relacionan, teniendo en cuenta el tipo de transmisión (directa o indirecta) y su poder predictivo. Participaron 204 pares de padres e hijos. La mayoría de los niños era del sexo femenino (54.7%), con edad promedio de 11 años (DE =1.01). En cuanto a los progenitores, la mayoría fueron madres (69.6%), con edad promedio de 38 años (DE=7.82). Los progenitores contestaron la Encuesta de los Valores Básicos correspondiente a su grupo de edad y a cuestiones sociodemográficas. Los resultados señalan que los valores de los hijos son influenciados con más fuerza por los valores percibidos en sus padres/madres, que por los valores que los padres/madres priorizan o desean transmitir a sus hijos, presentando indicadores significativos en las seis subfunciones valorativas. Se concluye que, mediante el proceso de socialización, el niño aprehende los valores transmitidos por sus padres/madres desde la observación de sus conductas; por lo tanto, se enfatiza que el propio comportamiento es la mejor forma de educar a los hijos.

Palabras clave: Actor-Partner Interdependence Model (APIM); correlación; hijos; padres; transmisión de valores

Abstract

The objective of the study is to identify to what extent the values of fathers/mothers and children are correlated, taking into account the type of transmission (direct or indirect) and its predictive potential. Participants were 204 pairs of parents and children. Most of the children were female (54.7%), and their average age was 11 (DE=1.01). In the case of the parents, the majority were mothers (69.6%), and their average age was 38 (DE =7.82). The fathers/mothers answered the Basic Values Survey corresponding to their age group and socio-demographic aspects. Results show that children's values are more heavily influenced by the values they perceive in their fathers/mothers, than by the values the fathers/ mothers give priority to and wish to convey to their children, according to significant indicators in the six valuation sub-functions. The study concludes that, through the socialization process, children apprehend the values transmitted by their fathers/mothers by observing their conduct. Therefore, we emphasize that parents' behavior is the best way to educate children.

Keywords: Actor-Partner Interdependence Model (APIM); correlation; children; parents; transmission of values

EM SE tratando de situações que envolvem crianças, é comum ouvir ou ler relatos de pais/ mães ou responsáveis que tentam aplicar o ditado popular "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço" No entanto, essa "tática" parece ser algo pouco eficaz, visto que os comportamentos, as atitudes e os valores dos filhos assemelham-se, em sua maioria, ao que eles observam e captam de seus pais/mães, e não ao que lhes é imposto (Gomes, 2015; Meneses, 2017; Soares, 2013; Schneider, 2001).

A socialização tem sido estudada como transmissão de atributos psicossociais baseada em diversos ensaios teóricos e pesquisas empíricas. Na psicologia, o processo é mais analisado por psicólogos do desenvolvimento, tal como observado no Handbook de Socialização (Grusec & Hasting, 2014). Dentre as pesquisas desenvolvidas nesse campo, destacam-se aquelas cujo foco está na compreensão da maneira pela qual ocorre a internalização de fatores sociopsicológicos como as normas, as crenças e os valores humanos. Estes últimos, no processo de socialização, requerem atenção por parte dos pesquisadores, considerando sua complexidade e influência na vida dos indivíduos (Schaffer, 1984).

Não obstante, apesar de sua relevância para a área, as pesquisas sobre as transmissões valorativas se mostram escassas quando comparadas a pesquisas de outras naturezas sobre o tema (e.g., estrutura, análise de prioridades, correlatos ati-tudinais e comportamentais), sendo necessária a ampliação de pesquisas nessa esfera que abranjam questões do tipo: como será que ocorre a transmissão de valores entre pais/mães e filhos? Será que os valores que as crianças apreendem são aqueles desejados por seus pais/mães? Ou os que elas observam no dia a dia como externalizados por seus pais/mães?

Transmissão de Valores

As crianças apreendem valores por meio do processo de socialização, o qual envolve vários agentes, tais como escola, família e pais (Grusec, 2011). A transmissão de valores entre pais/mães e filhos é considerada uma área de estudo de suma relevância para determinar a eficácia do processo de socialização dos indivíduos (Grusec, Goodnow, & Kuczynski, 2000). As pesquisas sobre valores de pais/mães e filhos, com poucas exceções, dedicam--se a estudar apenas suas prioridades valorativas e a estrutura de valores apresentada por ambos (Albanese, De Blasio, & Sestito, 2016; Knafo, 2003; Perez-Brena, Updegraff, & Umana-Taylor, 2015), com destaque a algumas exceções clássicas como os achados de Molpeceres (1994) e Kohn (1977), que realizaram pesquisas sobre a relação entre os valores de pais/mães e filhos e sua forma de internalização.

Não obstante, além desses aspectos, é importante compreender a congruência dos valores de pais/mães e filhos. Entende-se por congruência de valores a medida que os pais/as mães e as crianças atribuem à mesma importância para um determinado valor (Knafo & Schwartz, 2001; Schneider, 2001). Assim, a congruência pode ser atribuída em função de variadas fontes, tais como as características dos pais/das mães (Schönpflug, 2001), das crianças (Knafo & Schwartz, 2004) e do contexto social (Boehnke, 2001) que podem influenciar no sucesso dos pais/das mães em transmitir suas prioridades valorativas, com destaque àquela em que os pais/as mães influenciam nos valores das crianças (Grusec & Kuczynski, 1997), contemplada por meio dos estudos que envolvem os estilos parentais (Schneider, 2001).

O nível de congruência de pais/mães-filhos varia em função do conteúdo dos valores. Esse aspecto é distinguido pelo tipo motivacional (Schwartz, 1992) ou pela subfunção valorativa (Schneider, 2001; Soares, 2013). Por exemplo, valores de religiosidade geralmente apresentam congruência elevada (Kalish & Johnson, 1972; Miller & Glass, 1989; Schneider, 2001). Ademais, outro aspecto que influencia o nível de congruência é determinado pelo processo de internalização, que é dividido em duas etapas. Primeiramente, as crianças devem perceber quais valores são endossados pelos pais. Em seguida, deve ocorrer a aceitação dos valores dos pais/das mães como seus próprios valores (Grusec & Goodnow, 1994). Na fase de percepção, pode ocorrer uma percepção errónea ou uma interpretação equívoca por parte das crianças. Enquanto na etapa seguinte, a percepção pode ser correta, mas a criança tem a possibilidade de rejeitá-la. Assim, o grau de congruência é maior quando a relação entre a percepção correta dos valores dos pais/das mães e sua aceitação é mais elevada (Knafo & Schwartz, 2004; Soares, 2013).

Foram utilizados os seguintes termos de busca com operadores booleanos: ("transmissão" or "socialização") and ("valores") nas bases de dados: Index Psi, Pepsic, SCIELO, Lilacs, PSYCINFO e PubMed (2018). Para as bases PSVCINFO e PubMed, foram utilizados os mesmos termos, traduzidos para o inglês, com a soma de novos termos para a seleção de estudos com amostras brasileiras: ("transmission" OR "socialization") AND ("valué") and ("Brazil" OR "Brazilian" OR "Portuguese"). Além do buscador Google Acadêmico, no qual foram empregados os termos nos dois idiomas (português e inglês). Inicialmente, identificaram-se 90 ocorrências, sendo duas no Index Psi, três no Pepsic, três SCIELO, duas no Lilacs, 12 no PSYCINFO, 15 no PubMed e 53 ocorrências no Google Acadêmico (nos dois idiomas).

Após a análise das publicações, identifica-se que há um predomínio de pesquisas com amostras de adolescentes, provavelmente em virtude das mudanças vivenciadas no processo de socialização e no próprio fato de o desenvolvimento cognitivo ser refletido de forma mais notória e impactante nesse grupo (Calderón-Tena, Knight, & Carlo, 2011). Ao considerar alguns critérios de inclusão, tais como exclusão de pesquisas que tratem do processo com outros agentes (e.g., escola, pares, irmãos) e em outras faixas etárias (e.g., adolescentes), destacaram-se alguns estudos tanto no contexto brasileiro (Gomes, 2015; Schneider, 2001; Soares, 2013; Meneses, 2017) quanto no internacional (Schönpflug & Yan, 2012; Doyle, Magan, Cryer--Coupet, Goldston, & Estroff, 2016).

Por exemplo, Schõnpflug e Yan (2012) analisaram o processo de transmissão de valores entre 216 pais/mães e filhos do leste da Alemanha e de Xangai, na China, considerando o modelo que avalia o impacto dos papéis parentais de pais e mães na orientação valorativa de seus filhos, mediada pela motivação que os atores parentais possuem para promover os valores e a motivação das crianças para aceitar a transmissão valorativa, ao partir do emprego doa modelo de Schwartz (2005) para a mensuração dos valores. Os resultados indicaram que, na Alemanha oriental, as mães transmitem mais valores individualistas, enquanto, em Xangai, os pais transmitiram valores tanto nas dimensões de individualismo quanto nas de coletivismo. Por sua vez, o aspecto motivacional influenciou significativamente apenas a transmissão de valores entre pais e filhos na China.

No Brasil, foram identificados outros estudos que avaliam a transmissão de valores. Contudo, cada um apresenta especificidades. Schneider (2001) avaliou a transmissão de valores entre pais/mães e filhos a partir da teoria funcionalista dos valores humanos de Gouveia (2013), mas com a participação de crianças e adolescentes. Os resultados indicaram que os pais/as mães transmitiam mais valores sociais, quando comparados aos valores pessoais. Nessa direção, também se identifica o estudo de Gomes (2015), que investigou a transmissão de valores em crianças, segundo a teoria de valores de Schwartz (2005), considerando apenas a transmissão materna, que inclui a relação com outros construtos, tais como personalidade e religiosidade. Os resultados demonstraram que a transmissão valorativa de mães e filhos ocorre mais efetivamente de forma indireta, isto é, com relação aos valores que os filhos percebem naquelas.

Como observado nos exemplos anteriores, além do objeto de estudo e da amostra, há diferenças na forma como os valores são concebidos e mensurados, reflexo de um elemento vivenciado na psicologia e que está diretamente relacionado à compreensão que se terá da maneira como os valores são transmitidos. Assim, é importante destacar qual a concepção de valores que será utilizada no presente estudo, haja vista que, na literatura, são reconhecidos vários modelos teóricos que avaliam esses construtos, a exemplo dos postulados pelos renomados pesquisadores Ronald Inglehart e Shalom H. Schwartz. Contudo, apesar dos esforços das últimas décadas em aprimorar teorias e instrumentos para o público infantil (Collins, Lee, Sneddon, & Döring, 2017; Melech, 2001), tais modelos priorizam em seus estudos amostras constituídas por adultos, com alguns grupos escassos de adolescentes, não dando a devida atenção aos valores infantis.

Com vistas a contribuir com o preenchimento dessa lacuna, Gouveia, Milfont, Soares, Andrade e Lauers-Leite (2011) propuseram uma medida pautada na Teoria Funcionalista dos Valores (Gouveia, 2013), direcionada para amostras infantis, a qual fundamenta o presente estudo e é descrita com detalhes a seguir.

Teoria Funcionalista dos Valores Humanos

A Teoria Funcionalista dos Valores Humanos compreende um modelo alternativo aos modelos mais clássicos de Ronald Inglehart e Shalom H. Schwartz, visto seu caráter integrador e parcimonioso (Gouveia, 2013, 2016). Nessa teoria, os valores são entendidos a partir das funções que apresentam, isto é, a capacidade que possuem de guiar os comportamentos e expressar cognitivamente as necessidades humanas. Assim, são definidos como categorias de orientação baseadas nas necessidades dos indivíduos, que funcionam como guias do comportamento das pessoas responsáveis por explicar a maneira como elas pensam, agem e sentem no dia a dia (Gouveia, 2016).

Considerando o cruzamento das funções principais dos valores (guiar e orientar), originam-se as seis subfunções valorativas que compõem esse modelo teórico. A função de guiar o comportamento dos indivíduos reflete a dimensão tipo de orientação, dividida em três tipos: (a) pessoal (o indivíduo por ele mesmo, com ênfase nos aspectos intrapessoais), (b) central (o propósito geral da vida) e (c) social (tem por foco os aspectos interpessoais e o indivíduo na comunidade). Por sua vez, a função de representação cognitiva das necessidades é refletida na dimensão tipo de motivador, caracterizado em dois tipos: (a) materialista (compreende a vida como fonte de ameaças a serem superadas) e (b) humanitária (a vida é vista como fonte de oportunidades a serem aproveitadas). Do cruzamento das duas dimensões, derivam as subfunções valorativas e seus descritores (ver Figura 1).

Figura 1 Dimensões, subfunções e valores específicos segundo Gouveia (2016)

Na Figura 1, são identificadas seis subfunções (experimentação, realização, existência, suprapes-soal, interativa e normativa), em que cada subfun-ção apresenta descritores (valores específicos). Esses valores são mensurados em adolescentes e adultos por meio do Questionário dos Valores Básicos (QVB, Gouveia, 2013), constituído por 18 itens/valores específicos respondidos em uma escala de resposta de sete pontos, que varia de 1 (totalmente não importante) a 7 (totalmente importante). Contudo, há a versão para crianças, o Questionário dos Valores Básicos - Infantil (QVB--i, Gouveia et al., 2011), que também é composto por 18 itens/valores com linguagem adaptada para esse público, com alguns valores da versão para adultos substituídos na versão infantil (sexualidade por estimulação, beleza por artes e maturidade por igualdade).

Tradicionalmente, os autores têm demonstrado preocupação central com a maneira pela qual as crianças internalizam os valores, ou seja, captam as normas e os comportamentos sociais como meio de autorregulação ou orientação de suas ações (Grusec & Davidov, 2010). Essa preocupação destaca a influência que os valores humanos exercem sobre os indivíduos, sendo fundamental ampliar os conhecimentos sobre os valores de socialização, isto é, aqueles que os pais/as mães desejam para os filhos é importante, não apenas pela compreensão do construto em si (valores humanos), mas também por considerar que sua contribuição na explicação e predição de atitudes e comportamentos podem gerar conhecimento de âmbito tanto teórico (expansão de conhecimento sobre valores humanos) quanto prático (elaboração de programas de intervenção).

Desse modo, o presente estudo tem por objetivo geral identificar em que medida e direção os valores dos pais/das mães e dos filhos estão relacionados. Especificamente, espera-se identificar se o tipo de transmissão indireta, avaliada por meio da relação entre os valores que as crianças percebem em seus pais/mães e seus próprios valores, apresenta-se mais forte que a transmissão direta, mensurada por meio das correlações entre as prioridades valorativas dos pais/das mães e dos filhos. Ademais, busca-se testar o poder preditivos dos valores humanos por meio de análises diáticas, com a utilização do modelo de interdependência ator-parceiro (Actor-Partner Interdependence Model - Apim - Kenny, Kashy, & Cook, 2006).

Método

Participantes

Participaram do presente estudo 204 pares de pais/mães e filhos. Dentre as crianças, a maioria é do sexo feminino (54.7%), com idade média de 11 anos (DP=1.01; com variação de 9 a 12 anos), e de escolas públicas (68.6%). No que diz respeito à religião, a maioria se declarou católica (60.4%), considerando-se com um nível de religiosidade acima do ponto mediano da escala de resposta (M=2.9; DP=1.28; com variação de 0 = "Nada religioso" a 4 = "Muito religioso"). Com respeito aos pais/às mães, a maioria são mães (69.6%), com idade média de 38 anos (DP=7.82; com variação de 23 a 65 anos), declarando-se católica (61%) e pontuando acima da mediana da escala de resposta da medida de nível de religiosidade (M=2.8; DP=1.23). Tratou-se de uma amostra de conveniência (não probabilística) que contou com aqueles que, quando solicitados, se dispuseram a participar da pesquisa.

Instrumentos

Os participantes responderam à medida de valores correspondente ao seu grupo etário e a questões sociodemográficas (sexo, idade, religião e nível de religiosidade). Todos responderam à escala de valores considerando duas instruções. Os pais/ as mães responderam à medida com a instrução tradicional referente à medida em que esses valores são importantes como princípios que guiam sua vida, e à mesma escala com a instrução alterada para avaliar o quanto eles desejam que cada um dos valores seja princípios que guiem a vida de seus filhos. As crianças também responderam à medida de valores com a instrução-padrão e outra versão similar com as instruções modificadas para avaliar em que medida eles percebem tais valores como importantes para seus pais/mães.

Especificamente, os pais/as mães responderam ao qvb, que é composto por 18 itens ou valores específicos, respondidos em escala de sete pontos, que varia de 1 (totalmente não importante) a 7 (extremamente importante). Esses valores são distribuídos em seis subfunções valorativas: (a) experimentação, (b) realização, (c) existência, (d) suprapessoal, (e) interativa e (f) normativa. Essa medida apresenta evidências de validade e precisão no âmbito nacional e internacional (Medeiros, 2011). No Brasil são identificados alfas de Cronbach que variam de .48 (experimentação, realização, interativa) a .57 (normativa) (Gouveia, 2013) e, em outros países, a exemplo das Filipinas, com os indicadores que variam de .61 (realização) a .68 (interativa) (Soares, 2015); no contexto espanhol, com variações semelhantes de .66 (realização) a .52 (normativa e suprapessoal) (Gouveia et al., 2010), considerados aceitáveis para fins de pesquisa (Clark & Watson, 1995).

Enquanto as crianças preencheram o QVB-i, medida adaptada por Gouveia e colaboradores (2011), que é constituída por 18 itens de acordo com uma escala de cinco pontos, representados por feições de bonecos e números, que variam de 1 (nenhuma importância) a 5 (máxima importância). Na literatura, identificam-se indicadores satisfatórios quanto às evidências de validade e precisão da medida, com alfas de Cronbach entre .51 (suprapessoal) e .72 (interativa) (Gouveia et al., 2011; Soares, 2013).

Procedimentos

Inicialmente, contataram-se os diretores das instituições de ensino a fim de obter permissão para a aplicação dos questionários. Explicaram-se os objetivos da pesquisa e, após o consentimento, combinou-se o melhor horário para a realização da coleta de dados. A aplicação foi efetuada por dois colaboradores devidamente aptos que encaminharam, pelas crianças, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE - o das crianças e o de seus responsáveis) e o livreto para as respostas aos pais/às mães. Em outro momento, realizaram a aplicação individual em ambiente coletivo de sala de aula com os estudantes cujos pais/mães autorizaram a participação. Cada par de questionários apresentava um código alfanumérico que permitiu o pareamento. Enfatizaram-se o ca-ráter voluntário e a garantia do anonimato e sigilo da participação, considerando todos os preceitos éticos de pesquisas que envolvem seres humanos (Aprovação n.° 88.166/2012 - Comitê de Ética em Pesquisa/Universidade Federal da Paraíba). Foram necessários, em média, 30 minutos para as crianças concluírem essa atividade.

Análise dos Dados

As análises foram realizadas por meio dos softwares ibm spss e amos (versões 21). Com o primeiro, foi possível calcular estatísticas descritivas, análises diáticas e correlações r de Pearson. Por sua vez, o software amos foi empregado para a realização de análise fatorial confirmatória (Byrne, 2016) e a elaboração do modelo de interdependência ator-parceiro (Apim, Kenny et al., 2006). Para tanto, são considerados como indicadores de ajuste do modelo: x2, X2/gl, Comparative FitIndex (CFI), Standardized Root Mean Square Residual (SRMR) e Root-Mean-Square Error of Approximation (RMSEA).

No caso do X2 (qui-quadrado), seu objetivo é avaliar a probabilidade de o modelo teórico se ajustar aos dados, em que valores baixos são indicadores de modelos ajustados, geralmente é utilizado relacionando seu valor aos graus de liberdade do modelo X2/gl), com índices considerados adequados entre dois e três (com aceitação de até cinco). O CFI é um índice adicional de ajuste de modelo que funciona satisfatoriamente com amostras de tamanho reduzido; valores próximos de .90 expressam adequação do modelo. E o RMSEA baseia-se nos residuais; valores altos são indicação de um modelo não ajustado, e a raiz quadrada média residual estandardizada (SRMR), sendo aceitos índices entre .05 e .08, admitindo-se até .10 (Hair, Black, Babin, Anderson, & Tatham, 2009; Tabachnick & Fidell, 2013). Para a análise da invariância fatorial, são recomendados os indicadores de A X2/gl, ACFI e ARMSEA, em que valores de diferença superiores a .01 indicam a não invariância do modelo (Damásio, 2013; Milfont & Fischer, 2010).

Resultados

Estatísticas Descritivas

Inicialmente, procurou-se calcular a pontuação média dos pais/das mães e de seus filhos para cada uma das subfunções valorativas nas duas versões da medida de valores respondidas por ambos. Os resultados podem ser observados na Tabela 1.

Tabela 1 Prioridades Valorativas de Pais/Mães e Filhos nas Medidas de Valores Humanos 

Nota: *Respostas que variam de 1 a 5; ** respostas que variam de 1 a 7; M = mêdia; DP = desvio-padrão.

Como observado na Tabela 1, os filhos prio-rizam em maior grau valores das subfunções interativa (M=4.17; DP=. 84), existência (M=4.37; dp=.79) e experimentação (M=4.20; DP=.84) e de orientação social (M=4.16; DP=.75). Os pais atribuem maior importância às subfunções existência (M=5.93; DP=.92), normativa (M=5.92; DP=.88) e interativa (M=5.58; DP=.99) e os valores sociais (M=5.75; dp=.82) [Lambda de Wilks=.02; F (5, 196)=1961,95, p<.001].

No que diz respeito aos valores que os filhos perceberam como mais importantes para seus pais/suas mães, destacam-se os das subfunções existência (M=4.50; DP=0.80), interativa (M=4.36; DP=0.79) e normativa (M=4.26; DP=0.90) e os valores sociais (M=4.31; DP=0.76) [Lambda de Wilks=.02; F (5, 195)=1412,35, p<.001]. Enquanto os pais/as mães indicaram desejar que seus filhos priorizassem em maior grau valores de existência (M=6.03; DP=.91), normativa (M=6.01; DP=.90) e suprapessoais (M=5.58; DP= 1.06) e valores centrais (M= 5.81; DP=.88) [Lambda de Wilks =.01; F (6, 190)=2773,28, p<.001].

Correlatos Valorativos

Os valores humanos são variáveis cuja transmissão é influenciada pelo processo de socialização, em que o grau de não dependência é resultado da proximidade e influência contextual (Molpeceres, 1994; Kohn, 1977). A não dependência é mensurada por meio da associação entre os escores dos participantes de uma díade. Esse procedimento consiste na realização de uma análise pareada dos dados empregada em diversas situações de pesquisa, tais como com pares de pessoas (e.g., casais, amigos, pais/ mães-filhos), participantes de pesquisa em laboratório que não interagem, mas recebem a mesma informação no experimento (e.g., pesquisas com pré e pós-teste), aspectos individuais duplos (e.g., registros dos dois hemisférios cerebrais, dos dois olhos), entre outras situações de pesquisa cujo objetivo seja analisar emparelhadamente dois participantes avaliados nas mesmas variáveis (Alferes & Kenny, 2009; Barni, Ranieri, Scabini, & Rosnati, 2011; Kenny et al., 2006).

As pesquisas que utilizam dados diáticos possuem uma questão importante que deve ser definida antes de se proceder a análises dos dados: os dois membros da díade podem ou não ser diferenciados por alguma variável? (Kenny et al., 2006). A resposta envolve dois tipos de membros: os distinguíveis ou indistinguíveis. Neste estudo, as díades são definidas como distinguíveis, isto é, existe alguma variável que pode ser utilizada para diferenciar os dois participantes, por exemplo, pais-filhos diferenciados por seus papéis sociais (Alferes & Kenny, 2009), o que indica que existe um fator significativo que permite a ordenação das pessoas e são diferenciados por uma variável within-dyads (variável família em um estudo de pais/mães e filhos). Nesses casos, é possível utilizar técnicas mais rotineiras na avaliação da não dependência, tais como o cálculo do coeficiente de correlação de Pearson (r) e, adicionalmente, a avaliação dos limites inferior e superior do intervalo de confiança (I.C.) do coeficiente de correlação entre os escores dos participantes da díade (Kenny et al., 2006). Os resultados desta análise estão reportados na Tabela 2.

Tabela 2 Análise Diática da Medida de Valores Humanos entre Pais/Mães e Filhos 

Nota: *p<.05

Como observado na Tabela 2, a transmissão indireta, isto é, os coeficientes de correlação das prioridades valorativas dos filhos e os percebidos por estes como sendo priorizados por seus pais, apresentou índices mais elevados (e.g., resistência=.66) quando comparados com a transmissão direta, mensurada pela correlação dos valores que pais/mães e filhos priorizam, cujos resultados identificaram correlação positiva e significativa apenas com as subfunções realização (r=.18), existência (r=.17) e normativa (r=.19). Ademais, quando avaliada a relação dos valores priorizados pelos filhos e os almejados por seus pais/mães, houve um padrão semelhante ao da transmissão direta, mas com coeficientes mais elevados nas subfunções de realização (r=.24) e normativa (r=.20) e menor nos valores de existência (r=.16).

Adicionalmente, foram realizadas análises de correlação entre os valores percebidos nos pais/ nas mães pelas crianças e os valores priorizados pelos pais/pelas mães para verificar em que medida a percepção dos filhos condiziam com os valores dos pais. Os resultados indicaram que todas as correlações foram significativas (experimentação r=.21; realização r=.25; suprapessoal r=.15; existência r=.34, interativa r=.16 e normativa r=.18), o que indica que a percepção das crianças e os valores propriamente ditos dos pais são próximos e revela certo grau de acurácia.

Em seguida, por meio de análises de regressão múltipla (método stepwise), verificou-se quais subfunções valorativas (transmissão direta, indireta e almejados pelos pais/pelas mães) prediziam os valores priorizados pelos filhos. Os resultados indicaram que a subfunção realização foi predita pelos valores percebidos pelos ilhos (transmissão indireta, (β=.56, B=.59, IC 95% =.47/70, p<.001) e almejados pelos pais/pelas mães (β =.12, B=.12, IC 95% =.01/.24, p<.05) e as subfunções suprapessoal (β =.52, B=.45, IC 95% =.34/.55, p<.001, existência (β =.66, B=.65, IC 95% =.55/76, p<.001), interativa (P=.51, B=.51, IC 95% =.38/.63, p<.001), normativa (β =.65, B=.64, IC 95% =.54/75, p<.001) e experimentação (β =.48, B=.44, IC 95% =.33/.56, p<.001) foram preditas apenas pelos valores que os ilhos percebiam em seus pais/suas mães (transmissão indireta).

Invariância Fatorial

A fim de verificar a adequação de se interpretar e estimar as correlações e regressões de pais/mães e filhos na variável latente em estudo, optou-se por verificar a presença de invariância fatorial, principalmente no que diz respeito à invariância métrica, visto que a corroboração dessa hipótese indica que os itens apresentam igual relevância para o construto nos dois grupos de participantes, isto é, apresentam significados equivalentes em cada um dos grupos avaliados (Byrne, 2016; Damásio, 2013; Sass, 2011). Os indicadores de ajuste dos modelos restritos foram comparados com os do modelo sem qualquer restrição. Os resultados são apresentados na Tabela 3.

Tabela 3 Invariância Fatorial do QVB- e QVB-I 

Nota: * p<.05. Foram utilizados valores transformados em escores T.

Os resultados indicam que as medidas apresentam invariância configural, métrica, escalar e residual, o que demonstra a adequação no processo de interpretação das correlações entre os fatores latentes de pais/mães e filhos, visto que, por exemplo, o modelo apresenta invariância métrica, isto é, as restrições nas saturações não sugerem diferença estatisticamente significativa entre os itens das escalas respondidos pelos dois grupos amostrais.

APIM de Díades Distinguíveis

Diante dos resultados anteriormente identificados, foi construído um modelo de interdependência ator-parceiro (Apim), que visa avaliar se os resultados de um indivíduo em uma variável preditora (VI) afeta seus resultados (actor effects) e os resultados de seu parceiro (partner effects). Assim, os efeitos do ator consistem em como a pontuação de cada participante no preditor está associada à pontuação da própria pessoa na variável resultado. Já os efeitos do parceiro referem-se à maneira como a pontuação de cada participante no resultado é associada à pontuação do seu parceiro no preditor.

Especificamente, apresenta-se o modelo Apim com as subfunções dos valores humanos de pais e crianças, em que se avalia o efeito dos valores dos pais/das mães nos valores que eles mesmos almejam para seus filhos e dos valores dos filhos nos valores percebidos nos pais/nas mães (efeito de atores), além do efeito de parceiro dos valores dos pais/das mães e os valores que os filhos percebem neles/nelas; e dos valores dos filhos nos valores almejados pelos pais/ pelas mães (Figura 2). Desse modo, considerando a estrutura multifatorial dos valores humanos, os resultados são apresentados para cada uma das seis subfunções valorativas (ver Tabela 4).

Tabela 4 Indicadores Sumarizados do Modelo Apim para Valores Humanos 

Nota: *p<.05. VF: valores dos filhos; vpe: valores percebidos nos pais/nas mães; VP: valores dos pais/das mães; VAI: valores almejados pelos pais/pelas mães para seus filhos. IC = Intervalo de Confiança de 95%.

Na Tabela 4, no que diz respeito aos partner effects, observa-se que os pesos padronizados indicam que os valores de experimentação, realização, suprapessoal, existência, interativa e normativa apresentam relação estatisticamente significativa e positiva para o efeito de ator tanto dos filhos quanto dos pais/das mães, destacando-se os maiores efeitos nos valores normativos e de existência (efeitos de .64 e .62, respectivamente). Especificamente, tratando dos valores sociais, na subfunção experimentação, os efeitos de ator (actor effects) foram significativos (VF → vpe / VP → VAI), no entanto o efeito parceiro (partner effects) é significativo apenas para os valores dos pais/das mães e os valores percebidos deles/d (VP → vpe). Para a subfunção realização, todos os estimadores foram significativos, considerando o efeito ator (VF → vpe / VP → VAI) e parceiro (VF → VAI/ VP → vpe).

No que diz respeito às subfunções do eixo central, suprapessoal apresentou resultados significativos para os efeitos ator (VF → vpe / VP → vpl), contudo nenhum para os estimadores do efeito parceiro. Existência foi significativo para todos os efeitos ator (VF → vpe / VP -> VAI), e o efeito parceiro dos valores dos pais/das mães e os valores percebidos dos pais/das mães (VP → vpe). Por fim, os valores individuais apresentaram estimadores significativos para interativa no efeito ator (VF → vpe / VP → VAI), mas apenas os valores dos pais/das mães e os valores percebidos deles/delas (VP → vpe), no efeito parceiro. Na subfunção normativa, no efeito ator, foram todos significativos (VF → vpe / VP → VAI), porém nenhum para o efeito parceiro.

Figura 2 Modelo de interdependência ator-parceiro da transmissão de valores 

Discussão

O presente estudo teve como objetivo conhecer em que medida e direção os valores humanos de pais/ mães e filhos se correlacionariam, considerando o tipo de transmissão (direta ou indireta) e seu poder preditivo. Confia-se que esse objetivo tenha sido alcançado. Concretamente, foi possível verificar que a transmissão indireta é mais forte que a direta, algo congruente com os resultados identificados em pesquisas prévias (Gomes, 2015; Lima, 2013; Perez-Brena et al., 2015; Schõnpflug, 2001).

Entretanto, tal como em todo empreendimento científico, mesmo que os resultados tenham sido alcançados, é pertinente destacar algumas potenciais limitações. Inicialmente, ressalta-se o fato de a amostra ser de conveniência (não probabilísticas), contando com a colaboração daqueles que concordaram em participar da pesquisa, restringindo a generalização dos resultados para além do escopo deste estudo. Destaca-se ainda como uma limitação potencial o emprego de medidas de autorrelato (lápis e papel), o que possibilita maior liberdade ao respondente de falsear suas respostas propo-sitalmente (Kohlsdorf & Costa, 2009) ou tê-las enviesada pela desejabilidade social, já que os pais/ as mães tendem a buscar apresentar e transmitir para seus filhos condutas e valores que consideram socialmente desejáveis, enquanto as crianças buscam a aprovação social e a de seus pais/mães (Soares et al., 2016), sendo essa dificuldade própria de medidas que têm essa natureza, fomentando-se o desenvolvimento de alternativas, a exemplo das medidas implícitas (Gouveia, Athayde, Mendes, & Freire, 2012). Porém, é relevante destacar que essas limitações não invalidam os resultados do presente estudo.

Partindo para os principais achados da pesquisa, primeiramente, observa-se que os filhos priorizam em maior grau valores interativos, de existência e experimentação, percebendo esses mesmos valores, com exceção da experimentação, que é substituído pelos normativos, como sendo priorizados pelo seus pais/suas mães. Já os pais/as mães valorizam subfunções de existência, normativa e interativa e almejam que seus filhos endossem em maior nível esses valores, com exceção dos in-terativos que são substituídos pelos suprapessoais. Assim, observa-se que as crianças valorizam mais subfunções idealistas (interativa e experimentação) que expressam uma orientação universal, pautada em ideias e princípios mais abstratos, coerente com um espírito inovador, característico de indivíduos de menor idade. Enquanto nos pais/nas mães, destacaram-se os valores materialistas (existência e normativa) que são de ordem prática, de modo que caracterizam pessoas que possuem prioridades, metas visíveis e claras, o que é mais provável em pessoas mais velhas (Medeiros, Sá, Monteiro, Santos, & Gusmão, 2017).

Esses aspectos reforçam a hipótese de que os valores possuem funções diversas para indivíduos de diferentes estágios de desenvolvimento, com os pais/as mães priorizando e almejando valores materialistas para suas crianças e estas, por sua vez, observando essas subfunções como ressaltadas em seus pais/mães, mas endossando aqueles característicos de jovens que anseiam mudanças e relações íntimas estáveis (Gouveia, Vione, Milfont, & Fischer, 2015). Segundo Lam (2016), os infantes estão em um constante processo de aprendizagem e, devido à proximidade e à interação com seus pais/mães, grande parte de sua aprendizagem é altamente influenciada por estes/estas, semelhante ao que ocorre com seus valores que são construídos durante o processo de socialização e têm a família como uma de suas bases (Medeiros, Soares, & Vione, 2016).

Desse modo, semelhante ao observado em outras pesquisas (Schneider, 2001; Soares, 2013; Gomes, 2015), o modelo de transmissão indireta de valores apresentou maior intensidade quando comparado ao modelo direto. Especificamente, as crianças obtiveram maior correlação com os valores que percebiam como prioritários em seus pais/ mães, com destaque para os valores de existência, que são localizados no motivador materialista, compatíveis com as orientações sociais e pessoais (Gouveia, 2016), o que reforça o papel importante da aprendizagem observacional e de que os valores são mais adequadamente internalizados quando os pais/as mães os externalizam em dimensões mais comportamentais do que por meio de verbalizações.

A propósito do anteriormente comentado, verificou-se ainda que a percepção da criança sobre os valores dos pais/das mães é um preditor mais eficiente dos seus próprios valores, quando comparados aos valores endossados ou almejados pelos seus pais/suas mães, com as seis subfunções que cumprem esse papel, destacando-se como mais fortes preditores os valores de existência e normativo, ambos de motivador materialista, característicos de sociedades que vivenciam insegurança física e económica (Gouveia, 2013; Inglehart, 1977), tal como o atual contexto brasileiro. Esses dados evidenciam a relevância de se ampliarem as discussões sobre os elementos que influenciam o processo de transmissão valorativa, com a inclusão do papel influenciador e moderador da cultura (Bardin & Goodwin, 2011).

Os resultados identificados no presente estudo corroboram a hipótese de que os valores dos filhos são influenciados mais fortemente pelos valores percebidos em seus pais/mães (efeito de ator) do que pelos valores que os pais/as mães almejam para seus filhos (efeito de parceiro), com indicadores significativos nas seis subfunções valorativas. Isso é importante, pois indica que os filhos conseguem identificar os valores dos pais/das mães a partir do que eles observam, e não pelo discurso do que eles consideram mais desejáveis. Esse resultado é refletido no efeito ator, já que os valores mais altos de estimadores são encontrados na relação estabelecida entre os valores dos filhos e o que eles próprios notam em seus progenitores. Dessa forma, pode-se considerar que tal resultado vai em direção à literatura da área, que afirma que, por meio do processo de socialização, a criança apreende os valores transmitidos por seus pais/mães a partir da observação de seus comportamentos (Grusec, 2011), enfatizando que o próprio comportamento é a melhor forma para educar os filhos.

Por fim, ressalta-se que, na medida em que se compreende mais adequadamente o meio pelo qual os filhos internalizam os valores no processo de socialização familiar, ampliam-se as possibilidades de estudos e aplicações futuras da temática, que poderão ser direcionados à elaboração de pautas de educação no âmbito axiológico, como o desenvolvimento de programas de intervenção direcionados à educação em valores humanos que considerem as características dos pais/das mães e às exigências atuais da sociedade, o que possibilita relações sociais harmoniosas e adaptadas. Ademais, permite a contemplação de crianças de menor idade (a partir dos 6 anos), visto que, nesse estágio do desenvolvimento, a criança passa a ser exposta a novas influências sociais, hábitos e habilidades que, muitas vezes, se sobrepõem às práticas familiares, sendo importante compreender como os indivíduos com essa faixa etária internalizam os padrões axiológicos aos quais são expostos. Além disso, é necessário inserir como características para a análise questões relacionadas à estrutura familiar e ao nível económico da família, a fim de compreender a dinâmica familiar e ampliar as possibilidades de interpretação dos dados.

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Como citar o artigo: Soares, A. K. S., Cavalcanti, T. M., Freire, S. E. A., Rezende, T.A., Ribeiro, M. G. C., & Gouveia, V. V. (2020). "Faça o que eu digo, não o que eu faço?" Um Estudo sobre a Transmissão Valorativa entre Pais e Filhos. Revista Colombiana de Psicologia, 29, 29-44. doi: https://doi.org/10.15446/rcp.v29n1.72405

Recebido: 24 de Maio de 2018; Aceito: 23 de Setembro de 2019

* A correspondência relacionada com este artigo deve estar dirigida à Dra. Ana Karla Silva Soares, e-mail: karla.soares@ufms.br; akssoares@gmail.com. Endereço: Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - Faculdade de Ciências Humanas (FACH), Curso de Psicologia, Av. Costa e Silva, s/n.°, Bairro Universitário, cep: 79070-900, Campo Grande-Ms, Brasil

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