Introdução
Apesar do crescente movimento de privatização dos conflitos desde o final do século XX, com empresas de segurança e militares privadas, o Estado ainda se apresenta como o detentor exclusivo do exercício da força. Tradicionalmente, a função primordial das Forças Armadas é a proteção do Estado contra um inimigo externo, ao passo que as polícias são mobilizadas para garantir a ordem interna (Pion-Berlin e Trinkunas 2011). No Brasil, essa concepção é amplamente utilizada para orientar a confecção de políticas públicas e os discursos voltados para as questões de defesa. Documentos como a Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END) apresentam um claro foco em atividades e programas relacionados à dimensão externa e direcionam o planejamento de defesa, ou seja, como as forças armadas devem ser estruturadas, equipadas, preparadas e posicionadas no território nacional, de acordo com os objetivos estratégicos do país e as ameaças à sua consecução em curto, médio e longo prazo.
Nas últimas décadas, países como o Brasil passaram a ser chamados “emergentes”, em decorrência de seu crescimento econômico, liderança regional e maior capacidade e propensão de atuar nos processos decisórios globais. A ampliação do campo de atuação dos países emergentes tem consequências em diversas áreas, uma delas a segurança e a defesa. Dessa forma, as Forças Armadas brasileiras passaram a ser usadas com mais frequência em prol de sua política externa para maior inserção do país no sistema internacional. Como consequência, além das tradicionais funções, elas passaram a ser preparadas e empregadas com mais força no exterior em favor dos interesses do país. Com isso, as articulações entre política externa e defesa se tornaram mais relevantes.
Além disso, as Forças Armadas brasileiras historicamente realizam ações subsidiárias no interior do território às quais se adicionaram as operações denominadas “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO), fruto de dispositivo constitucional. Desde meados da década de 1990, elas têm sido utilizadas em questões internas e com mais frequência a partir do início deste século.
Na prática, há três destinações das Forças Armadas brasileiras: a defesa contra uma ameaça externa, a ação em prol da política externa e o emprego no interior do território para garantir a lei e a ordem ou em ações subsidiárias. Na consecução desses três objetivos, o uso interno, que originalmente deveria ser episódico, parece ter prevalecido, o que indicaria uma disfunção no emprego das forças armadas. Dessa forma, duas perguntas balizam a pesquisa: 1) quais os objetivos de defesa do Estado e do uso das forças armadas em prol da política externa e as dificuldades para sua consecução? e 2) qual a dimensão e como pode ser explicado o uso recorrente dos militares em questões internas?
Nesse sentido, neste artigo, discutem-se as três destinações principais das instituições militares: a defesa da pátria, o uso dos militares em prol da política externa e o emprego no interior do país. Argumenta-se que, na dicotomia externo-interno, o uso interno tem prevalecido sobre as funções externas das forças armadas. Ou seja, a ambição apresentada nos documentos com relação à defesa externa enfrenta constantes desafios; a conexão entre defesa e política externa ficou mais evidente apenas em alguns momentos da política nacional, e o recorrente emprego dos militares nas operações de GLO desvirtua a função primordial das forças armadas. O corte temporal se inicia em 1996, quando a primeira Política de Defesa foi publicada, e termina em 2019. Utilizando a abordagem qualitativa, o estudo de caso conecta documentos de defesa com a prática envolvendo instituições militares para discutir as três destinações principais dessas instituições. No caso da destinação externa, buscou-se relacionar a ambição dissuasória contida nos documentos com a dimensão das forças armadas e a realização de projetos estratégicos. No caso do uso dos militares em prol da política externa, os documentos foram relacionados com o envolvimento dos militares brasileiros no exterior, bem como sua (in)constância como política de Estado. Quanto ao uso interno, a análise se baseou nas operações internas realizadas e nas mudanças no aparato legislativo e doutrinário. Dessa forma, os argumentos foram apoiados em documentos como Política, Estratégia, Livro Branco de Defesa Nacional e legislação específica, literatura especializada, notícias de jornais e revistas, e informações oficiais do governo, incluindo das instituições militares.
No artigo, buscou-se ir além de vários trabalhos existentes sobre o tema que abordam separadamente essas dimensões ou parte delas. Apesar de ser considerada uma região pacífica em termos de conflitos armados interestatais, é interessante notar o acirramento de tensões ideológicas entre governos sul-americanos, o que aumenta a importância de estudos que busquem compreender melhor as forças armadas contemporâneas na América do Sul. O emprego dos militares em segurança pública está se tornando recorrente na América Latina, sendo valorizado em alguns países (D’Araujo 2010), mas apresentado também como um perigo por alguns acadêmicos (ver Saint-Pierre e Donadelli 2014). Na Argentina, por exemplo, o Decreto de Emergência de Segurança Pública abriu a possibilidade do uso das forças armadas principalmente no combate ao narcotráfico, considerado uma “violação da soberania nacional” (Argentina 2016). No Brasil, a forte presença de militares na burocracia civil do Estado no atual governo Bolsonaro reforça a necessidade de se compreender as formas de atuação das forças armadas a fim de garantir o controle civil democrático. Nesse contexto, apesar de não ser um caso único, a análise das Forças Armadas brasileiras é relevante, especialmente com relação a suas destinações externa e interna.
O artigo está dividido em quatro seções além da introdução e da conclusão. As três seções iniciais apresentam, respectivamente, a destinação externa de defesa e a dissuasão, as articulações entre política externa e defesa, e a dimensão interna e o emprego recorrente das forças armadas no interior do país. Na última seção, apresentamos alguns apontamentos sobre as dimensões externa e interna, e sobre a política externa.
1. A dimensão externa: defesa e dissuasão
O Brasil é considerado um Estado satisfeito, com todas as fronteiras resolvidas, tamanho, população e riquezas apropriadas, sem qualquer intenção de expansão territorial, o que explica sua postura de não beligerância. A PND define como segurança “a condição que permite ao país a preservação da soberania e da integridade territorial, a realização dos interesses nacionais, livre de pressões e ameaças de qualquer natureza”, e como defesa nacional “o conjunto de atitudes, medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais” (Brasil 2016, 5). Dessa forma, “segurança” é abstrata, designa um estado, enquanto “defesa” indica um ato dirigido contra determinada ameaça e pressupõe um eventual emprego de força. Para operacionalizar a política, a Estratégia de Defesa projetou, até 2030, a intenção de investir na multiplicação do poder militar a fim de garantir o controle do território e a livre exploração das riquezas.
“Poder” é um termo amplo, normalmente ligado à soberania, à força, à superioridade militar ou econômica, à dominação, entre outros. O termo é utilizado como elemento central do Estado relacionado com a capacidade de impor a própria vontade no sistema internacional. Logo, não haveria poder sem uma correlação de vontades. Para um Estado ter poder, há a necessidade de relacioná-lo, confrontá-lo com, no mínimo, outro Estado. Como salientou Moreira (1993, 110): “não tem qualquer sentido afirmar que um Estado tem poder [...] se os instrumentos à sua disposição não lhe derem a capacidade de influenciar o comportamento de outro Estado ou dos detentores de interesses opostos”. Aí repousa a necessidade de adquirir uma capacidade militar que realmente consiga dissuadir. Significa, portanto, que deve haver credibilidade e que, além de forças armadas capazes, o Estado deve demonstrar habilidade e vontade de usá-las caso necessário (Cashman 1993). Figurar entre as maiores economias do mundo resulta, naturalmente, em almejar maior influência na ordem global. Ao pensar o poder em termos de relações de força - o que significa que este não se detém, exercita-se -, significa dizer que ele só existe em ato, isto é, na passagem do seu exercício concreto para o ato.
Se considerarmos que as ameaças de segurança são normalmente associadas à proximidade e que a América do Sul se conforma em um “complexo regional de segurança” (Buzan 1991), a relação de poder deveria ser pensada nesse nível de análise. Nesse sentido, em termos absolutos, as Forças Armadas brasileiras somam 335 mil militares, ao passo que a Colômbia tem 293 mil em suas fileiras, a Venezuela, 123 mil, o Peru, 81 mil, o Chile, 77 mil e a Argentina, 74 mil, na sequência de países com maior efetivo nas forças armadas sul-americanas (International Institute for Strategic Studies - IISS 2018). Em 2019, o Brasil foi o 11º país em gastos com defesa no mundo, com 28,03 bilhões de dólares (Stockholm International Peace Research Institute - Sipri 2019). No entanto, para um território com 8.514.877 km2, uma população de pouco mais de 200 milhões de habitantes e um Produto Interno Bruto (PIB) de mais de dois trilhões de dólares, os gastos de defesa equivalem a 1,5 % do PIB e a 1,7 % dos gastos mundiais com defesa (Tian et al. 2018; Sipri 2019).1
A relação do efetivo das forças armadas com o tamanho da população brasileira é de um militar para cada 590 habitantes, a mais baixa da América do Sul. Na Argentina, a relação é de um para 524, na Colômbia, um para 175 e, no Uruguai, um para 138, a mais alta do subcontinente. Os gastos brasileiros com defesa superam em 2,6 vezes aos da Colômbia e em cinco vezes aos do Chile, segundo e terceiro países com maior orçamento de defesa na América do Sul, respectivamente. No entanto, o percentual do PIB brasileiro empregado em defesa é menor que o da Colômbia (3,2 %), do Equador (2,3 %), do Uruguai (2,0 %) e do Chile (1,8 %) e pouco maior que o da Bolívia (1,4 %) (Sipri 2019). A Global Firepower (GFP) faz um levantamento utilizando 50 fatores que englobam o efetivo das forças armadas, sua capacidade (em termos de equipamentos), o orçamento de defesa, infraestrutura e geografia. O ranking da GFP de 2020 colocou o Brasil na 10ª posição em relação a 138 países e na 1ª posição na América Latina. Na América do Sul, é seguido pela Colômbia (37ª posição), pelo Peru (40ª posição), pela Venezuela (41ª posição) e pela Argentina (43ª posição) (GFP 2020).
Esses dados, ao mesmo tempo que indicam certo poder relativo do Brasil em relação aos seus vizinhos no subcontinente, não apresentam disparates que levariam a preocupações em termos de segurança na região. Apesar de alguns casos de animosidade política, como atualmente com a Venezuela, as relações no entorno estratégico não indicam ameaças à segurança. Além disso, a leitura da PND indica a visão brasileira de que os principais conflitos podem se dar pela disputa “por áreas marítimas, pelo domínio aeroespacial e por fontes de água doce, de alimentos e de energia” (Brasil 2016, 9). Ou seja, sendo detentor de grande biodiversidade, reservas de recursos naturais e áreas para serem incorporadas ao sistema produtivo, o país pode se tornar objeto de interesse internacional. Dessa forma, tanto a PND como a END indicam o preparo de forças armadas para ações futuras que possam ameaçar a soberania nacional muito mais em razão dos recursos que o país possui do que em relação a animosidades no seu entorno estratégico sul-americano.
Para isso, projetos estratégicos foram desenvolvidos para aumentar a capacidade de cada uma das forças, como os casos do submarino nuclear da Marinha, da aquisição de caças pela Força Aérea e da modernização das unidades do Exército; da “tecnologia dual”, como o Veículo Lançador de Satélites conduzido pela Força Aérea; dos projetos abrangentes e integrados, não só entre as forças armadas como também com a participação de agências governamentais, como o Sistema Integrado de Monitoramento das Fronteiras e o de Defesa Cibernética.
Sobre a aquisição de capacidade para tornar a dissuasão crível, a ambição se contrasta com a realidade no sentido de que constrangimentos, principalmente financeiros, dificultam e atrasam projetos importantes. Embora o orçamento do Ministério da Defesa seja um dos maiores do Estado, ele abarca todos os gastos de custeio e de capital, inclusive os gastos com pessoal (salários, aposentadorias e pensões), serviços sociais (por exemplo, assistência médica) e administrativos. Na realidade, mais de 70 % dos recursos são destinados para o pagamento de pessoal (ativo e inativo), sobrando menos de 30 % para o investimento em novos equipamentos (“Cenário Defesa 2020-2039” 2018). Como a própria PND identifica, as crises econômica e política, os índices socioeconômicos baixos, o orçamento deficiente e a dependência tecnológica do exterior, entre outros afetam negativamente o objetivo de alcançar a capacidade na velocidade necessária (Brasil 2016). Apesar das variações dos últimos anos, o orçamento de defesa de 2018 ainda era menor que o de 2010, tanto mensurado em termos atuais quanto reais (IISS 2018). Sucessivos contingenciamentos nos orçamentos do Ministério de Defesa dificultam ou atrasam o andamento desses projetos (ver, por exemplo, Aguilar 2008; Silveira 2015; IISS 2018; Costa 2019). Como exemplos, o projeto do submarino nuclear da Marinha foi iniciado em 20122 e ainda sofre atrasos, o que também ocorre com o projeto do veículo lançador de satélites (Brasil 2018), que começou a ser pensado no final da década de 1970 e não foi completado até 2020. O projeto de aquisição de caças para a Força Aérea, iniciado na década de 1990, só terá a entrega das primeiras aeronaves em 2021.3
Além disso, como demonstra o trabalho do Exército brasileiro feito em cooperação com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada publicado em 2019, há uma série de “desafios” que devem ser superados pelas Forças Armadas e que envolvem, majoritariamente, preocupações com o uso externo da força (Andrade et al. 2019). Entre os desafios nessa área, podem-se mencionar o debate sobre o programa nuclear brasileiro, a dinâmica e a eficiência dos gastos militares, a adequação das capacidades tecnológicas do país para atender às necessidades militares e a questão da proteção das fronteiras.
2. Articulação entre Forças Armadas e política externa
Diplomacia e defesa correspondem a serviços do Estado, e ainda que apresentem suas particularidades, ambos se complementam no que diz respeito a alcançar os objetivos estratégicos estatais no sistema internacional (Cervo e Bueno 2008). O soldado e o diplomata vivem e simbolizam as relações internacionais, por meio do binômio diplomacia e guerra (Aron 2002). Entre as perspectivas do papel da defesa em um sistema de política externa, quando ambas atuam em um único cenário externo que oferece tanto oportunidades de paz e segurança como riscos e ameaças, a diplomacia e a defesa devem buscar uma articulação de seus pontos de vista e objetivos, o que permitirá o início da integração entre ambas. No sentido ideal, essas áreas devem compartilhar objetivos e panorama comum, bem como identificar um quadro de prioridades (temáticas, temporais e geográficas) nas quais intervirão de acordo com interesses e oportunidades, riscos e ameaças (Osorio e Torrijos 2019).
No Brasil, enquanto os militares participaram de um longo processo de influência na política sem “receber dela sinalizações necessárias para estabelecer a sua doutrina”, a diplomacia passou por processo semelhante, fechou-se e estabeleceu o próprio modo de atuação (Menezes 1997, 12). A percepção das elites sobre os objetivos estratégicos do país ao longo do século XX em prol do desenvolvimento relegou questões militares (Abdul-Hak 2013) e somente em momentos pontuais houve tentativas de articular as duas burocracias. Mesmo nos governos militares, o foco da política externa foi de possibilitar o desenvolvimento das capacidades do país de produzir os meios de dissuasão e de defesa (Cervo e Bueno 2008). Assim, a trajetória de construção sociológica e ideológica das burocracias militar e diplomática implicaram caminhos paralelos de desenvolvimento com poucos momentos de sintonia entre ambas (Cheibub 1985; Coelho 1976), e a política externa acabou não reconhecendo o “poder militar um instrumento de respaldo da política externa brasileira” (Alsina 2003, 69).
O fim da Guerra Fria e as expectativas por uma nova fase das relações internacionais conduziram a acordos regionais que permitiram considerar questões de segurança e a inclusão dos vizinhos sul-americanos. Contudo, a autonomia pela participação ou autonomia pela integração, amadurecida nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) (Vigevani, Oliveira e Cintra 2003), deixou de lado interesses brasileiros na área da defesa em prol de compromissos internacionais que representassem benefícios em áreas consideradas mais importantes (Fuccille, Barreto e Thomazella 2015).
A primeira Política de Defesa Nacional, publicada em 1996, abordou o fortalecimento da posição do país nos processos decisórios internacionais e a conexão defesa-política externa, a qual apareceu também em suas revisões posteriores de 2005 e 2016 (Brasil 1996, 2005, 2016).4 Entretanto, remarca-se que o real alinhamento das políticas externa e de defesa ocorreu no governo Lula (2003-2011), mesmo sendo ainda sensível a primazia da burocracia diplomática na busca por um papel de protagonista no sistema internacional (Lima 2010). O Livro Branco de Defesa Nacional, de 2012, também indicou a conexão entre o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores (Brasil 2012). No entanto, os papéis permaneceram consolidados: o internacional de política externa ficando para a burocracia diplomática, ou seja, centrado no Ministério das Relações Exteriores; e o doméstico com a burocracia militar, centrado no Ministério da Defesa e nos comandos militares (Lima 2010). No governo Lula, o Itamaraty5 teria até chamado para si a responsabilidade de definir as questões de segurança do Brasil, subordinando as Forças Armadas à estratégia da atuação internacional (Cervo e Bueno 2008).
O país tradicionalmente se apoiou nos princípios do universalismo e do multilateralismo, buscando diversificar os parceiros, fortalecer as organizações internacionais, especialmente a Organização das Nações Unidas (ONU) (Aguilar 2009), bem como desenvolver políticas regionais em várias áreas. A PND indicou uma priorização da América do Sul, do Atlântico Sul, dos países lindeiros da África e da Antártica, e como princípios a solução pacífica das controvérsias (baseada na ação diplomática e na estratégia militar da dissuasão), a promoção da paz e da segurança internacionais, o multilateralismo e a integração sul-americana (Brasil 2016). As ações decorrentes envolveram as Forças Armadas na atuação da política externa nessas áreas.
A intenção de obter maior protagonismo e poder político no sistema internacional incluiu ações que envolveram questões globais e regionais na agenda de política externa e no setor de segurança e defesa (Villa e Viana 2010). O envolvimento internacional das forças armadas em prol da política externa, cujo exemplo maior foi a participação nas operações de paz, teve seu ápice nos governos Lula. O protagonismo exercido na missão de paz no Haiti (Minustah), entre 2004 e 2017, e a manutenção de uma fragata da Marinha para a missão no Líbano (Unifil), desde 2011, foram os maiores exemplos do uso mais proativo das forças armadas em prol desse objetivo (Aguilar 2015). Além disso, as Forças Armadas foram envolvidas em diversos acordos de cooperação de defesa com países africanos (Aguilar 2013).
Ao mesmo tempo que a busca por mais participação nos foros internacionais balizou a atuação do Itamaraty, o fortalecimento da América do Sul como um bloco sob sua liderança figurou como objetivo do governo brasileiro. A criação do Conselho de Defesa Sul-Americano, no âmbito da União das Nações do Sul (Unasul), teria demonstrado um novo direcionamento da política externa em prol do setor de defesa (Oliveira, Brites e Munhoz 2010; Saint-Pierre 2010). A conformação da Zona de Paz e Cooperação Sul-Americana (2002),6 os foros de discussão entre suas Forças Armadas e as dos países vizinhos, como as reuniões de Estados-Maiores de Defesa, exercícios militares, bilaterais ou multilaterais, como forma de fomento da confiança mútua (Aguilar 2010), e o mecanismo 2x9 em relação à operação de paz no Haiti, entre outros, foram exemplos da conexão entre as políticas externa e de defesa.7
A atenção para o combate a ilícitos transnacionais resultou em exercícios militares com as forças armadas de países vizinhos, como entre as forças aéreas brasileira e argentina denominadas “Prata”, iniciadas em 2001, e com periodicidade anual a partir de 2004, envolvendo o intercâmbio de informações sobre tráficos ilícitos e o emprego de meios de detecção (radares) e interceptação (aeronaves). Em dezembro de 2002, Brasil e Argentina firmaram um acordo de cooperação com o objetivo de consolidar os procedimentos coordenados no combate ao tráfego ilícito de aeronaves. Em 2005, as forças aéreas do Brasil e do Paraguai iniciaram a Operação Parbra I, relacionada com o combate ao tráfego aéreo irregular (Aguilar 2010).
No entanto, se a conexão foi mais evidente durante esse governo, ela diminuiu durante o governo de Dilma Rousseff. No governo subsequente de Michel Temer e no atual mandato presidencial de Jair Bolsonaro, os esforços anteriores de ação externa foram minados, como pode ser observado com a saída do país da Unasul em abril de 2018 juntamente com outros cinco grandes países da região, o que praticamente encerrou a instituição.8
A principal participação das Forças Armadas em apoio à política externa brasileira, a operação de paz no Haiti, chegou ao fim em 2017. Logo em seguida, a ONU solicitou ao Brasil o envio de um batalhão para a operação da ONU na República Centro-Africana (RCA). Por conta do convite, enquanto o Itamaraty se engajava politicamente, o Ministério da Defesa e as Forças Armadas iniciaram o planejamento. Militares, diplomatas e funcionários do governo foram enviados ao Quartel General da ONU, em Nova York, e em missões de reconhecimento na RCA. No entanto, cinco meses depois, o governo respondeu negativamente, decisão justificada pelos problemas financeiros que o país vivia e pela intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro (Aguilar 2018). Atualmente, apesar de várias participações individuais com observadores militares, oficiais de ligação e de Estado-Maior (ONU 2020), a única presença de porte nas operações de paz encerrou-se com a retirada do contingente da Marinha da Unifil, em dezembro de 2020 (Boinas-Azuis 2020).
Apesar de as políticas externa e de defesa terem sido mais valorizadas no governo Lula, a articulação entre ambas permanece um desafio. O governo de Dilma Rousseff (2011-2016) caracterizou-se por uma indefinição quanto à política externa e uma diminuição do peso do Itamaraty. Com isso, o Brasil perdeu o protagonismo externo da primeira década do século. Essa postura se manteve no governo Temer (2016-2018), e o governo atual do presidente Jair Bolsonaro tanto não indicou uma intenção de revitalização como tem apresentado um discurso pouco claro em relação ao multilateralismo.9
3. As Forças Armadas e a dimensão interna
Com relação às Forças Armadas, a divisão entre interno e externo não corresponde à realidade histórica do país. Sob a justificativa de proteger os interesses nacionais, o emprego dos militares no âmbito interno tem sido cada vez mais recorrente. Como argumenta Succi (2020, 58), o pressuposto teórico normativo que compreende uma clara divisão entre os usos interno e externo da força inviabiliza “os casos nos quais o emprego das forças armadas no interior das fronteiras do Estado está incorporado à normalidade jurídica e social”. Ainda que esse pressuposto teórico seja evidente, grande parte da literatura clássica sobre relação civil-militar compreende que as Forças Armadas exercem um papel forte para dentro do Estado, o que se torna claro nas frequentes intervenções militares na política ao longo da história do país e na produção de legislação específica que prevê o uso interno das Forças Armadas (Rodrigues 2016).
Cabe destacar que essa produção normativa está ligada a relações de poder que apresentam implicações práticas, em uma lógica que separa, de forma fictícia, o exterior anárquico e violento do interior pacificado, representada pelas ideias de soberania e coesão nacional (Costa e Mendonça 2018). Portanto, reforça-se a ideia de que a separação do trabalho de polícia e do trabalho militar tem dinâmicas de poder e aspectos materiais, relacionados a questões orçamentárias, que não devem ser olvidados na análise.
O fim da ditadura civil-militar, em 1985, e o processo de redemocratização a partir da Constituição de 1988 não significaram o fim da influência e da atuação para dentro das Forças Armadas. Coelho (1976) apontou que o seu fim colocou os militares em situação de dupla orfandade: uma funcional, pois não mais havia um cenário para o seu papel tradicional de guerra clássica, e uma outra societal, já que a imagem das Forças Armadas fora abalada durante os 21 anos que estiveram no poder. No entanto, segundo Rodrigues (2016), os militares tinham capital político suficiente para negociar e garantir que a instituição se mantivesse de acordo com seus interesses. O artigo 142 da Constituição Federal de 1988, que trata especificamente das atribuições e das características institucionais das Forças Armadas, e seu caput estabelecem que os militares podem ser chamados para as ações de GLO, ou seja, para a atuação dentro das fronteiras e contra os próprios nacionais. Na época, o então deputado federal pelo estado de São Paulo, Luís Inácio Lula da Silva (do Partido dos Trabalhadores - PT), ressaltou que “os militares continuam intocáveis, como se fossem cidadãos de primeira classe, para, em nome da ordem e da lei, poderem repetir o que fizeram em 1964” (Brasil 1988).
A partir da Constituição Federal, uma série de leis específicas e documentos foi formulada para regulamentar esse uso interno das forças armadas. A Política de Defesa Nacional de 1996 deixou claro estar “voltada para ameaças externas” (Brasil 1996, 1). Da Política publicada em 2005 em diante, a “defesa nacional” foi apresentada como medidas e ações do Estado contra ameaças aos interesses nacionais “preponderantemente externas, potenciais ou manifestas” (Brasil 2005). O termo “preponderantemente” reforçou a possibilidade da ação das forças armadas em questões de ordem interna, de acordo com o dispositivo constitucional.
A Lei Complementar 97, de 1999, tratou das “normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas” (Brasil 1999) e foi alterada pela Lei Complementar 117, de 2004, cujo texto abordou o uso dos militares em operações de GLO (art. 142, Constituição Federal de 1988) de segurança pública (art. 144, Constituição Federal de 1988). Segundo o parágrafo 3º da lei, elaborado em consonância com o Decreto 3.897 de 24 de agosto de 2001,10 e que aborda as diretrizes para o emprego das Forças Armadas em operações de GLO:
Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal [forças policiais] quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional. (Brasil 2001)
Dessa forma, há uma considerável margem de interpretação dos poderes para indicar quando as forças policiais, responsáveis pelo cumprimento do artigo 144, estão “indisponíveis, inexistentes ou insuficientes”.
Outro documento importante é a Lei de Segurança Nacional, cujo objetivo é regular questões de ordem interna e distúrbios sociais dentro do território nacional.11 A lei define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, mas não indica o significado de ordem vigente (Brasil 2006). Na realidade, o texto das diversas leis de segurança promulgadas entre 1935 e 1983 não apresentam diferenças significativas em seu conteúdo (Costa 2013). Apesar de a preocupação com a ordem nacional ser inerente ao ethos das Forças Armadas brasileiras (Rodrigues 2016), a definição do que é considerado “ordem” fica aberta à interpretação das autoridades. Nesse sentido, é possível observar pistas na história nacional relacionadas à construção de uma figura de inimigo interno, aquele que ameaça a coesão e a ordem nacional. Figuras importantes do Exército Brasileiro passaram para a história por terem atuado na manutenção da “ordem” como o Duque de Caxias (1803-1880), que atuou na pacificação de revoltas do período regencial,12 e o Marechal Rondon (1865-1958), que pacificou povos indígenas no início do século XX. O golpe de 1964 foi justificado pela necessidade de proteger a ordem nacional da ameaça comunista. Assim, é possível perceber que a ordem pode ser mobilizada de acordo com o momento histórico para justificar o emprego interno dos militares.
Os documentos de defesa mencionam também a necessidade de as Forças Armadas cooperarem com os órgãos públicos das unidades da federação, principalmente no setor de segurança, como atuar em grandes eventos nacionais e internacionais (Copa do Mundo de 2014, Olimpíadas de 2016, entre outros). Além disso, as Forças Armadas tradicionalmente são empregadas em ações subsidiárias, aquelas realizadas “em caráter complementar às suas atribuições constitucionais” com a intenção de contribuir para o desenvolvimento nacional e a Defesa Civil (Ministério da Defesa 2020), com destaque para as obras de engenharia. São ações cívico-sociais, apoio à saúde pública e socorro às vítimas de calamidades naturais, entre outras, realizadas em diversos segmentos da sociedade. Algumas dessas atividades são realizadas há décadas, como a distribuição de água na região Nordeste chamada “Operação Pipa” (ver, por exemplo, Carvalho Neto et al. 2019), e de apoio à população na Amazônica, incluindo comunidades indígenas (ver, por exemplo, Costa et al. 2020 e Menin 2007).
Desde meados da década de 1990, dezenas de operações foram realizadas pelas Forças Armadas para a garantia da ordem pública (incluindo ações relacionadas com greves de policiais e caminhoneiros) e a segurança de eleições e plebiscitos, eventos importantes, instalações, presídios e ações de outros órgãos do Estado.
Ano | Local (Estado da federação) | Finalidade |
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1996 | Pará (3) - Brasília Território nacional | Ordem pública Eleições |
1997 | Rio Grande do Sul, Ceará, Pará, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Sergipe, Minas Gerais, Pernambuco Pará | Ordem pública - greve de polícias Segurança de instalações |
1998 | Pará, Maranhão, Brasília, Pernambuco Território nacional Rio de Janeiro, Brasília | Ordem pública Eleições Eventos |
1999 | Pernambuco, Paraíba, Brasília, Bahia Rio de Janeiro Todo território | Ordem pública Evento Greve de caminhoneiros |
2000 | Pernambuco, Paraíba, Brasília, Bahia, Alagoas, Mato Grosso Bahia, Brasília, Santa Catarina Todo território | Ordem pública - greve de polícias Eventos Eleições e greve de caminhoneiros |
2001 | Pernambuco, Rio de Janeiro, Tocantins, Brasília, Bahia, Alagoas Brasília Paraná Todo território | Ordem pública e greve de polícias Evento Segurança de instalações Greve caminhoneiros |
2002 | Ceará Todo território | Evento Eleições |
Fonte: elaboração própria com base em Ministério da Defesa (2019a).
Além do uso constante das forças armadas internamente, durante o governo Lula dois diplomas legais importantes foram aprovados: a Lei do Abate, que possibilitou o abate de aeronaves suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins (Brasil 2004b) que adentrem o espaço aéreo brasileiro sem a devida autorização, e leis que deram “poder de polícia” para as Forças Armadas atuarem na faixa de fronteira brasileira contra os crimes transfronteiriços e ambientais (Brasil 2004a; Brasil 2010). As leis sobre “poder de polícia” resolveram um problema jurídico fundamental na ação das Forças Armadas no âmbito interno (na faixa de fronteira) relacionado com a competência legal de militares realizarem patrulhamento, revista de pessoas, veículos, embarcações e aeronaves e, principalmente, prisões em flagrante. A Operação Ágata, realizada desde 2011 sob a coordenação do Ministério da Defesa com o objetivo de fortalecer a fronteira terrestre do país, e a Operação Sentinela, centrada no trabalho de investigação e inteligência e na atuação conjunta de órgãos federais de segurança (Ministério da Defesa 2019c), se juntaram a outras atividades fronteiriças pontuais com resultados importantes (ver Paim, França e Franchi 2019). O uso interno dos militares nessas áreas resultou na definição de uma estrutura bem como no fortalecimento da cooperação e da integração com outros órgãos para a execução de operações preventivas e repressivas no ambiente interagên cias na faixa de fronteira, por meio de diretrizes e manuais (ver Brandão et al. 2018).
Durante o governo Lula foi lançada a primeira Estratégia Nacional de Defesa (END) para operacionalizar a PND em longo prazo. Além disso, em 2010, foi criada a primeira Força de Pacificação, através do dispositivo de GLO, orientada para o combate ao narcotráfico e ao crime organizado. Essa Força atuou no Rio de Janeiro, nos complexos do Alemão e da Penha.
Mesmo com inúmeras operações internas e a atuação brasileira na pacificação do Haiti desde 2004, apenas em 2013 foi publicado pelo Ministério da Defesa o manual MD33-M-10 sobre Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Brasil 2013a). No documento, apesar de as palavras “ordem” e “ordem pública” aparecerem diversas vezes, não há uma definição precisa do que seriam, o que revela novamente a arbitrariedade da decisão de caráter político sobre seus significados. Em 2015, quando já havia sido criada a segunda Força de Pacificação para a atuação no Rio de Janeiro, foi publicado o Manual de Pacificação, cujo objetivo era informar a doutrina sobre as operações de pacificação como as da ONU. Embora não mencione o cenário interno, o Manual apresenta texto relevante para a compreensão das Forças Armadas brasileiras na atualidade.13 O documento foi revogado em 2019 pela Portaria 326, do Estado-Maior do Exército (EME),14 porém cabe destacar que apresentava também uma abordagem vaga da ideia de “ordem”.
A PND e a END devem ser consideradas em conjunto com os demais documentos que informam a concepção de defesa e de segurança, das ameaças, do treinamento e da produção de uma doutrina que tem como objetivo garantir a segurança nacional. Esses documentos são relevantes, pois neles constam alguns conceitos essenciais para o entendimento das questões de defesa presentes na PND, direta ou indiretamente. Entre esses conceitos, destaca-se o de Segurança Integrada, que tem passado por uma ampliação de seu significado, justamente a partir do conteúdo da PND, e que tem implicações práticas de mudança de doutrina e de percepção das forças armadas sobre o que é necessário para a garantia da segurança (Moura et al. 2018). Nota-se ainda que essa percepção mais ampla da atuação das forças armadas como Segurança Integrada implica “elevado nível de integração entre os mais variados órgãos e agências nacionais” (Mariath et al. 2018, 60). Novamente, é possível observar a normalização da atuação das Forças Armadas em atividades do âmbito civil, dado que a integração e a interação entre agências militares e civis representam vínculos institucionais importantes.
Ainda, entre os documentos, destacam-se os Manuais de Pacificação e de GLO, por exemplo, que indicam algumas possíveis fontes de ameaça à ordem contra as quais as Forças Armadas devem estar preparadas. A partir deles, é possível depreender que as principais ameaças de ordem interna estão relacionadas ao crime organizado, especialmente o tráfico de drogas ilícitas e de armas. É interessante notar que a PND sugere que o foco da atuação de defesa seja os centros econômicos e políticos do país, o que implica uma maior concentração na região Sudeste. Justamente nessa região, em específico no Rio de Janeiro, as Forças Armadas têm sido chamadas para atuar em operações maiores de GLO, com o objetivo de combater as facções criminosas.
A constante atuação levou o Exército a criar o Centro de Instrução de GLO junto ao 28º Batalhão de Infantaria Leve para ministrar estágios voltados à capacitação de oficiais e praças nesse tipo de operação (Brasil 2006), bem como manter unidades preparadas para o emprego nesse tipo de operações em ambientes urbanos e como força de pacificação, como as brigadas de infantaria leve. O preparo inclui grandes exercícios, normalmente com a participação de policiais militares e federais, agentes da Receita Federal e de guardas municipais.15
O uso das forças armadas em GLO tradicionalmente era realizada a pedido dos governadores dos estados ou de instituições do Estado, por exemplo, do Superior Tribunal Eleitoral para a segurança das eleições. No entanto, entre fevereiro e dezembro de 2018, ocorreu a primeira “intervenção federal” desde promulgada a Constituição de 1988, na cidade do Rio de Janeiro, que resultou na indicação de um general do Exército para ocupar o cargo de secretário de segurança daquela cidade e de generais em funções naquela secretaria e no gabinete da intervenção federal. O objetivo principal da intervenção foi reorganizar a gestão do Estado na área de segurança e reduzir os índices de criminalidade bem como coordenar ações ostensivas e cívico-sociais em áreas consideradas estratégicas da cidade.
Dessa forma, a legislação apresenta termos que dão certa discricionariedade aos decisores justificarem o uso interno das forças armadas. Esse emprego, que deveria ser episódico e em situações extremas, tornou-se cada vez mais recorrente e duradouro. A Força de Pacificação ocupou os complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, por 583 dias, entre 2010 e 2012 (Ribeiro 2012).
Essa recorrência pode ser compreendida a partir da percepção de que há um ethos pacificador que perpassa a história das Forças Armadas brasileiras e que constantemente faz com que as ações militares sejam voltadas para dentro do país (ver LaSInTec 2020; Mendonça 2017). Ainda que em cada período histórico as práticas mobilizadas tenham suas particularidades, é interessante notar a emergência regular desse ethos, por exemplo, a forte presença de militares em cargos burocráticos no atual governo de Jair Bolsonaro, um militar da reserva.
4. Dimensões externa e interna e política externa: alguns apontamentos
Na dimensão externa, a leitura dos documentos de defesa brasileiros, ou seja, o discurso, apresenta algumas contradições quando relacionado com a prática. Há a intenção manifesta de fortalecer as Forças Armadas, a qual está relacionada muito mais com a incerteza e as tensões provenientes da ordem global do que com a percepção de ameaças vinda de seus vizinhos. No entanto, é importante apontar que a concepção de que há uma paz permanente no continente não é suficiente para explicar a situação estratégica regional (Battaglino 2012; Villa e Pimenta 2016). É notável a permanência de conflitos sociopolíticos e ameaças não tradicionais (como o narcotráfico) e mesmo momentos de acirramento de tensões entre os Estados na América do Sul ligadas a questões territoriais, mas atualmente também a ideológicas. Villa e Pimenta (2016) indicaram uma série de narrativas e epistemologias que, além de apresentar implicações políticas práticas, ensaia explicar a ausência de conflitos prolongados interestatais na região por meio de abordagens liberais da “paz negativa” e institucionalista da “paz violenta”. Mares (2001), por exemplo, utilizou as disputas militarizadas na América Latina para evidenciar o fenômeno da “paz violenta”, ou seja, o uso da força militar como uma tática de barganha para resolver disputas interestatais, mas que pode resultar numa guerra por conta de dinâmicas de escalada desconhecida, imprevista ou mal calculada por quem tomou a decisão inicial de usar essa força. No entanto, nota-se que a concepção de um subcontinente “pacífico” segue orientando a confecção dos documentos de defesa, ao menos no caso brasileiro.
Enquanto a PND, a END e o Livro Branco de Defesa Nacional indicam uma estreita conexão da defesa com a política externa brasileira, especialmente a projeção da imagem do Estado no exterior, a qual ficou praticamente circunscrita a alguns governos e não foi sustentada no tempo como política de Estado. Ao longo do governo mais progressista do PT, houve maior relevância no uso das Forças Armadas como instrumento de política externa e de maior projeção do país no exterior. No entanto, apesar de terem mostrado resultados positivos, tanto a participação em operações de paz da ONU como os arranjos de segurança e defesa na área prioritária da América do Sul sofreram um retrocesso nos últimos anos.
Além disso, a “projeção externa” das Forças Armadas sofre com os constantes constrangimentos. Como a capacidade dissuasória está relacionada com o poder e a capacidade das Forças Armadas de projetar poder, ela é afetada pelos efeitos negativos de orçamentos abaixo do necessário e constantes contingenciamentos aplicados pelos governos, e, com isso, projetos importantes se arrastam por décadas.
No campo interno, os interesses militares mantidos no texto constitucional de 1988 acabaram levando ao constante uso interno das forças armadas e o que foi pensado para ser episódico se tornou recorrente, independentemente dos grupos partidários que estiveram no poder. O uso interno das forças armadas pode ser explicado por um certo “movimento” pós-Guerra Fria que ocorreu nos países da região. Líderes políticos e ministros da Defesa foram incorporando sistematicamente novos temas e agendas, a partir de novos conceitos semânticos, o que acabou por aprofundar ambiguidades e ambivalências, como a Declaração de Segurança das Américas, de 2003, pela qual se reconheceu uma “nova concepção da segurança no hemisfério de caráter multidimensional” (Saint-Pierre 2015, 19). Com tal reconhecimento, tornaram-se indefinidos os limites normativos de regulação do emprego das Forças Armadas com cada governo, o qual tomava decisões a partir de suas interpretações desse novo conceito. Problemas decorrentes do tráfico de drogas e dos altos índices de violência, diante da fraqueza estatal, fizeram com que fossem atacados os sintomas e não as causas de tais problemas, empregando as Forças Armadas para produzir uma percepção de segurança na sociedade. Para Saint-Pierre (2015, 20), além do narcotráfico ou dos índices de violência não diminuírem, ocorre uma maior debilidade estatal e democrática, com uma percepção errônea de fortalecimento das Forças Armadas e possíveis riscos à proteção aos Direitos Humanos e à integridade física dos cidadãos.
Na prática, ao mesmo tempo que havia essa preocupação com o uso dos militares para fora, notadamente em operações de paz da ONU, como forma de estabelecer a identidade do Brasil no exterior e auxiliar na consecução de objetivos de política externa, foi aperfeiçoado o aparato legislativo para o uso interno da força (ver Siman 2014). No fim, a criação de uma legislação específica tornou o uso das forças armadas como último recurso um princípio distante da realidade, já que acabou por normalizar uma situação que deveria ser excepcional (Villareal e Franchi 2020). Observa-se uma grande carga de trabalho voltada para o emprego interno, não apenas no planejamento, na preparação e na execução das operações, mas também no âmbito intelectual. A intervenção no Rio de Janeiro, por exemplo, resultou num amplo projeto de atualização doutrinária de GLO realizado por um grupo de instrutores de diversas escolas do Exército (Padeceme 2019).
O ápice do constante emprego interno foi, no nosso entendimento, a intervenção federal militarizada no Rio de Janeiro. Não houve o emprego de militares de maneira ostensiva em todo o estado nem em ocupações prolongadas de áreas sensíveis à segurança pública com tropas militares, e o foco foi a reorganização e o reequipamento da Polícia Militar. No entanto, há uma literatura especializada que compreende a militarização como o uso da gramática, dos métodos, das doutrinas e do pessoal militar em ações no espaço público civil (Zaverucha 1999, 2008; Mathias 2004). O próprio fato de a Escola de Comando e Estado Maior do Exército ter sido chamada, entre outros estabelecimentos de ensino militares, para elaborar o Planejamento Estratégico da Intervenção (Padeceme 2019) permite o uso do termo “militarização” no sentido mais amplo como forma de evidenciar o uso de pessoal militar na burocracia civil e suas possíveis consequências para o controle civil democrático.
Conclusão
O argumento central do artigo é que, apesar do porte econômico do país e da ambição apresentada nos documentos de defesa, uma série de desafios compromete a consecução dos objetivos. A aquisição de capacidades para aumentar a dissuasão como estratégia de defesa da pátria é constantemente comprometida pelas imposições orçamentárias. A conexão entre defesa e política externa ficou mais evidente apenas em alguns momentos da política nacional, como nos governos de Lula da Silva. Assim, a flutuação entre um maior protagonismo e uma certa relegação a segundo plano permite dizer que o emprego dos militares em prol da política externa está mais relacionado à política de governo que a uma política de Estado.
O emprego dos militares nas chamadas “Operações de GLO” e em atividades subsidiárias no interior do país se tornou recorrente. Houve, então, o que pode ser compreendido como uma disfunção no emprego das forças armadas. Apesar de não haver uma ação específica prevista na END sobre as operações de GLO, o que se verificou, na prática, foi o aumento do uso interno das forças armadas em questões relacionadas à segurança pública. Desde meados de 1990, e independentemente do governo, houve o uso intenso das Forças Armadas no interior do país. Essas operações deixaram de ser pontuais e subsidiárias para ser rotineiras, o que levou, além da produção de uma legislação específica, a arranjos estruturais, à incorporação de treinamentos específicos e de doutrina nesse sentido. Com o emprego frequente delas contra o crime organizado no interior do país, aumentou a preocupação com o crime organizado internacional, especialmente nas áreas de fronteira. Além da presença militar em algumas áreas do país onde outros agentes públicos não se fazem presentes, como em partes da Amazônia, o Ministério da Defesa passou a realizar operações conjuntas focadas nesse tema.
Dessa forma, na dicotomia ação externa-uso interno das forças armadas, tem prevalecido a segunda dimensão, que se dá por decisão política e para fins políticos, distorcendo sua finalidade principal, a defesa contra ameaças externas, bem como dificultando o uso dessas forças em apoio à política externa do país. Além disso, é possível perceber, após a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro em 2018 e com o início do atual governo, que houve o aumento da atuação de militares na política, cujas consequências ainda necessitam de mais tempo para serem analisadas.