Introdução
O movimento migratório populacional acompanha a humanidade desde seus primórdios. Os motivos que levam o ser humano a migrar são os mais diversos, passando por questões econômicas, sociais, políticas e climáticas. Nos últimos anos, houve um crescimento expressivo nas migrações internacionais que, em muitos casos, decorrem diretamente da violação aos direitos humanos básicos.
O Brasil é considerado um país com vasto histórico de abertura a imigrantes. No entanto, é recente a preocupação em regular essa migração de forma mais efetiva, tendo como exemplo a revogação do Estatuto do Estrangeiro, com a criação da Lei de Migração. A assinatura de tratados internacionais, a adaptação da legislação interna e a criação de diretrizes a serem seguidas no trato migratório, aliadas à proteção aos direitos humanos, são reflexos da tentativa institucional de enfrentar essa problemática e prestar auxílio aos que aqui chegam.
A Lei de Refúgio, em consonância com a nova Lei de Migração, visa tutelar direitos e garantias aos migrantes. Assim, tem-se como primordial estabelecer igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, e, nesse viés, o trabalho pode ser considerado um meio para alcançar a recuperação da dignidade da pessoa humana que foi negada a esse indivíduo em situação de extrema vulnerabilidade. A dignidade da pessoa humana está intimamente ligada à possibilidade de o indivíduo conseguir prover os meios de subsistência. No sistema capitalista, a venda da força de trabalho é o método tido como mais legítimo para se obter inserção e ascensão social. Cabe ao Estado, por conseguinte, assegurar meios de inserção laboral digna ao refugiado acolhido no Brasil.
Nesse sentido, a ampliação do conceito de refugiado vem ao encontro da atual situação vivenciada pelo Brasil na recepção massiva de imigrantes venezuelanos em condições de grave e generalizada violação aos direitos humanos. Com a ampliação da possibilidade de concessão de refúgio, esses indivíduos compelidos a abandonar a Venezuela e procurar abrigo em outras nações (Brasil 2019) veem aí uma alternativa para permanecer no país. Isso porque, na condição de refugiados, lhes são garantidas a emissão da carteira de trabalho e previdência social (CTPS) e a possibilidade de inserção no mercado de trabalho brasileiro, ao menos no plano teórico.
Dialogando com as contribuições teóricas repertoriadas na seção seguinte, que aborda o debate internacional sobre a relação entre as migrações e a integração ao mercado de trabalho, neste estudo, trata-se de avaliar a implementação da política pública de acolhida e interiorização de migrantes venezuelanos no Sul do Brasil. Dessa forma, busca-se averiguar quais são as principais dificuldades que impossibilitam a inserção adequada dos imigrantes venezuelanos no mercado de trabalho, bem como, após a sua inserção, se a normas trabalhistas estão sendo cumpridas pelos empregadores. Para isso, parte-se de uma investigação desenvolvida por meio de uma pesquisa de campo realizada com imigrantes venezuelanos, entre março e junho de 2019, a fim de visibilizar a situação laboral dessa população com base em suas próprias experiências e conhecimentos da legislação trabalhista brasileira de proteção aos trabalhadores estrangeiros, em especial, daqueles em condição de refúgio. Com isso, propõe-se discutir se a frágil observância da garantia do direito humano ao trabalho decente de refugiados venezuelanos impacta a solidez do Estado de Direito e da democracia brasileira.
1. Aportes teóricos necessários: a desintegração do consenso sobre migração, a precarização e a dissonância do status dos migrantes
O estudo de caso abordado neste artigo trata de um mesmo fenômeno que vem ocupando intérpretes do social ao redor do mundo. Nele, é demonstrado como a integração de venezuelanos ao mercado de trabalho no Sul do Brasil também é marcada pela mesma ambivalência que vem desafiando a razão de pensadores do mundo globalizado: de que modo um sistema normativo entre os mais avançados de proteção de migrantes e refugiados, fruto de política migratória tida como paradigmática pela tutela de direitos, convive com sua ostensiva inoperância prática?
Esta seção dialoga com reflexões recentes sobre interações entre os movimentos migratórios e seus efeitos no mercado de trabalho. Para tanto, convocam-se categorias analíticas que se impõem como incontornáveis pela densidade que trazem para a análise do fenômeno. Mais do que sugerir a resolução das inconsistências detectadas na política migratória, esta seção pretende arrolar, entre categorias que pautam o debate em outros contextos territoriais, leituras que colaboram para situar o caso latino-americano.
A distinção clássica proposta por Eco (2020) sugere que compreendamos as migrações diferentemente das imigrações. O que caracterizaria as migrações é a transferência de indivíduos, “mesmo muitos, mas em medida irrelevante em relação à cepa original” (Eco 2020, 21) de um país para outro. Além da mobilidade através das fronteiras, os fenômenos de imigração, a seu turno, poderiam “ser controlados politicamente, limitados, encorajados, programados ou aceitos” (Eco 2020, 28). Sobre as migrações, destaca seu caráter “incontrolável” e a habilidade para alterar a cultura do território do destino. Por mais que governos elaborem procedimentos para organizar a recepção de estrangeiros, o que marca o movimento populacional dos últimos anos é que esse “fluxo inextinguível” (Eco 2020, 26) vem tornando o planeta “um território de deslocamentos cruzados” (Eco 2020, 27).
Cabe a Bauman (2019) direto diálogo com o diagnóstico elaborado por Eco. Descrevendo nossa relação com o progresso “na mistura de benção e maldição”, ilustra a substituição da expectativa de nossos ancestrais em um futuro seguro e promissor por nossas angústias motivadas pelo desemprego, pela redução de chances pela queda na renda, pela fragilidade de nosso status social e pelo abismo entre os instrumentos de que dispomos e os desafios que temos a enfrentar. Se o futuro fora promessa de conforto, hoje ameaça nos declarar incompetentes para o trabalho, sem valor e dignidade, sob o risco de marginalização e proscrição.
Bauman concorda com Eco que “a tragédia do pânico imigratório” é sintoma. Tensionando a formalidade da distinção entre imigração e migração, questiona-nos “em que momento o gotejamento de imigrantes que batem à nossa porta, gerenciável do ponto de vista político, transforma-se no gigantesco influxo praticamente autossustentável e autopropulsor de migrantes que inundam por todos os lados” (Bauman 2019, 41)? Responde discorrendo sobre “o problema da assimilação” e sua “ausência ostensiva no conceito de migração”, que vem sendo preenchida pelas noções de “melting pot” e de “multiculturalismo”, entendido como diversidade e diferenciações culturais a serem cultivadas.
A heterogeneidade cultural vem se afirmando como traço “do modo urbano de coabitação humana”, embora a primeira reação a ela seja de “negação ou rejeição firme, enfática e belicosa” (Bauman 2019, 43). Nossa atenção precisa observar os demagogos fundamentalistas que capitalizam a intolerância diante dos estrangeiros “à nossa porta” e auferem benefícios políticos dela. O reforço hostil à diferença estimula a consolidação identitária, a demarcação de fronteiras e a construção de muros. Esse movimento acompanha a desinstitucionalização da política, o abandono das iniciativas de ajuda mútua e bem-estar social, em prol da securitização dos problemas sociais: “um clima de desconfiança, suspeição e brutal competição mútua é criado”, em detrimento de ações coordenadas e solidárias de interesse compartilhado (Bauman 2019, 49). Depois da preponderância estatal (em detrimento do local) que unificou e homogeneizou a lei, a política e a vida, estamos em época de subsidiarização e transferência das obrigações e responsabilidades dos Estados às localidades. Em um território povoado por tribos e com um fortalecimento de uma política quase local, as desvantagens de grupos devido a supostas “inferioridades” são estigma inapagável, cujo encontro com antagonistas sofre ruídos de comunicação e recusa de entendimento. Conforme Bauman, o único modo de lidarmos com o mal e a impotência ante a indisponibilidade para a mitigação dos conflitos, a busca de encontro, a interlocução, a negociação e o consenso, é mergulhar fundo e deixá-los à vista (Bauman 2019, 53).
No mesmo sentido de Eco e Bauman, outra leitura sobre a dificuldade de efetivar a integração laboral na conjuntura de grandes movimentos migratórios é Geiselberger (2019). Compreendendo as migrações oriundas de “países frágeis” como risco causado “pelo fracasso da globalização neoliberal”, os autores do projeto editorial coletivo tendem a conceber as reações a esse fluxo de pessoas como um “modelo de securitização” e de “política simbólica pós-democrática”: a baixa tolerância com o estrangeiro ressoa como justificativa de uma política que “tem pouco a oferecer ao cidadão em tempos de austeridade”, e por isso apela a promessas de segurança e ao pertencimento nacional para induzir movimentos identitários e “desejos de desglobalização”. Uma das faces da brutalização do discurso público é a associação da migração a “catástrofes naturais e epidemias”. A obra trata por “grande regressão” a combinação de riscos da globalização e do neoliberalismo, que atinge mais fortemente sociedades sem condução política preparada para lidar com a interdependência global (Geiselberger 2019, 17).
Atentando para o fracasso da crença no progresso e os retrocessos no pacto civilizatório, os autores partem da premissa dos teóricos da modernização regressiva de que o século XXI seria atravessado por autoritarismos, desintegração social, recaída protecionista, ressentimentos com minorias, todos efeitos da globalização. Na contramão da expectativa simbólica dos teóricos do desenvolvimento social e geográfico do capitalismo em torno de que emergisse “um sentimento cosmopolita ‘do nós’”, a virada dos anos 2000 viu confirmar os riscos anunciados da globalização (terrorismo internacional, urgência climática, crise financeira, monetária e grandes movimentos migratórios). Em detrimento do cosmopolitismo internacionalista, viu-se renascer a lógica de luta étnica, nacional e confessional entre as culturas.
O mundo do trabalho é afetado tanto pelas incertezas causadas por um sistema produtivo em transformação acelerada, que nos ameaça com a obsolescência, quanto pela oferta de mão de obra migrante, por vezes mobilizada para reduzir salários. Importante análise do fenômeno é feita por Mason (2019), que sintetiza cinco grandes reformas estruturais impulsionadas pelo neoliberalismo, capazes de erodir os consensos políticos em torno da solidariedade social.
Entre as grandes transformações, a transferência da produção para o exterior, além de diminuir o gasto com mão de obra, teve o efeito narrativo de aniquilar a importância do lugar, elemento constitutivo da identidade. A submissão das empresas ao mercado financeiro, a seu turno, implicou a mensagem que a empresa não tinha mais obrigações sociais informais, a exemplo de refeitórios, agora terceirizados, caso deem prejuízo; ou de espaços de convivialidade como centros de atividades sociais, comuns nas estruturas fabris até os anos 1970. O corte na tributação progressiva, sustentada na ideia de diminuir o tamanho do Estado, ampliou as desigualdades, erodiu o estado de bem-estar social, dando fim aos serviços públicos gratuitos e ao pacto que lhes amparava. A privatização, quarta arma do neoliberalismo, terminou por encarecer os serviços públicos, fazendo retornar o dever de amparo à órbita familiar, não mais social e comum. Por fim, a financerização do consumo e do próprio capitalismo implica a substituição de parcerias sociais por empreendedorismo individual, competitivo e ególatra (Mason 2019).
Depreende-se de tais mudanças, para além do descumprimento das promessas de mobilidade social, a transformação das velhas formas de proteção e coesão social. Conforme Mason, tal fracasso narrativo do neoliberalismo pode ser estendido à desintegração do consenso com relação à migração. Sobre o caso britânico, o autor relata que já nos anos 1980 a classe trabalhadora era “irrevogavelmente multiétnica”. Desde os anos de 1970, migrantes provenientes do Quênia, da Índia ou de Bangladesh eram submetidos a rígido controle. Já aos migrantes do Leste Europeu era autorizado o ingresso, ainda que jamais se tornassem cidadãos britânicos, o que serviu para atacar os salários e as condições de trabalho, destinada a migrantes que “se encaixavam perfeitamente nas novas instituições de trabalho precarizado” (Mason 2019, 161).
A mensagem narrativa direcionada à classe laboral britânica é sobre o tipo de trabalhador desejado: “flexível, quieto, dócil, deferente, sem direitos, que pouco contribui para o demos mais amplo e tampouco espera receber algo em troca” (Mason 2019, 162). Apresentando-se o neoliberalismo como um movimento da modernidade, natural e fatalista, incontrolável e irreversível, a expectativa de que neutralizasse as hostilidades antimigratórias restou frustrada. A reação ao sistema de migração reflete demandas por desglobalização, na contramão das expectativas neoliberais de que a essência das democracias liberais consistiria em nos restringir ao papel de cidadãos (titulares de direitos individuais), não trabalhadores (desprovidos de direitos coletivos). Com fundamento em Castells, a revolução tecnológica teria suplantado o proletariado da condição de agente de mudanças sociais, já que agora foi substituído pela massa amorfa de indivíduos “em rede”.
Assim, o “neoliberalismo substituiu a antiga história de cooperação e coesão por uma história sobre indivíduos […], pessoas abstratas com diretos abstratos” (Mason 2019, 170). Resgatar os valores sociais progressistas, os direitos humanos e o Estado de Direito implicaria “lançar o neoliberalismo ao mar, para salvar a globalização”, instituindo novos mecanismos para a supressão das desigualdades e a redistribuição dos ganhos. Quanto às migrações, além de direcionamento e monitoramento para a contenção de impacto sobre os serviços públicos, seriam imprescindíveis reformas no mercado de trabalho que impedissem as empresas “de utilizar uma população migrante desenraizada e não cidadã como ‘trabalhador abstrato ideal’” (Mason 2019, 174).
A categoria do “trabalhador abstrato ideal”, caracterizado por docilidade e adaptação às exigências ocupacionais cada vez mais flexíveis, em que pese inexistam garantias e direitos relativos ao trabalho desempenhado, dialoga com o conceito do “precariado” de Standing (2020). Reivindicação neoliberal consolidada na década de 1980 (Bento 2018), o argumento dos economistas neoclássicos exigia a flexibilidade das relações trabalhistas como meio para evitar a transferência da produção para regiões de custo menos elevado. Tal flexibilidade exigida como incontornável promovia insegurança para os trabalhadores, fez crescer as desigualdades e mudou a estrutura de classes industrial.
O precariado não faz parte da “classe trabalhadora” ou do “proletariado”, caracterizado por trabalhadores de longo prazo, em empregos estáveis de horas fixas, com rotas de promoção e sindicalização. Na nova estrutura de classes, fragmentada e transformada pela globalização, o precariado é o grupo que carece de identidade baseada no trabalho e não dispõe de contrato social, por meio do qual as garantias de trabalho são fornecidas aos empregados em troca de subordinação e lealdade.
Temporariedade, insegurança e “dissonância de status” (o aceite de empregos com status ou rendimento abaixo do nível de educação formal) identificam o novo trabalhador. A massa de migrantes, “exército de reserva” flutuante, forma grande parte do precariado mundial: é a razão do crescimento do grupo e arrisca ser a principal vítima, pois se torna “bode expiatório” dos problemas a que não deu causa. Segundo Standing (2020), o crescimento do precariado é favorecido por: conivência de governos com migrações não documentadas que estimula trabalhos malremunerados; o teor itinerante de deslocamentos, dos que se conformam a trabalhos temporários para garantir a remessa de dinheiro a familiares; a feminização, de maior vulnerabilidade, por conta de cadeias de tráfico, prostituição e redes de cuidados domésticos; o número de pedidos de refúgio daqueles que buscam escapar de conflitos. Por isso, o autor refere haver insegurança crônica, mais do que econômica, a esses grupos de migrantes.
Essa insegurança mais severa nos remete ao conceito de “prejuízo de cidadania” (Milanović 2020). Entendendo o capitalismo como o primeiro regime da história a suplantar os rivais, seu sucesso seria devido à capacidade de incutir nas pessoas os seus objetivos, construindo uma convergência entre o que o capitalismo necessita para sua expansão e os valores das pessoas.
Assumindo que a mobilidade da força de trabalho é uma resposta “às enormes diferenças de ganho obtido por uma mesma quantidade e qualidade de trabalho nos territórios nacionais” (Milanović 2020, 173), o autor compreende que a “punição por cidadania” se dá pela “redução da renda da pessoa por ela ser cidadã de um país pobre”. Se os trabalhadores bem pagos podem ser substituídos por outros que aceitem trabalhar por um salário menor, o custo da produção diminui e a renda líquida cresce. O prêmio pela cidadania existe por causa de monopólio coletivo e do controle do acesso a um determinado território exercido por seus habitantes, que compartilham uma mesma característica legal ou política.
A cidadania econômica consistiria no direito à renda maior. Quando estrangeiros acessam quase todos os benefícios disponíveis aos nacionais, excluídos o direito a voto e as transferências públicas de renda, percebe-se que a subcidadania desafia a dicotomia cidadãos versus não cidadãos para dar conta da busca por mão de obra barata (Milanović 2020). Quanto às preocupações sobre o custo dos direitos dos migrantes, o autor afirma existir correlação negativa entre a disposição de aceitá-los e a extensão dos direitos: ou seja, quando são poucos os direitos garantidos aos imigrantes, os nativos podem estar mais dispostos a aceitá-los.
A fim de melhor dimensionarmos o problema do acolhimento nas políticas migratórias brasileiras que trataremos na sequência, importa que nos apropriemos dessas categorias: a desintegração do consenso sobre migração, devido aos custos da proteção social, compreendidos como intoleráveis na conjuntura de “grande regressão”; a precarização da mão de obra migrante, a menos instrumentalizada para resistir a condições de trabalho lesivas à dignidade humana; a dissonância de status entre formação, ocupação e remuneração dos migrantes, que impõe um tempo no país de destino até que recuperem a posição social perdida na partida. Por exemplo, entre os refugiados, 89% deles estão em ocupações que não exigem o seu nível de formação, portanto são vítimas desse gargalo na promoção de integração laboral conforme a qualificação (Oliveira et al. 2019).
Embora nos pareça haver mais elementos a serem compreendidos na interação laboral do que em ruídos culturais entre os grupos étnicos (Bauman 2019), importa termos em mente que, quando a origem nacional tem correlação com a posição na hierarquia social (Vilela 2011; Vilela, Collares e Noronha 2015), a desigualdade estigmatizante repercute em diferenças salariais e limita a mobilidade social, explicita-se a imperfeição do mercado e resta desvelada nossa herança colonial e escravagista (Silva e Baeninger 2019). Outro elemento que tal dissonância nos provoca a admitir diz respeito ao papel do direito sobre os desacertos políticos e a extensão da definição da política pelos juristas (Engelmann e Madeira, 2015; Bento 2017; Bento, Engelmann e Penna 2017; Bento e Engelmann 2018), setor do Estado cuja legitimidade reside justamente na negação da política (Engelmann e Fontainha 2019; Bento 2019).
2. Política pública de acolhimento e interiorização de venezuelanos no Sul do Brasil
O contexto migratório brasileiro vem sendo ampliado nos últimos anos com a adoção de uma nova postura legislativa. Com a criação da Lei de Migração, aliada à ampla gama de tratados internacionais, à Lei do Refúgio e, sobretudo, aos princípios de igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros dispostos na Constituição Federal de 1988, o Brasil passou a ser referência internacional no que tange a um robusto e moderno arcabouço legislativo de proteção migratória.
Recentemente, essa governança migratória tem sido testada na prática em virtude do expressivo número de refugiados provindos da Venezuela, a qual enfrenta uma crise política e econômica que afeta, diretamente, o setor social. Os venezuelanos egressos atravessam as fronteiras brasileiras pelo estado de Roraima em busca de melhores condições de vida. E, no intuito de melhor acolhê-los, o Estado brasileiro implementou a força-tarefa logística e humanitária denominada “Operação acolhida”, cujo escopo é amparar e recepcionar essa população. As Forças Armadas foram acionadas para efetivar a operação a partir de três eixos principais: ordenamento da fronteira; abrigamento dos imigrantes e interiorização para os demais estados do país a fim de propiciar melhores condições de inserção no mercado trabalho.
Diariamente, segundo cálculos do Exército Brasileiro, a média de entrada da população venezuelana pela fronteira de Pacaraima, no estado de Roraima, é de 416 pessoas (Costa 2018). Estima-se, todavia, que, no início de 2018, conforme dados da Organização das Nações Unidas (ONU), esse número tenha aumentado significativamente para 800 pessoas por dia, um crescimento alarmante de saída dos emigrantes venezuelanos. O Brasil, hoje, é o quinto país que mais recepcionou venezuelanos, ao total são 168 mil imigrantes - o equivalente a 4,2% da população migrante total (Costa 2017).
Ainda conforme Costa (2017), em decorrência do aumento do fluxo migratório venezuelano para o Brasil, um dos dados oficiais que mais sofreu impacto foi o das solicitações de refúgio. Nota-se que, em 2014, foram realizadas menos de 10 solicitações de refúgio de venezuelanos, enquanto em 2017, esse número cresceu exponencialmente para mais de 13,5 mil solicitações. Segundo dados da Polícia Federal, constatou-se que o número de solicitações de refúgio até junho de 2018 ultrapassava em 20% o total registrado em todo o ano de 2017. Entre os meses de janeiro e junho de 2018, foram recebidas 16.523 solicitações de refúgio somente da população venezuelana.
O fenômeno da migração tem uma relação estreita com a questão da inserção laboral. Afinal, os migrantes buscam inserção social no país de acolhida, o que se inicia, muitas vezes, pela busca de um trabalho que atenda a suas necessidades básicas. O direito ao trabalho, entendido como um direito humano, apresenta-se como condição mínima para proporcionar condições efetivas ao exercício dos demais direitos sociais. Isso porque, além de promover o sustento desse migrante para sua subsistência, como alimentação, moradia, vestuário, saúde, transporte e - até mesmo - educação e lazer, o trabalho atua, ainda, após vencida a barreira da vulnerabilidade econômica, como condição basilar para que o migrante tenha voz nos espaços públicos a fim de legitimar seus direitos civis e políticos.
O objetivo do terceiro eixo da “Operação acolhida” é interiorizar os refugiados para os demais estados brasileiros a fim de retirá-los da região fronteiriça, que não dispõe de recursos para absorver toda a demanda por trabalho. Essa situação pode levar à insegurança da população local que, muitas vezes, reage de forma violenta e xenofóbica. Assim, desde setembro de 2018, o estado do Rio Grande do Sul passou a recepcionar um vasto número de migrantes venezuelanos e busca realocá-los em seu mercado laboral.
Base empírica do estudo: considerações sobre a população-sujeito da pesquisa
Segundo dados da ONU, o êxodo de venezuelanos pode ser considerado como o maior deslocamento populacional da história recente da América Latina. Desse modo, após décadas de estagnação migratória, o Brasil começou a reexperimentar um novo impulso no fluxo migratório. De forma não planejada e decorrido muito mais de questões externas, esse impulso impôs a necessidade de se pensar a migração de um modo estratégico no intuito de prestar o melhor acolhimento possível a esse contingente de pessoas.
Para melhor compreensão do fenômeno migratório venezuelano e suas condições de inserção no mercado de trabalho nos municípios de Porto Alegre, Canoas e Esteio, do estado do Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil, optou-se por realizar entrevistas com os migrantes venezuelanos acolhidos nesses municípios. Primeiramente, cabe ressaltar o motivo que levou à escolha desse recorte. Conforme dados divulgados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) em junho de 2019, o Rio Grande do Sul foi o segundo estado brasileiro que mais recepcionou imigrantes, cerca de 15% do total de venezuelanos interiorizados (total de 1.532 pessoas), ficando atrás apenas do estado de São Paulo, com 21% (total de 2.144 pessoas) (OIM 2019).
Ademais, os municípios de Canoas, Porto Alegre e Esteio foram definidos como territórios preferenciais para a aplicação da pesquisa por serem, respectivamente, os três municípios que mais receberam migrantes no estado do Rio Grande do Sul (juntos, um total de 979 pessoas). A escolha metodológica desses municípios deu-se porque são as unidades territoriais que melhor reúnem um repertório de experiências vivenciadas por essa população migrante, uma vez que a maior concentração do fluxo de migrantes impôs o incremento institucional e iniciativas da sociedade civil nessas localidades para o acolhimento desses sujeitos, proporcionando, também, um rico material empírico para a pesquisa, com grande variedade de pessoas atuando em diferentes áreas profissionais.
O método utilizado consistiu em um roteiro de questões semiestruturadas sem, no entanto, que os entrevistados ficassem necessariamente restritos às respostas previamente propostas em todas as perguntas. Portanto, os relatos do assunto proposto foram surgindo de acordo com as realidades vivenciadas pelo participante. As entrevistas foram realizadas pessoalmente, após a declaração de interesse manifesta por meio de pergunta acrescida aos questionários on-line na plataforma do Google Forms, enviados individualmente por meio de uma rede social de mensagens instantâneas. Todas as entrevistas foram anonimizadas conforme previsto em cláusula do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, firmado por todos os entrevistados que compuseram o estudo.
As questões abordadas, baseadas em roteiro de perguntas, visavam investigar o grau de escolaridade, se os participantes estavam inseridos no mercado de trabalho gaúcho e quais as condições laborais enfrentadas. Foram contatados, ao total, 105 imigrantes venezuelanos. Desse universo, 63 concordaram em participar da pesquisa; 20 não concordaram em participar da pesquisa, e 22 não dispunham de internet para acessar o questionário na plataforma Google Forms.
Os imigrantes que concordaram em participar da pesquisa foram divididos em proporções relativamente igualitárias entre os três municípios que compõem este trabalho - 23 residem em Canoas; 20, em Esteio e igual número, em Porto Alegre.
Acerca dos dados obtidos relativamente ao nível de escolaridade, observa-se que os imigrantes venezuelanos não se enquadram, em sua vasta maioria, como indivíduos de baixa escolaridade. Há intrínseco na cultura brasileira um histórico de repúdio às migrações provindas de países latino-americanos de economia em desenvolvimento (Reis e Vieira 2020). A população tem uma visão negativa de que não haveria qualidade a agregar no nosso país com esses imigrantes. No entanto, 82,5% dos participantes da pesquisa declaram contar com formação acima da básica. Dos 63 participantes, somente um tem o ensino fundamental incompleto; três têm o ensino fundamental completo; quatro têm o ensino médio incompleto; 16 têm o ensino médio completo e também 16 pessoas, o ensino superior incompleto; 14 têm ensino superior completo e, por fim, seis têm pós-graduação.
Os índices de escolaridade da população migrante venezuelana são superiores, inclusive, aos níveis dos próprios nacionais, uma vez que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE 2018; Oliveira 2019), 52,6% dos brasileiros com 25 anos ou mais não concluíram a educação básica. A maioria, na realidade, sequer concluiu o ensino fundamental. Isto é: apesar de subvalorizada, a migração venezuelana poderia trazer diversos benefícios à sociedade brasileira, com a incorporação de profissionais qualificados. Ainda assim, autoridades não veem nesse movimento a criação de oportunidades para o país, principalmente quando não se enquadram no perfil daquilo que consideram o “imigrante ideal” (Koifman 2012; Cavalcanti, Oliveira e Tonhati 2015): o migrante europeu branco que se desloca por questões turísticas, dispõe de melhores condições socioeconômicas ou, ainda, são imigrantes com altíssimo grau de especialização, contratados por empresas multinacionais para exercer cargos relevantes. Embora o termo seja perigoso, a ideia de uma imigração “ideal” dialoga com as contribuições teóricas da seção 1, que dão conta de esclarecer as iniciativas de controle e incentivos por governos de determinados fluxos populacionais, em detrimento do caráter “incontrolável” das migrações realizadas pela urgência da fuga de conflitos e violações a direitos.
Elementos para o diagnóstico sobre a eficácia da política pública de interiorização
Importa ressaltar que, quando foram realizadas as entrevistas (entre março e junho de 2019), os venezuelanos já se encontravam fora dos abrigos municipais fornecidos pelo Poder Público em seus primeiros meses de chegada ao Sul do Brasil. Isto é, o momento inicial de adaptação e acolhimento social estaria superado. Quando perguntados a respeito da inserção no mercado de trabalho gaúcho, a grande maioria, 49 pessoas, disse estar em um trabalho no momento. Entretanto, uma parcela alta, 14 pessoas, informou estar sem trabalho mesmo após a estratégia de interiorização. Nota-se, portanto, uma fragilidade da política pública implementada, uma vez que o principal motivo de atuação estatal seria fornecer subsídios para que essas famílias se integrassem socialmente, perpassando primariamente pela conquista de um emprego.
Entre os que responderam estar trabalhando no momento, 42 informaram tratar-se de uma relação empregatícia formal. Os demais seis informaram que sua relação de trabalho não é regida pelas normas da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e, ainda, um participante optou por não responder a essa pergunta. Com base nos dados obtidos, é possível traçar linhas de comparação entre os imigrantes recém-chegados ao Rio Grande do Sul nas últimas décadas.
Observa-se que, assim como a migração haitiana e senegalesa, os graus de escolaridade da população são variados. Todavia, esses grupos de imigrantes podem ser vistos inseridos, predominantemente, no mercado laboral informal (venda de roupas e objetos eletrônicos nas ruas do centro de Porto Alegre ou nas praias do Sul do Brasil). O que os diferencia é a tendência a viver no Brasil somente temporariamente (Magalhães 2017). Os venezuelanos, por sua vez, apresentam pretensões de permanecer no Brasil superiores ao desejo de retornar à Venezuela. Assim, considerando seus altos níveis de escolaridade, buscam se inserir no mercado de trabalho formal (Diário de campo 2019).
4. Obstáculos para a atuação profissional dos migrantes venezuelanos no Sul do Brasil
Não são poucos os problemas enfrentados pelos imigrantes venezuelanos para a realocação no mercado de trabalho brasileiro. Os relatos dos participantes da pesquisa são unânimes em destacar alguns pontos de maior dificuldade entre refugiados que, infelizmente, não se restringem somente aos venezuelanos. Trata-se de uma realidade mundial que vem se desenhando nos últimos anos com políticas restritivas às migrações provindas de países influentes como os Estados Unidos (Bauman 2017; Latour 2017). O Brasil, mesmo tendo seguido no sentido contrário ao abrir as fronteiras ao acolhimento desses migrantes forçados, também sofre os impactos dessa onda conservadora que assola a política mundial, conforme discutiam Standing (2020), Mason (2019) e Geiselberger (2019) na seção 1.
Acesso à documentação
A obtenção de determinados documentos, como a CTPS, é condição imprescindível para possibilitar a contratação pelo regime formal de trabalho. Contudo, os refugiados venezuelanos deixaram seu país às pressas, de forma abrupta e violenta, e, assim, não são poucos os casos de venezuelanos que cruzam as fronteiras brasileiras sem a documentação mínima necessária. Isso é um dos fatores impeditivos para obter a sua regularização e, consequentemente, a expedição da CTPS.
[...] A maioria das pessoas que buscam refúgio são venezuelanos e essa situação geralmente os obriga a deixar seu país sem tempo suficiente para se preparar. Uma vida em um novo país sem os documentos necessários é inconcebível. (Raffoul 2018, 19-20, tradução nossa1)
Ao chegarem ao Brasil, os venezuelanos, geralmente, buscam a solicitação de refúgio como meio menos custoso de permanecer no país com oportunidade de inserção no mercado laboral, visto que, assim que encaminhada a solicitação, em poucos dias, o migrante obteria a expedição da CTPS. Uma das condições para que o migrante seja interiorizado é portar os documentos necessários ao labor. Todavia, quando entrevistados, cinco dos migrantes declararam ainda não possuir a CTPS. Apesar de o número ser quase inexpressivo diante do índice de migrantes que a possuem (92,1%), a interiorização sem a documentação devidamente habilitada pode ampliar as chances de busca do sustento na informalidade ou até mesmo na criminalidade.
A ausência de documentação afeta diretamente o acesso ao mercado de trabalho. Entre os imigrantes, os indocumentados são aqueles que se encontram em uma situação de maior vulnerabilidade, especialmente, quando se trata de refugiados. Essa situação os expõe à exploração da mão de obra por empregadores oportunistas, sem atendimento aos seus direitos trabalhistas.
A falta de documentação está entre os principais motivos que fazem com que os imigrantes se sujeitem à informalidade, ficando à mercê dos traficantes de mão de obra, de empregadores de fachada, de trabalho análogo à escravidão, da servidão por dívidas e outras degradantes formas de trabalho (Anonni e Silva 2015). Ou ainda, em cenário também desfavorável, sofram com o desemprego aliado à pobreza.
Nesse sentido, a nova Lei de Migração busca sanar esses empecilhos com a diminuição da burocracia na emissão da documentação, o que facilitaria o acesso dos imigrantes à documentação, promovendo a fixação de sua permanência legalmente, com acessibilidade aos serviços públicos e às formalidades empregatícias que antes não tinham (Sousa 2018).
Equivalência entre nível de formação e ocupação desempenhada
O Brasil, ao firmar o compromisso perante a sociedade internacional de recepcionar os migrantes venezuelanos, comprometeu-se, consequentemente, com a adoção de políticas públicas migratórias que proporcionassem a integração desses migrantes ao mercado de trabalho, sobretudo, o acesso a um trabalho decente associado à dignidade da pessoa humana. Nessa seara, entende-se que o nível de escolaridade deve ser compatível com a ocupação exercida, refletindo diretamente no salário recebido.
Contudo, um número significativo de venezuelanos com qualificação profissional se encontra trabalhando em áreas distintas daquelas que exerciam na Venezuela. Mesmo com significativas experiências profissionais e formação universitária, muitos imigrantes travam verdadeiras batalhas no intuito de conseguir um emprego digno. Em decorrência da falta de comprovação de qualificação profissional, não conseguem se inserir em sua área de trabalho, recorrendo a empregos que exigem menos qualificação (Miranda 2018).
Com acesso restrito a empregos que ofereçam melhores salários e condições de trabalho, esses imigrantes - possuindo ou não um título universitário e/ou experiências de trabalho consideradas qualificadas - estão em relação direta com atividades laborais de baixa remuneração (geralmente de um a dois salários-mínimos), muitas vezes informais e desprotegidas legalmente, em particular intensas em horas e sobrecarga de trabalho. (Villen 2015, 260)
O setor comercial pode ser elencado como uma das áreas que mais acolheram os imigrantes venezuelanos. A título exemplificativo, pode-se observar o caso de um dos entrevistados que trabalhava como advogado em seu país e, atualmente, trabalha como atendente em uma rede de supermercados. Outro exemplo é de um administrador que agora trabalha no setor comercial de empresa de conserto e manutenção de elevadores.
Embora muitos deles tenham formação superior, as circunstâncias levaram alguns a aceitar empregos em que nunca pensariam. Não é incomum saber que os venezuelanos aceitam postos de trabalho que pagam ilegalmente menos que um salário-mínimo. Tal situação cria ainda mais hostilidade para alguns brasileiros, que sentem que os estrangeiros estão roubando seus empregos. (Raffoul 2018, 19, tradução nossa2)
Trabalho na Venezuela | Trabalho no Sul do Brasil |
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Pesquisadora de Geofísica e professora universitária de Física básica | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Comerciante | Motorista por meio de aplicativo. |
Padeiro | Auxiliar de carga e descarga |
Assistente de mantimentos | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Assistente administrativa e costureira | Auxiliar de cozinha |
Advogado | Comércio e varejo |
Serviços administrativos e atendimento ao público | Recepcionista de estacionamento de veículos |
Enfermeiro | Vendedor de estofados |
Estudante | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Sacerdote das Forças Armadas e professor de Ética | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Assistente/secretária | Faxineira/diarista |
Serviços gerais: auxiliar de cozinha; caixa de supermercados. | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Estudante de Direito | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Caixa bancária | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Motorista e auxiliar geral | Ajudante de electricista |
Comerciante do ramo alimentício | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Músico e paramédico | Consultor e vendedor no setor de vestuário |
Estudante de Direito e operadora de televendas | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Taxista | Serviços gerais |
Administradora | Consultora de empresas JR |
Garçonete | Garçonete |
Comerciante | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Diretor de orquestras | Professor particular de idiomas (autônomo) |
Comerciante | Barbeiro |
Farmacêutica | Balconista de farmácia |
Pedreiro | Atendente no setor de distribuição de medicamentos |
Médico especialista em Ginecologia e Obstetria | Médico Clínico-geral (posto de saúde pública) |
Estudante | Fornecedor |
Engenheiro | Comerciante de couros, estofados, calçados e tapetes |
Auxiliar fotográfico | Auxiliar de produção |
Químico | Pesquisador de desenvolvimento tecnológico |
Estudante | Treinador de serviço no ramo alimentício |
Açougueiro | Auxiliar de soldador |
Professor integral e assistente administrativo | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Segurança do trabalho | Fiscal empresarial |
Professor | Atentende de loja |
Chofer/motorista | Polidor de inox |
Costureira | Costureira |
Estilista | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Comerciante | Auxiliar de produção |
Técnico operador equipamentos de cintilografia | Encanador |
Assistente pessoal, secretária e atendente de depósito | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Mensageiro/comerciante | Auxiliar de construção |
Comunicador social | Auxiliar de produção |
Torneiro mecânico | Freelancer |
Armazenista | Auxiliar de produção |
Pedreiro | Comerciante de couros, estofados, calçados e tapetes |
Segurança contra atos de interferência ilícita na aviação | Segurança |
Manutenção de oleodutos e gasodutos | Serviços de manutenção gerais |
Torneiro mecânico | Auxiliar de engenharia |
Auxiliar de mecânica | Serviços gerais |
Comerciante e faxineira | Suprimento de mantimentos gerais de supermercado |
Auxiliar de cozinha | Não tem trabalho no momento deste estudo. |
Soldador | Serralheiro |
Auxiliar de topografia | Auxiliar no ramo de assessoria em saúde ocupacional e engenharia de segurança do trabalho |
Estudante | Comércio de vestuário; atendente de loja |
Administradora | Cuidadora de idosos |
Caixa de supermercado | Repositor de lácteos em mercado |
Administradora | Atendimento ao cliente em empresa de elevadores |
Musicista | Professora particular (autônoma) |
Perito de investigação criminal | Auxiliar de produção |
Auxiliar administrativo | Auxiliar de produção |
Serviços administrativos e atendimento ao público | Comerciante |
Fonte: dados coletados no campo em 2019
Barreira da língua portuguesa
O idioma é tido como a maior dificuldade enfrentada pelos imigrantes acolhidos pelo Brasil. Sem o domínio da língua portuguesa, esses trabalhadores são postos em sério risco de terem lesados seus direitos trabalhistas, visto que acabam reduzidas as condições de arguir contra eventuais irregularidades.
O idioma aparece nesse aspecto mais uma vez, pois o desconhecimento do mesmo pela população refugiada tem sido usado como “vantagem” para que diversos empregadores neguem direitos trabalhistas aos refugiados, que se submeterão a um emprego informal e sem CTPS assinada, já que necessitam sobreviver. (Jubilut, Lopes e Silva 2018, 147)
A barreira primária do idioma traz consequências não apenas no sentido da exploração de mão de obra, mas também da perda de oportunidades de contratação em cargos que exijam maior comunicação com o público. Ademais, os profissionais que buscam a revalidação dos diplomas universitários por vezes têm que prestar provas de certificação de conhecimentos que, com o empecilho linguístico, acabam se tornando mais um obstáculo.
Embora o espanhol e o português possam ser semelhantes, o processo de aprendizado não é fácil e é ainda mais difícil devido à falta de interação entre os dois povos. Consequentemente, a questão do desemprego surge novamente. Sem falar português, a possibilidade de ser contratado permanece ainda mais remota. (Raffoul 2018, 20, tradução nossa3)
O conhecimento dos direitos trabalhistas tem ligação direta com a compreensão do idioma. Mas há descaso das autoridades públicas brasileiras na prestação de apoio aos imigrantes venezuelanos após sua entrada no país, deixando o acolhimento sob responsabilidade de outros atores sociais da sociedade civil, em especial, na oferta de cursos de idiomas.
Assim, reconhecendo a problemática do monolinguismo na cultura brasileira, eis a importância do domínio do nosso idioma para se viver dignamente (Costa e Vargas 2016, 109). Sob a ótica laboral, há grande dificuldade de acesso a um trabalho qualificado para aqueles que não dominam a língua portuguesa. Desse modo, a alfabetização é condição indispensável à inserção laboral e, até mesmo, social do migrante no Brasil.
Entraves burocráticos na revalidação dos diplomas
A burocracia no processo de revalidação mostra-se como um entrave para que o profissional estrangeiro exerça no Brasil a profissão na qual se formou em seu país, sendo uma perda de potencialidades na atuação profissional, segundo a organização social aos refugiados Compassiva (2019).
Alguns fatores dificultam a desejada inserção no mercado de trabalho desta população: falta de qualificação, quando qualificados a necessidade de revalidação de diplomas no país e a ausência do domínio da língua local. Nem sempre a condição migratória permite espera e os imigrantes acabam por se sujeitar a condições laborais inadequadas. (Boas, Daniele e Pamplona 2018, 237)
O processo de revalidação dos diplomas universitários se concentra exclusivamente nas universidades públicas, o que vem acarretando uma sobrecarga de serviço nessas instituições e, consequentemente, a demora na apreciação das solicitações. Outrossim, a inexistência de um procedimento-padrão também dificulta o entendimento dos estrangeiros no encaminhamento do processo. Os custos, muitas vezes exorbitantes, das traduções juramentadas aliados às taxas cobradas pelas instituições para a revalidação afetam diretamente a inserção desses profissionais no mercado de trabalho.
A exigência de documentação consularizada, bem como a ementa das disciplinas cursadas, muitas vezes de impossível acesso pelos refugiados, inviabiliza o processo de revalidação, visto que muitos deles fugiram por causa da situação de conflito, de medo, de perseguição política. Às vezes, não existe mais a universidade onde essas pessoas estudaram, conforme destaca André Leitão, presidente da Compassiva (2019).
Os principais direitos trabalhistas e previdenciários violados são decorrentes da formalização do contrato e do desvio de função intensificado por problemas relativos à validação do diploma. Neste contexto, o refugiado é contratado para exercer uma função de menor hierarquia com um salário mais baixo, mas, de fato, exerce função de maior hierarquia compatível com sua qualificação. (Getirana e Lima 2018, 425)
Os relatos dos entrevistados demonstram nitidamente a exploração sofrida por serem contratados com salário para uma função de menor hierarquia e, na prática, têm que fazer uso de conhecimentos referentes a sua real qualificação profissional. Uma das entrevistadas, inclusive, relatou-nos trabalhar como balconista em uma rede de farmácias, por não ter conseguido revalidação do seu diploma; no entanto, diariamente é chamada a auxiliar com seus conhecimentos farmacêuticos específicos.
Não obstante, cabe ressaltar os avanços obtidos nessa temática com a entrada em vigor da Resolução 3/2016 do Conselho Nacional de Educação - Câmara de Educação Superior do Ministério da Educação, que permite a submissão do refugiado à prova de conhecimentos e habilidades como critério único de comprovação para fins de revalidação de diplomas. No entanto, o problema ainda vigora de forma expressiva, refletindo na seara laboral, uma vez que esses migrantes não encontram alternativa senão a inserção precária no mercado de trabalho, atuando em cargos de qualificação inferior. Assim, reforça-se a necessidade de adoção de políticas públicas de facilitação no processo de revalidação.
Xenofobia e discriminação nas relações de trabalho
Não restam dúvidas acerca da abertura do Brasil ao recebimento de novos fluxos migratórios nas últimas décadas. Em que pese a propalada tradição nacional de cordialidade, frequentemente mal interpretada no sentido de justificar a reivindicação do mito de ser o Brasil um país de democracia racial, é flagrante o tratamento preconceituoso a que são submetidos muitos cidadãos. Um dos maiores empecilhos enfrentados pelos estrangeiros no Brasil para conseguir trabalho segue sendo a discriminação.
Os imigrantes, em especial os imigrantes forçados, vivenciam uma dependência do trabalho para recomporem suas vidas no país de acolhida e, nesse momento, deparam-se com a barreira da xenofobia. O desconhecimento da temática, bem como a ignorância e a falta de vontade em conhecer a verdadeira realidade do migrante, é uma das maiores causas da xenofobia no Brasil e no mundo (Pereira e Abreu 2016). Em plena era da globalização, o estigma de ameaça dos estrangeiros à segurança nacional e à ordem econômica ainda é amplamente propagado. Ademais, quando se trata de estrangeiros em condições de vulnerabilidade provindos de países periféricos, esse estigma é ainda mais preocupante. Inúmeros casos de violência física, psicológica e moral contra estrangeiros são relatados cotidianamente pela mídia (Reis e Vieira 2020).
Observa-se que um dos maiores receios dos nacionais é a substituição da mão de obra brasileira pela estrangeira, o que ocasionaria desemprego àqueles. Com base no relatório “Refúgio em números”, em 2018, o Brasil atingiu o número de 11.231 pessoas reconhecidas como refugiadas (Brasil 2019). O ano de 2018 foi o maior em número de solicitações de reconhecimento de condição de refugiado, devido ao fluxo massivo de venezuelanos. No total, foram mais de 80 mil solicitações, sendo 61.681 de venezuelanos.
Contudo, apesar do aumento expressivo do número de refugiados reconhecidos pelo Estado brasileiro nos últimos anos, esse número é ainda irrisório se analisarmos a população total do país, estimada em 210.599.043 pessoas, segundo dados do IBGE em outubro de 2019. Logo, a porcentagem de imigrantes em relação aos nacionais é baixíssima, não sendo suficiente para apresentar ameaça à ordem econômica. Para além disso, os refugiados não competem com os nativos nos mercados de trabalho dos países receptores, já que sua inserção costuma ser de tipo marginal ou complementar (Pereira 2016; Vilela 2011; Vilela, Collares e Noronha 2015).
Ainda assim, a presente pesquisa demonstrou que a população brasileira tende a apresentar atitudes de preconceito e xenofobia, refletidas no âmbito do trabalho. Dos venezuelanos entrevistados, mais de 30% afirmaram ter sofrido discriminação para obter um emprego em razão de ser estrangeiro. Já quando indagados se haviam sofrido discriminação dentro do ambiente do trabalho, esse número diminui para 11 pessoas (17,5%). Ainda assim, esse número é deveras expressivo em face do vasto arcabouço jurídico de combate à discriminação, com destaque para a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil e vigente desde 1966. Desse diploma normativo, pode-se extrair que a discriminação dos migrantes ultrapassa questões como nacionalidade, raça, sexo e crença. Portanto, a não discriminação deve englobar também as categorias de ocupação, profissão, oportunidade de trabalho e emprego e opinião política (Santos e Cademartori 2014).
5. Análise da disciplina legal quanto à proteção dos direitos trabalhistas de estrangeiros no Brasil
As normas de segurança jurídica e medicina do trabalho dispõem acerca do período de horas efetivamente trabalhado, da necessidade de períodos de descanso e das condições de trabalho a que os empregados são submetidos. Os direitos trabalhistas dos nacionais e dos estrangeiros são assegurados pela Carta Constitucional brasileira de 1988, previstos no rol exemplificativo do artigo 7º e aprofundados pela CLT.
Jornada de trabalho
Entende-se por jornada de trabalho o período diário em que o empregado se coloca à disposição do empregador em virtude do respectivo contrato (Delgado 2017). A Constituição brasileira estabelece, em seu artigo 7º, XIII, duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e 44 semanais, facultadas a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.
A limitação temporal da jornada de trabalho se dá em razão de três fatores principais, quais sejam: biológicos, sociais e econômicos. O fator biológico diz respeito à saúde física e mental do trabalhador. O excesso de horas de trabalho ocasiona fadiga, estresse e pode aumentar drasticamente os riscos de ocorrência de acidentes de trabalho. As normas de duração do trabalho têm por objetivo primordial tutelar a integridade física do obreiro, evitando-lhe a fadiga (Barros 2017).
O fator social tem ligação com a necessidade de o indivíduo interagir com os demais na sociedade. Assim, o trabalhador que exerce atividades além de sua jornada normal de trabalho não disporá de tempo para a família, os amigos e os demais compromissos sociais, o que o fará um ser humano segregado socialmente. Por fim, o fator econômico decorre da necessidade de obtenção de lucro pelo patrão, isto é, um trabalhador cansado e estressado não tem o mesmo rendimento daquele trabalhador descansado e ávido por exercer suas tarefas. Todavia, em dissonância com as normas de duração da jornada de trabalho, 11 (25,6%) dos imigrantes venezuelanos acolhidos no Rio Grande do Sul declararam ter que cumprir jornada de trabalho de 10 horas ou mais.
Em relato, um dos entrevistados afirmou que, ao seu ver, “trabalhava por duas pessoas”, uma vez que cumpria jornada de trabalho superior a oito horas diárias todos os dias. Salientou, ainda, que havia discrepância entre a quantidade de horas prestadas por ele em relação aos trabalhadores nacionais dentro da mesma empresa, com a mesma função. Isso comprova que, apesar de as leis trabalhistas agregarem a todos, inclusive os estrangeiros, na prática, a realidade imposta a essa população é distinta.
Horas extras
A hora extra é conceituada, de acordo com Barros (2017), como o trabalho realizado em sobretempo à jornada normal do empregado, seja ela legal, seja convencional. A Constituição brasileira, em seu artigo 7º, XVI, dispõe acerca da remuneração das horas extras, devendo ser pago o mínimo de 50% em relação à hora normal. Já o artigo 59 da CLT traz como limite máximo de labor duas horas extras por dia. Ou seja, o empregador fica proibido de exigir de seus empregados que trabalhem além desse limite; no entanto, se o empregado, de fato, trabalhar mais que as horas extras permitidas, terá direito à remuneração de todas essas horas independentemente de limitação temporal.
Os dados fáticos, entretanto, demonstram realidade diversa. Entre os imigrantes venezuelanos entrevistados, ainda que minoritariamente, 14 afirmaram trabalhar mais do que o horário contratual estabelecido. Destes, quatro declararam fazer três horas extras ou mais diariamente, o que é expressamente contra as normas de Direito do Trabalho.
Esses dados alarmantes intensificam a necessidade de fiscalização das empresas e da conscientização dos empregados acerca dos seus direitos trabalhistas, especialmente, os estrangeiros. A população imigrante tende a ter menos acesso às informações pertinentes e, em decorrência de sua alta vulnerabilidade, submetem-se a condições degradantes de trabalho por medo da retaliação dos patrões e do desemprego.
Jornada noturna
O trabalho urbano exercido entre as 22h e as 5h da manhã do dia seguinte é considerado noturno, com fulcro no artigo 73 da CLT. A hora noturna tem uma peculiaridade, tendo sido reduzida pelo legislador para 52 minutos e 30 segundos, denominada hora ficta noturna, por ser mais exaustivo à saúde do empregado.
[...] a prestação noturna de trabalho é, obviamente, mais desgastante para o trabalhador, sob o ponto de vista biológico, familiar e até mesmo social. De fato, o trabalho noturno provoca no indivíduo agressão física e psicológica intensas, por supor o máximo de dedicação de suas forças físicas e mentais em período em que o ambiente físico externo induz ao repouso. (Delgado 2017, 1.067)
Devido a isso, a Constituição Federal brasileira assegurou, em seu artigo 7º, IX, a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno. O trabalho noturno sofre uma carga de, no mínimo, 20% sobre o valor da hora normal a título de adicional noturno. Por entender o desgaste sofrido pelos trabalhadores noturnos, o Direito do Trabalho buscou uma compensação pecuniária a fim de favorecer aquele que labora à noite. Do mesmo modo, os trabalhadores diurnos que fazem horas extras no período noturno devem receber não somente o acréscimo de, no mínimo, 50% sobre a hora normal de trabalho, como também o adicional noturno de, no mínimo, 20%.
Entre os venezuelanos entrevistados, 11 afirmaram exercer trabalho noturno. Desse universo, positivamente a maioria respondeu receber o pagamento do adicional noturno. Todavia, um trabalhador relatou não receber o adicional e, ainda, outros dois não souberam informar se o adicional vinha sendo pago. É inadmissível que esses imigrantes não estejam recebendo tal adicional ou sejam incapazes de identificar o pagamento na folha de salário.
Intervalo intrajornada
Os intervalos ou períodos de descanso são períodos remunerados ou não, dentro ou fora da jornada, que têm a finalidade de permitir a reposição da energia gasta durante o trabalho e proporcionar maior convívio familiar e social (Cassar 2018). Os intervalos se subdividem em duas espécies: interjornadas e intrajornadas. Considerando o teor dos questionários aplicados aos imigrantes venezuelanos, cabe analisar, no presente artigo, o conceito de “intervalo intrajornada”, isto é, aqueles que ocorrem dentro do período de expediente de trabalho e podem ser computados ou não como tempo de trabalho efetivo. Positivamente, segundo dados extraídos a partir das entrevistas realizadas, a totalidade dos entrevistados que trabalham em regime celetista afirmou gozar do período de intervalo no meio da jornada laboral.
Contudo, um dos venezuelanos entrevistados informou ter que cumprir de seis a sete horas de trabalho diários para somente então ter concedido o seu horário de descanso. Relatou, ainda, que tal prática ocorria apenas com ele, diferentemente dos demais trabalhadores nacionais dentro da mesma empresa:
[...] para fazer un intervalo tengo que trabajar de seis a siete horas, mientras el personal brasileiro trabaja menos. [...] una hora, pero lo normal es trabajar cuatro horas y descansar una, pero yo no! Trabajo corrido seis horas y media o en veces hasta siete para descansar una. No és justo pero en mi situación de imigrante no puedo exigir mucho por que el trabajo lo necessito. Soy padre de cuatro ñinos, três aqui y uno em Venezuela, no me puedo dar el lujo de dejar el trabajo sin tener otro seguro (Diário de campo 2019).
Segundo entendimento pacificado do Tribunal Superior do Trabalho (TST), não cabe a concessão de intervalo intrajornada próximo do início ou do término do expediente em virtude do fim a que se propõe (Brasil 2012). Ainda que a CLT não fixe o momento em que o intervalo intrajornada deve ser concedido, o TST entende que o intervalo tem por objetivo permitir o descanso do trabalhador durante a jornada. Logo, a concessão do intervalo no final ou no início não atende à sua finalidade e equivale a suprimi-lo.
Apesar dos recentes retrocessos nos direitos dos trabalhadores com a aprovação da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), em seu artigo 71, caput, da CLT, é estabelecida a obrigação de concessão de intervalo de, no mínimo, uma hora nos casos em que o trabalho exceder seis horas diárias. Do contrário, a não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo implica o pagamento, de natureza indenizatória, do período suprimido, com acréscimo de 50% sobre o valor da remuneração da hora normal.
Embora não tenham sido encontrados casos de supressão total do intervalo, há casos em que o horário de descanso foi concedido apenas parcialmente. Quatro dos participantes desta pesquisa informaram gozar de somente 15 minutos de intervalo diário. Outros cinco declararam dispor de 30 minutos. O caso mais extremo foi de um trabalhador que afirmou ter insignificantes seis minutos de descanso diário. Ele labora na área de produção e, em seu questionário, relatou trabalhar mais de 10 horas diárias, porém afirmou que a empresa segue corretamente as leis trabalhistas. Isso demonstra, enfaticamente, a incongruência de informações e seu desconhecimento das normas trabalhistas que o amparam.
Repouso semanal remunerado
O repouso semanal remunerado atende objetivos semelhantes ao do intervalo intrajornada. Serve para repor a energia do trabalhador em decorrência da execução dos serviços prestados. O repouso semanal remunerado tem o período de 24 horas consecutivas, no sétimo dia, sendo um direito irrenunciável do trabalhador.
O descanso semanal remunerado se caracteriza como interrupção do contrato de trabalho, pois, mesmo sem trabalhar no dia de descanso, se preenchidos os requisitos, o empregado recebe o salário correspondente a esse dia, que é computado ao tempo de serviço (Cassar 2018). O empregador tem o dever de conceder uma folga semanal. Os dois requisitos para aquisição do direito à remuneração do descanso semanal são: frequência e pontualidade, na semana que antecede ao repouso. Caso o trabalhador não cumpra com um dos requisitos perderá o direito à remuneração do repouso, ainda assim, segue preservado o seu direito ao descanso (artigo 6º da Lei 605/1949).
Quando questionados acerca da concessão de descanso semanal remunerado, a maioria dos entrevistados, 37 pessoas, afirmou receber a remuneração corretamente. Todavia, seis participantes informaram não gozar do período de descanso sem prejuízo do salário. Apesar de o descanso semanal remunerado gozar de caráter imperativo, nota-se que o cumprimento desse direito do trabalhador, na prática, é facilmente mitigado.
Sabe-se que o empregado, como parte vulnerável da relação empregatícia, não dispõe de meios para cobrar o devido cumprimento senão através do ajuizamento de reclamatória trabalhista. No mundo fático, poucos são os trabalhadores que se arriscam a ingressar na Justiça do Trabalho para requerer o pagamento das verbas a que fazem jus enquanto ainda laboram pelo risco inerente de perda do emprego.
No cenário vivenciado pelos imigrantes refugiados, o medo da perda do emprego é ainda mais latente. A população venezuelana acolhida no Sul do Brasil não se vê em condições de argumentar contra eventuais desrespeitos às normas trabalhistas. Para ela, o emprego é a estabilidade mínima necessária para assegurar sua permanência no país e, ao mesmo tempo, sua chance de alcançar melhores condições de vida. Desse modo, a atenção aos empregadores para que cumpram seus deveres se faz imprescindível ante a vulnerabilidade desses trabalhadores que desconhecem seus direitos e, por necessidade, têm as chances de submissão a condições laborais degradantes aumentadas.
Salário-mínimo
O salário pode ser entendido como a retribuição devida e paga diretamente pelo empregador ao empregado, de forma habitual, não só pelos serviços prestados, mas pelo fato de se encontrar à disposição daquele, por força do contrato de trabalho (Barros 2017). O salário-mínimo capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com os devidos reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, é um direito constitucional dos trabalhadores, assegurado no artigo 7º, IV, da Carta Constitucional, bem como no artigo 76 da CLT.
Contudo, três dos trabalhadores venezuelanos entrevistados declararam não receber o salário-mínimo brasileiro. E, ainda, uma alta parcela dos entrevistados, 10 pessoas, declararam não saber se o que recebe é condizente com salário-mínimo nacional. A desinformação desses migrantes, aliada ao desespero de conseguir se estabelecer na nova sociedade, autoriza situações abusivas por parte dos patrões.
Como trabajo en una barbería si no hay clientes dentro de la misma lo tomamos como breve descanso más si son días donde hay movimiento de clientes todo el día, en mi caso las 12 horas, ¡no tendría descanso! Dado que por cada cliente atendido ganamos nuestro sueldo porque de lo contrario ¡el descanso y el horario cumplido no es compensado con ningún tipo de pago! (Diário de campo 2019)
A mediana salarial dos trabalhadores imigrantes no mercado formal de trabalho, no momento da admissão, em 2017, foi de R$1.232,00. Em contraponto, trabalhadores migrantes oriundos da Venezuela registraram os menores valores, em torno de R$1.000,00 (Cavalcanti, Oliveira e Macedo 2018). O salário médio desses migrantes é baixíssimo se analisarmos o nível de escolaridade que apresentam, a qualificação profissional e a promessa tanto política quanto jurídica de oferecer melhores condições de vida a partir da acolhida e da interiorização.
Os valores recebidos, pouco acima do salário-mínimo nacional definido para 2020 (R$998,00), demonstram que não há garantias de bons empregos e salários condizentes com a qualificação profissional. Ademais, os valores recebidos são aquém do salário-mínimo regional do estado do Rio Grande do Sul (R$1.237,15), o que impossibilita a inserção social adequada devido ao baixo poder aquisitivo. Por ser uma migração ameaçada pelo comprometimento da subsistência no país de origem, muitos almejam alcançar estabilidade financeira para enviar recursos às famílias que permanecem no cenário de crise. E, eventualmente, ter condições de trazer seus familiares para o Brasil.
Se a busca por melhores condições de vida e de trabalho motivam a decisão de migrar, é de se esperar que os países de acolhimento ofereçam essas oportunidades. No entanto, verifica-se que a acolhida e a inserção no mercado de trabalho no Sul do Brasil estão longe de possibilitar uma vida digna. Considerando a condição de vulnerabilidade socioeconômica, com dificuldades para encontrar um trabalho e, concomitantemente, com receio de desemprego, muitos imigrantes venezuelanos tendem a aceitar salários abaixo do mínimo, submetendo-se à exploração de sua força de trabalho.
Conclusões
O recente fluxo migratório venezuelano para o Brasil vem motivando a tomada de decisões que afetam o mercado de trabalho local. O governo brasileiro, por meio da força-tarefa logística e humanitária de interiorização chamada “Operação acolhida”, visou gerenciar o deslocamento populacional e fornecer melhores condições, propiciando acesso ao mercado de trabalho em outros estados do Brasil. No entanto, esta pesquisa pode averiguar que as dificuldades enfrentadas, bem como as condições laborais a que os imigrantes venezuelanos vêm sendo submetidos no Rio Grande do Sul, especificamente, nos municípios de Porto Alegre, Canoas e Esteio, destoam fortemente do ordenamento jurídico brasileiro de proteção aos trabalhadores estrangeiros, em especial, àqueles em condição de refúgio.
Nota-se que, entre os principais impedimentos dos migrantes venezuelanos para inserção ao mercado de trabalho gaúcho, encontram-se problemas de necessidades básicas, uma vez que, por exemplo, a língua portuguesa aparece como o primeiro obstáculo a ser enfrentado. O monolinguismo brasileiro provoca dificuldades de comunicação, sendo um fator impeditivo no conhecimento de seus direitos trabalhistas, o que, consequentemente, ocasiona a suscetibilidade a condições degradantes de trabalho.
Outra dificuldade enfrentada pelos imigrantes encontra-se na elevada burocracia no processo de revalidação dos diplomas universitários. Conforme demonstrado, a maioria da população migrante oriunda da Venezuela possui um bom nível de escolaridade, contando com profissionais de diversas áreas, o que poderia vir a agregar no mercado de trabalho nacional. Todavia, o elevado custo e a demora no processo de revalidação dos diplomas configuram entraves para que o profissional estrangeiro exerça no Brasil a profissão na qual tem formação. Dessa forma, a vasta maioria se encontra atuando em áreas distintas daquela que exercia em seu país. E, geralmente, recorrem a subempregos e se sujeitam à exploração de sua força de trabalho ao atuar em vagas não condizentes com seu grau de instrução.
Em que pese a igualdade entre nacionais e estrangeiros preconizada na Constituição de 1988 e reafirmada pelos tratados internacionais, observou-se que as práticas discriminatórias e xenofóbicas ainda fazem parte do cotidiano dos migrantes que ingressam na fronteira brasileira. A desvalorização da mão de obra estrangeira afeta diretamente a busca por empregos que proporcionem plenas condições de inserção social e autossustento. Ademais, verificou-se que os imigrantes venezuelanos que participaram do programa de interiorização promovido pelo Governo Federal, após terem sido realocados para outras localidades, encontram-se à mercê de sua própria sorte na busca por trabalho. O Estado não buscou implementar políticas públicas de incentivo e conscientização dos empresários brasileiros para acolher essa população. Contudo, importa ressaltar o papel significativo da sociedade civil, com destaque às universidades e às instituições religiosas, no objetivo de amenizar o descaso governamental no trato migratório laboral.
Quando o enfoque se dá entre aqueles trabalhadores inseridos no mercado de trabalho gaúcho como celetistas, o cenário evidencia condições desaforáveis, visto que em todas as perguntas realizadas foram encontradas irregularidades no cumprimento das normas trabalhistas. Os venezuelanos relatam sofrerem cotidianamente com a desigualdade de tratamento no ambiente de trabalho em relação aos trabalhadores nacionais, sendo obrigados a trabalhar mais tempo e com intervalo de descanso reduzido.
A remuneração média entre os imigrantes venezuelanos é a mais baixa entre todos os migrantes que residem no Brasil, e uma parcela significativa de trabalhadores afirmou não ter sequer conhecimento de qual seja o salário-mínimo brasileiro. Nota-se que essa população se encontra à margem do processo de garantia dos direitos trabalhistas afirmados pela CLT. Esses migrantes enfrentam condições precárias de emprego por desinformação dos seus direitos somada ao receio do desemprego e da pobreza.
Observa-se que o desconhecimento acerca das leis trabalhistas é a principal barreira para a inserção laboral digna desses migrantes. As normas que visam proteger a parte vulnerável da relação de emprego, qual seja, o empregado, se desconhecidas, não obtêm êxito no cumprimento de seu papel de tutelar os direitos dos trabalhadores. Abre-se margem, assim, ao descumprimento das leis pelos empregadores. Nessa perspectiva, a dificuldade de compreensão por parte dos imigrantes trabalhadores quanto à extensão de seus direitos é um fator preponderante na ocorrência de irregularidades nas relações empregatícias.
Nota-se, assim, que a mera proteção formal aos direitos dos trabalhadores estrangeiros não é suficiente para atenuar o problema de integração adequada ao mercado de trabalho enfrentado pelos venezuelanos. É preciso, pois, empenhar esforços na difusão dos mecanismos jurídicos de proteção dos imigrantes refugiados, bem como implementar ações de conscientização pública sobre a migração por ameaça de subsistência. Nessa seara, o primeiro passo no caminho para a integração dos imigrantes à sociedade brasileira perpassa pela necessidade de inserção no mercado laboral para, somente desse modo, proporcionar meios de reconhecimento social e subsistência.