Introdução
As casas legislativas são consideradas espaços de acalorados debates e palcos para as diversas formas de manifestação de discursos políticos. Os pronunciamentos se revestem de especial relevância na atividade parlamentar, em razão do poder de palavra exercido pelos parlamentares (Miguel e Feitosa 2009; Moreira 2020). Os pronunciamentos são entendidos como “a alma do processo legislativo” (Paiva 2006, 23), pois o discurso “é um dos meios pelos quais a política se materializa” (Moreira 2016, 12). Por isso, os parlamentos são vistos como arenas muito expressivas quando se trata do debate político, pois o parlare é inerente à liberdade de opinião, uma forma que os parlamentares encontram para manter o vínculo com seus apoiadores no espaço público (Barros 2020; Barros e Barbosa 2020).
Dos políticos, espera-se que um pronunciamento, uma intervenção oral, um texto, uma postura, empreste sentido ao que está sendo comunicado e, acima de tudo, que se acerque do que se pretende como verdade. Esse gênero discursivo singular é um manancial para observar a aplicação da dimensão argumentativa quando a manifestação oral acontece, conforme a análise do discurso (AD) se propõe, já que esta espera descrever o funcionamento dos discursos nos momentos em que estes acontecem.
Foi exatamente uma disputa de discursos o que se observou durante o processo do impeachment de Dilma Rousseff no Congresso Nacional, em 2016. Nesse período, era comum, nas intervenções nos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o constante desfile de argumentos dos que estavam a favor do impedimento e dos que estavam contra. Cada parlamentar, independentemente do gênero, com a sua verdade, busca convencer a audiência sobre sua posição ou, como se diz em AD, o alocutário, aquele a quem o locutor dirige um ato de fala numa situação de comunicação oral.
Nesse contexto, destaca-se a principal questão a ser aqui examinada: como se deu o debate entre as senadoras, considerando o espectro ideológico-partidário e o posicionamento com relação ao impedimento (favorável ou contrário)?
Diante de tal contestação, convém enunciar os principais objetivos da pesquisa. O primeiro consiste em investigar o posicionamento discursivo das senadoras ao longo das discussões sobre o impedimento da presidente Dilma Rousseff, no Senado Federal. O segundo objetivo é compreender se, efetivamente, os pronunciamentos, com suas justificações discursivas, foram capazes de convencer o conjunto ou a maioria dos parlamentares. O terceiro objetivo tem como propósito investigar como se deu o debate entre as 13 senadoras, considerando o espectro ideológico-partidário e o posicionamento com relação ao impedimento (favorável ou contrário).
1. Descrição dos procedimentos metodológicos
Alguns procedimentos derivados da AD foram utilizados com o objetivo de examinar como se deu o debate entre as 13 senadoras que estavam em exercício durante o período da pesquisa. Antes de um detalhamento dos conceitos da AD, convém registrar que a análise levou em conta o espectro ideológico do partido das senadoras e o posicionamento institucional ante o obstáculo (a favor ou contra). Tal procedimento teve utilidade para se traçar o perfil político-ideológico das senadoras, a fim de compreender os argumentos que utilizaram no debate e suas diferentes formas argumentativas.
Para alcançar o objetivo proposto, este trabalho, de modo específico, contabilizou o número de pronunciamentos proferidos pelas 13 senadoras no período de 2 de dezembro de 2015 a 31 de agosto de 2016, no Plenário do Senado Federal. Dentre o número encontrado, fez-se uma separação daqueles que trataram especificamente do tema do impeachment, para, desse modo, mapear quem e com que frequência utilizou a palavra no plenário, abordando o assunto, e, ao final, investigar o comportamento discursivo delas com ênfase nos posicionamentos acima mencionados.
O discurso é considerado produtor de sentidos na concepção de Michel Foucault (2006) . Para o autor, o discurso não apenas se reduz ao que manifesta ou oculta na produção de sentidos, como também é aquilo que é per si. Desse modo, não é somente o que decifra os conflitos e os sistemas de dominação; é também aquilo pelo que se luta e o poder do qual se quer apoderar. Ele afirma que o discurso “está na ordem das leis” e que se existe algum poder no discurso é aquele dado pelos homens (Foucault 2006, 8). O discurso é, em sua realidade material, a coisa pronunciada ou escrita; além disso, “existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence” (Foucault 2006, 8).
Orlandi (2009) observa que o discurso não é a transmissão de informação, e sim o efeito de sentidos, no qual, quando alguém diz algo, o diz de algum lugar, e isso faz parte da significação. Entende a autora que a língua funciona na produção dos sentidos e a AD, a seu ver, “concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social” (Orlandi 2009, 15). Em sua concepção, a AD visa fazer compreender de que maneira os discursos produzem sentidos.
Todo discurso tem uma função na sociedade, seja para informar, seja para convencer, ensina Ruth Amossy (2011) . A autora defende que o analista deve estar atento à dimensão argumentativa dos discursos, uma vez que existem discursos que buscam persuadir e que, mesmo quando a fala não tem a intenção de convencer, ainda busca “exercer alguma influência, orientando modos de ver e de pensar”, pois “toda tomada de fala é destinada a conquistar a adesão do auditório a uma tese” (Amossy 2011, 129).
Considera a autora que o discurso traz em si “uma tentativa de fazer ver as coisas de uma determinada maneira e agir sobre o outro” (Amossy 2011, 131 ). Diz importar perceber o quanto um discurso busca fazer com que o alocutário perceba as coisas de uma certa maneira. E adverte que os conceitos de Aristóteles do ethos (construção da imagem de si no discurso), do pathos (construção discursiva da emoção que o locutor pretende provocar em seu auditório) e do logos (argumentação racional que pretende persuadir pelas vias do argumento e da prova) devem ser levados em conta para desvendar os efeitos dos discursos de natureza política (Amossy 2011; Wilson 2015).
Apesar de se tratar de um fenômeno relevante, poucos estudos se debruçam sobre a tarefa de examinar as manifestações orais das parlamentares no caso específico do impeachment da ex-presidente da República, Dilma Rousseff, ocorrido em 2016. Dentre os raros estudos brasileiros, Silva e Sampaio (2017) analisaram as páginas na plataforma do Facebook das 13 senadoras que participaram do processo de impedimento, bem como as interações dos usuários dessa rede social, com vistas a “verificar as especificidades dos diferentes discursos do ódio e as características semânticas” (Silva e Sampaio 2017, 79).
A premissa dos estudiosos é que seria possível observar, por meio de tais interações, se havia manifestações preconceituosas de cunho misógino e sexista. Porém, a atual produção acadêmica carece de investigações sobre as falas dessas mulheres com relação ao processo do impedimento da presidente da República, no ambiente do plenário do Senado, em tribuna ou em outros debates.
Foi exatamente uma disputa de discursos o que se observou durante o processo do impeachment no Congresso Nacional. Houve uma intensa disputa de argumentos favoráveis e contrários ao impedimento, em que uma estratégia visível foi o uso de retóricas populistas, no formato de narrativas concisas e redundantes (Savage 2007; Shenhav 2005).
Ao revisitar a literatura proposta pela AD, este estudo pretende lançar mão de instrumentais teóricos que podem dar condições para analisar como as relações de poder podem se prestar ao serviço da produção dos sentidos, de modo a conduzir a uma determinada verdade. Podemos destacar, tendo em revista o caso em estudo, as tentativas de produção de regimes de verdade pelas senadoras tanto para apoiar e defender o impedimento de Dilma Rousseff quanto para criticá-lo e combatê-lo. Dessa forma, abordamos as diferentes formas de manifestações discursivas e como elas servem para criar conglomerados de verdades que coexistem na dimensão política, em que um grupo busca sobrepor, por meio do discurso, a sua própria verdade (Savage 2007; Shenhav 2005; Wilson 2015).
Os discursos também permeiam todo o tecido social e não estão apenas no mundo externo dos sujeitos, como também no interno, podendo, inclusive, mudar o próprio sujeito. Para Fairclough (2004) , os discursos são representações diversas da vida social, inerentemente posicionadas, uma vez que os atores sociais enxergam e representam a vida social de maneiras diferentes; há discursos diferentes, de acordo com seus pontos de vista.
Prossegue o autor que o discurso figura também em modos de ser, na constituição de identidades. Diante disso, pode-se afirmar que a identidade de uma figura política como a presidente Dilma Rousseff, objeto desta análise, é, em parte, um modo de ser discursivamente constituído, assim como a identidade das 13 mulheres que a julgaram. Para Fairclough (2004) , a prática social é toda forma relativamente estabilizada de atividade social; uma articulação de diversos elementos sociais dentro de uma configuração relativamente estável, sempre incluindo o discurso, como o ensino em sala de aula ou as refeições em família, por exemplo. Explica que a relação entre discurso e outros elementos das práticas sociais é dialética na medida em que aquele internaliza elementos e é internalizado por outros, sem que haja a redução entre os diferentes elementos.
No âmbito das práticas sociais, os discursos configuram possíveis sínteses de atividades, sujeitos, relações sociais, instrumentos, objetos, espaços/tempos, valores, formas de consciência; reais ou imaginários, incutidos como novos modos de ser, novas identidades (Fairclough 2004).
Para Laclau e Mouffe (1987) , o campo discursivo equivale ao conceito de campo social. Todas as práticas sociais são práticas discursivas, logo as identidades sociais são, a partir dessa perspectiva, discursos. Ambos entendem os discursos não só como fenômenos relativos estritamente às áreas da fala e da escrita, mas também que atravessam toda a densidade material do social. Quando os autores se referem ao campo do discurso ou discursos, tratam da dimensão simbólica como parte das construções sociais implicadas no discurso político.
Com base nessas premissas, mas antes da análise dos pronunciamentos, este texto apresenta um breve panorama sobre a sub-representação feminina, com a finalidade de contextualizar a pesquisa, uma vez que o foco são os discursos de mulheres (senadoras) sobre o impedimento de outra mulher, eleita para a Presidência da República. Em suma, o processo todo ocorre em um contexto de sub-representação feminina na política.
2. Participação feminina na política
As ideias que tratam das questões femininas têm sido abordadas na literatura como formadas por ondas. Na primeira onda, que data do final do século 19 e início do 20, as mulheres reivindicam direitos políticos, sociais e econômicos; na segunda onda, considerada a partir da metade dos anos 1960, as mulheres passam a exigir direito ao corpo, ao prazer, e lutam contra o patriarcado (Pedro 2011).
Embora as discussões na ciência política e em outras áreas do conhecimento tratem do tema das desigualdades da mulher na sociedade como uma questão de gênero, o presente estudo não aborda a luta de gêneros, atendo-se a discorrer sobre o assunto na medida necessária para expor os fatores que excluem as mulheres da participação na política. Dessa forma, oferece uma perspectiva conceitual apta a demonstrar a importância da presente investigação, bem como auxilia na análise dos pronunciamentos das senadoras no processo do impeachment.
Para fins de contextualização, convém mencionar que houve uma mudança importante em resultados práticos com relação a maiores garantias para que a mulher participasse das disputas eleitorais. Em 1996, mudança legislativa trouxe a reserva de 20 % das vagas de cada partido ou coligação para mulheres. A Lei 12.034/2009 definiu a cota mínima de 30 % e máxima de 70 % para cada um dos sexos (Cajado e Cardoso 2011). Para os efeitos desta análise, contribui-se ao expor o horizonte da sub-representação feminina de maneira a ratificar a importância em lançar um olhar sobre o comportamento discursivo das senadoras no processo do impeachment da primeira mulher a alcançar o cargo representativo mais alto do país.
Biroli (2017) explica que as mulheres não são o objeto das teorias feministas. São as “instituições, estruturas e relações de poder cotidianas nas quais aquelas são posicionadas desvantajosamente” as estudadas por referidas teorias (Biroli 2017, 175). A autora defende que o foco de tais teorias não está situado somente nas mulheres, no feminino e na agenda feminista, uma vez que as teorias se estendem para a política, a democracia e a justiça. Semelhante à maioria dos teóricos feministas contemporâneos, defende que há conexões significativas entre as esferas pública e privada. Explica que “as posições relativas de mulheres e homens na esfera doméstica se desdobram em desvantagens na esfera pública política e nas relações de trabalho remunerado” (Biroli 2017, 193).
Pinto e Silveira (2018) explicam que, somente nos últimos anos do século 20, as democracias ocidentais e os países europeus e escandinavos começaram a ver mudanças significativas na participação feminina na política; além disso, a estudiosa relata sobre a tardia entrada das mulheres nessa área. Para a autora, há “um complexo conjunto de causas que explica essa ausência, entre elas é mister enfatizar a rígida divisão entre o público e o privado estabelecida pelo pacto democrático liberal” (Pinto 2001, 101).
Nesse sentido, Bolognesi (2012) avalia as consequências das cotas de gênero no recrutamento de candidatas para as eleições no Brasil. Entende que a política de cotas para as candidaturas femininas é uma política pública e observa que seus estudos conduzem à conclusão de que o ponto de convergência nos achados teóricos e empíricos é que “a política de cotas, como política pública, tem impacto positivo na participação e no recrutamento de mulheres na política” (Bolognesi 2012, 115). Young (2006) também vê nas cotas partidárias, enquanto dispositivo político proposto especificamente a aumentar a representação dos grupos sociais sub-representados, uma forma importante de promover a maior inclusão de mulheres nos espaços de tomada de decisão.
A cota definida na Lei das Eleições (mínimo de 30 % e máximo de 70 % para as candidaturas de cada sexo, por cada partido ou coligação) se aplica para as eleições proporcionais, ou seja, para a Câmara dos Deputados, para a Câmara Legislativa do Distrito Federal, para as Assembleias Legislativas dos Estados e para as Câmaras Municipais. Entretanto, a existência de uma lei não implica necessariamente que o sistema político possibilita a plena participação feminina nas eleições.
Estudo conduzido em 2009 por Matos (2010) encontrou que, dentro dos partidos, as mulheres ainda não eram vistas como candidatas legitimadas e competitivas, e que a organização do sistema político poderia ser considerada excludente, pois elas esbarravam em um “sistema partidário brasileiro de baixa institucionalização e pouca fundamentação em critérios racionais / legais” (Matos 2010, 7).
A adesão de mulheres aos partidos políticos implica fatores complexos, nos quais estão envolvidos aspectos institucionais, culturais e ideológicos, além da afinidade sociocultural da organização partidária com o eleitorado. Destacam-se ainda variáveis como as origens sociais das mulheres, o contexto político, a educação que receberam, a forma como foram politicamente socializadas, a classe, o local de moradia, a religião e a própria geração política (Biroli 2017; Rezende 2017; Vommaro 2013).
No caso dos partidos brasileiros, estudos mostram que existem especificidades que interferem nas formas de recrutamento, inclusive de mulheres, uma vez que partidos diferentes teriam diferentes maneiras de se organizar internamente e, por isso, diferentes estratégias e mecanismos para o recrutamento (Costa, Bolognesi e Codato 2013).
Para os autores supracitados, é necessário avançar no emprego de variáveis sociais e político-institucionais para o entendimento dos processos de recrutamento político no Brasil, uma vez que a discussão tem sido prejudicada pela dicotomia entre as vertentes culturalistas e as perspectivas institucionalistas. Enquanto a primeira é centrada nas heranças culturais do patriarcalismo e na visão de que as mulheres são discriminadas no campo político, a segunda procura enfatizar explicações causais especificamente políticas, como as formas de seleção, formação e treinamento de líderes políticos, a estrutura partidária e o nível de institucionalização das legendas (Biroli 2017). Observa-se, nesse debate, uma conexão com as teorias do discurso, segundo as quais, as variadas formas de discussão política trazem à tona os conflitos inerentes aos sistemas de dominação, algo típico das lutas discursivas em torno dos espaços de poder dos quais se quer apoderar (Foucault 2006). Os espaços de poder funcionam como sistemas de práticas sociais, nos quais os discursos configuram e orientam as (inter)ações dos sujeitos e suas relações sociais. Tais práticas incorporam formas de consciências, valores, modos de ver, sentir, pensar e agir (Fairclough 2004). Afinal, os discursos não se limitam à dimensão que abrange estritamente a fala e a escrita, pois atravessam toda a densidade material do campo político (Laclau e Mouffe 1987).
A existência de políticos individualistas e “caciques” partidários que escolhem quem sairá candidato, os parcos recursos disponibilizados a elas para o financiamento das campanhas, a discriminação da maior parte delas em relação às candidatas e candidatos considerados com reais chances de vitória, a percepção de que a candidatura das mulheres é apenas aspecto formal para atender a lei das cotas e a disseminação de partidos “nanicos” com espectro ideológico mais à direita (logo, patriarcalistas) também foram apontados por Matos (2010) como barreiras características do sistema político.
Na sequência, o texto apresenta um breve perfil de Dilma Rousseff. Tal aspecto se justifica porque os discursos aqui analisados se referem ao impedimento, mas também levam em conta sua trajetória política, seu perfil e estilo de governança. Além disso, a própria condição de mulher também é posta em relevo. Em suma, consideramos necessária uma breve explanação sobre quem as 13 senadoras estavam julgando, sejam os pronunciamentos a favor, sejam os contrários ao impedimento da então presidente da República.
3. Os discursos das 13 mulheres sobre o impedimento: quem elas julgaram
Dilma Vana Rousseff nasceu em 14 de dezembro de 1947, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. É a segunda de três filhos de um imigrante búlgaro com uma brasileira. Aos 16 anos, passou a integrar organizações de combate ao regime militar. Condenada por subversão, permaneceu presa de 1970 a 1972, no presídio Tiradentes, na capital paulista. O episódio era descrito pelas senadoras de esquerda como uma postura de resistência em defesa da democracia:
Compromisso [com a democracia] que a senhora demonstrou desde sua juventude, na luta contra a ditadura civil-militar, quando foi presa e torturada, encarando seus algozes, que cobriam seus rostos como quem tenta ocultar a face da tirania. Aquela é uma imagem histórica, Presidenta Dilma. Ela continua inspirando milhares de jovens brasileiros na luta cotidiana por direitos e liberdade (Bezerra 2016, 71 ).1
Já em liberdade, mudou-se para Porto Alegre em 1973. Em 1976, deu à luz a única filha. Em 1979, com o marido Carlos Araújo, ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT), no Rio Grande do Sul. Em 1989, ano da primeira eleição presidencial direta após a Ditadura Militar, participou da campanha de Leonel Brizola à Presidência da República e, no segundo turno, saiu às ruas por Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT).
Dilma ocupou por duas vezes o cargo de secretária de Estado de Minas e Energia do Rio Grande do Sul: em 1993, no governo de Alceu Collares (PDT) e, em 1998, com Olívio Dutra (PT). Em 2000, filiou-se ao PT. Em 2002, foi convidada a participar da equipe de transição entre os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010). Foi ministra de Minas e Energia do primeiro governo Lula, entre 2003 e 2005.
Em 2005, passou a ocupar a chefia da Casa Civil e assumiu o comando de programas estratégicos, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o de habitação popular Minha casa, minha vida. Integrou a Junta Orçamentária do Governo, que se reunia mensalmente para avaliar a liberação de recursos para obras. Coordenou ainda a Comissão Interministerial que definiu as regras para a exploração das recém-descobertas reservas de petróleo na camada pré-sal.
Em março de 2010, Dilma e Lula lançaram a segunda fase do PAC (PAC 2), com as metas maiores que da primeira versão. Em 3 de abril do mesmo ano, Dilma deixou a equipe do governo federal para se candidatar à Presidência da República, oficializada em 13 de junho. Aos 63 anos de idade, foi eleita a 36ª presidente do Brasil e primeira mulher nesse cargo, com 55.752.529 de votos no segundo turno das eleições (Brasil 2019). Seu vice era o ex-deputado Michel Temer (Movimento democrático brasileiro [MDB]). A presidente Dilma Rousseff e o vice-presidente Michel Temer seriam reeleitos, em 2014, com 51,64 % dos votos válidos ou 54.501.118 em números absolutos, obtidos também em segundo turno (Brasil 2019).
O processo do impeachment teria se dado em função da retirada de apoio do PT, partido da presidente, e do MDB, partido do vice, porque Dilma teria insistido na reeleição e não cumprido o acordo de que o candidato do partido, em 2014, seria o ex-presidente Lula. Miguel (2016) define o impedimento da presidente como “golpe parlamentar”, levado a cabo por setores do Estado, meios de comunicação e empresários. É mister retomar aqui o argumento de Orlandi (2009) sobre a ideia de que o discurso não se limita à transmissão de informações, pois inclui a produção de regimes de verdade e seus respectivos efeitos de sentidos. Isso porque os discursos vão além das palavras ditas, pois afetam diretamente modos de pensar e interpretar os fatos.
Nessa perspectiva, a alegação de golpe foi fartamente explorada pelas senadoras de esquerda, que também atribuíram, em diversos pronunciamentos, a um desejo de vingança pessoal, o fato de o deputado federal Eduardo Cunha ter iniciado o processo de impeachment. De acordo com essas senadoras, Cunha estava se vingando porque integrantes do PT no Conselho de Ética da Câmara haviam anunciado que votariam a favor da abertura do processo de cassação do então presidente daquela Casa.
Não só as senadoras da oposição, mas também as que compunham a base de apoio ao governo, usaram o argumento de que Dilma Rousseff carecia de apoio parlamentar. Para as primeiras, a linha de raciocínio corroborava o impedimento e um dos motivos seria a inabilidade administrativa; para as segundas, o apoio no Parlamento se dava por uma conspiração. Em suma, percebe-se a coexistência de relações de forças em nível retórico. Afinal, como lembra Amossy (2011) , os discursos exercem funções diferenciadas na sociedade, em diferentes níveis de tentativas para persuadir, dissuadir, com o intuito de influenciar e orientar modos de ver e de pensar a política.
De todo modo, em 2015, a crise econômica e a condução política renderam 9 % de aprovação em uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), realizada em julho daquele ano; o mais baixo índice de aprovação para um presidente da República até então (Ibope 2019). Já em março, protestos contra o governo em todo o país tratavam, entre outras demandas, do impedimento ou da renúncia de Dilma. Os institutos de pesquisa também apontavam para o apoio popular a um possível impedimento da presidente. No final daquele mês, 59,7 % da população era favorável ao impedimento, com um índice de 65 % de desaprovação à presidente em dezembro de 2015.
Nessa ordem de ideias, é importante mencionar que os estudos sobre discurso político reiteram a relevância dos fatores contextuais como elementos constituintes das ordens discursivas que se tornam hegemônicas. Tal hegemonia torna-se uma bússola para orientar os sujeitos políticos no nível das práticas sociais que sustentam os modos de pensar, dizer e agir em termos políticos. Trata-se de considerar o poder simbólico das condições sociais de produção dos discursos políticos (Fairclough 2004; Savage 2007; Shenhav 2005; Wilson 2015). Afinal, o contexto acima mencionado constitui um dos fatores fundamentais que impulsionaram a formação de opiniões favoráveis ao impedimento de Dilma Rousseff.
a. Quem eram as 13 mulheres que participaram do debate
Existiam no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registradas, em janeiro de 2020, 33 agremiações partidárias (Brasil 2020). Usou-se como referência, para distribuir as legendas no espectro ideológico, os estudos de Carreirão (2006), Krause e Godoi (2012), e a autodenominação feita pelos próprios partidos a um questionário aplicado pelo jornal O globo, em março de 2016. Os critérios de Codato, Berlatto e Bolognesi (2018) foram também considerados. Legendas antigas foram atualizadas, partidos extintos retirados e os novos (fundados ou surgidos de fusão) foram incorporados nessa classificação, conforme exposto no Tabela 1.
Esquerda | Centro | Direita |
---|---|---|
Partido comunista do Brasil (PCdoB) | Avante | Democratas (DEM) |
Partido comunista brasileiro (PCB) | Cidadania | Partido novo (Novo) |
Partido da causa operária (PCO) | Democracia Crista (DC) | Partido liberal (PL) |
PDT | MDB | Partido progressista (PP) |
Partido social democrático (PSD) | Patriota | Partido renovador trabalhista brasileiro (PRTB) |
Partido socialismo e liberdade (PSOL) | Partido da mulher brasileira (PMB) | Partido socialista cristão (PSC) |
Partido socialista dos trabalhadores unificados (PSTU) | Partido da mobilização nacional (PMN) | Partido social democrata (PSD) |
PT | Podemos (Pode) | Partido social liberal (PSL) |
Solidariedade | Partido republicano da ordem social (Pros) | Partido trabalhista brasileiro (PTB) |
Unidade popular (UP) | Partido da social democracia brasileira (PSDB) | Partido trabalhista cristão (PTC) |
Partido verde (PV) | Republicanos | |
Rede sustentabilidade (Rede) |
Fonte: elaboração própria, com base em dados do TSE (2020).
O Tabela 2 mostra a distribuição nominal das 13 senadoras, no espectro ideológico, conforme o partido que integravam em 2016. Os dados são relevantes para a compreensão das dinâmicas discursivas que se constituíram em torno do debate parlamentar sobre o processo de impedimento de Dilma Rousseff.
Esquerda | Centro | Direita |
---|---|---|
Ângela Portela | Kátia Abreu | Ana Amélia |
Fátima Bezerra | Marta Suplicy | Maria do Carmo Alves |
Gleisi Hoffmann | Rose de Freitas | |
Lídice da Mata | Simone Tebet | |
Lúcia Vânia | ||
Regina Sousa | ||
Vanessa Grazziotin |
Fonte: elaboração própria, com base em dados do Senado Federal (2019).
Apesar de haver na época uma maioria de senadoras da esquerda, conforme exposto no Tabela 2, o quantitativo superior não foi suficiente para produzir efeitos de sentido contrários ao impedimento. Em outras palavras, a vertente discursiva formada pela maioria das mulheres não resultou em persuasão do conjunto dos senadores. Observa-se mais uma vez a relevância dos fatores contextuais, cujas condições sociais favoreceram a predominância de opiniões favoráveis ao impedimento (Fairclough 2004; Savage 2007; Shenhav 2005; Wilson 2015).
b. O que as senadoras disseram
O levantamento a seguir foi feito na página do Senado Federal, acessando a aba “Senadores” e, em seguida, a opção “Pronunciamentos”. Nesse ambiente, preencheram-se os espaços de “autor”, “partido”, “UF” [unidade federativa] e “período”. Desse resultado, montou-se uma tabela com todos os pronunciamentos e seus respectivos endereços eletrônicos para futuras consultas. Em seguida, procedeu-se à leitura minuciosa de cada um, para verificar se o objeto impeachment havia sido abordado. Os que tratavam do assunto foram separados para contabilização, cujo resultado está na Tabela 3. Fez-se uma segunda leitura, pormenorizada, para apreender as abordagens feitas. Aplicou-se, então, a metodologia escolhida, em repetidas leituras posteriores, para realizar a análise.
Juntas, as 13 mulheres que integravam a 55ª Legislatura proferiram 621 manifestações orais entre 2 de dezembro de 2015 e 31 de agosto de 2016. Considerou-se pronunciamento todas as intervenções previstas no rito das sessões plenárias como o uso da palavra em tribuna, a apresentação de questões de ordem, a orientação de voto, os pedidos de fala pela ordem, a inquirição de testemunhas e informantes e a declaração de voto. Tais situações estão definidas no Regimento Interno do Senado Federal e/ou são acordadas previamente pelos líderes dos partidos. Os apartes das senadoras às falas de outras senadoras, embora tenham ocorrido no período de recorte, foram contabilizados separadamente para fins de registro, mas não analisados por opção metodológica.
Desse universo, 273 manifestações abordaram o tema do impeachment. As três primeiras com maior número de manifestações de fala foram as senadoras da base de apoio da presidente Dilma: Vanessa Grazziotin (PCB-Amazonas), com 69 pronunciamentos; Gleisi Hoffmann (PT-Paraná), com 48; e Fátima Bezerra (PT-Rio Grande do Norte), com 45. Marta Suplicy (MDB-São Paulo) e Maria do Carmo Alves (DEM-Sergipe) usaram a palavra apenas uma vez no período para tratar do tema. Embora seja significativa a diferença numérica de intervenções orais a depender do espectro ideológico, a presente análise não se debruça sobre os motivos desse fenômeno, por afastar-se do enquadramento definido para a investigação.
Procedeu-se a uma distribuição em termos percentuais do número total de pronunciamentos de cada parlamentar com relação ao uso desse gênero discursivo para tratar do assunto. Comparados ao número total de pronunciamentos (100 %) em plenário, verificou-se que 43,96 % se realizaram com o intuito de abordar o processo de impeachment. Sob esse critério, considerou-se que a senadora Maria do Carmo Alves, por ocupar a tribuna somente uma vez nesse tempo e apenas para falar sobre o impedimento, usou 100 % do tempo de fala em plenário para abordar o tópico. Licenciada, retornou ao cargo em maio de 2016 para votar no processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff. Ainda sob o critério escolhido, a senadora Ângela Portela (PDT-Roraima) foi a que mais dedicou o próprio tempo de fala para tratar da questão: 92,85 %.
Das quatro senadoras classificadas ao centro, apenas Kátia Abreu (PP-Tocantis), à época no MDB, e que defendia a permanência da presidente Dilma no cargo, ultrapassou a casa dos 50 %. Para os fins desta análise, importa citar que os pronunciamentos dela se concentraram somente no mês de agosto de 2016. Abreu era considerada uma das mais importantes aliadas da presidente da República. Foi a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de dezembro de 2014 a maio de 2016, segundo mandato de Dilma; e retornou ao Senado para defender a permanência da presidente, conforme inúmeras manifestações públicas que fez e que culminaram em seu afastamento, pelo Conselho de Ética do MDB, partido que integrava na ocasião, por 60 dias, após votar contra o impeachment. Em 2018, deixou o MDB e foi para o PDT e, em 2020, saiu do PDT e se filiou ao PP.
As senadoras de centro que defendiam o impedimento, Marta Suplicy (MDB-São Paulo) e Simone Tebet (MDB-Mato Grosso do Sul), não dedicaram tanto tempo de fala ao tema; a primeira abordou a questão em apenas um dos dez pronunciamentos que proferiu no período, o equivalente a 10 % do tempo total de fala. Simone Tebet (MDB-Mato Grosso do Sul) foi a segunda colocada em números absolutos, entre as senadoras que defendiam o impedimento e a primeira, entre as de centro, com 15 pronunciamentos. Entretanto, em termos percentuais, dedicou ao assunto menos do próprio tempo de fala (42,85 %) que Kátia Abreu. A outra senadora de centro, Rose de Freitas, que deixou o MDB em abril de 2018 e se filiou ao Podemos, foi designada líder do governo no Congresso Nacional pelo presidente em exercício Michel Temer, em junho de 2016, e usou 20 % do próprio tempo de fala para tratar do impedimento.
Uma das duas senadoras classificadas no espectro ideológico como de direita, Ana Amélia (PP-Rio Grande do Sul), usou 30 % do seu tempo de fala em plenário no período para abordar o impeachment. Em números absolutos foi, dentre as parlamentares de direita e de centro, a que mais se pronunciou sobre a questão, o que a destaca na presente análise como contraponto aos argumentos das senadoras de esquerda. Todos os 64 pronunciamentos, resultado da soma das falas das senadoras de direita e de centro, sobre o impedimento, não alcançam o total proferido por uma única parlamentar da base aliada da presidente Dilma Rousseff, e campeã de uso da palavra para tratar do assunto, a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-Amazonas), que falou em 69 momentos diferentes.
Ainda sob o parâmetro da percentualidade do tempo da própria fala, verificou-se que seis das sete senadoras classificadas no espectro ideológico como de esquerda, dedicaram acima de 40 % de suas manifestações orais em plenário para defender a presidente Dilma Rousseff. Excetuando as senadoras Marta Suplicy e Rose de Freitas (Pode-Espírito Santo), ambas de centro, o tempo médio de fala das outras 11 senadoras foi acima de 30 % para discorrer sobre o tema, seja para defender a permanência da presidente na função, seja para pedir a saída de Dilma. Essa ocupação está resumida na Tabela 3.
Senadora | Partido | Estado | Número de pronunciamentos | Sobre o impeachment | Em % |
---|---|---|---|---|---|
Ana Amélia | PP | Rio Grande do Sul | 109 | 33 | 30,27 % |
Ângela Portela | PDT | Roraima | 14 | 13 | 92,85 % |
Fátima Bezerra | PT | Rio Grande do Norte | 95 | 45 | 47,36 % |
Gleisi Hoffmann | PT | Paraná | 85 | 48 | 56,47 % |
Kátia Abreu | MDB (PP) | Tocantins | 13 | 9 | 69,23 % |
Lídice da Mata | PSB | Bahia | 31 | 10 | 32,25 % |
Lúcia Vânia | PSB | Goiás | 23 | 11 | 47,82 % |
Maria do Carmo Alves | DEM | Sergipe | 1 | 1 | 100 % |
Marta Suplicy | MDB | São Paulo | 10 | 1 | 10 % |
Regina Sousa | PT | Piauí | 31 | 13 | 41,93 % |
Rose de Freitas | MDB (Pode) | Espírito Santo | 24 | 5 | 20,83 % |
Simone Tebet | MDB | Mato Grosso | 35 | 15 | 42,85 % |
Vanessa Grazziotin | PCdoB | Amazonas | 150 | 69 | 46 % |
Total | 621 | 273 | 43,96 % |
Fonte: elaboração própria, com base em dados do Senado Federal (2019).
Destaca-se que quase um terço dos pronunciamentos da maioria das senadoras se concentrou na sessão final de julgamento do pedido de impedimento da presidente Dilma Rousseff, iniciado em 25 de agosto de 2016 e finalizado em 31 de agosto de 2016. Além da ocupação da tribuna, várias delas inquiriram testemunhas e informantes, que compareceram à sessão convocados pela defesa e pela acusação; apresentaram e contraditaram questões de ordem; além de orientarem suas bancadas sobre como votar. A Tabela 4 mostra a concentração de pronunciamentos entre 25 e 31 de agosto de 2016. Trata-se de uma estratégia discursiva adotada pelas senadoras dos diferentes espectros políticos, com a finalidade de acentuar suas posições e tentar influenciar o processo decisório. A repetição e a redundância, nos termos de Orlandi (2009) , foram mais efetivas no caso das senadoras dos partidos de direita.
Senadora | Partido | Número de pronunciamentos | Sobre o impeachment | Dos dias 25/08/2016 a 31/08/2016 |
---|---|---|---|---|
Ana Amélia | PP | 109 | 33 | 7 |
Ângela Portela | PDT | 14 | 13 | 3 |
Fátima Bezerra | PT | 95 | 45 | 10 |
Gleisi Hoffmann | PT | 85 | 48 | 10 |
Kátia Abreu | MDB (PP) | 13 | 9 | 7 |
Lídice da Mata | PSB | 31 | 10 | 8 |
Lúcia Vânia | PSB | 23 | 11 | 5 |
Maria do Carmo Alves | DEM | 1 | 1 | 0 |
Marta Suplicy | MDB | 10 | 1 | 0 |
Regina Sousa | PT | 31 | 13 | 7 |
Rose de Freitas | MDB (PODE) | 24 | 5 | 2 |
Simone Tebet | MDB | 35 | 15 | 6 |
Vanessa Grazziotin | PCdoB | 150 | 69 | 19 |
Total | 621 | 273 | 84 |
Fonte: elaboração própria, com base em dados do Senado Federal (2019).
Por ser a produção de sentidos inerente aos discursos, a assiduidade pretende não somente mais tempo de argumentação aos parlamentares que votariam no processo, mas também de inculcação, nos termos de Fairclough (2004) , das alegações de cada uma à opinião pública, que poderia, quiçá, influenciar seus representantes no Senado. Dessa perspectiva, as senadoras de esquerda valeram-se mais do espaço e do tempo discursivo disponível que as senadoras dos outros espectros ideológicos.
Apesar de todas as senadoras terem como objetivo convencer o alocutário, as posicionadas no espectro ideológico de esquerda lançaram mão do gênero “pronunciamento” de forma muito mais sistemática. A seguir, excertos de três senadoras desse espectro ideológico, nos quais recorrem ao ethos (construção discursiva da imagem do próprio orador), ao pathos (construção discursiva para provocar a emoção no ouvinte) e ao logos (construção discursiva da argumentação racional dentro da própria fala), conforme alerta Amossy (2011) , usados, amiúde, por quem fala, para persuadir quem escuta.
No trecho de Lídice da Mata, ela refuta os pronunciamentos da oposição, que usou a expressão “conjunto da obra” para justificar o afastamento de Dilma. A senadora cria um ethos de virtude, pois se coloca entre os que defendem os princípios elencados na Constituição em posição antagônica àqueles que, ao defenderem o impedimento, desrespeitam a Carta Constitucional.
Em vários discursos dos favoráveis à admissibilidade do impedimento, o que menos se ouve é a comprovação do cometimento de crime de responsabilidade, já substituído pelo falacioso argumento do conjunto da obra, aí incluída a crise econômica, o cruel desemprego, a difícil personalidade, a falta de humor e de diálogo da Presidente da República, num flagrante desrespeito aos princípios constitucionais (Sousa 2016a, 111 ).
No recorte de Regina Sousa, ela lança dúvidas sobre o logos criado pela oposição (gráficos e opiniões de especialistas) exibindo também a existência de um antagonismo, o de que os contrários ao impeachment também contavam com estudos (argumentação racional e lógico-demonstrativa) que comprovavam a inexistência do crime de responsabilidade e, portanto, era necessário tornar isso claro à audiência.
Os dois lados exibem gráficos e mais gráficos, opiniões e mais opiniões. Se têm opiniões abalizadas dizendo que o impeachment é legal, que houve crime, há também opiniões muito importantes de pessoas e de estudiosos que dizem que não houve crime de responsabilidade. Portanto, é preciso clarear essa questão acerca do que está acontecendo (Sousa 2016, 46 ).
Ângela Portela recorre à emoção no trecho recortado, manifestando gratidão à chefe do Executivo pelos investimentos de recursos públicos em Roraima. Mais que obras físicas, de acordo com a senadora, a presidente realizou “sonhos”, argumento claramente subjetivo e comum em argumentos similares. O pathos, em várias construções discursivas, se apresenta juntamente com o ethos, (conforme registra Charaudeau 2017). No trecho a seguir, Ângela Portela constrói o ethos de generosidade da presidente por favorecer o desenvolvimento em Roraima e atender os mais pobres.
A presidenta Dilma foi sensível aos nossos pleitos, indo a Roraima inaugurar o Minha casa, minha vida, ocasião em que ela entregou quase 3 mil apartamentos, unidades habitacionais, para a população do nosso estado. Então, quero registrar aqui, mais uma vez, o meu agradecimento, em nome do povo do nosso estado, à presidenta (Portela 2015, 14 ).
Os trechos acima também são exemplos que demonstram o acerto em categorizar o pronunciamento, sob a ótica de Fairclough (2004) , como uma forma de pré-gênero, uma vez que esse ato, amiúde, apresenta as características de alto nível de abstração quais sejam o argumento (Lídice da Mata), a narrativa (Regina Sousa) e a descrição (Ângela Portela). Os exemplos acima são somente uma pequena amostra das características encontradas no recorte desta investigação.
Fairclough (2004) ensina que os gêneros têm a característica de representar o aspecto discursivo dos modos de agir e interagir nas práticas sociais e isso está totalmente atendido no gênero “pronunciamento”, escolhido para fins desta análise. É oportuno retomar o pensamento do autor acerca da capacidade dos discursos políticos produzirem representações diversificadas, socialmente posicionadas, visto que os agentes políticos em disputa percebem e representam os fenômenos políticos de maneiras diferenciadas, ancoradas em seus pontos de vista, legitimados por seus partidários e apoiadores.
Nas próximas seções, a tarefa é analisar, por meio da superfície linguística das intervenções orais das senadoras, o processo discursivo construído por elas durante a tramitação do impeachment em ambas as Casas do Congresso Nacional.
c. A defesa da democracia e seus diferentes usos nos pronunciamentos das senadoras
Independentemente do espectro ideológico, encontrou-se que a maior parte das parlamentares evidenciou, em seus pronunciamentos, considerar verdade que a democracia era um dos valores primordiais a serem observados no processo. Dos 273 pronunciamentos sobre o impeachment, 115 deles abordaram esse tema. Com isso, elas estavam constituindo suas identidades dentro do campo discursivo, como ensina Fairclough (2004) , e oferecendo, como entendem Laclau e Mouffe (1987) , a dimensão simbólica de si mesmas, enquanto sujeitos do discurso. Nos termos de Amossy (2011) , construíam os próprios ethos de democratas.
Senadoras de todos os espectros se valeram da hegemonia em torno da democracia. O discurso da rejeição do pedido de impeachment como fator determinante para a manutenção do sistema político democrático foi exaustivamente construído pelas parlamentares do espectro ideológico situado à esquerda. Tomando, para o presente exame, os conceitos da lógica da equivalência e da lógica da diferença de Laclau e Mouffe (1987) , vislumbra-se que o argumento mais presente na formação discursiva delas era o de que os favoráveis ao impedimento estavam de fato atentando contra a democracia.
A exceção de Lúcia Vânia, que sequer usou a palavra “democracia” em suas manifestações orais, as senadoras de esquerda construíram uma cadeia de equivalência fundada no discurso de que impedir Dilma Rousseff significava ir contra o sistema político democrático brasileiro. Das 571 vezes que “democracia” foi pronunciada por todas as parlamentares, 526 vezes foram no contexto argumentativo das que estavam situadas no espectro ideológico à esquerda. A Tabela 5, a seguir, mostra essa contabilização.
Senadora | Partido | Pronunciamentos sobre o impeachment | Abordando democracia | Vezes que “democracia” foi pronunciada |
---|---|---|---|---|
Ana Amélia | PP | 33 | 12 | 25 |
Ângela Portela | PDT | 13 | 9 | 31 |
Fátima Bezerra | PT | 45 | 29 | 262 |
Gleisi Hoffmann | PT | 48 | 22 | 102 |
Kátia Abreu | MDB (PP) | 9 | 1 | 1 |
Lídice da Mata | PSB | 10 | 3 | 16 |
Lúcia Vânia | PSB | 11 | 0 | 0 |
Maria do Carmo Alves | DEM | 1 | 1 | 1 |
Marta Suplicy | MDB | 1 | 1 | 1 |
Regina Sousa | PT | 13 | 3 | 3 |
Rose de Freitas | MDB (Pode) | 5 | 2 | 9 |
Simone Tebet | MDB | 15 | 2 | 8 |
Vanessa Grazziotin | PCdoB | 69 | 30 | 112 |
Total | 273 | 115 | 571 |
Fonte: elaboração própria, com base em dados do Senado Federal (2019).
Delas, Fátima Bezerra foi a que mais se fez valer do conceito. Dos 45 pronunciamentos que se referiam ao impeachment, 29 abordaram a democracia e a palavra foi dita 262 vezes. Na fala proferida em 15 de abril de 2016, o termo foi pronunciado 21 vezes, o maior número em todas as suas manifestações. As passagens a seguir, em ordem cronológica, mostram que a senadora buscava ratificar a cadeia de equivalência de que condenar a presidente da República ao afastamento era sinônimo de atentar contra a democracia. Os trechos elencados evidenciam o quanto o uso da cadeia de equivalência, conforme ensinam Laclau e Mouffe (1987) , passa por apresentar o sentido de um passado compartilhado.
Não, Sr. Presidente! Não! Não! Mil vezes não ao golpe e sim à democracia! Sr. Presidente, isto não é democracia; isto é um tribunal de exceção (Bezerra 2015a, 477, grifo nosso ).
São esses que querem dar agora uma de juízes e tirar do poder uma mulher que tem as mãos limpas, uma mulher que tem uma vida pautada pela honestidade, pela ética, pelo compromisso com a defesa da democracia? (Bezerra 2016, 30, grifo nosso ).
Quero dizer que não vamos aceitar, depois de 51 anos, mais um golpe contra a democracia, contra a soberania popular, contra o voto de 55 milhões de eleitores que elegeram Dilma Rousseff (Bezerra 2015b, 32, grifo nosso ).
A senadora de direita, Ana Amélia, também usou a lógica da equivalência e a lógica da diferença para justificar sua posição antagônica em relação às senadoras de esquerda, qual seja, o entendimento favorável ao julgamento e posterior afastamento da presidente Dilma Rousseff. Construiu diversas vezes uma cadeia de equivalência sob o argumento de que defender o processo de impedimento era equivalente a defender a democracia. Pronunciou a palavra 25 vezes nas suas intervenções no plenário.
Na sequência, como exemplo, trecho do pronunciamento de 03/12/2015, referindo-se à admissão do pedido de impedimento protocolado na Câmara dos Deputados. A oradora responde à formação discursiva dos pares de esquerda, não só das mulheres, de que os senadores e os deputados federais a favor do processo estavam praticando um “golpe de Estado parlamentar”, expressão diversas vezes usada pelos senadores da base aliada, independentemente do gênero:
Não sou golpista! Eu quero que a democracia permita o contraditório. Democracia prevê contraditório! E nós faremos o contraditório (Lemos 2015a, 506, grifo nosso ).
Nas democracias, é assim que acontece: o impeachment é um dos instrumentos que tem a democracia para ser usado nas horas oportunas e necessárias, como a que estamos vivendo agora (Lemos 2016b, 18, grifo nosso).
Laclau e Mouffe (1987) entendem que todo discurso democrático tem como suporte a lógica da diferença, uma vez que tal discurso se sustenta a partir do pluralismo nas sociedades, nas quais diversos indivíduos têm demandas próprias pelas quais disputam. Por esse prisma, é possível afirmar que o conjunto do discurso proferido pelas 13 mulheres, por estar calcado no uso de cadeias de equivalência opostas, foi democrático. Observa-se, nesse conjunto, a lógica da diferença.
Para os estudiosos, quanto mais as lutas chamadas “democráticas” se proliferam e têm sucesso, mais elas facilitam a cadeia de equivalência e reduzem o antagonismo entre si, que passam a ter como alvo um único ponto, o dominador. Assim, forma-se a hegemonia do grupo que está no poder. Mouffe (2005) defende, inclusive, que a democracia só é possível quando o fenômeno deixa de ser naturalizado e os diferentes atores políticos se consideram adversários em constante disputa.
Apesar de sua visão diferenciada, é cabível resgatar a visão de Fairclough (2004) de que os discursos são constituintes das práticas sociais. Existem, portanto, ordens discursivas que são inerentes ao campo de ação política dos diferentes atores discursivos, a exemplo dos exercem temporariamente o governo e os que estão em atividade no Parlamento. Dessa forma, deduz-se que os espectros retóricos refletem as identidades dos agentes.
Conclusões
Um dos objetivos da presente investigação foi delinear o posicionamento discursivo das senadoras ao longo das discussões sobre o impedimento da presidente Dilma Rousseff, para compreender se, efetivamente, os argumentos delas produziam efeitos de verdade, a ponto de alterar a decisão dos demais senadores no resultado do processo.
Seguindo o que Orlandi (2009) preconiza, procurou-se, por trás da linearidade dos atos de fala, o modo como se organizavam os sentidos para descortinar as relações entre diferentes discursos. As análises mostraram o uso da repetição, como estratégia de retórica, mesmo sendo um instrumento útil na inculcação de discursos, não produziu efeitos persuasivos. As senadoras de esquerda não só foram mais assíduas que as de centro e de direita, como também repetiram mais vezes seus argumentos no plenário. Mesmo assim, não obtiveram sucesso em persuadir os demais senadores. A repetição, entretanto, foi utilizada como forma de intensificação dos argumentos, com o propósito de aumentar a visibilidade perante o plenário do Senado.
O caso empírico aqui analisado reforça as teses e os argumentos dos estudos sobre a sub-representação feminina nos espaços de poder, conforme vasta literatura apresentada anteriormente sobre o tema. O debate promovido pelas senadoras deve ser considerado, portanto, no contexto das intersecionalidades que envolvem os aspectos culturais, sociais, eleitorais e institucionais que dificultam ou impedem avanços mais expressivos e consistentes quanto à efetividade das políticas em prol do fortalecimento da representação feminina nas arenas decisórias de poder político e eleitoral.
As senadoras de esquerda, excetuando novamente Lúcia Vânia, abordaram em todos os seus pronunciamentos, de forma implícita ou explícita, a inexistência de crime de responsabilidade, condição primeira para a instauração de um processo de impeachment. E, embora tivessem construído o logos discursivo da falta de crime, com laudos periciais, depoimentos de testemunhas e informantes, além de inúmeras citações, seus argumentos não foram suficientes para alterar a opinião de quem havia se decidido pelo afastamento, mostrando que outros fatores confluíram para o resultado desfavorável à chefe do Executivo. A identidade positiva de Dilma Rousseff, construída de maneira discursiva pelas senadoras de esquerda, foi insuficiente para convencer seus pares. Em outras palavras, a construção de um ethos positivo não cumpriu a função de imprimir uma imagem ilibada de Rousseff perante o conjunto dos senadores.
A maioria das senadoras recorreu ao pathos em diversos momentos e em extremos que iam da total confiança na derrota da tese do impedimento à indignação perante o que estava sendo perpetrado a uma mulher que, para elas, era o símbolo da resistência democrática e da possibilidade de ocupação feminina dos espaços de poder político. Enquanto o ethos da mulher guerreira, capaz de alçar outras mulheres à mesma condição por meio de projetos políticos fora sistematicamente formado pelas senadoras de esquerda, as de direita e de centro que se manifestaram construíram o ethos da incompetência política e administrativa, desconsiderando o fato de se tratar de uma mulher. Assim, as senadoras de direita optaram por uma estratégia que omitia e silenciava a condição feminina de Dilma Rousseff, bem como os aspectos relacionados às dificuldades e às barreiras que as mulheres enfrentam no campo político.
Aqui convém correlacionar os discursos mencionados com as dicotomias estabelecidas sobre a condição e a posição das mulheres no campo político, a saber, os sistemas de explicação culturalistas e as perspectivas institucionalistas. Enquanto as senadoras de esquerda alinharam-se às perspectivas vinculadas à depreciação da condição feminina na política, como herança cultural do sistema de dominação patriarcal, as senadoras de direita omitiram tal visão e enfatizaram explicações institucionais (Biroli 2017).
As senadoras de direita e de centro representaram, em seus pronunciamentos, modelos de produção de sentidos para conduzir ao argumento de que a então presidente da República não possuía mais competência para manter uma base parlamentar que desse sustentação ao seu governo. As senadoras desse grupo também alegaram que as apurações levadas a cabo por meio de um mecanismo legal e institucional, a do impeachment, demonstraram que Dilma Rousseff havia se valido de esquemas para maquiar, de forma irresponsável, as contas públicas, com vistas a ser reeleita e não havia mais como sustentar essas circusntâncias, junto com a crise política instalada e a crise econômica gerada.
Além disso, as senadoras de direita e de centro utilizaram o logos, sob o argumento de que a democracia estava sendo respeitada porque a retirada de Dilma Rousseff se dava sob um processo constitucional, com regras e ritos, e sob a condução do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). A posição das identidades sociais institucionalizadas, como o próprio Parlamento, o STF, a democracia, as igrejas, entre outros, ganharam peso nos pronunciamentos no intuito de convencer os demais senadores e a sociedade de que o impedimento se dava de forma democrática e tinha como objetivo preservar e garantir o Estado democrático de direito. Trata-se de uma estratégia de recorrer aos discursos que já circulavam na sociedade para justificar e reforçar os argumentos dessas parlamentares. Além disso, elas tentavam acionar o capital de credibilidade de tais argumentos, além de demonstrar que se tratava de um amplo movimento a favor do impedimento e não apenas da posição delas.
A presente análise, ao delinear um panorama dos pronunciamentos das senadoras no processo do impeachment, encontrou que, embora as senadoras de esquerda tivessem cumprido todas as condições para que um discurso pudesse ser considerado eficaz, do ponto de vista da estrutura, ainda assim elas não alcançaram o objetivo de convencer o conjunto dos senadores. Evidenciou também que as senadoras de direita e centro se manifestaram mais a partir do espaço da justificação do que do convencimento, este último assumido por completo pelas senadoras de esquerda.
Ao finalizar a análise, observa-se que continuam válidos os pressupostos analíticos de Foucault (2015) no que se refere à ordem dos discursos. Em outras palavras, as sociedades tendem a conferir legitimidade pública a certos discursos enquanto outros são deslegitimados. Esse processo resulta das dinâmicas de poder cujas condições sociais levam alguns discursos a se tornarem hegemônicos em detrimento de outros. O jogo de forças envolve ainda um interplay retórico estabelecido em função da posição social e da perspectiva discursiva dos agentes, ou seja, seu lugar de fala.
Dentre as estratégias retóricas mais utilizadas pelas parlamentares, foi observada a enfatização de suas respectivas posições de mulheres representantes eleitas, para construir o próprio ethos parlamentar. Todas lançaram mão do próprio capital de reputação e, desse modo, emprestaram o sentido e a credibilidade às suas manifestações orais, além de justificar ou escolher os argumentos a partir de seus respectivos lugares de fala e de sua perspectiva social condicionada pelo espectro ideológico partidário e pelas suas respectivas trajetórias no campo político.