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Nómadas

versión impresa ISSN 0121-7550versión On-line ISSN 2539-4762

Nómadas  no.53 Bogotá jul./dic. 2020  Epub 26-Jun-2021

https://doi.org/10.30578/nomadas.n53a1 

Tecnologias da verdade

Moçambique: entre a narrativa histórica oficial e as memórias plurais*

Mozambique: entre la narrativa histórica oficial y las memorias plurales

Mozambique: Between the Official Historical Narrative and Plural Memories

Maria Paula Meneses** 

** Moçambicana, investigadora coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Doutorada em Antropologia. Correo: menesesp@ces.uc.pt


Resumo

Este artículo se centra en los dilemas asociados a la construcción de la historia en Mozambique, un país africano cuya historia reciente está atravesada por múltiples conflictos violentos. El objetivo de este análisis es contribuir a una pluriversalización de la narrativa del ser nacional, a partir de varias memorias históricas, producidas por una amplia gama de grupos políticos, instituciones públicas e iniciativas privadas que atraviesan estos conflictos.

Palabras clave: memorias; silenciamiento histórico; historia nacional; África austral; violencia; lucha nacionalista

Resumen

Este artigo centra-se nos dilemas associados à construção da história em Moçambique, país africano em que sua história recente está atravessada por múltiplos conflitos violentos. O objetivo desta análise é contribuir para uma pluriversalização da narrativa do ser nacional, a partir de várias memórias históricas, produzidas por uma amplia gama de grupos políticos, instituições públicas e iniciativas privadas que atravessam estes conflitos.

Palavras-chave: memórias; silenciamento histórico; história nacional; África austral; violência; luta nacionalista

Abstract

This article focuses on the dilemmas associated with the construction of history in Mozambique, an African country whose recent history is marked by multiple violent conflicts. The aim of this analysis is to contribute to a pluriversalization of the national narrative. It is based on various historical memories produced by a wide range of political groups, public institutions, and private initiatives entangled in these conflicts.

Keywords: Memories; Historical Silencing; National History; Southern Africa; Violence; Nationalist Struggle

Introdução

Nas palavras de Pierre Nora, "a memória enraíza-se no concreto, em espaços, gestos, imagens e objetos" (1989: 9). A história contemporânea de Moçambique, um país africano que alcançou a sua independência no resultado de uma luta armada contra o colonialismo português, está marcada por várias estratégias de invocação de memórias, que constituem a referência a partir da qual o presente é vivido e o passado confrontado. Qualquer história nacional visionária é reflexo de uma escolha política. O projeto de história nacional produzido a partir da independência, alcançada em 1975, está envolto em silêncios que espelham desigualdades de poder na construção desta narrativa: desigualdades de classe, de género, etno-raciais, etárias, de cariz religioso, entre o campo e a cidade, etc. Enquanto narrativa nacional moçambicana, esta história é um projeto em permanente (re)construção (Ranger, 2004), onde se encontram e confrontam diversas vozes, projetos e experiências: grupos políticos, instituições públicas e iniciativas privadas (Meneses, 2011; 2017).

Neste artigo procuro confrontar a história nacional com vários relatos da memória, que, por vezes, desafiam de forma antagónica a narrativa nacional e ajudam a explicar as razões dos conflitos que ainda marcam a sociedade moçambicana. Estas memórias e os conflitos com a versão histórica nacionalista oficial sugerem1, como Luise White sublinha (2000), que silêncios, mentiras e meias verdades revelam muito sobre uma sociedade, ao funcionar mais como um tipo de informação do que propriamente como uma ocultação. De facto, a opção sobre o que esquecer ou silenciar faz parte da construção de qualquer narrativa histórica.

A história de Moçambique, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, é atravessada por conflitos violentos. Um dos episódios importantes -a luta armada que conduziu à independência do país (1963-1974), fruto da intransigência colonial portuguesa em aceitar o direito à autodeterminação- foi aproveitada pela Frelimo2, principal movimento nacionalista, para arquitetar o gérmen da narrativa nacionalista oficial (Bragança e Depelchin, 1986). Este projeto historiográfico assentou no saneamento de múltiplas memórias da luta nacionalista independentista, gerando uma narrativa simplificadora, que ganhou um quase estatuto de exclusividade. O direito à própria história, pela autodefinição, ultrapassando qualquer narrativa legitimadora da presença colonial, foi um dos elementos que guiaram a luta armada emancipadora, liderada pela Frelimo. Porém, no país recém-independente, o objetivo principal do projeto político do grupo foi o de estabelecer uma proposta de roteiro do passado a ser usado para a construção unificadora da comunidade -Moçambique como um todo- no presente, como João Paulo Borges Coelho salienta (2015). Neste sentido, este projeto de história nacional, patriótica, revela-se uma história parcial, impulsionada por uma agenda política: o desejo de reunir os múltiplos segmentos da sociedade em apoio ao partido no poder, ao meso tempo que se apresenta uma imagem positiva do país ao mundo exterior.

Aceitando que o passado é experienciado e vivido de formas diferentes pelos vários sujeitos que participaram da luta, a análise das memórias pessoais e de materiais disponíveis em arquivo ajuda a decodificar os passados sociais, abrindo uma janela para explorar a consciência histórica e a intersubjetividade do Moçambique contemporâneo. Esta situação contrasta com a empresa historiográfica conduzida pelo Estado (liderado pelo partido Frelimo), de produzir uma versão singular e "correta" da heroica luta nacionalista. Discutir o papel das memórias e da história é fundamental para ampliar o debate sobre os significados da descolonização nos espaços definidos pela memória de África, neste caso específico com enfoque no contexto geopolítico da colonização portuguesa em Moçambique. Ciente que as memórias devem ser bitoladas em função da experiência social do grupo, há que ter em atenção a relação entre o evento lembrado e a importância social do facto recordado em função da experiência social vivida por quem recorda (Ricoeur, 2010). Neste sentido, em linha com o alerta de Ivaylo Znepolski, um passado por resolver é uma ameaça, se o deixarmos afundar num esquecimento sem memória (2001). Seguindo o desafio de Dipesh Chakrabarty (2008), este artigo procura avaliar, a um nível mais amplo, como a história pode ter uma vida pública, numa situação em que as memórias do passado recente são matéria de contestação na vida quotidiana, abrindo caminho para uma história construída num diálogo entre o passado, o presente e o futuro.

O artigo está estruturado em quatro secções: a primeira apresenta uma crítica ao projeto epistémico subjacente à moderna colonização que está na origem do pensamento abissal que ainda marca o continente africano. A segunda incide sobre os debates em torno da construção dos pilares da história de Moçambique a partir da independência, questionando o silêncio sobre os "comprometidos", um grupo heterogéneo sobre quem recaíram suspeitas de terem auxiliado o regime colonial português. Na terceira parte são discutidos vários confrontos associados à conflitualidade entre memórias coletivas que desafiam o projeto de história nacionalista organizado pela Frelimo. O artigo termina com uma reflexão sobre pistas para uma descolonização epistémica do sul global, tendo Moçambique como referência.

África: história, histórias e memórias

Nenhum conceito é neutro. Falar de África numa época que ainda é cativa dos legados epistemológicos coloniais exige que se amplie o tempo histórico para desafiar as representações do espaço herdadas e as temporalidades associadas (Jewsiewicki e Mudimbe, 1993). Este aspeto é particularmente importante em Moçambique, onde muitas pessoas afirmam ainda com frequência vis--à-vis a história universal, que "aquilo que lembramos não é história. História é o que está escrito nos livros.

Nós, moçambicanos, temos tradições, outras histórias..."3, indicando a presença de múltiplos regimes de historicidade que coexistem na sombra das narrativas dominantes.

Esquecer e silenciar são momentos centrais da colonização, uma parte importante do processo de domar o passado, cujas heranças se fazem ainda sentir. Desde meados do século XIX, os governos imperiais da Europa se envolveram na epopeia colonial em África. Este projeto violento resultou na criação de missões civilizadoras, destinadas a "salvar" as almas dos africanos. Empresários e cientistas também participaram do redesenho do mapa colonial, enquanto procuravam novos investimentos baseados na exploração de recursos naturais e humanos. É desta altura o "mapa europeu" que espelha as suas ideias sobre África, uma representação construída através de conhecimentos e horizontes científicos de matriz eurocêntrica. Todavia, no caso português, e de acordo com a retórica oficial da época, o colonialismo moderno não se ocupava de exploração, pelo contrário, dedicava-se à civilização. Com a superioridade da raça, valores católicos, ciência e know-how económico, a doutrina colonial portuguesa insistiu na obrigação moral de resgatar os "pagãos atrasados" de África, para transformar os indígenas em cidadãos, posições expressas em várias peças de legislação da época (Meneses, 2010). Em suma, este período histórico inaugura uma mudança de perspetiva e prática, onde a "missão civilizadora" colonial se traduziu na imposição de um sistema exógeno de administração da lei e ordem, destinado a servir os interesses da metrópole e dos seus colonos. Com efeito, para os colonos portugueses que chegavam a Moçambique, a sua presença não era compreendida como um ato de violenta apropriação de terras trabalhadas por pessoas que já habitavam o território, ou como exploração violenta da mão-de-obra local; em vez disso, apresentaram-se como governantes autonomeados de indígenas supostamente vulneráveis, que ainda não haviam atingido um estágio na escala evolutiva que lhes permitisse desenvolver-se ou tomar decisões responsáveis por conta própria (Meneses, 2017).

A representação colonial do "africano" está patente na construção da essência de África, de uma africanidade fundamental (atemporal como essência), permanentemente reconstituindo o africano como "fora da história" (Jewsiewicki e Mudimbe, 1993: 8).

O resultado desta apropriação moral, política, económica e científica do continente pela moderna máquina colonial foi a negação, então e agora, do reconhecimento de diversas formas pelas quais o conceito de "África" é oculto e silenciado. Mais ainda, resultou, como noutras situações, numa tentativa de remover os indígenas da história, das suas histórias.

A África produto da imaginação colonial europeia é espelho da submissão do "mundo à sua memória" (Mudimbe, 1988: XXI), um imaginário que ainda persiste em muitas mentes, reproduzindo-se em publicações, científicas e literárias. Com orientação apropriada e uma postura paternalista, a administração colonial portuguesa assumiu que poderia transformar os africanos em homens e mulheres "civilizados", assimilados aos valores europeus. Nas palavras de Valetin Mudimbe, "oferecendo e impondo a conveniência da sua própria memória, a colonização promete[u] uma visão de enriquecimento progressivo para os colonizados" (1994: 129). Esta tarefa de transformação radical foi perspetivada numa longa duração e de forma unidirecional, sem nunca questionar a legitimidade desta ação, que continua largamente por descolonizar nas narrativas das potências colonizadoras.

Como Aline Sierp destaca, assiste-se, no contexto Europeu, ao apagamento da memória sobre este período de tempo específico. Numa altura em que a questão colonial se tornou um espetro negativo no relacionamento com outros estados, as memórias do período colonial estão a ser permanentemente redirecionadas para um nível abstrato (Sierp, 2020). Esta ação permite, por exemplo, que as violações de direitos humanos feitas em nome dos colonizadores, não sejam tratadas. Estas opções dilatórias ajudam a explicar como questões sobre a memória europeia da colonização, e a investigação dos significados e impactos da fratura abissal colonial moderna continuam a afetar profundamente o campo académico e político contemporâneo.

Neste século, a linha epistémica da segregação de saberes do sul global continua a marcar o campo do conhecimento, discriminando saberes do sul, que não são reconhecidos como importantes, copresentes, pelo norte global (Santos e Meneses, 2019). E esta fratura, produzida pela diferença abissal colonial, esconde em si outras fraturas, resultantes da persistência das relações e interpretações coloniais.

Interrogar a violência colonial e o seu impacto nos conhecimentos, bem como a persistência de mal-entendidos e más-interpretações, requer uma historicização dos espaços e tempos, e a análise das relações de poder implicadas na multiplicidade de contatos que ocorreram entre a Europa, a África e as outras regiões do mundo. Em suma, requer outra história, reescrita por pessoas tornadas invisíveis pelo poder colonial, através do artifício do excecionalismo. Por esse mecanismo, o pensamento europeu transformou-se no exemplo máximo do desenvolvimento global, no padrão da história mundial; esta construção canónica de uma hierarquia intelectual ocorreu pela transformação das tradições culturais e intelectuais do norte global nos únicos referenciais universais legítimos, autodefinidos como superiores (Trouillot, 2002:). Quando os colonizadores europeus contemplaram a África através do prisma do seu desejo de conquista e domínio, não viram nada além de terras desoladas e inaproveitadas, doenças e indígenas preguiçosos que importava subjugar (Meneses, 2011). Essa representação de África, eurocêntrica, integrou o que Hegel (1975) designou de natureza inconsciente, apagando quaisquer pegadas culturais africanas (Andindilile, 2016: 128-129).

Não há povo sem história, sem uma experiência social apoiada em relatos do passado que indica visões de futuro. A história, enquanto disciplina que integra a estrutura académica das modernas universidades, foi um dos apoios em que se afirmou o projeto da missão civilizadora, um projeto de dominação económica, política e epistemológica. Os povos forçados a integrar o território de Moçambique foram, desde o início da moderna colonização portuguesa (i.e., desde meados do século XIX), objeto de discriminação sistémica. Neste processo, relativamente curto, a memória eurocêntrica foi, de forma violenta, imposta como o princípio da história para todos os colonizados, um processo que significou a perda das suas referências, do seu autoconhecimento. Num contexto em que o mundo Europeu se equaciona como a história universal, África, assim como o resto do mundo, transformaram-se em símbolo da ignorância (com vários graus de profundidade) que só poderia ser regatada através da implantação do projeto eurocêntrico da modernidade. A repressão e a marginalização de outros conhecimentos para além do arco científico resulta no que Gayatri Spivak designa de ignorância sancionada (1985: 6), possível apenas num contexto social onde aqueles que têm o privilégio de beneficiar de uma visão hegemónica de mundo protegem estes privilégios e as estruturas de saber e de poder que os sancionam, rejeitando e desqualificando outras cosmovisões (ou epistemas).

Descolonizar a história, ou seja, a reconstrução alternativa das histórias do mundo terá de partir de lugares de fala específicos, questionando e problematizando qualquer perspetiva que se procure impor como centro interpretativo exclusivo. Uma "outra" historiografia, de que são exemplo vários projetos no continente africano, tem de abordar questões controversas que desafiam a posição e a legitimidade das representações dominantes. Estes projetos privilegiam o densificar das histórias locais e regionais, a partir de debates em torno das memórias, realizados de forma ampla, os quais permitem valorizar as trajetórias históricas, no plural. Desta forma é possível desafiar os regimes de poder totalitários que crescentemente procuram controlar os regimes da memória4.

Se, do ponto de vista teórico, é cada vez mais difícil impor uma interpretação singular da história, os problemas, a escala e a localização dos lugares permanecem irresolutos, num momento em que as interpretações eurocêntricas da descolonização parecem estar de regresso (Doharty, Madriaga e Joseph-Salisbury, 2020). Em que medida a descolonização reformulou o pensamento político, quer das antigas colónias, quer das metrópoles? A descolonização, um conceito espinhoso, reivindica uma reconceptualização mais ampla das ruturas associadas ao fim da presença colonial política efetiva. Para vários autores (Bragança, 1986; Sheppard, 2006), a descolonização foi um dos eventos fundamentais do século XX, embora a este assunto apenas agora comece a ser alvo de intervenção no norte global. Ochieng' e Odhiambo (1995), escrevendo sobre o Quénia, defendem que a descolonização é um conceito muito mais amplo do que a mera conquista da independência ou a transferência de poderes. Envolve a exploração dos sonhos, a análise das lutas, compromissos, promessas e realizações e o repensar do fundamental, da reivindicação do direito à autodefinição (o "eu' ontológico) e à autodeterminação (o "eu' político). Neste sentido, importa fazer uma distinção entre os processos políticos associados à conquista da independência e à transferência de poderes. O primeiro concentra-se na luta nacionalista e anticolonial, enquanto o segundo coloca em primeiro plano as negociações e o planeamento da transição entre autoridades coloniais e elites colonizadas. Já nos contextos europeus, os debates em torno da descolonização só muito recentemente integraram a discussão sobre o ponto de rutura entre o império como narrativa e os processos políticos que se seguiram, trazendo à tona questões silenciadas como a racialização do poder e dos privilégios académicos, as cidadanias hierarquizadas em função do passado migrante, etc.5.

Em África, como noutros contextos do Sul global, a descolonização é um conceito que merece uma atenção especial, pois possui a profundidade e diferenciação analítica necessárias para ser usado como instrumento heurístico. Nesta linha, e a partir da realidade latino-americana, Perla Valero Pacheco (2014) defende que é fundamental analisar criticamente os conceitos e categorias presentes em muitos estudos de história global, abordagem que permitirá avançar em direção a uma história mais autorreflexiva sobre o eurocentrismo epistémico implícito na micronarrativa histórica, condição para a sua descolonização.

Com efeito, a versão ainda dominante na análise histórica insiste em apresentar a descolonização como uma narrativa de progresso, a extensão da autodeterminação nacional e dos seus valores corolários: liberdade, igualdade e direitos humanos. Em Portugal o tema da descolonização tem sido um dos grandes tabus da sua história recente, como destaca Pedro Pezarat Correia (2017). Com as independências, parecia ter deixado de haver necessidade de explicar que os moçambicanos não eram iguais aos portugueses6. No entanto, a dificuldade de fazer políticas com base nessa diferença foi o que tornou tão difícil para Portugal admitir a independência de Moçambique. Durante dez anos, o conflito sangrento -a guerra colonial7- forçou Portugal a confrontar-se com o que definia os limites da nação. Ao conceber a descolonização como uma maré da história, Portugal, legatário do projeto imperial moderno, não foi capaz de alcançar o conteúdo pleno dos projetos associados às lutas nacionalistas e anticoloniais, que integravam outros projetos políticos ambiciosos e emancipadores.

É este o contexto atual, onde é premente questionar as persistentes resistências à abertura do cânone da macro-história a outras experiências sociais, guardadas nas memórias. Como afirmam várias pessoas entrevistadas em Moçambique, não faz sentido existir sem lembrar o passado e sem imaginar o futuro, num sentido que se aproxima da reflexão de Walter Benjamin, para quem a memória "não é um instrumento para explorar o passado, mas antes um meio" para fazê-lo (1999: 576). A memória é essencial para a (re)construção de processos identitários, seja a nível individual ou coletivo. Descaracterizar ou destruir memórias resulta na destruição do passado, da história que une as pessoas, que as torna o que são.

No contexto africano, na sequência das lutas pelas independências, os percursos nacionalistas transmitidos, nem sempre saudáveis nos seus princípios e intenções, sinalizam, pelo menos, que a situação de esquecimento ou silenciamento que paira sobre a história dos povos gera muitos conflitos quando imposta à escala global. Esta realidade foi antecipada por Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (1986) quando analisaram a construção da história moçambicana após a independência do país. Isto, em parte, significa que enquanto moçambicanos/as, continuamos envolvidos na busca de outras partes de histórias, de outras pessoas, de outros coletivos e instituições que estão ainda silenciadas e quase apagadas. É um sinal da continuação da luta pela libertação, agora epistémica, contra tentativas de silenciamento e esquecimentos de sujeitos e das suas contribuições à história do que somos hoje.

A ligação entre a historiografia de matriz colonial e os reptos lançados pelas escritas da "história nacionalista" e a escrita da "história do nacionalismo" (Ranger, 2004) coloca um desafio, simultaneamente político, epistémico e ontológico. A relação entre o esquecimento, os lapsos de memória intencionais e o trabalho da recolha etnográfica e histórica (frequentemente, história oral) realizada por pesquisadores africanistas e etnógrafos, que ainda enchem as prateleiras das bibliotecas coloniais8, são usadas em muitos trabalhos "sobre África", por exemplo. As práticas de produção de conhecimento sobre o continente africano foram, na realidade, orientadas por objetivos projetados para operar e legitimar um determinado projeto: a missão colonial (Meneses, 2010). Uma das marcas mais persistentes desta herança colonial é a manutenção de uma situação paradoxal: a teleologia da escrita da história tendo como cânone o "centro" do mundo globalizado nos nossos dias, recorrendo a uma "escrita da história para trás", como salienta Frederick Cooper (2001). O recurso acrítico à biblioteca colonial tem-se traduzido na permanência de uma visão estática, essencialista e a-histórica das comunidades africanas tradicionais, que reclama por uma reflexão crítica e legítima sobre a latência de conceitos eurocêntricos nas ciências sociais sobre África. Enfatizar o estudo da tradição rural, espelho de supostas realidades a-históricas "puras e indígenas" impede a análise e a conceptualização da complexidade urbana de muitos países africanos. Insistir nestas narrativas a-históricas pode levar as pessoas a tornarem-se imunes aos processos de modernização que também acontecem nestes espaços e no presente.

Moçambique: a luta continua

A luta nacionalista em Moçambique, como em outros contextos africanos, trouxe a necessidade de reconstruir a história, desafiando abertamente a narrativa colonial dominante. Com a independência chegou a exigência de uma reanálise das histórias, agora no plural.

Como a recente história de Moçambique espelha, o fim das narrativas autoritárias coloniais não significou que as realidades adiadas continuassem suspensas fora do tempo. Apesar de muita da literatura sobre a transição política em Moçambique insistir numa rutura radical que se associa à data da independência, tal não corresponde à realidade vivida. A 25 de junho de 1975, Moçambique acordou independente, com um sentido de urgência em relação à reconstrução da sua história. Nesse tempo cantávamos, "não vamos esquecer o tempo que passou"9, um desafio que se mantém atual, pela importância da recuperação de memórias. Porém, coloca em questão o que não se quer esquecer.

Para dar sentido à vida e ajudar a explicar a importância de combater a presença colonial-fascista de Portugal em Moçambique, criaram-se identidades e forjaram-se alianças políticas. Porém, este projeto de rutura histórica quando analisado em detalhe mostra várias continuidades. As relações coloniais, além da negação absoluta do colonizado, espelho de relações de poder marcadas pela dominação e violência, são também caracterizadas por processos multifacetados de apropriação religiosa, económica, demográfica, política, linguística, artística, intelectual, etc. Com diferentes intensidades no espaço e no tempo, essas apropriações e (re)criações geraram e continuam a gerar contradições e conflitos. Ao questionar as latências coloniais no tempo presente abre-se espaço para se aprofundar o estudo das ruturas e continuidades da relação colonial. Assumindo que a descolonização é uma relação política, esta afeta as múltiplas partes envolvidas na relação colonial, confrontadas com uma mudança dramática nas relações de poder. Ao analisar a realidade moçambicana no final da luta de libertação nacional (início da década de 1970), Aquino de Bragança afirmaria que a transferência de poder ocorreu sem quaisquer imposições do ex-colonizador, Portugal. Assim, o caso moçambicano pode significar a possibilidade de uma transformação política (independência) sem o peso das relações neocoloniais geralmente ligadas a estas transições (Bragança, 1986).

Por outro lado, a análise refinada da política da colonização portuguesa obriga ao estudo dos impactos nas regiões onde o processo decorreu, e examinando como o próprio significado de ser europeu foi objetiva e subjetivamente construído pela experiência colonial. Com efeito, no pensamento jurídico colonial, o conceito de cidadania portuguesa identificou um padrão específico, social e moralmente concreto: aplicava-se a homens e mulheres brancos nascidos em Portugal, bem-educados e com uma boa moral, a "alma gentil da colonização"10. Ser europeu tornou-se uma categoria que definiu um estatuto e determinou as relações de poder em Moçambique colonial11. Ser europeu significava fazer parte de uma certa estratégia geopolítica de poder, um espaço dominado por uma racionalidade moderna que usava a cor branca e que marcava estruturalmente a administração da vida pública e privada desse território. Neste contexto, falar de legados coloniais é reconhecer, em primeiro lugar, que as relações coloniais contribuíram para formatar a história, sugerindo que esta relação persiste na forma como o mundo é percebido hoje, mesmo que esse legado nem sempre seja reconhecido num sentido legal ou cognitivo pelos seus potenciais herdeiros. Isto significa que o que ficou no passado é mais do que uma memória. Questionar o lugar das memórias implica questionar o lugar de onde se interrogam quaisquer memórias.

Portugal e Moçambique partilharam lugares, mas as memórias comuns são complexas. Nas mais de quatro décadas passadas desde a sua independência, Moçambique tem identificado várias dificuldades associadas ao reconhecimento desta partilha. Esta consciencialização levanta questões muito complexas, inerentes à memória da relação entre o colonizado e o colonizador. Em lugar da historiografia de um período comum partilhado, o trabalho historiográfico disponível sugere ser mais correto falar de duas micronarrativas históricas desenvolvidas sobre um denominador comum dentro do mesmo território e no mesmo conflito: uma macronarrativa sobre uma guerra colonial na era final da colonização imperial portuguesa, e outra, vista do lado moçambicano, sobre o processo que levou à independência nacional do país. Estas duas histórias têm percursos distintos que foram influenciados pela memória social do que aconteceu e pela forma como esta memória foi gerada politicamente.

Ao longo da maior parte da sua curta história, o Estado moçambicano liderado pela Frelimo seguiu uma política de construção nacional que inclui a adoção política de uma história oficial fundamentada por um conjunto de memórias públicas (e intensamente divulgadas) sobre seu passado colonial, tanto o recente como o remoto (Meneses, 2011). O Estado moçambicano procurou, explicita ou implicitamente, eliminar, silenciar ou tornar invisível a diversidade de memórias produzidas pelas complexas interações sociais entre os colonizadores e os colonizados.

Na transição para a independência, a Frelimo implementou uma estratégia política complexa que visava lidar com as identidades ambivalentes e híbridas que constituem o intrincado legado colonial. Procurando pôr fim a todas as formas de possíveis continuidades com o passado colonial, o alvo desta política dirigiu-se sobretudo àqueles que tinham sido apanhados na transição, ou seja, os comprometidos, um grupo bastante diverso do qual pouco se fala, mas que se estima totalizar em mais de 100.000 pessoas12. A reabilitação destas pessoas representou a possibilidade de "comissões de verdade" sob a égide da Frelimo, procurando esclarecer conflitos e traições herdados do período colonial (Meneses, 2017). Vistos como representando "colaboradores" com o sistema colonial, este grupo foi, pela suspeita de traição que sobre si pesava, sujeito a comissões de verdade e processos de reeducação, após a independência de Moçambique. Esta opção política da Frelimo, fundada na ideia de "não esquecer o tempo que passou", destinava-se a "transformar os colaboradores com base na presunção de culpa, arrependimento, punição e reeducação" (Coelho, 2003: 191). Após este processo político, no início dos anos 80, a maioria dos comprometidos foram reconhecidos como reeducados politicamente e aceites como cidadãos plenos. A reabilitação subsequente foi obtida à custa do apagamento do seu passado da esfera pública tratando-o como um passado que deveria ser mantido numa memória privada e silenciada (Igreja, 2008). Em suma, como Harry West destaca, os comprometidos, portadores de histórias complicadas, independentemente de terem sido reabilitados ou não, foram assim duas vezes silenciados, primeiro por aqueles que não os deixaram lutar pela sua autodeterminação e, posteriormente, pelos libertadores -a Frelimo- que lhes recusou um espaço de diálogo e participação cidadã na construção da história do país (West, 2003).

Para compreender o alcance das comissões de verdade lideradas pela Frelimo, é fundamental compreender o uso estratégico e seletivo das memórias da luta de libertação por parte da direção deste movimento. O projeto nacional da Frelimo apresentou o guerrilheiro nacionalista como o ícone do verdadeiro cidadão moçambicano, o modelo do homem novo. Este ícone mítico foi criado na tentativa de gerar novas identidades políticas durante os primeiros anos da independência, desafinado as identidades políticas complexas presentes no país.

O projeto identitário de Moçambique foi forjado como sendo constituído por dois grupos diferentes e hierarquizados: os que haviam lutado pela independência, os heróis, e os "outros", que constituíam a maioria da sociedade moçambicana. Este processo de hierarquização após a independência derivou da necessidade de "limitar a capacidade eleitoral dos cidadãos comprometidos com o regime colonial-fascista"13. A categoria de cidadãos de segunda classe incluía muitos daqueles que a Frelimo identificou como aliados ou apoiantes da presença colonial portuguesa (Meneses, 2017). A superação da distinção entre os considerados "colaboradores" e a "população moçambicana", os cidadãos de pleno direito, começou a ser preparada pela Frelimo nos primeiros anos da independência. Em 1977-78 surgiram os primeiros sinais de uma estratégia política que procurava lidar com a memória destas ligações coloniais. Samora Machel, então presidente de Moçambique, optou por não constituir formalmente uma comissão de verdade e reconciliação, optando por reuniões sectoriais com vários grupos, cumprindo objetivos convergentes.

As várias reuniões e os processos de integração dos comprometidos podem ser vistos como comissões não--oficiais de verdade e reconciliação, que procuraram, de forma bastante autocrática, elucidar, esclarecer e prover conhecimento sobre o percurso histórico desses moçambicanos. Estes encontros culminaram numa importante reunião pública em 1982 (Meneses, 2017).

Uma análise detalhada dos encontros14 com os comprometidos mostra que constituíam um grupo extremamente heterogéneo, que reunia todos os que não se encaixavam na história épica que fabricou o homem novo. A formação do homem novo aconteceu durante a luta armada, surgindo, de forma embrionária, na figura do guerrilheiro da Frelimo: o protótipo do novo cidadão moçambicano. Como os depoimentos públicos dos "colaboradores" foram mostrando, integravam este coletivo vários grupos sociopolíticos. Entre eles estavam ex-membros da polícia colonial política portuguesa, a PIDE-DGS15, membros da ANP16, soldados africanos no exército português, madrinhas de guerra17, autoridades tradicionais18, políticos que haviam ousado opor-se à Frelimo, membros dos escalões inferiores do aparato administrativo colonial, e todos aqueles que "não estavam connosco [com a Frelimo]". Vistos como sementes latentes da ideologia colonial, redirecionar e reeducar a memória através do esquecimento tornou-se uma tarefa importante que Moçambique procurou cumprir.

Em oposição a estes comprometidos, o fulcro da história nacional foi colocado na memória da luta nacionalista pela libertação, onde o ónus moral recaia sobre os heróis que foram produzidos por esta luta, com a qual o novo Moçambique foi inaugurado. A construção da história nacionalista, de cariz patriótico, repousa assim sobre uma politização exacerbada do processo de construção da memória política nacional recente. A construção desta filiação foi fundamentada por uma análise política que acentuou a dicotomização de espaços entre as "zonas libertadas" onde o homem novo estava a ser produzido e o "território colonial", percebido como um espaço negativo dos legados do passado, refúgio de traidores.

A história nacional, um roteiro de conflitos

A tensão entre o projeto nacional, ou a moderna base territorial mapeada, legislada e historiada pela mão do colonialismo, e as (re)construções sucessivas de várias identidades presentes no território geocultural identificável como o Moçambique contemporâneo, traduziu-se numa coabitação que nunca foi pacífica e envolveu muito pouco diálogo. Esta realidade manifesta-se nas sucessivas reconfigurações de identidades conflituantes (ideológicas, étnicas, raciais, geracionais e religiosas) que geraram outros pressupostos e conceitos que ajudaram a definir outros lugares geoculturais que passaram a ser nomeados como Moçambique, mas nos quais outros povos, outros arquivos culturais, linguísticos e religiosos também estavam presentes. A longa duração da história requer algum folego analítico quando se concentra na especificidade do Moçambique de hoje.

Nos tempos modernos, a expressão mais visível de narrativas opostas às dos colonizadores é a grande narrativa gerada pela luta anticolonial, centrada na denúncia do colonialismo e dos seus vícios (discriminação, subalternização, ocultação de conhecimentos, etc.) e na elaboração de um projeto nacional para o futuro. A partir desta narrativa nacionalista, antecipadora mais de um futuro novo do que de uma possível revisão do passado, bastante eurocêntrica na essência19, embora organicamente local, surgiu a ideia de Moçambique para os moçambicanos, e o que veio a ser designado desde cedo como moçambicanidade. O apelo à igualdade no país provocou um apagamento dramático das diferenças que constituíam o seu tecido social, gerando profundas contradições, sinónimas da continuidade dos mecanismos imperiais que permanecem ativos (Meneses e Ribeiro, 2008). Antes da independência, mas principalmente com a independência, o projeto político de Moçambique e o projeto político da Frelimo pareciam coincidir. Um dos aspetos centrais passou pela política de cultura, onde a literatura de comba-te20 desempenhou um papel importante. Promovendo a luta da nação pela "recuperação" dos traidores, estava imbuída da missão de inventar um passado único que pudesse criar moçambicanos que, sem fraturas e sem diferenças, estavam unidos contra um inimigo comum, a colonização e todos os seus aliados (Meneses, 2015).

Em suma, as comissões de verdade para lidar com os "traidores" colocaram um desafio à hegemonia do projeto político nacional criado no seio de uma proposta exógena (a Conferência de Berlim), questionando o valor do guerrilheiro com o representante do projeto moral e político do homem novo moçambicano, debatendo simultaneamente as continuidades e ruturas entre o projeto político que era o Moçambique colonial e o jovem Estado moçambicano21. Estas narrativas, que se procuraram silenciar, espelham memórias que questionaram o sentido único da historiografia, com os seus heróis e mitos nacionais, mais elaborados que orgânicos. Por exemplo, na literatura de combate, fundada na figura do combatente revolucionário (Frelimo, 1977, 1979), tornou-se possível integrar apenas parcialmente e de maneira muito subalterna o intelectual urbano que se opunha ao colonialismo. A construção de propostas políticas alternativas à situação colonial denunciou o império e tornou visível a diversidade de "sujeitos revolucionários", sujeitos plurais cujos projetos políticos não eram coincidentes com a narrativa nacionalista privilegiada pela Frelimo.

Este contexto político explica o encontro, havido em 1978, entre a liderança do partido Frelimo e os ex-presos políticos nacionalistas moçambicanos (incluindo poetas renomados como José Caveirinha e Rui Nogar, escritores como Albino Magaia e Luis Bernardo Honwana e o pintor Malangatana Valente) (Meneses, 2015). Como denunciado por vários antigos presos políticos que participaram da reunião22, estes passaram por um período difícil de marginalização política após a independência, as suspeitas de traição que recaíam sobre si levaram-nos, num contexto político monopartidário, a passar por processos de reeducação. Esta reeducação procurou transformá-los em "antigos combatentes", um processo que, embora tenha procurado apagar as suas memórias sobre a violência política colonial, não logrou tal efeito. As memórias de vários dos antigos presos, orais ou em publicações de carácter biográfico, teimem em contradizer a visão monopolizante da Frelimo sobre o sentido do nacionalismo, criticando o projeto de história oficial de Moçambique. Em paralelo, estas narrativas espelham um profundo desapontamento por não encontrarem um espaço discursivo público em que pudessem fazer sentido da experiência vivida enquanto prisioneiros políticos durante o colonialismo (Laban, 1998; Peixoto e Meneses, 2013). Este caso é revelador de como, de forma mais ou menos explicita, a diversidade de memórias permanece ativa e em desafio à história, encontrando eco em várias formas de protesto e afirmação: a arte, a música, a literatura, etc.23.

Em 1978 a reunião de reconciliação mostra como o processo oficial de descolonização questionou, de forma dramática, o violento legado das vivências e relacionamentos em contextos coloniais; por outro lado, tornou visível que muitos legados e as memórias estavam muito aquém da proposta de descolonização oficial, que insistia em encaixar as lutas nacionalistas numa única narrativa histórica, repetida infinitamente. Desta forma, muitas lutas e agentes da história têm sido repetidamente silenciados e esquecidos24. Esta é a essência dos estudos pós-coloniais, que procuram, numa perspetiva interdisciplinar, dar voz aos silenciamentos e apagamentos da história. Estes estudos são uma chamada de atenção à urgência do descolonizar da história mundial, ultrapassando qualquer condição de externalidade que insista em não reconhecer a ação, o contributo dos sujeitos envolvidos nestas lutas políticas. Reconhecer este problema exige um compromisso crítico com as atuais consequências políticas, intelectuais e sociais, de séculos de expansão imperial no mundo colonizado, para contestar a naturalização e despolitização do mundo. Nesse sentido, o pós-colonialismo é mais do que o encontro de várias perspetivas e conceitos de poder, revelando-se uma linguagem que busca refletir sobre processos de descolonização à medida que ocorrem nos espaços da metrópole e nos antigos espaços colonizados.

O resgate da história de Moçambique do silêncio das interpretações impostas pela história colonial implicou reinterpretações históricas. Desde o início, essas reinterpretações procuraram ser inquestionáveis, porque foram construídas a partir dos testemunhos de líderes da Frelimo, os heróis vivos que lutaram pela libertação nacional. Esse processo não carecia de mediação da historiografia;, pelo contrário, importava evitar indagações sobre fontes e interpretações alternativas que provavelmente causariam disputas. Como resultado, o tempo e o espaço da libertação passaram a ser "uma história fechada", mais propensa a ser disseminada do que questionada ou interpretada (Coelho, 2015). Mas as críticas não tardaram a surgir. Aquino de Bragança e Jacques Depelchin (1986) mostraram como a história, enquanto disciplina académica, desempenhou um papel fundamental na construção da memória política nacional, avaliando os riscos associados à construção de uma história gloriosa, mas fechada, que não permitia diálogos com outras memórias nacionalistas.

A abertura à democracia e a um sistema multipartidário, que Moçambique vem conhecendo desde os anos 90, permitiu a emergência de momentos de questionamento e a identificação de momentos ainda pouco conhecidos repletos de violência. A (re)construção da moçambicanidade era necessária, num novo projeto político que precisava de integrar as outras memórias, menos instrumentais politicamente. Estas memórias, contudo, não têm sido desafiadas através de novas interpretações e novas versões da história, como ação política pública.

No atual contexto político de Moçambique, a luta armada pela libertação nacional não deve ser reivindicada como o único fundamento da unidade mo-çambicana, uma vez que existiam outros conflitos, transmitidos por outras memórias, reveladores de outros processos políticos. Como os anciãos costumam dizer, "porque os nossos mortos ainda falam muito alto"25, tem-se evitado falar do passado, com receio que isso possa trazer de volta as sombras das memórias que alguns não estão dispostos a recordar. Mais uma vez, no caso da guerra civil, a ênfase foi colocada nas raízes da luta e não na luta em si e nas suas consequências, sobretudo sobre o uso político e público da história, no plural.

As narrativas públicas, explicações, construções de memórias oficiais ou coletivas, institucionais ou privadas, são sempre complexas devido ao número de sujeitos e ao número de intenções que os produzem. Estas memórias plurais refletem as relações de poder, sendo uma das muitas versões, aquela produzida por sujeitos que procuram sobrepor a sua narrativa à de outros. A memória histórica produzida pelos historiadores é apenas uma de muitas vertentes. Como este texto procura revelar, tendo como campo analítico a realidade de Moçambique contemporâneo, não é possível construir narrativas oficiais ignorando as memórias coletivas de grupos que por alguma razão são silenciados. A memória política ou a história oficial procurava construir uma narrativa unificadora dentro do espaço nacional para criar coesão social e legitimar opções políticas. A História de Moçambique é a história encontrada e ensinada através de livros didáticos, mas colide com outras memórias paralelas. Por isso, é preciso abordar esses vários locais de memórias, a descoberta epistémica da alteridade e a presença de múltiplas memórias. É um primeiro momento que anuncia mudanças em relação à memória oficial, à macro-história nacionalista, à qual se vem opondo uma história dos nacionalismos na nossa sociedade. O segundo momento aposta no reconhecimento do processo permanente de (re)construção da história a partir desta alteridade e da sua recuperação.

A história contemporânea de Moçambique é uma experiência real e vivida, que se enfoca na luta dos africanos para pensar, teorizar e interpretar o mundo nos seus próprios termos, teorizando a partir dos seus territórios. Esta situação não é única ou exclusiva de Moçambique. Os historiadores e seu público aprendem uns com os outros e compartilham autoridade para criar um passado cujo sentido e utilidade sejam amplos, e contribuam para dar sentido à visão política do território que habitam. Qualquer análise que busque conhecer em profundidade como vivemos no mundo, não pode ser tratada como irrelevante à construção histórica desse mundo (Trouillot, 1995).

Tecendo narrativas, construindo a história

O debate sobre a investigação e apresentação do continente africano expõe uma realidade problemática, uma "extroversão teórica" caracterizada pela importação de paradigmas, problemas e perspetivas acríticas, por políticos e intelectuais africanos (Hountondji, 2002). A África contemporânea precisa de confrontar duas grandes linhas de investigação: a análise, por si mesma, das implicações do legado colonial, e a busca pela recuperação do que veio antes da colonização e continua presente nas suas estruturas sociais, políticas e identidades. O objetivo não é criar um espaço conceptual para o outro, mas reconhecer que a alteridade é uma constante nos processos de desenvolvimento social. E este desafio é partilhado com grande parte do que hoje designamos como sul global.

Durante o período colonial, a negação do contributo africano, da sua coexistência com os seres de outras regiões, operou através de um sofisticado sistema de saber-poder, que transformou o continente e os seus habitantes num referencial de inferioridade, vivendo num tempo da cultura fora do espaço da modernidade eurocêntrica colonial. Hoje, o problema é mais complexo. Por um lado, frequentemente continuamos a fazer as nossas interpretações a partir do conhecimento produzido por um centro -o Atlântico Norte- que ainda não foi descolonizado. É, portanto, pelos olhos deste norte imperial que os territórios africanos continuam a ser percebidos, através de lentes epistemicamente coloniais, que apenas conseguem ler os materiais preservados nas bibliotecas coloniais26. Por outro lado, enquanto queremos (re)construir outras histórias e (re)introduzir-nos no debate de outras memórias, a situação que observamos reflete a dificuldade de construir uma grelha analítica nova que escape das interpretações dominantes e nos permita introduzir as memórias de outros sujeitos. Esta situação tanto acontece em Moçambique, como na Índia (Chakrabarty, 2008) ou na Colômbia (CNMH-ONIC, 2019), para citar apenas alguns exemplos. Comum a estas sociedades, pós-coloniais, o facto de serem internamente atravessadas por guerras, carregando no ADN das suas memórias narrativas de conquista e subjugação que urge conhecer. Este artigo amplia a visão sobre os conflitos que permeiam o processo de construção do Estado moderno em Moçambique, que transcende o confronto entre atores armados no recente conflito armado no país, para ampliar a compreensão do que somos e de como fomos nação em construção, diversa e multicultural. Através desta análise procurei dar a conhecer indivíduos e grupos políticos que participaram das lutas pela emancipação do país, mas cujas memórias estão silenciadas, ausentes da narrativa histórica nacional. Estas lutas continuam a desafiar a profunda injustiça social, política, económica e cognitiva que marca o tecido social do país, aliado a um processo de extermínio físico, mas também permitem compreender a atuação destes grupos como agentes de mudança da comunidade política moçambicana, mediante o fortalecimento da sua participação política, da sua resistência, do reverberar das suas memórias e experiências de luta. E este processo encontra paralelos em vários lugares do sul.

A construção de histórias contemporâneas em diálogo (Subrahmanyam, 1997) é talvez um dos principais elementos necessários para a (re)emergência de "outros" sujeitos, assim como de atores político ativos. Tornamo-nos conscientes de nós mesmos e dos outros, reconhecendo que a presença de um "outro" implica conhecer o passado e os caminhos e experiências dos outros. Pensar as memórias no plural, colocando-as como narrativas diversas de histórias sobre locais, implica uma obrigação de pensar em processos de identidade ou nas metamorfoses sociais e políticas conhecidas das sociedades. Se concordarmos que reconhecer significa lembrar o outro, as relações entre o "eu" e o "outro" tornam-se espaços de luta por reconhecimento, espaços de democratização da memória e dos conhecimentos que transmitem.

Muitos historiadores tendem a usar a noção de memória para incorporar versões não autorizadas ou não oficiais do passado, enquanto os grupos cujas identidades se apoiam numa história específica desafiam versões legítimas do passado e o monopólio de especialistas, como um "dever à memória" (Ferenczi e Boltanski, 2002; Ruscio, 2005). Como resultado, novos silencia-mentos são produzidos. Como existem muitas variáveis trabalhando na construção das memórias, haverá sempre segmentos de memória que parecem excluídos ou insuficientemente integrados. A abordagem das questões da memória implica o reconhecimento de duas questões essenciais. Por um lado, as memórias coletivas têm vários produtores originários com uma origem plural, onde o ponto de vista dos locais pode variar dependendo dos narradores ou da perspetiva daquilo que está a ser narrado e das formas que o material assume. Por outro lado, se se aceita a origem plural da memória coletiva, é fundamental gerir os diversos produtores de maneira mais inclusiva e democrática. Há muitas referências sobre a necessidade de democratizar Moçambique, no entanto, as histórias, memórias, conhecimentos e experiências dos grupos que constituem o Moçambique atual escapam do espaço desta democratização. Neste sentido, e parafraseando Boaventura de Sousa Santos (2007), os silêncios aos quais outras memórias foram submetidas e a sua ausência nos circuitos académicos imperiais são um forte indicador da presença de discursos alternativos que questionam insistentemente a centralidade de uma história única e que se procura universalizar.

Dipesh Chakrabarty argumenta que em quase todas as lutas democráticas as discussões sobre o tema académico da história têm dado origem "à questão de saber se a distinção entre "testemunho' e "historiografia' deve ser dissolvida para desafiar a autoridade do historiador académico" (2008: 184). Qualquer história geral, nos tempos democráticos e abertos a possibilidades pós-coloniais, está sob pressão da ideia de múltiplas perspetivas, posição que está a ganhar cada vez maior visibilidade. Como Michael Rothberg (2009) destaca, a memória funciona produtivamente através de negociações, referências cruzadas e empréstimos. Neste contexto, o resultado dos conflitos de memórias não é menos memória, mas mais, até mesmo de tradições de memória subordinada. O resultado é uma abertura da história a posições conflituais, que nem sempre se poderão resolver. Recuperar o passado, como Frantz Fanon afincava, "desencadeia uma possibilidade de importância fundamental" (1963) para o outro subalterno, em vez de vergonha, o passado deve ser marcado pela "dignidade, glória e solenidade" (Fanon, 1963). Nesta perspetiva, os silêncios da alteridade não são sinónimo de vitimização da alteridade, mas de uma presença cada vez mais ativa e até radical desses "outros" sujeitos históricos trazidos a um tempo presente com densas histórias, uma condição para a transformação das memórias e narrativas que produzem. É neste contexto que se inserem as reivindicações de "entrada na história" por parte de comunidades e povos indígenas em vários contextos latino-americanos. No caso específico da Colômbia, este tipo de (re)conhecimento, ou melhor ainda, de interconhecimento, baseia-se no reconhecimento da reciprocidade de diferenças e semelhanças, condição para a reconstrução das relações sociais (Montes e Moya Pardo, 2016). As memórias dos povos indígenas não são apenas uma transmissão de saberes: elas são discutidas, avaliadas, seletivamente aceites e modificadas através de inúmeras demandas e negociações (Gnecco e Zambrano, 2000).

Os legados históricos marcados pela violência da relação colonial criam relações (muitas vezes bastante conflituantes) entre os seus potenciais herdeiros, dividindo e ligando simultaneamente as partes. A pesquisa histórica implica distanciamento dos objetos do conhecimento que, no caso do envolvimento ativista com um "novo sujeito" (a história de Moçambique), é o presente do mundo injusto que está aí, e que o investigador aborda apenas minimamente.

A produção do novo conhecimento histórico requer o reconhecimento e a distinção entre o sujeito e o objeto. Por isso, falar sobre os outros, em contextos pós-coloniais, terá sempre que ser sustentado pelo conhecimento produzido com os outros numa relação complexa e simbiótica. Como tal, a história fala da política por vir.

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* Na origem deste artigo está a pesquisa realizada no âmbito do projeto "BLEND Desejo, Miscigenação e Violência: o presente e o passado da Guerra Colonial Portuguesa" (1 de junho de 2016 a 31 de dezembro de 2019). Agradeço o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT / MEC), através do projeto PTDC / CVI-ANT / 6100 / 2014 -POCI-01-0145-FEDER-016859, que financiou parte importante da pesquisa. Agradeço também à Margarida Gomes o apoio na edição do texto, assim como aos revisores anónimos, cujos comentários contribuíram para melhorar o argumento.

1O moderno nacionalismo, em contexto africano, refere-se de forma ampla a um conjunto de propostas políticas assentes na ideia da autodeterminação nacional e na criação de estados-nação (Andrade, 1998).

2A Frente de Libertação de Moçambique foi fundada em 1962 com o objetivo de lutar pela independência de Moçambique do domínio colonial português. Em 1977 transformou-se em partido político, conservando o nome -partido Frelimo- mantendo-se uma das principais forças políticas no país.

3Entrevista coletiva realizada em Mapulanguene, Moçambique, 2000.

4Aqui sigo de perto a proposta de Borges Coelho (2015), que insiste na diferença entre "memória política' e "memória coletiva'. Por memória política entenda-se o processo de controle autoritário de algumas memórias por parte das autoridades, que tentam, a partir deste exercício de poder, produzir uma memória coletiva. Para o autor a memória política é mais estruturada e ativa; já a memória coletiva, passiva, funciona numa longa duração, através de uma série de seleções e sedimentações.

5Sobre este assunto veja-se, entre outros, Ndiaye (2008) e Araújo e Maeso (2012).

6A descolonização permitiu que Portugal esquecesse que as comunidades africanas das suas colónias se tinham tornado, desde 1961, cidadãs portuguesas -com a abolição do Estatuto do Indigenato- e escapasse de muitas das implicações graves de um passado partilhado, com múltiplos episódios de violação de direitos. Com esse esquecimento, surgiram novas definições de identidade portuguesa e novas instituições do Estado português (Meneses, 2010).

7Uma guerra cuja designação espelha o desacordo dos objetivos: do lado português é conceptualizada no singular, como guerra colonial; já nos três palcos onde esta guerra ocorreu -Angola, Guiné Bissau e Moçambique- as lutas, no plural foram apresentadas como projetos de emancipação nacionalista (Meneses e Martins, 2013).

8A biblioteca colonial, termo cunhado por Valentín Mudimbe (1988), refere-se ao corpo de textos e à estruturação epistemológica que constrói África como um símbolo de alteridade e inferioridade. Mudimbe destaca que muitas das tentativas de resistir à biblioteca colonial se baseiam nesta mesma ordem epistemológica, o que constitui um desafio profundo a qualquer proposta para descolonizar os currículos da universidade, pois estas bibliotecas, bastante usadas, opõe-se a todas as tentativas para as desmontar.

9Estrofe de uma música revolucionária de Moçambique.

10"Amor e vinho (idílio pagão)", artigo publicado no jornal, O Africano, 11 de Junho de 1913.

11Uma leitura atenta dos códigos legais revela uma fronteira abissal entre a nacionalidade e a cidadania. Os negros eram nacionais de Moçambique e foram privados do direito à cidadania e submetidos a um regime disciplinar específico e extremamente repressivo, pelo Estatuto do Indigenato. Sob esse regime, os cidadãos legais (sendo legalmente os portugueses), reconheciam-se como investidos do direito de governar os assuntos dos que foram declarados mais atrasados no caminho do progresso e da civilização. A legitimidade do seu poder político repousava na missão colonial de assimilar os "menos desenvolvidos' -os indígenas negros- a um modelo de vida que era definido superiormente pelos "cidadãos' (Meneses, 2010).

12Um processo de doutrinação portuguesa começou em Moçambique durante os anos 1960, quando a política de alargamento colonial procurou estender a identidade portuguesa às populações de além-mar em África (Souto, 2007). Quando a pressão do movimento de libertação aumentou, especialmente nas forças armadas, estas ações foram tomadas para transmitir a ideia de que Moçambique era parte integrante da nação portuguesa e que todos os antigos súbditos coloniais eram portugueses (Meneses e Martins, 2003).

13Desta forma, a introdução da primeira lei eleitoral em 1977 distinguiu entre os que estavam envolvidos "nas estruturas coloniais de opressão' e o "povo moçambicano', sendo aos primeiros vedada a participação política ativa (ex. ser eleito).

14Em 1975 com antigos "traidores' da Frelimo, em 1978 com antigos presos políticos e, finalmente, uma mais ampla com os "restantes comprometidos’ em 1982.

15A polícia repressiva durante a ditadura.

16Ação Nacional Popular: o partido político único que governou Portugal durante todo o período da ditadura.

17Este termo designa normalmente mulheres jovens que mantinham correspondência por correio com soldados em campanha, apoiando-os moral e emocionalmente.

18A autoridade tradicional é usada para fazer referência a um tipo de liderança em que a autoridade está amplamente ligada à tradição e aos lugares.

19O projeto político do moderno estado-nação é a continuidade da herança colonial.

20Literatura produzida durante a luta nacionalista do exército. Veja-se Mendonça (1988).

21A constituição nacional de 2004, por exemplo, reconhece o caráter multicultural do país (art. 4).

22Entrevistas realizadas em Moçambique, entre 2012 e 2014.

23As músicas (letras) são um veículo fundamental de expressão e ação política. No contexto moçambicano, veja-se, entre outros Vail e White (1983); Penvenne e Sitoe (2000); Filipe (2012), e Israel (2017).

24São disso exemplo a não inclusão, na história nacionalista, de outras forças políticas que lutaram pela independência de Moçambique (ex. Coremo, Comité Revolucionário de Moçambique), a mínima referência ao apoio de vários campos religiosos, ou ainda o papel das resistências e lutas sindicais. Consequentemente, a luta emancipadora acentua, sobretudo, a figura do guerrilheiro, de origem camponesa.

25Entrevista coletiva com antigos combatentes realizada em Maputo, em 2012.

26Hoje em dia, o colonialismo digital contribui para recentrar a importância dos saberes contidos nas bibliotecas coloniais. Com efeito, através do uso de big data, o norte imperial tem vindo a cimentar a sua relação de saber-poder colonial, onde a dominação continua por meio de tecnologias modernas. A mercantilização e a expropriação de dados continuam a acontecer de forma acelerada, enquanto as pessoas e comunidades experimentam a ser objeto de ação dos saberes que emanam, sobretudo, do norte imperial, por exemplo, sob a forma de publicações digitais.

Recebido: 15 de Julho de 2020; Aceito: 20 de Outubro de 2020

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