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Papel Politico

Print version ISSN 0122-4409

Pap.polit. vol.11 no.2 Bogotá July/Dec. 2006

 

POR DETRÁS DOS VÉUS: A MULHER MUÇULMANA E AS REVOLUÇÕES TURCA E IRANIANA

 

Mariana Menezes Neumann*

* Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Bacharel em Socio logia e Ciência Política pela Pontifícia Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pesquisadora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI) em convênio com a PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil. marianamenezes25@yahoo.com.br

Recibido: 11/09/06 Aprobado evaluador interno: 06/11/06 Aprobado evaluador externo: 01/11/06

 


Abstract

The purpose of this article is to comparatively analyze the processes of social, political and economical exclusion of Muslim women in Iran and Turkey. These processes are related to a system of beliefs and values of religious character. We suggest that the specific political models that exist in Turkey and Iran play a fundamental role in institutionalizing these processes in structurally different ways.

Key-words: Islam, women, legislation, Turkey, Iran, revolution.

 


Resumo

A proposta do presente trabalho é desenvolver uma análise comparativa do processo de exclusão social, política e econômica da mulher muçulmana. Esse processo está, por sua vez, diretamente relacionado ao sistema de crenças e valores de caráter religioso. Sugerimos assim como pressuposto, que os modelos políticos específicos que operam na Turquia e no Irã, o institucionalizaram de forma estruturalmente distinta.

Palavras-chave: Islã, mulher, legislação, Turquia, Irã, revolução.

 


Resumen

El propósito de este artículo es analizar comparativamente los procesos de la exclusión social, política y económica de las mujeres musulmanas en Irán y en Turquía. Estos procesos están, a su vez, directamente relacionados con el sistema de creencias y de valores de carácter religioso. Sugerimos que los modelos políticos que operan en Turquia y en Iran juegan un papel fundamental en definir estos procesos.

Palabras clave: Islam, mujeres, legislación, Turquía, Irán, revolución

 


A palavra Islã em árabe significa submissão, estando etimologicamente relacionada a palavra salaam, paz. O muçulmano é aquele que se submete a Allah, revelado através das palavras do profeta Muhammad (Maomé). Há uma segunda definição da palavra muçulmano que em geral é obscurecida pela primeira, isto é, o muçulmano designado enquanto tal exclusivamente por ter nascido em uma família muçulmana. Esta condição indica unicamente sua origem étnica e não suas crenças religiosas, não havendo necessariamente uma contradição em ser muçulmano e ao mesmo tempo ateu ou agnóstico.

Os muçulmanos da Bósnia, por exemplo, descendentes de eslavos, converteram-se ao Islã somente durante o reinado do Império Otomano e foram oficialmente rotulados de muçulmanos para diferenciá-los dos Cristãos Ortodoxos sérvios e Católicos croatas. Configuraria assim a noção de um "muçulmano nominal". Esta definição, no entanto, não está isenta de controvérsias, em especial, pelos ativistas muçulmanos que tendem a definir uma fronteira entre os "muçulmanos autênticos" e os demais. Em alguns casos mais radicais a delimitação dessa fronteira refere-se a categorias ainda mais severas, "fiéis" e "infiéis". Ambos os discursos podem ser apropriados por um determinado país ou grupo político para justificar propostas de integração ou separação.

Portanto, as palavras muçulmano e Islã não apresentam definições exclusivas e devem ser consideradas categorias lingüísticas identificadoras de grupos sociais, disputadas por diferentes etnias. Deste modo seu entendimento resulta de um contexto histórico e político específico.

A partir destas considerações buscar-se-á compreender a proposta do presente artigo que tem como temática central o status da mulher muçulmana nas sociedades turca e iraniana em dois momentos históricos específicos e que assemelham-se por seu caráter revolucionário. A Turquia em 1923 e o Irã em 1979 serão o palco de rupturas políticas únicas e de grande impacto para os países muçulmanos do Oriente Médio. Em especial no que se refere ao estatuto da mulher no Islã, pois, como será demonstrado, não há uma interpretação homogênea da religião, onde as mulheres são percebidas como irremediavelmente submissas às leis divinas. O que mostra-se claro é o fato de que os países muçulmanos apresentam não só diferenças culturais marcantes entre si, mas também internamente. A interpretação e o enfoque privilegiado dos preceitos religiosos estarão condicionados ao grupo que estiver no poder.

Dessa forma a Turquia e o Irã foram selecionados como estudos de caso por simbolizarem movimentos opostos, o primeiro na direção de uma maior abertura religiosa, separando o Estado da religião, tornando-a uma escolha pessoal. O segundo, por sua vez, implicou em uma interpretação fundamentalista1 da religião, ou seja, uma estratégia política que utiliza-se da crença para atingir objetivos específicos, como no caso do Aiatolá Khomeini. A proposta de Khomeini estava voltada para o retorno à "pureza inicial" do Islã nos tempos de Maomé a partir de um modus operandi particular, implicando na instauração de um governo teocrático, em que a política e a religião se fundem. É importante ressaltar que esta é uma abordagem específica do islamismo enquanto ideologia política, não afigurando-se portanto, como única.

Em geral, o Islã fundamentalista é tido como representativo das sociedades muçulmanas, fator este que ofusca a complexidade dos fenômenos políticos nessas sociedades sem que haja uma tentativa de compreender as motivações que possibilitam movimentos deste tipo de conseguirem chegar ao poder com adesão em massa por parte da população local, como no caso da revolução no Irã.

Como afirma Weber2 a preocupação no estudo das religiões não deve ser enfocada a partir de sua essência, dos seus valores e dogmas, mas sim no estudo do comportamento religioso como uma atividade deste mundo voltada para fins específicos. Assim também, como este comportamento irá afetar outras esferas de relações sociais. No presente estudo, voltado à compreensão do status da mulher na religião muçulmana em dois contextos históricos específicos, esta transferência de obrigações e significados para a esfera política, jurídica e social será de fundamental importância.

No entanto, antes de enfocarmos os processos revolucionários no Irã e na Turquia, analisaremos a legislação islâmica, eixo central para compreendermos o status da mulher muçulmana nas duas sociedades.

A Legislação Islâmica

A estrutura legal das sociedades muçulmanas está centrada em duas fontes, a wahy (revelação divina) e a aql (razão humana). A dualidade do direito islâmico reflete-se, assim, em duas designações em árabe, a Shariah e a fiqh. A primeira, cujo significado é "o caminho correto" ou "guia", caracteriza-se pelas revelações feitas por Deus através do anjo Gabriel ao profeta Muhammad (Maomé) contidas no livro sagrado, o Corão. Portanto, não está circunscrita somente a leis mas apresenta a totalidade dos mandamentos, ou seja, questões públicas, privadas e comunitárias, como herança, casamento, divórcio e propriedade. Devido a essa característica a shariah pode ser dividida em duas partes. Segundo Bernard Lewis, "a primeira trata da mente e coração dos crentes, isto é, de doutrina e moralidade; a outra, de atos externos em relação a Deus e ao homem, ou melhor, de adoração, por um lado, e lei cível, criminal e administrativa, por outro".3

Dentro do escopo da shariah será incluído também a Sunna, isto é, a prática do profeta, os ensinamentos coletados por alguns de seus seguidores mais próximos que compilaram os seus atos e pronunciamentos. Hadith é o termo que designa o conjunto da sunna, no entanto, irá apresentar algumas questões adicionais como profecia e história. De acordo com a tradição muçulmana Maomé não foi somente o transmissor da palavra divina mas também apresentou uma conduta correta durante a sua existência, afigurando-se um modelo comportamental para os fiéis. No Corão encontra-se o seguinte versículo, "obedecer a Deus e ao Mensageiro e aos dentre vós que dispõem de autoridade".4 Legitima dessa forma a aceitação da sunna como base secundária do direito.

A tradição oral foi a grande responsável pela contínua transmissão da sunna, sendo compilada somente mais tarde. A primeira versão foi escrita 135 anos após a morte do profeta. Nem todas as coletâneas são consideradas válidas, estando na mão de juristas e eruditos a tentativa de creditar-lhes ou não autenticidade. A diferença com o modelo jurídico ocidental, no qual as leis não estão baseadas em mandamentos divinos e sim na elaboração de normas referentes ao um determinado momento histórico e circunstâncias específicas, não são totalmente incompatíveis. Em especial no que se refere a atuação de juristas-teólogos (mutjahid) no processo de decodificação de algumas das suras que mostram-se ambíguas e de difícil compreensão para o leigo (diferentemente da lei islâmica, na tradição ocidental não há uma relação estreita entre religião e direito). O resultado final deve se dar a partir do consenso para que seja devidamente incorporada ao corpo de direito. Fiqh, portanto, retrata a dimensão do direito compreendida como conhecimento e entendimento humano. O faqih, aquele que pratica a fiqh, é um especialista legal que através da especulação racional (ijtihad), busca compreender a Shariah, determinando as implicações dos mandamentos de Deus em instâncias específicas, como questões com sentido amplo ou não determinadas.

Caso o faqih não esteja apto a exercitar a ijtihad, irá utilizar outro método conhecido como taqlid, isto é, a imitação de um mujtahid renomado. Pois se todos resolvessem praticar ijtihad, o resultado seria no mínimo caótico. Os juristas mostraram-se cada vez mais relutantes em praticar ijtihad, optando pela prática do taqlid. Sua autoridade é reduzida consideravelmente frente a shariah. Mas sua importância não pode ser minimizada se considerarmos que esteve presente nos 14 séculos posteriores ao Profeta. Mas, ao contrário de apresentarem conselhos e assembléias, como no modelo democrático ocidental, esta tarefa é realizada pelos juristas de forma a camuflar novas leis em costumes e regulamentações. Um exemplo acerca da necessidade do uso da racionalidade para solucionar impasses acerca do significado de uma determinada surata, pode ser ilustrado da seguinte maneira: no Corão há a seguinte passagem, "estão proibidas ao homem o casamento com suas mães e filhas, ...".5 Aparentemente esta proibição está clara, mas como demonstra Mohammad Kamali,6 podem surgir dúvidas acerca do termo filha, pois, não está especificado se está incluído nesta categoria filhas adotadas, netas, ou filhas de um primeiro casamento da esposa. E caso estejam incluídas nesta categoria, estão aptas a receber parte da herança?

É neste âmbito do direito islâmico que as diferentes escolas de direito mostram-se de fundamental importância. Encontram-se em um número variado, sendo as de maior relevância a Shafi, a Hanafi (esta é uma das escolas de maior influência no direito religioso e da família, e é adotada em países como Afeganistão, Paquistão e Índia, dentre outros) , a Maliki e a Hanbali. As duas primeiras centram seus julgamentos a partir da conduta exterior e não estão particularmente interessadas em explorar a intenção por detrás dos atos. Enquanto a Maliki e a Hanbali operam de forma inversa, enfatizando a importância da intenção como motivadora das ações.

O fator de unidade entre as diferentes escolas são as injunções definitivas do Corão e da Sunna, pois, diferem em relação a interpretação (fiqh), isto é, no uso da racionalidade humana. As diferenças estão centradas basicamente em questões como casamento e tutela, e na postura mais (Hanafi) ou menos (Maliki) liberalizante em relação aos direitos da mulher. Em relação ao exemplo da dificuldade de compreensão da abrangência do termo filha, as escolas se posicionariam da seguinte maneira: a Hanafi postula que todos os sentidos da palavra devem ser consideradas e atribuídas ao sentido explicitado na surata. Mas a maioria das outras escolas não estão certas quanto a validade desta interpretação.

Há um debate similar acerca da ablução (wudu) que antecede as preces. Segundo o Corão a limpeza se faz necessária quando um indivíduo toca o corpo de alguém do sexo oposto (lamastum). O significado preciso da palavra tocar é alvo de grandes debates entre as escolas porque não está claro se refere unicamente ao ato de tocar ou se está inferido nesta premissa a relação sexual. Em alguns casos as dúvidas não concernem somente a palavras isoladas mas também a frases inteiras. Mesmo em situações aparentemente mais simples de serem interpretadas como o roubo, há dúvidas acerca se está incluso nesta categoria, o ato de roubar de uma pessoa falecida, por exemplo. Embora a totalidade do Corão seja percebida enquanto autêntica, grande parte do conteúdo legal é especulativo.

Há também diferenças em relação as tradições Sunni e Shi‘i7 também no aparato legal. Apresentam algumas dessemelhanças nos rituais referentes a prece, e mais significativamente nas leis relativas a herança e ao casamento temporário (muta‘). No Irã, onde prevalece a tradição Shi‘i, o direito do homem a satisfação sexual é divinamente instituído. A mulher não tem o direito de rejeitar as demandas sexuais do marido, sendo assim é permitido o contrato temporário de casamento que pode durar uma hora ou noventa e nove anos. Muitos críticos percebem esse contrato como uma forma de prostituição legalizada. Mas figuras proeminentes da República Islâmica do Irã promovem-na ativamente.

Embora juristas das diferentes escolas continuem a praticar a ijtihad, à exceção dos Hanbalis, há uma doutrina que assegura que as ‘portas da ijtihad’ foram fechadas após o terceiro século muçulmano. No entanto, estudiosos atuais demonstram que os portões nunca foram fechados totalmente e que famosos mujtahids continuaram a prática até o século dezesseis. Em contrapartida, na jurisprudência Shi‘i as "portas da ijtihad" permanecem abertas. Os ulamas mais velhos, conhecidos pelo título de Hujjat al Islam (prova do Islã) ou Ayatullah (sinal de Deus) são todos mujtahids, isto é, intérpretes individuais da lei. Todo fiel Shi‘i deve colocar-se sob a orientação de um mutjahid que atua como "fonte de imitação" (marja-i-taqlid em persa).

Pode-se perceber dessa forma a forte influência exercida pelo Aiatolá Khomeini no momento pré e pós revolucionário no Irã. Assim também como foi significativo o apelo de Khomeini perante as massas, pois em grande parte, o seu retorno triunfante do exílio foi propiciado pela população, tanto homens quanto mulheres. Uma das razões pelas quais este acontecimento foi possível deve-se ao importante fato de que os ulamas na tradição Shi‘i são os responsáveis pela manutenção das taxas religiosas, a zakat, que constitui um dos cinco pilares da religião. Historicamente este fato possibilitou que tivessem maior independência em relação aos ulamas da tradição Sunni. Como não há uma igreja institucionalizada, o que ocorre é uma rede independente de mesquitas aliadas ao setor tradicional (bazaar), que permitiu aos grupos religiosos iranianos a possibilidade de assumir o poder através do Partido Republicano Islâmico, acarretando na queda da dinastia Pahlavi em 1978-79.

A flexibilidade intelectual e hermenêutica da tradição Shi‘i permitiu aos ulamas uma maior adaptabilidade das leis às demandas contemporâneas, ao contrário do que ocorre com a Sunni. Nesta tradição a fiqh tornou-se cada vez mais imobilizada na esfera intelectual e divorciada da realidade, embora não se possa afirmar que tenha permanecido monolítica. Ainda permanece uma diversidade considerável no corpus da jurisprudência islâmica, conforme o seu desenvolvimento.

Fiqh também pode ser definida como a compreensão das regras práticas da Shariah, manifestada nos aspectos relacionados a conduta individual. As questões práticas acerca da conduta são subdivididas em: obrigatório, recomendado, permissível (halal), repreensível e proibido (haram). Algumas premissas básicas da Shariah são: a promoção da dignidade humana, justiça e igualdade, assim como, o estabelecimento de um governo consultivo, a prevenção de ações que provoque danos (darar), e a educação do indivíduo através da pontualidade, auto - disciplina e moderação. No sentido mais amplo estas premissas são permanentes e imutáveis, mas quando aplicadas empiricamente podem aparecer algumas dificuldades de entendimento que serão resolvidas por um jurista e/ou teólogo. Um dos exemplos mencionados por Mohammad Kamali é o fato de que no Corão está determinado que o depoimento de um homem é o equivalente ao de duas mulheres. Esta assertiva foi reforçada por um ulama do passado, atribuindo forte legitimidade a esta condição de inferioridade da mulher. No entanto, é importante ressaltar que mesmo o depoimento de uma mulher não tendo o mesmo peso que o de um homem, não há uma proibição explícita para o seu testemunho em um tribunal muçulmano. Sendo assim, como a leitura do Corão deve ser orientada para objetivos claros e voltada para as necessidades contemporâneas das sociedades muçulmanas, esta posição pode ser revista vindo a admitir o depoimento tanto do homem quanto da mulher, de forma igualitária. Ainda mais porque em determinados casos a mulher pode ter sido a única testemunha, sendo o seu relato de fundamental importância para resolução da contenda. Uma das grandes dificuldades para uma mudança efetiva é que como os ulamas e mutjahids são os responsáveis pela interpretação das leis, e como a mulher não está apta a atingir estas esferas de poder, está nas mãos destes homens uma interpretação mais favorável das suratas à causa feminina. Dentre os países muçulmanos na atualidade, a Arábia Saudita constitui um dos estudos de caso de maior complexidade pois a interpretação do Corão se dá de forma ainda bastante conservadora.

É importante ressaltar, porém, que a aparente condição de imutabilidade da lei por ser divina, não é de todo verdadeira. Por mais complexa que seja uma transformação significativa do corpus jurídico para atenuar leis que ferem a integridade física e psicológica da mulher como, a morte por honra ou morte por apedrejamento em caso de adultério, dentre outros casos, ainda assim é viável a partir da fiqh, o uso da racionalidade humana.

O debate acerca do uso do véu é uma constante no Islã contemporâneo, sendo marcado por perspectivas divergentes. Os tradicionalistas, em grande parte homens, argumentam que o Profeta melhorou a condição da mulher árabe em seu tempo garantindo direitos fundamentais no casamento que eram negados no "tempo da ignorância" (jahiliya).8 As suras proferidas enquanto estava em Meca referem-se ao costume do infanticídio feminino com grande horror, condenando também o abandono de viúvas e órfãos. Após a adoção do Islã foi garantido às mulheres direitos de herança sob a proteção da família. O marido seria obrigado a prover tanto a mulher quanto as crianças, caso houvesse, com as necessidades essenciais para a sobrevivência. Mesmo a poligamia sendo permitida, o homem estava limitado a no máximo quatro esposas que deveriam ser tratadas de forma igualitária.

O texto corânico está voltado tanto para a mulher quanto para o homem em relação as obrigações morais, considerando que todos indistintamente terão que responder por seus atos no Dia do Julgamento Final. No entanto, existem passagens que atestam a inferioridade legal da mulher, como por exemplo, no que se refere a partilha da herança a irmã está apta a receber somente a metade do que seus irmãos receberão, estando inferido que ela será mantida pelo marido.

No contexto árabe do século VII essas suratas não são necessariamente incompatíveis com o argumento de que o Islã realmente melhorou a condição feminina, pois foram assegurados alguns direitos no casamento e em relação a propriedade. Mas feministas contemporâneas desejosas de ultrapassarem essas questões iniciais, enfrentam um obstáculo teológico. Como o texto está intimamente relacionado com a idéia de espírito, pois constitui uma revelação divina, faz-se necessário operar uma ruptura nesta relação intrínseca do texto, possibilitando maior flexibilidade para eventuais mudanças. Isto requer porém que o livro sagrado do Islã seja re-contextualizado para o momento atual.

As questões relacionadas aos direitos da mulher estão inexoravelmente ligadas a questão da modernidade. Para as feministas o Corão foi revelado em um momento histórico específico, portanto, a missão destas seria a de reinterpretar o espírito de seus mandamentos sob a ótica da realidade contemporânea. Uma das maiores dificuldades para a realização desta tarefa é o fato de que os tradicionalistas acreditam que estão mais próximos ao sentido original do texto sagrado do que aqueles condicionados por modismos ou correntes ideológicas distintas. Um exemplo clássico é o da poligamia. Os tradicionalistas interpretam que a igualdade requerida para o tratamento das esposas afigura-se como o direito a cada uma delas ao seu próprio lar e a devida provisão material. As feministas porém irão ponderar que a base institucional da poligamia deveria ser banida como um todo pois não é levado em consideração, na concepção de igualdade, a incapacidade do homem de estar emocionalmente envolvido de forma similar com todas as esposas, afetando o seu bem estar psicológico.

Argumentos semelhantes são utilizados pelas feministas para racionalizar as punições draconianas em relação a mulheres adúlteras ou indivíduos acusados de atividade sexual ilícita (zina). Segundo as leis acerca da evidência estipuladas no Corão, a zina deve ser atestada por quatro testemunhas do sexo masculino e maiores de idade. Considerando que em muitos casos esta regra dificilmente pode ser cumprida, o autor Malise Ruthven9 demonstra através do discurso de uma feminista muçulmana, Leila Badawi, a possibilidade de uma interpretação alternativa. No caso de uma mulher abandonada ou enviuvada que fica grávida, ela pode ser protegida pela hila (ficção legal) do "feto adormecido", isto é, uma gravidez pode ser aceita por um período de até sete anos. Sendo assim a criança é a herdeira legal do marido ausente ou já falecido. No caso da mulher solteira que fica grávida há uma hila do "banho coletivo". Os banhos eram tradicionalmente abertos em horas e dias alternativos para homens e mulheres e haveria teoricamente a possibilidade de uma mulher virgem ir ao banho logo após o horário reservado aos homens e inadvertidamente sentar em uma poça de sêmen e engravidar.

A resolução de contendas relacionadas a fidelidade e a honra irá depender em grande parte do país em que ocorre o julgamento e qual interpretação da lei será privilegiada. Mesmo no caso específico da Turquia, cuja base legal é secular e não religiosa, há um número acentuado de mortes ‘por honra’ devido a uma forte pressão cultural e não exclusivamente legal.

Na cidade de Sanliurfa, localizada no sudeste turco, as mulheres que cometem adultério ou mantém relações sexuais antes do casamento são mortas pelos próprios familiares. Sob a lei turca essas mortes ‘por honra’ são consideradas crimes cometidos sob ‘provocação pesada’ e as sentenças em geral são leves. As mortes não se caracterizam por crimes passionais e sim planejadas deliberadamente. De acordo com o relato de Canan Arin, feminista turca, publicado no jornal Folha de São Paulo no dia 14 de março de 1999,

"se a comunidade acha que uma menina desonrou a família, seus parentes são condenados ao ostracismo. E eles se sentem obrigados a matá-la. Houve cinco ou seis casos que foram para um tribunal no últimos anos, mas ninguém se apresenta como testemunha. No ano passado, uma mulher conseguiu sobreviver a uma tentativa de assassinato – tentaram jogá-la no rio Eufrates. Ela mudou o nome e passou a esconder-se."

Outra ativista pelos direitos da mulher, Seyda Toreuk, afirma

"o erro de algumas é simplesmente ir ao cinema com um homem. Uma mulher foi morta por que lhe dedicaram uma canção no rádio. A família pensou que a dedicatória viesse de um amante".

No Islã o casamento é contratual, e considerando que os contratos são negociáveis, reformistas argumentam que se a lei apresenta ambigüidades que dificultam uma união, pode-se utilizar subterfúgios contratuais. Há por exemplo o caso da bisneta do profeta, Sukayna bint Hussein, que estipulou que seu marido não poderia contrair outros casamentos. Mas nem todas as escolas de direito permitem que a mulher determine as cláusulas do contrato, ou caso seja possível, o seu poder de decisão será determinado em grande parte pelo status da sua família.

O casamento entre jovens no Islã é considerado positivo pois serve como freio as tentações sexuais. Sob a Shariah o contrato de casamento (nikah) é um contrato legal sancionado pela lei divina. Não constitui como no cristianismo um sacramento. De acordo com as autoridades legais o guardião da mulher (wali), normalmente seu pai, decide o casamento em seu nome. Somente a tradição Shi‘i caracteriza a mulher como uma entidade legal similar ao seu companheiro. Os interesses da mulher estão supostamente salvaguardados pelo dote (mahr), dado pelo marido em dinheiro ou em bens equivalentes, caso ele opte por divorciar-se deixando-a materialmente segura.

O marido, por sua vez, apresenta o direito de divorciar-se através da talaq, isto é, repúdio ou declaração unilateral. Ele precisa repetir a frase "Eu me divorcio de você" três vezes. As duas primeiras declarações requerem um período de espera de três ciclos menstruais para garantir que a mulher não esteja grávida, ou se estiver garantir que assumirá a paternidade da criança. Durante este período ambas as famílias irão se posicionar entre o casal para tentar uma reconciliação. Caso não ocorra a terceira vez que declarar "Eu me divorcio de você" irá efetivar o divórcio, sem que haja a possibilidade de recorrer a corte. Em geral o pai tem a custódia dos filhos, em relação aos homens a partir dos 7 anos e 9 para as mulheres. Caso seja a mulher a iniciar o processo de divórcio, implicará em abrir mão do direito ao dote, procedimento chamado de khul. Aos muçulmanos é permitido o casamento com judias ou cristãs. Mas o contrário não se aplica. Segundo alguns escritores muçulmanos contemporâneos como, Yousuf al-Qaradawi, isto ocorre devido a falta de simetria neste aspecto entre homens e mulheres porque acredita-se que o homem seja o responsável pelo lar.

Feministas muçulmanas argumentam que o Islã em si não é reacionário mas sim a sua interpretação, que tende a manter o status quo, isto é, patriarcal e excludente. Mas não se pode descartar por completo o fato de que o texto sagrado deixa claro em determinadas passagens a condição de inferioridade da mulher, "os homens são superiores às mulheres pelas qualidades com que Deus os elevou acima delas e porque os homens gastam os seus bens a dotá-las....".10

As feministas, por sua vez, interpretam essas passagens como fruto de um momento específico e não acreditam que estas suratas servem como justificativas plausíveis para mantê-las em uma posição de cidadãs de segunda classe. O argumento de que o testemunho de uma mulher numa questão referente a negócios por exemplo, seria considerado inferior ou não qualificado, aparentemente é uma postura de tempos arcaicos. Mas segundo o Corão o depoimento de uma mulher formada continua inferior mesmo em relação a um homem iletrado. Apesar dessas questões pontuais existem áreas onde as interpretações masculinas estão sendo contestadas, em especial no que se refere ao hadith. O questionamento da hadith é um processo menos controverso do que as investidas contra o Corão. Um dos maiores obstáculos encontrados pelas feministas muçulmanas é a questão histórica e cultural.

Para os teólogos muçulmanos a contestação das feministas é percebida como provinda de uma fonte hostil, ou seja, a influência do ideário de liberdade e igualdade ocidental.

Fatima Mernissi, marroquina, e Leila Ahmed, egípcia, argumentam que o Islã atualmente é comparativamente menos igualitário do que nos tempos do Profeta. Segundo as escritoras o império Abássida foi um dos grandes responsáveis pela perda de status da mulher devido ao incentivo ao concubinato, e a interpretação claramente masculina do sistema legal. As mulheres no tempo de Maomé eram relativamente livres, participavam da vida pública quando não estavam envolvidas também em batalhas e contribuíram grandemente para o processo de expansão do islamismo. Argumenta-se ainda que a primeira pessoa a acreditar que as revelações do Profeta eram realmente divinas foi sua primeira mulher, Khadija. Após sua morte, Maomé contraiu diversos matrimônios sendo a sua preferida a mais nova chamada Aisha, filha de um companheiro próximo, Abu Bkar. Ela representou um papel importante na guerra civil (fitna) contra os judeus, e foi a inspiração de diversas hadiths.11

Atualmente mulheres em diversos países muçulmanos estão lutando pela mudança do sistema jurídico, o que implica em um embate direto com leis divinamente estabelecidas. Em países como Irã e Turquia ocorre uma melhora significativa em relação a participação política, enquanto no Afeganistão e na Arábia Saudita, usar batom e dirigir constitui ainda uma infração punida com violência e prisão. Como afirmou um estudioso do Islã, Akbar S. Ahmed, as mudanças no mundo islâmico relacionadas as mulheres podem ser reduzidas a uma questão, "a posição da mulher na sociedade muçulmana espelha o destino do Islã; quando o Islã está seguro e confidente assim estão as mulheres, mas quando o Islã é desafiado e encontra-se sob pressão, assim as mulheres também ficarão".12

Estudo de Caso: Turquia

O Império Otomano era originalmente formado por principados turcos estabelecidos a partir da imigração destes para a região da Anatólia devido, em grande parte, a expansão dos seljúquidas. Esta era uma dinastia turca adepta do Islã sunita que em 1055 estabeleceu-se em Bagdá e durante os anos de 1038 à 1194 conquistou partes da Anatólia, até então pertencente ao Império Bizantino. O controle de Bagdá, no entanto, foi perdido após 1534 para a dinastia safávida (Irã) e somente retomada em 1638. Em razão das disputas entre as duas dinastias os otomanos iniciaram o deslocamento para o sul, ocupando a Síria, o Egito e a Arábia Ocidental. Por volta do ano de 1516-17 o Império Otomano constituía a principal potência militar e naval da região, estabelecendo um Estado baseado na força e com uma estrutura política centralizada e organizada, capaz de coletar impostos e manter a lei em um território vasto. A estrutura de poder estava encabeçada pelo soberano (paxá ou sultão, isto é, ‘detentor do poder’) e sua família e abaixo destes encontravam-se os vizires (sadr-i azam), responsáveis pelo funcionalismo público, governos provinciais e exército.

A legitimidade do soberano não fundamentava-se exclusivamente no poder militar pois, a religião caracterizava-se como o elo de ligação entre as diferentes tribos nômades que compunham o Império Otomano. Segundo Hourani,

"o sultão não era apenas o defensor das fronteiras do Islã, mas também o guardião de seus lugares santos. Também controlava as principais rotas pelas quais os peregrinos chegavam a elas. Organizar e chefiar a peregrinação anual era uma de suas principais funções; realizada com grande formalidade e um grande ato público, a peregrinação era uma asserção anual da soberania otomana no coração do mundo muçulmano".13

Outra função de igual importância era a adoção da sharia. Foram criadas instituições que colocavam os ulamas em igualdade de condições com as esferas militar e burocrática. Com a divisão das províncias em distritos, para cada um deles era nomeado um cádis que seria responsável pela execução da lei de acordo com a tradição islâmica. Os cádis também eram responsáveis pela emissão de ordens e proclamações do sultão e dos governadores.

Tanto o risco de uma invasão pela Rússia, Áustria e Irã quanto o anseio pela expansão do território na Europa Oriental e Central, consumiam os recursos do Estado que não empenhava parte de sua receita na criação de uma infra-estrutura mais eficiente. Sendo assim o império ficava cada vez mais deficitário em relação as potências européias, uma das razões pelas quais o império Otomano chegou ao fim no início do séc. XX.

Uma das possíveis explicações seria a crescente disparidade de poder nas esferas política e militar e consequentemente, econômica, fruto da penetração crescente de países como França, Grã-Bretanha e Rússia, ficando latente a falta de avanço tecnológico, em especial, nos armamentos de guerra para rechaçar a ameaça ocidental. Essa ameaça apresentava uma dupla conotação pois, afigurava-se uma questão tanto política quanto religiosa. Os países habitados por infiéis, ou seja, o mundo bárbaro, eram caracterizados como Dar al-Harb (Casa da Guerra), ao contrário da Dar al-Islam (Casa do Islã), o mundo civilizado onde predominava a lei do Islã sob um governo muçulmano. "O declínio dos otomanos, porém, deveu-se não tanto a mudanças internas, mas sim à incapacidade deles de acompanhar o rápido avanço do Ocidente em ciência e tecnologia, nas artes da guerra e da paz, e no governo e comércio".14

O império Otomano já havia guerreado inúmeras vezes contra nações européias mas em geral, estas disputas se davam de forma isolada. A particularidade da Primeira Guerra Mundial é o fato de que desta vez a Turquia estava imersa em um conflito que envolvia todas as grandes potências da Europa e, consequentemente precisava se posicionar frente aos blocos em disputa. O sultão acaba por optar pela aliança com a Alemanha, acreditando estar impedindo o avanço russo pois desde a derrota em 1774, que acarretou as condições desvantajosas do Tratado de Kuçuk Kaynarca, implicando na perda de território e de influência regional, assim como, da liberdade de navegação para os comerciantes russos, as relações entre os dois países era marcada por continuados conflitos.

Inicialmente as vantagens obtidas pela aliança com a Alemanha estavam concentradas no campo da transferência de tecnologia e financiamentos, mas com a derrota alemã em 1919 a Turquia sofrerá uma ruptura política única no mundo muçulmano ao fundar uma república turca independente.

Grande parte do território do império foi dividido entre a França e a Grã- Bretanha excetuando a região da Anatólia que permaneceu independente. Em outubro de 1918 os líderes da Juventude Turca perderam grande parte dos postos de poder com a indicação de um novo sultão, Mehmed Vahideddin que acabou por indicar Ahmed Izzet Pasa como o seu grão-vizir com a difícil tarefa de assinar um armistício. O território turco foi invadido por franceses e ingleses e em menor número, por italianos. A população local encontravase em péssimas condições, empobrecida e desesperançada e a cidade de Istambul, parcialmente destruída. Mas os rumos do país mudariam com a chegada de navios de guerra gregos em Izmir no dia 15 de maio de 1919. Embora os turcos houvessem aceitado a derrota para as potências européias, sentiram-se ultrajados com a chegada de antigos rivais. As manifestações começaram a florescer não só em Istambul mas em várias partes do país. No dia 19 de maio, o general Mustafa Kemal foi enviado para Izmir com a missão de desfazer os últimos regimentos do exército turco mas, na verdade, organizou um movimento de resistência com as tropas restantes. Conhecido como anatolismo, este movimento foi a base da reconstrução da Turquia, cuja força motriz estava no sentimento de nacionalidade. Com a vitória da resistência, Kemal Ataturk conseguiu através de tratados com a França, Inglaterra e Grécia não só a libertação total do território da Anatólia, já que as demais províncias começariam seus próprios processos de independência, mas também a extinção da influência estrangeira nos negócios de Estado.

A aceitação destas medidas era em grande parte resultado da ruptura empreendida por Ataturk através da secularização do Estado, ou seja, a separação entre religião e política estatal, adotando como parâmetro os moldes europeus. A legislação também sofreu modificações drásticas com a adoção do código civil suíço e do código penal italiano.

Neste caso o termo revolução será adotado para caracterizar as mudanças ocorridas na sociedade turca no ano de 1923. Em geral revoluções implicam em uma mudança brusca, em geral através de um golpe de Estado, sendo inaugurado um estilo de poder autoritário e com a cristalização da estrutura de apropriação, e ascensão de uma nova classe ao poder. Como presidente da Turquia, Mustafa Kemal adotou uma política ditatorial com o intuito de abolir instituições que orquestravam o califado. Uma das razões para o sucesso da revolução foi a cautela em relação às reformas adotadas, dessa forma, as mudanças ocorriam em intervalos moderados, impossibilitando uma oposição aberta, fator este que não impediu que houvessem tentativas de assassiná-lo. No entanto, os conspiradores foram descobertos e executados.

A administração de Ataturk voltava-se de certa forma, para responder aos anseios da população que ainda se recuperava dos efeitos da guerra, portanto, a ênfase estava no nacionalismo e não no desejo por liberdade e democracia, estes segundo Ataturk, viriam a posteriori.

Simbolizada pela mudança de capital de Istambul para Ankara um novo governo foi instaurado na Turquia, não mais baseado em uma dinastia ou império mas sim, estruturado nos moldes de uma república. Ao abolir o califado, o centro da ortodoxia religiosa também foi severamente modificado pois os juristas-teólogos foram destituídos de seus cargos de proeminência no processo de interpretação e implementação das leis. O kemalismo não era contrário a religião em si mas, à sua forma teocrática, acreditando que para haver o progresso fazia-se necessário uma estrutura democrática baseada nos parâmetros das potências ocidentais. Ao contrário do Irã pós-revolucionário, a idéia de modernização estava intimamente relacionada a ocidentalização, contudo a cultura local não deixou de ser valorizada e incentivada como marcas da identidade nacional. É preciso ressaltar porém que a idéia do que constitui propriamente a identidade de uma nação não é facilmente identificável, em razão de percepções distintas no interior da sociedade. Sendo assim, o ideário de uma identidade nacional homogênea, neste caso especificamente, refletiria a visão dos que se encontravam no poder neste momento específico da história turca.

O cerco aos líderes religiosos fecha-se cada vez mais apesar de movimentos de oposição. As vestimentas que simbolizassem o Islã foram proibidas a não ser para os que estivessem diretamente vinculados a alguma instância da vida religiosa. Em novembro de 1925 foi estabelecido um decreto em que os homens deveriam adotar as vestimentas ocidentais, ou seja, terno e chapéu. As mulheres, por sua vez, não mais usariam os véus, ocorrendo um processo de ‘unveiling’.15

Segundo Ataturk, "eu já presenciei mulheres cobrindo os rostos com um pedaço de pano ou toalha, quando um homem passa por perto. Qual é o significado deste comportamento? Senhores, as mulheres e jovens de uma nação civilizada podem adotar esta postura bárbara? É um espetáculo que ridiculariza a nação e precisa ser modificado imediatamente".16 Apesar da percepção do véu como um elemento culturalmente retrógrado, as mudanças nesta esfera deram-se de forma tímida, em especial no interior do país e nas áreas rurais. A tentativa de romper com determinados costumes a curto prazo não foi bem sucedida, vindo a ocorrer gradativamente, isto é, paralelo a adoção de um modelo democrático, efetivado realmente em 1950 com eleições pluripartidárias.

As mudanças no estatuto da mulher foram significativas. A poligamia foi considerada ilegal e percebida como grande empecilho para à liberdade e dignidade feminina, sendo instituído o casamento e o divórcio como um ato de escolha pessoal, assim como, o estabelecimento de direitos iguais para homens e mulheres. Outro aspecto marcante dessa mudança foi a permissão para a mulher muçulmana casar com um não-muçulmano. A religião também foi caracterizada como uma escolha individual e as minorias religiosas, como cristãos e sufis (interpretação mística do Islã), passaram a ser reconhecidas. A reforma educacional foi uma arena de especial importância para o crescente engajamento feminino, e as escolas estrangeiras viram-se com uma grande demanda por vagas.

Associações e clubes formados unicamente por mulheres foram estabelecidos, o que gerava um espaço privilegiado para debates e reivindicações. Em 1929 a União Turca de Mulheres enviou uma petição ao governo exigindo não só o direito de voto em eleições municipais mas paralelamente o direito de se candidatarem. Este direito foi concedido em 1934 e um ano depois já haviam 17 deputadas. No entanto temerosos de que a União Turca de Mulheres viesse a se tornar um partido político, o governo aboliu a União em abril de 1935 com a justificativa de que o seu propósito já havia sido efetivado. Este acontecimento demonstra que as mudanças estavam inegavelmente ocorrendo, mas estas se dariam de forma controlada pelo Estado com o intuito de evitar, pelo menos em seu estágio inicial, uma nova ruptura.

No ano de 1925 foi aberto às mulheres a possibilidade de se tornarem juízas. Em 1933 já havia também uma série de mulheres com o cargo de professoras na Universidade de Istambul, e a primeira a receber um diploma universitário foi Halidé Edib. É conhecida internacionalmente por seus trabalhos acadêmicos e romances e foi professora de literatura ocidental, vindo até mesmo assessorar o presidente Kemal Ataturk em uma série de atividades voltadas para as questões sociais.

As análises referentes ao período revolucionário na Turquia são variadas, pois por um lado buscou-se instaurar uma república mas, ao mesmo tempo, esta foi efetivada de forma ditatorial e com forte repressão aos dissidentes, em especial, grupos ligados aos califas e religiosos. Inegavelmente para as mulheres foi um passo importante para romper com a tradição religiosa que privilegiava uma interpretação excludente acerca da participação feminina nas esferas de poder e limitava a sua atuação em grande parte à esfera doméstica.

Assim como a influência estrangeira possibilitou um maior contato com novas idéias como nacionalismo, liberdade e igualdade, movimentos feministas ocidentais também deixaram suas marcas, mas neste período ainda eram incipientes. Um maior intercâmbio de idéias é possibilitado com a crescente inserção da mulher na academia e consequentemente, na opção desta em estudar em universidades estrangeiras. Segundo Bernard Lewis,

"independente das diferentes percepções que cada um possa apresentar sobre a revolução turca, é indiscutível que o kemalismo trouxe nova vida e esperança para a população, reestabelecendo as suas energias e respeito próprio, levando-os em direção não só à independência, mas a algo muito mais raro e precioso, a sua liberdade".17

Estudo de Caso: Irã

O governo do monarca Reza Pahlevi, que assumiu o trono em 1941 logo após a invasão dos britânicos e soviéticos, foi marcado pela tentativa de conciliar a forte influência estrangeira paralela as pressões internas de movimentos nacionalistas. O pomo da discórdia estava centrado no petróleo pois havia uma forte pressão britânica que almejava o monopólio da produção petrolífera enquanto os movimentos internos lutavam pela sua estatização.

Essa disputa, porém, foi herdada do então monarca Muhammad Ali da dinastia Qadjar (1794 - 1925) que foi posteriormente interrompida com o apoio dos ingleses. A deposição da dinastia foi liderada pelo pai de Reza Pahlevi, Reza Khan em 1925. A origem, no entanto, remonta ao ano de 1901 quando o explorador inglês William D’Arcy firmou contrato com Mazufar ad-Din Xá (pai do Muhammad Ali) para pesquisar e industrializar o petróleo no Irã pelo período de 60 anos. Essa concessão acarretou na criação da Anglo-Iranian Oil Company. Apesar de diversas tentativas o petróleo só foi efetivamente encontrado em 1908 na província do Huzistão. Em 1914 com a deflagração da Primeira Guerra Mundial o "ouro negro" transformou-se de fundamental importância para o exército inglês que estava no processo de substituição do carvão como combustível.

Mas, antes de iniciados os conflitos na Europa, havia grande instabilidade interna no Irã devido a movimentos nacionalistas. Em 1909 Muhammad Ali havia sido deposto entregando o poder ao seu filho Ahmad Mirza com apenas 11 anos mas não abandonou totalmente o poder atuando nos bastidores das decisões políticas. Nessa nova configuração a Inglaterra encontrou terreno propício para a queda da dinastia Qadjar. Em 1921 o comandante das tropas britânicas, o general Ironside, aconselha ao monarca a nomear para a chefia da Legião dos Cossacos (unidade mais poderosa do exército) o general Reza Khan, militar fiel aos interesses ingleses, que em 1925 liderou o golpe de Estado e assumiu o poder no mesmo ano.

Em 1926 foi coroado xainxá (rei dos reis) adotando o nome de Reza Khan Pahlevi. Este, por sua vez, mostrava-se mais favorável a república cujo grande modelo era o governo secular instaurado na Turquia com Mustapha Kemal Ataturk em 1923. Esta revolução que será estudada no próximo capítulo caracteriza-se como um dos grandes marcos no mundo muçulmano pois acarreta no fim do Império Otomano, encerrando com a influência da religião nos negócios de Estado e promovendo mudanças estruturais na legislação e no sistema político.

Embora demonstrasse simpatias ao modelo político adotado na Turquia, mostrava-se reticente quanto aos resultados da Primeira Guerra Mundial, em especial pela invasão russa no país. Sendo assim adota uma postura pró Alemanha nazista e em 1935 substitui o nome do país, Pérsia por Irã, isto é, ariano, demonstrando ao 3 º Reich a origem pura da raça.

Em relação as medidas do seu governo sobressaem-se programas de reformas nos setores da educação e saúde, e uma modernização gradativa dos costumes impostos pela religião, como por exemplo em relação a condição feminina. Neste aspecto houve ações fortemente baseadas nas mudanças na Turquia. Na constituição iraniana de 1906 as mulheres encontravam-se na mesma condição dos loucos, delinqüentes e crianças. Com a mudança da constituição foi elevado o seu status para o de cidadãs, semelhante ao status dos homens.

Promoveu-se também a liberdade em relação ao uso do chador (véus que cobrem as faces). Em 1936 há a cerimônia do ‘unveiling’ com a convocação de parentes e amigos para presenciar um forte símbolo de emancipação feminina. "A idéia era tão absurda para as muçulmanas tradicionais, que elas simplesmente não conseguiam sair de casa vestidas de modo ocidental. Como era uma imposição do governo, algumas mulheres preferiram não mais sair de casa".18

Essas modificações iam de encontro aos interesses dos ulamas na manutenção da ordem religiosa como inibidora de ações reformistas que pudessem minar a sua influência e poder. Mas as condições políticas no cenário internacional acabaram por interromper temporariamente o processo de modernização. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial o Irã encontrava-se em uma posição delicada considerando a aliança com a Alemanha. Em 1941 os países aliados necessitavam passar por território iraniano para o envio de suprimentos para a União Soviética. No entanto havia a presença de técnicos alemães no país cuja justificativa era o auxílio no desenvolvimento econômico. Os aliados mostravam-se temerosos de um possível avanço até a Índia e ao Golfo Pérsico e resolveram tomar medidas pragmáticas. Neste mesmo ano o país foi invadido pelos ingleses e soviéticos que forçaram a abdicação do xá Reza Khan em nome do seu filho Reza Pahlevi, que estava na época, com 20 anos.

Devido em grande parte a sua formação no exterior Reza Pahlevi mostrava-se inclinado para adoção de idéias e hábitos ocidentais, fator esse que minimizava os receios dos aliados quanto a novas rupturas de relações com potências européias, vencedoras na Segunda Guerra mundial. O "Trono do Pavão", como ficou conhecido em razão de um estilo de vida sofisticado, foi marcado por fortes turbulências internas. Em grande parte mostrou-se inábil na conciliação dos interesses externos e internos, sendo visto como um instrumento nas mãos dos dominadores.

Durante a década de 50 o movimento que almejava a estatização dos campos petrolíferos torna-se a grande bandeira dos sentimentos nacionalistas. O líder era um político de 70 anos e inimigo dos Pahlevi em razão de seus vínculos com a monarquia Qadjar, Mahammed Hedayat, conhecido como Mossadegh. Sua trajetória política remonta ao ano de 1919 quando se opõe aos "ocupantes ingleses" e posteriormente assumindo postos de poder como Ministro das Finanças (1921), governador do Azerbaijão e Ministro do Exterior em 1923, dentre outros cargos.

Em 1925 foi exilado após ser preso duas vezes mas acabou anistiado em 1941 por Reza Pahlevi. Dois anos depois do seu retorno inicia campanha para a nacionalização do petróleo e cria o partido Frente Nacional. Em 1951 obteve sua primeira vitória. Foi aprovado no Parlamento por unanimidade a nacionalização da indústria petrolífera. Nesse mesmo ano foi nomeado primeiro-ministro com forte apoio da população que sofria as conseqüências da concessão para o governo britânico como a não transferência de tecnologia e a remessa de lucros para os países de origem acarretando em baixos salários e a não qualificação de profissionais locais. Nesse contexto é criada a National Iranian Oil Company, mas ainda ficavam sob dependência estrangeira nos processos de prospecção, extração e refino, em razão da falta de técnicos aptos para o uso do maquinário. Apesar de mantida a participação inglesa, o governo britânico rompeu relações diplomáticas com o Irã, ameaçando o país de nova invasão.

A indústria petrolífera começava a entrar em colapso após o boicote econômico inglês que impossibilitou que os petroleiros chegassem até as refinarias. A partir desse momento começa a haver descontentamentos internos dos setores ligados a indústria. Reza Pahlevi alia-se a elite iraniana para retirar Mossadegh do cargo de primeiro-ministro na tentativa de neutralizar um de seus maiores obstáculos políticos. Como Mossadegh manteve o apoio dos partidos e da população acabou por sair vitorioso. Em 1973 o xá começa a arregimentar outros setores descontentes como o clero xiita, que o acusava de infiltrar membros de esquerda no governo. Em plena Guerra Fria, Mossadegh é acusado pela CIA de ser o representante do Tudeh (PC iraniano).

A continuidade do sistema monárquico é garantida. O xá retoma o poder e dá início a um período discricionário. Criou a Savak (Organização Nacional de Informação e Segurança), cujos integrantes eram treinados pelos agentes da CIA, buscando dessa forma evitar o crescimento dos movimentos de esquerda, sendo dessa forma estabelecida uma aliança entre os Estados Unidos e o xá. A história moderna do Irã será, portanto, marcada pela interferência norte-americana que pretendia fazer do país um bastião contra a influência comunista na região.

A política externa para o Oriente Médio do presidente Nixon tratava de neutralizar a influência política da União Soviética que se tornara a principal fornecedora de armas e suporte técnico para grupos árabes radicais. Essa aliança representava não só uma maior proximidade com os Estados Unidos mas também com os países ideologicamente compromissados com valores democráticos e liberais. A idéia de que a liberdade depende acima de tudo das instituições democráticas tem norteado o pensamento americano até os dias de hoje. A maioria dos seus líderes está convencida de que os Estados Unidos tem a missão especial de difundir seus valores como contribuição à paz mundial.

No período inicial da república a opinião dominante era de que a nação serviria melhor à causa democrática praticando em casa suas virtudes. No entanto com Roosevelt a premissa passa a ser a de que os Estados Unidos tinham a obrigação de valer-se da força para triunfar. Além disso, os atores no palco internacional como o Irã, tiveram que lidar com pressões conflitantes geradas pela política externa da União Soviética, em especial pela proximidade geográfica acarretando em novos riscos de invasão. Assim, a década de 70 é marcada pelo esforço diplomático de Washington para bloquear a influência soviética no Oriente Médio, porém mantendo os seus canais de comunicação aberto com os russos. O Irã irá se posicionar de forma semelhante, com o objetivo de não sofrer represálias por ambos os lados. Curiosamente o xá irá acabar sendo deposto não pelas potências em conflito durante a Guerra Fria mas sim por movimentos nacionalistas.

Reza Pahlevi, ancorado na aliança com os norte-americanos e ingleses, deu início a um processo de ocidentalização em parte inspirado no modelo turco de laicização política, modelo esse também adotado por seu pai, Reza Khan. Foram realizadas melhorias no sistema educacional, o índice de analfabetismo baixou de 90% para 65%. Investiu também em hospitais, escolas, universidades, rede de estradas e sistemas de comunicação. Havia a intenção de desenvolver o país, mas mesmo com o alto índice de crescimento do produto interno bruto, este projeto foi inviabilizado devido a forte ênfase na compra de armas do exterior que com a falta de peças de reposição e a falta de know how para utilizá-las, logo ficaram obsoletas.19

A indústria automobilística também surgiu neste momento, assim como a tentativa de implementar a reforma agrária no país embora houvesse um contingente significativo de migração do campo para as cidades. Em grande parte esta afluência em massa era resultante da ausência de água e eletricidade nos campos.

Em relação a mulher este processo possibilitou maior participação política, instituindo o sufrágio em 1963. É notória a participação da irmã mais velha do xá, Ashraf, em questões de Estado. Em 1968 conduziu a Conferência dos Direitos Humanos promovida pelas Nações Unidas em Teerã. Foi delegada nas Nações Unidas na I Conferência Internacional de Mulheres no México em 1975 e esteve sempre ligada a ONU nas questões relativas aos Direitos Humanos. Este fator, no entanto, não caracteriza a adesão efetiva do Estado ao princípio de não violação dos direitos humanos.

"Mesmo assim as mulheres nunca tiveram tanta liberdade e importância no Irã. Mulheres eram eleitas para o parlamento, escolhidas como embaixadoras e até o Ministério da Educação em 1970 foi ocupado por uma mulher. Entre juízas e advogadas, contavam-se às centenas. O serviço militar era obrigado a aceitá-las por decreto".20

Neste momento o clero xiita, até então aliado do xá, mostrou-se profundamente insatisfeito com as modificações postas em vigor que objetivava diminuir a sua influência no cenário político. Em especial quando foi aprovado a abolição da grande propriedade em razão da reforma agrária. Os líderes xiitas eram os maiores beneficiários do regime feudal, recebendo doações e legados, aumentados com as contribuições dos fiéis. Imbuídos da moral e da fé atacaram a corrupção da família imperial. Com as taxas religiosas (zakat), o clero tinha dinheiro para financiar o movimento de oposição. Mas dos grupos opositores o principal era o Mujahidin, cuja base teórica voltava-se para um discurso socialista.

Apesar das mudanças em relação a condição feminina, em especial no âmbito do direito, grande parte dos membros que se opunham ao governo do xá eram mulheres. Uma das possíveis explicações é o fato de que a corrupção do governo e a pobreza da população iam de encontro ao apelo de liberdade e igualdade por parte das reivindicações de grupos da oposição. A princesa Ashraf, o grande modelo para as mulheres, passou a ser o principal alvo das críticas. Foi acusada de gastos milionários no exterior e envolvimento com o narcotráfico.

Em fevereiro de 1979 as manifestações nacionalistas no Irã chegaram ao ápice. O xá foi obrigado a abandonar o país e Khomeini regressou triunfante do exílio. Como alternativa vitoriosa aos modelos capitalista e socialista ocidentais, a Revolução Islâmica despertou entusiasmo em todo mundo muçulmano. Os fundamentalistas, apoiados nos Guardas da Revolução e na popularidade de Khomeini, excluíram do governo seus antigos aliados de esquerda e de direita. O pensamento político, religioso e social do Aiatolá influenciou decisivamente o processo revolucionário iraniano, maximizando a importância das particularidades locais e da religião para exaltar o elo de ligação com o passado, com a cultura percebida enquanto pura e fonte da própria identidade.

Como aponta Manuel Castells, "quando Khomeini aterrissou em Teerã em 1 º de fevereiro de 1979 para liderar a revolução, retornou como o representante do imã Nacoste, o Senhor do Tempo (wali al-zaman), no intuito de reafirmar a preeminência dos princípios religiosos".21

O retorno do aiatolá foi precedido por uma grave crise interna devido a paralisação da única indústria nacional, ou seja, a petrolífera. Com a greve se espalhando por diversos setores Reza Pahlevi via-se em uma situação cada vez mais insustentável apelando para o predomínio da violência. Diversas manifestações pró-Khomeini foram dissolvidas com a utilização de armas, deixando um saldo de mortos de centenas de pessoas. No final do ano de 1978, pouco antes do seu exílio, o xá optou por abandonar o trono deixando-o a cargo de Shapur Baktiar, um oposicionista moderado. Logo que assumiu o poder propôs a criação de um tribunal para julgamento e punição dos responsáveis pelo massacre dos manifestantes, a suspensão das exportações de petróleo para Israel, a permissão para o retorno de Khomeini do exílio, a liberalização da imprensa e a convocação de novas eleições. Essas propostas amenizaram os protestos da população e o trabalho foi parcialmente retomado na indústria.

No entanto, para os defensores de um estado verdadeiramente islâmico estas propostas não eram suficientes. Acreditavam que Baktiar era o "ultimo lacaio da monarquia e do imperialismo americano" pois também era apoiado pelos Estados Unidos que almejavam evitar uma república anti-Ocidente. Com o retorno de Khomeini, este declarou o Parlamento e o Governo ilegais, insuflando a população contra os Estados Unidos e os seus defensores, acarretou em uma saída em massa tanto de judeus quanto de americanos do país.

Outra medida adotada foi a instauração de um governo paralelo buscando forçar a renúncia de Baktiar. Essa postura teve um efeito dominó pois em diversas cidades do interior a administração foi assumida por partidários da revolução. As legislações passaram a ser substituídas pelo Corão, estabelecendo as bases para um governo verdadeiramente islâmico. O Governo e o Parlamento foram efetivamente dissolvidos no dia 11 de fevereiro de 1979. Uma das primeiras modificações com o novo governo foi a proibição de bebidas alcóolicas, a dissolução dos tribunais civis e o retorno da obrigatoriedade do uso do chador. Foram estabelecidos tribunais revolucionários islâmicos com o objetivo de punir os "traidores do Irã". Todos aqueles que houvessem participado ou defendiam o sistema monárquico foram executados. As mulheres que vendiam o corpo para sua sobrevivência foram também executadas por corromperem a pureza do Islã. O pudor muçulmano era tema central de muitos dos discursos do Aitolá, sendo assim, todas as atividades compartilhadas por homens e mulheres não ligados por laços familiares seriam consideradas ilegais, como os banhos mistos nas praias. O cinema, a televisão e as rádios foram proibidas de veicular imagens que ferissem os preceitos islâmicos, em especial cenas que remetessem de alguma forma a cultura "corrompida" do ocidente.

A república islâmica foi efetivamente instaurada no dia 1º de abril após as eleições. Bazargan, sucessor de Baktiar, havia proposto que as cédulas apresentassem três opções, isto é, teocracia, monarquia ou democracia. A terceira opção, no entanto, foi vetada por Khomeini para garantir a vitória da república islâmica. Logo depois uma nova constituição foi proposta para substituir a de 1906.

Paradoxalmente, as dissidências internas não demoraram a aparecer. Com a saída de empresas estrangeiras havia mais de um milhão de desempregados e segmentos da população mostravam-se descontentes com a falta de uma política eficaz para solucionar o problema. Outra questão complicada foi a atuação dos "Guardas da Revolução" que saíam pelas ruas procurando por infratores das leis islâmicas. Até mesmo membros da família do Aiatolá Teleghani foram presos, apesar de sua aliança com Khomeini. Segundo Rui Medeiros, "só não houve uma contra revolução porque o governo alimentava com o ódio aos norte americanos o espírito do povo, identificando a causa revolucionária com nacionalismo, patriotismo, salvaguarda da dignidade nacional e o fim da exploração estrangeira".22 Apesar das divergências políticas Khomeini irá permanecer no poder até sua morte em 1989.

O sucesso da revolução iraniana pode ser relacionado a três fatores, em geral ausentes nos países com tradição Sunni: 1) a mistura de idéias da tradição Shi‘i com o pensamento marxista entre os jovens radicais residentes nas áreas urbanas durante a década de 1970, 2) autonomia dos ulamas da tradição Shi‘i que, ao contrário do Sunni, possuíam um poder de influência significativa entre os setores sociais devido a sua constituição em um verdadeiro corpo religioso e 3) as expectativas escatológicas do Shi‘ismo popular acerca do retorno do décimo segundo imã. Por outro lado, o Ocidente e as elites de países muçulmanos perceberam a revolução como um ressurgimento do radicalismo conhecido como ‘fundamentalismo islâmico’.

Como demonstrado anteriormente, o processo de alteração das leis islâmicas é um processo complexo devido ao fato de ser baseado em leis divinas. Não obstante como o Corão não pode ser lido isoladamente e sim requer uma bibliografia secundária, assim também, como alguns de seus versículos apresentam um significado ambíguo, é possível vislumbrar mudanças na shariah. Neste aspecto há uma importante contribuição das escolas de direito que oferecem posturas distintas acerca da Shariah e do Hadith, não havendo um consenso acerca da condição irremediável de inferioridade da mulher.

Outro elemento complicador é o fato de que os mujahaddin são homens e na condição de juristas - teólogos são os responsáveis pela interpretação das leis e em muitos casos mostram-se pouco dispostos a enfocá-la de forma mais favorável à mulher, apesar da atuação de feministas, nas diversas áreas do conhecimento, para privilegiar uma perspectiva mais atualizada das leis islâmicas.

No Irã de Khomeini houve uma drástica mudança na condição da mulher. Fundamentado em um discurso da pureza inicial do Islã, buscava instaurar um governo semelhante ao período de Maomé. Como a influência estrangeira foi bruscamente criticada, qualquer forma de argumentação com traços ocidentais era vista como uma deturpação do legado do Profeta. Como afirmou Hobsbawm em Um Mapa da Questão Nacional a necessidade de estipular a idéia do inimigo, é central para marcar a diferença do ‘eu’ e do ‘outro’. Khomeini utiliza-se desse princípio constantemente, "nas atuais circunstâncias, em que os imperialistas, os governos traidores e tirânicos, os judeus, os cristãos e os materialistas se uniram para deformar as verdades do Islã e enganar os povos muçulmanos, temos, mais do que nunca, o dever e a responsabilidade de levar a cabo uma propaganda ativa e fazer vigorar as instituições válidas". Define com precisão aqueles que se enquadram na categoria de "fiéis" e "infiéis" determinando barreiras que separam-nos e impossibilitam a convivência harmônica. A idéia de destruição e aniquilação dos focos nocivos ao Islã está sempre presente.

Em relação a legislação aponta no início do Livro Verde que, "o governo islâmico é o governo de direito divino e suas leis não podem ser mudadas, modificadas nem contestadas". Continua, "o poder legislativo é exclusivamente detido pelo Santo profeta do Islã e ninguém, a não ser Ele, pode promover uma lei. Qualquer lei que não emane d’Ele deve ser rejeitada". E mais, "a lei corânica, que não é senão a lei divina, constitui a base de todo o governo islâmico e reina infalivelmente sobre todos os indivíduos que dele fazem parte. (...) no Islã governar significa unicamente pôr em prática as leis do Corão".23 Esse determinismo referendado na palavra de Deus impossibilita qualquer tentativa real de oposição aos princípios pré-estabelecidos, estagnando a evolução do direito e conseqüentemente a condição feminina.

"A lei dita de proteção à família, em vigor desde há algum tempo no Irã (menção a constituição de 1906), opõe-se radicalmente ao espírito islâmico. Foi votada pelas duas Câmaras ilegais, e toda mulher que, à sombra dessa lei, pôde obter o divórcio, é considerada como estando ainda casada. Todo casamento ulterior é um ato de adultério. Aquele que a desposar cometerá por sua vez adultério e deve ser punido segundo os regulamentos islâmicos. As crianças nascidas dessas uniões são ilegítimas e não tem nenhum direito a herança. Isso é válido para qualquer caso em que o tribunal tenha concedido à mulher o direito do divórcio contra a vontade do marido".24

Khomeini irá apresentar uma série de regulamentações para ações corriqueiras como o ato de comer e beber, da pureza e da impureza, da natureza da água, da ablução, e assim por diante. Em relação a mulher apresenta definições pormenorizadas acerca da menstruação, "durante a menstruação da mulher, é preferível o homem evitar o coito, mesmo que não penetre completamente, ou seja, até o anel da circuncisão, e que não ejacule. É igualmente desaconselhável sodomizá-la". 25 A menstruação é percebida como impureza não sendo recomendado tocá-la, ao mesmo tempo, esta não pode tocar no Corão ou ir à mesquita antes do término do fluxo menstrual e da realização de suas abluções.

Em relação ao casamento, adultério e relações conjugais, o direito institucionalizado do homem ao prazer é mantida, "de duas maneiras a mulher pode pertencer legalmente a um homem: pelo casamento contínuo e pelo casamento temporário. No primeiro caso, não é necessário precisar a duração do casamento. No segundo, deve-se indicar, por exemplo, se a duração será de uma hora, de um dia, de um mês, de um ano ou mais".26

A mulher muçulmana está impossibilitada de casar-se com um não muçulmano mas no caso do homem este poderá casar-se com uma judia ou cristã somente através do casamento temporário, isto é, meramente para exercitar seus desejos sexuais. Outra passagem significativa afirma, "a mulher que contratou um casamento contínuo não está autorizada a sair de casa sem a permissão do marido. Deve estar à sua disposição para todos os seus desejos e não pode se recusar a ele sem uma razão religiosamente válida. Se ela lhe for inteiramente submissa, o marido terá que lhe garantir o alimento, a roupa e o alojamento, tenha ou não meios para isso".27 A condição de inferioridade é reforçada primordialmente através do casamento devido ao fato de que o direito familiar é central na legislação islâmica pois, o núcleo da família é a célula social que representa a coletividade, é o espelho da sociedade no seu microcosmos.

Khomeini irá estimular o casamento de meninas de 9 anos, ao invés de como prescrevia a constituição anterior, após a sua puberdade. "É aconselhável ter pressa em casar uma filha púbere. Um dos motivos de regozijo do homem está em que sua filha não tenha as primeiras regras na casa paterna, e sim na casa do marido".28

A formação intelectual é percebida enquanto fator secundário. Segundo Khomeini não há uma necessidade real da mulher em ter uma profissão, considerando sua função nobre na sociedade de cuidar do núcleo familiar. O dever de garantir a sobrevivência material é a função dos homens. Como o sexo, a lascívia e a idéia de impureza perpassa as relação sociais, referências a situações que devem ser evitadas aparecem em todo o Livro Verde. "A mulher que desejar continuar os seus estudos, com o fim de ganhar a vida por meio de um trabalho decente e que tenha um homem como professor, poderá fazê-lo, se cobrir o rosto e se não tiver contato com os homens. Mas, se isso for inevitável e contrariar os princípios religiosos e morais, ela deverá renunciar aos estudos".29 O fardo do desejo sexual recai, na maioria das vezes, sobre as mulheres. Como afirmou Ali ibn Taled (fundador da facção xiita), "Deus – Todo Poderoso criou o desejo sexual em dez partes; então ele deu nove partes às mulheres e uma aos homens".30

Em relação ao corpus jurídico apresentado na nova constituição pode-se destacar os seguintes elementos: o objetivo da constituição é definido como a formatação pragmática dos ideais da revolução e também como um modelo para o alargamento da experiência iraniana para os demais países muçulmanos, na tentativa de estabelecer uma "comunidade mundial unificada". Em referência a mulher estipula, "a família é a unidade principal da sociedade e o centro principal de desenvolvimento e transcendência para a humanidade. (...) a mulher, como uma unidade da sociedade não mais será olhada como uma ‘coisa’ ou um instrumento que serve ao consumismo e a exploração. Ao readquirir o seu importante dever e papel tão respeitável e nobre de Mãe na educação de seres humanos conscientes, ela participará ativamente na existência pioneira, juntamente com o homem".31 É curioso como no artigo 3 º há a menção da garantia de criação e proteção de direitos para os indivíduos de forma igualitária perante a lei. Sendo que efetivamente este dado não ocorreu. No artigo 4 º é determinado que, "todas as leis e decretos civis, penais, financeiros, econômicos, administrativos, culturais, militares e políticos, etc. e no que respeita a recursos naturais devem basear-se em preceitos islâmicos. Este artigo tem absoluta e universal prioridade sobre todos os outros artigos da Constituição (...)".32

Segundo a Constituição o governo é obrigado a garantir os direitos das mulheres de acordo com os preceitos islâmicos, isto é:

1. Criar condições favoráveis ao desenvolvimento da personalidade da mulher e defesa dos seus direitos materiais e espirituais;

2. Apoio às mães, especialmente no período de gestação, lactação e educação e proteção às crianças sem tutor;

3. Criação de tribunais competentes para a proteção da existência e continuação da família;

4. Criação de um seguro especial para as viúvas, idosas e pessoas sem qualquer espécie de assistência, e

5. Outorgar a tutela de crianças a mães dignas para benefício das crianças no caso de não haver tutor legal (de acordo com a lei islâmica).

Os artigos concernentes a mulher em geral tratam de questões voltadas para a família. Considerando que os poderes soberanos são o legislativo, executivo e judiciário, exercidos sob a supervisão dos dirigentes religiosos (imamate), sendo o presidente o elo de ligação entre os três é questionável o verdadeiro poder deste em efetuar mudanças que vão de encontro aos interesses do clero religioso. Como a constituição mostra-se conservadora com relação a modificações da tradição islâmica, rupturas substanciais não encontram espaço para serem implementadas.

Na realidade cotidiana as mulheres foram obrigadas a cobrirem-se de forma severa, e muitas optaram ao invés do uso do chador que facilmente poderia revelar partes do corpo proibidas, crime punível por açoitamento ou cadeia, passaram a vestir-se com rapoosh, uma espécie de sobretudo que poderiam abotoar e evitar constrangimentos. Devido aos altos preços do rapoosh, em oposição aos baixos salários, muitas mulheres manifestaram que deveria ser fornecido pelo governo já que era uma imposição. Assim mesmo não estavam imunes à repressão policial. Se porventura apresentassem botões muito coloridos, ou um decote considerado revelador logo seriam abordadas pela polícia religiosa e levadas para a delegacia (o período de encarceramento poderia chegar a 12 meses). Não só o uso de roupas condenáveis era considerado infração, o uso de esmalte, maquiagem ou o uso dos cabelos soltos também. O curioso é que muitos membros da Guarda Revolucionária (pasdaran) eram mulheres, e em geral mais velhas, que consideravam positivo o retorno a tradição islâmica, as mesmas que mostraram-se reticentes com as mudanças propostas pelo xá, como por exemplo, a cerimônia do "unveiling".

É importante perceber as percepções das mulheres variam enormemente, muitas acreditam estar colaborando para o estabelecimento de uma nação independente enquanto outras percebem as restrições como essencialmente negativas, frutos de uma sociedade dominada pelo patriarcalismo e desigual.

Outra medida adotada pelos Guardas da Revolução era a de que a mulher não poderia trabalhar fora sem o consentimento do marido, essa permissão seria necessária também para sair de casa ou mesmo comparecer ao funeral de um membro da família. Nas escolas deveria haver separação por gênero e as meninas foram banidas de determinadas áreas do conhecimento como agricultura e engenharia. Só recentemente as mulheres puderam voltar a estudar direito, mas continua vetado o acesso a função de juíza.

Em relação ao casamento a mulher não poderia mais tomar a iniciativa do divórcio e a custódia da criança foi garantida ao pai após os dois anos de idade. Caso o marido morresse a custódia então passaria para o avô paterno.

Adolescentes que estivessem em uma festa poderiam ser obrigadas a passar por um teste de virgindade. Caso fosse atestado a perda da virgindade poderiam escolher entre, 100 chibatadas ou casar-se com o homem que as estivesse acompanhando durante a festa. A República Islâmica apresentava uma abordagem particular para as virgens sentenciadas com a pena de morte sob acusações anti-islâmicas. Segundo a tradição muçulmana, acredita-se que assim como os mártires, as virgens iriam automaticamente para o paraíso, mas os clérigos queriam certificar-se de que essas meninas não iriam e obrigavam-nas a perder a virgindade através do estupro ou mesmo pelo casamento temporário com um dos guardas, conferindo um status legal a essa violação.

Em 1986 essa prática foi condenada pela Anistia Internacional e posteriormente interrompida. Devido a falta de registros fidedignos é incerto o número de adolescentes punidas com essa sentença mas nos primeiros três anos da revolução, vinte mil mulheres foram executadas. Khomeini estipulou que a idade mínima para a execução de mulheres seria de 9 anos enquanto para os meninos, 16.

Apesar da condenação severa à prostituição o número de prostitutas aumentou devido a condição econômica precária do país. A estratégia utilizada para burlar a lei é através do casamento temporário.

Esses exemplos ilustram que o discurso de Khomeini embora embasado na retórica da pureza religiosa, deturpou os seus ensinamentos, apresentando uma versão radical da tradição islâmica de forma a manter a sociedade iraniana devidamente sob os controles do clero religioso. A intenção era alastrar esse movimento pelos demais países muçulmanos. A proposta de uma "comunidade islâmica mundial" não aconteceu. Embora haja uma base religiosa comum este fator não é o suficiente para neutralizar divergências nos setores político ou econômico ou mesmo, amenizar rivalidades ancestrais, como no caso Irã-Iraque, por exemplo.

Conclusão

A experiência colonial marcou profundamente a formação dos Estados nacionais no mundo muçulmano. Em razão da diversidade de nações européias que buscaram delimitar suas próprias esferas de influência também são múltiplos os efeitos advindos dessa intervenção nos países do Oriente Médio. Considerando o enfoque deste trabalho, objetivou-se demonstrar os diferentes processos ocorridos na Turquia e no Irã, que não obstante são frutos de uma causa única, a chegada do Ocidente e a conseqüente interferência nos negócios de Estado.

A concepção de um Estado territorial delimitado geograficamente é recente na história dos países muçulmanos, pois embora considerassem as diferenças étnicas, lingüísticas e regionais, estavam ligados não só pela religião como fonte de identidade, mas também politicamente, através de um soberano único. O recorte realizado na região pelas potências européias deu-se de forma arbitrária e em grande medida, para resolver contendas entre si e, por isso em muitos casos não houve uma maior preocupação acerca das divisões realizadas e o impacto causado nas populações locais.

Dessa forma, a longo prazo, as tensões começaram a emergir entre os grupos étnicos e religiosos distintos, como por exemplo na Nigéria e no Paquistão, assim como entre os curdos que encontram-se imprensados entre o Iraque, Irã e Turquia. Apesar disso, curiosamente os movimentos resultantes dessas disputas não buscaram o retorno do Islã como razão de Estado, assim como, optaram por manter os limites territoriais impostos, sendo o discurso nacionalista o enfoque central das reivindicações.

Assim, os Estados muçulmanos pós-coloniais estruturaram-se de acordo com os moldes europeus através de uma elite ocidentalizada, ou seja, formada e influenciada diretamente pelos grandes centros de poder, e que acabou por introjetar o modus operandi do colonizador. Essa continuidade entre o período colonial e pós-colonial implicou em uma ruptura com os valores e princípios do Islã na esfera da política, fator este presente no kemalismo turco e no Irã pré-revolucionário. É importante ressaltar porém, que o Irã permaneceu, ao menos nominalmente, independente. As interferências estrangeiras deramse de forma indireta, através de líderes locais como no caso de Reza Khan e Reza Pahlevi.

Em razão dessa ruptura surge uma série de movimentos cuja linha de ação está centrada no ressurgimento religioso. No caso turco há o Partido Refah, enquanto no Irã foi efetivamente instaurado uma república islâmica. Os diferentes grupos acreditam estar representando as aspirações da população ao contrário dos políticos, que desvincularam-se das propostas muçulmanas e almejam basicamente o desenvolvimento interno e o fortalecimento do nacionalismo como elo de ligação entre o Estado e a população, minimizando a importância das diferenças sociais e crenças religiosas.

Em linhas gerais pode-se perceber como o ethos dos Estados pós-coloniais a correlação entre progresso e ocidentalização paralelo a idéia de secularização política em detrimento do Islã. Durante a Guerra Fria a divisão no cenário internacional entre os blocos capitalista e socialista também ocasionou um impacto no mundo muçulmano, pois alguns países optaram pelo alinhamento com a União Soviética enquanto outros, com os Estados Unidos. Mas de qualquer maneira, independente dessa escolha, internamente a religião era compreendida como subordinada ao Estado, e consequentemente às suas propostas de desenvolvimento. O Irã e a Turquia posicionaram-se a favor dos norte-americanos, o que no primeiro caso levou a uma forte infiltração da CIA com o objetivo de tornar o país em um bastião contra o comunismo. Os descompassos políticos gerados a partir dessa intervenção, acabaram por levar a uma crise interna culminando na revolução de 1979. No caso turco o alinhamento não provocou maiores conseqüências, apenas manteve a política nacional de crescente ocidentalização e sendo assim, fortalecendo os movimentos dissidentes internos.

Segundo S.V.R Nasr,33 a proposta dos governos muçulmanos é desenvolverse através da ummah, ou seja, rejeitam as influências do estado secular e da cultura ocidental, mas concordam com a proposta de se promover o desenvolvimentos social. Este é o grande desafio, e o mesmo ocorre com a questão feminina. Ambos os casos, Irã e Turquia, materializam uma disputa que é essencialmente ideológica mas, que terá uma importância significativa na definição dos projetos políticos, econômicos e sociais, assim como na implementação de um sistema jurídico que institucionalize esse projeto.

Em vista do objetivo central deste trabalho, buscou-se demonstrar quais seriam os reflexos das escolhas políticas em relação ao status da mulher muçulmana. Pode-se inferir, portanto, que a partir da caracterização dessas disputas como fundamentalmente ideológica, a posição que a mulher ocupa nessas respectivas sociedades está diretamente vinculada ao projeto político e, em segundo plano, ao microcosmo representado pelas relações sociais cotidianas e pela força da religião como fonte de identidade. Não havendo, dessa forma, uma resposta única que abarque a complexidade de fatores que implicam na definição da condição da mulher muçulmana.

 


1 A palavra fundamentalista é normalmente associada aos muçulmanos que visam implementar um estado islâmico, seja através de revoluções ou atos terroristas. No entanto, a origem do termo fundamentalista tem origem cristã. Para Castells, a utilização do termo fundamentalista para designar as ações de grupos islâmicos, "as raízes sociais do fundamentalismo radical parecem resultar da combinação entre a modernização bem-sucedida, conduzida pelos Estados nos anos 50 e 60, e o fracasso da modernização econômica na maioria dos países muçulmanos durante os anos 70 e 80, uma vez que suas economias não conseguiram se adaptar às novas condições impostas pela concorrência global e a revolução tecnológica no período. Assim, uma população jovem, urbana e com elevado nível de instrução, como resultado da primeira onda da modernização, teve suas expectativas frustradas, pois a economia não pôde se sustentar e novas formas de dependência cultural foram instituídas" (Castells, 1999 [(2000), O Poder da Identidade (vol.II), São Paulo, Paz e Terra, p.:35]). Os meios adotados para expressar o descontentamento variam de acordo com as instituições políticas presentes nos respectivos países em que os movimentos de contestação (denominados como fundamentalistas) ocorrem.

2 Freund, J. (1975), Sociologia de Max Weber, Rio de Janeiro,: Forense Universitária.

3 Lewis, B (1996). O Oriente Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, p.203.

4 Corão (1979), Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 4:59.

5 Ibíd, 4: 23.

6 Mohammad Hashim Kamali é professor de direito internacional islâmico na Universidade da Malásia.

7 A tradição Shi‘i, no entanto, apresenta uma doutrina intermediária entre os limites e as possibilidades da ação humana, isto é, a doutrina da escolha (ikhtiyar). Apesar de considerar Allah como o todopoderoso e justo não implica no fato de que o ser humano deve se resignar por completo e não fazer nada para interferir em seu destino. Segundo esta perspectiva a imutabilidade das determinações divinas é somente na esfera da universalidade, na noção do todo. A relação na esfera pessoal implica em escolhas contínuas entre o bem e o mal, na opção por alternativas eticamente corretas. Sendo assim o destino de cada ser humano é traçado a partir de uma interação constante entre as opções delineadas por Allah e as escolhas pessoais. As escolhas, portanto, são feitas livremente, mas as opções são divinamente determinadas. Ao contrário da tradição Sunni que não opera com esse mesmo conceito de ‘doutrina da escolha’, o fiel encontra-se restringido às designações divinas.

8 Período precedente a expansão islâmica.

9 Ruthven, M. (1997), Islam: a very short introduction, Oxford, Oxford University Press.

10 Corão (1979), Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, IV: 34-44.

11 Ruthven, M. (1997), Islam: a very short introduction, Oxford, Oxford Unviversity Press, p. 116.

12 Ahmed apud Goodwin, J. (1995), Price of Honor: muslim women lift the veil of silence on the Islamic world, New York, Plume Book, p. 46.

13 Hourani, A. (2001), Uma história dos povos árabes, São Paulo, Companhia das Letras, p. 230.

14 Lewis, B. (1996), O Oreinte Médio: do advento do cristianismo aos dias de hoje, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, p. 258.

15 A cerimônia de unveiling, ou retirada dos veús, também ocorreu no Irã, durante o governo de Reza Khan no ano de 1936.

16 Ataturk apud Lewis, B. (1968), The emergence of modern Turkey, London, Oxford University Press, (tradução aproximada), p. 271.

17 Lewis, B. (1968), The emergence of modern Turkey, London, Oxford University Press, (tradução aproximada), p. 293.

18 Pinto, I. (1999), Descobrindo o Irã, Porto Alegre,: Artes e Ofícios, p. 80.

19 Este fator contribuiu para que os danos da guerra entre Irã e Iraque em 1980 fossem menores.

20 Pinto, I. (1999), Descobrindo o Irã, Porto Alegre, Artes e Ofícios, p. 80.

21 Castells, M. (2000), O Poder da Identidade (vol.II), São Paulo, Paz e Terra, p. 35.

22 Medeiros, R. (1981), A revolta dos turbantes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 209.

23 Khomeini, A. (1980), O livro verde: dos princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos, Rio de Janeiro, Record, pp. 17,18.

24 Ibíd, p. 31.

25 Ibid, p. 93.

26 Ibíd, p. 97.

27 Ibid, p. 102.

28 Ibíd, p. 108.

29 Ibíd, p. 132.

30 Citado por Brooks, G. (1995), Nove partes do desejo: o mundo secreto das mulheres islâmicas, Rio de Janeiro, Gryphus.

31 Khomeini, A. op. cit, p. 12.

32 Ibid, p. 23.


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