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Memoria y Sociedad

Print version ISSN 0122-5197

Mem. Soc. vol.17 no.35 Bogotá June/Dec. 2013

 

Apresentação: políticas da memória e usos públicos da história

Sebastián Vargas Álvarez

Programa de História, Escola de Ciências Humanas, Universidade del Rosario. Departamento de História, Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Javeriana. Atualmente doutorando em História na Universidade Iberoamericana, México D.F. Correo: legionesdeclio@gmail.com


As políticas da memória referem-se aos discursos e práticas por meio das que é decidido quem, como, quando e em quais condições escolhe-se o que a sociedade deve lembrar e o que esquecer. Estas eleições são materializadas e evidenciadas nos usos que publicamente (na escola, o espaço público, as comemorações rituais, os museus, monumentos e outros "lugares da memória") se fazem da história como relato identitário legítimo da comunidade. Estas políticas da memória estão constantemente em disputa, os diversos atores sociais procuram estabelecer como hegemónica a sua própria memória e resistem-se aos esquecimentos e silêncios a que eles ou seus antepassados foram submetidos, e, como resultado, os usos que se fazem da história estão sujeitos a constante resignificação e transformação.

A memória coletiva como problema das ciências sociais e humanas encontra-se já presente na obra de alguns pensadores na fronteira dos séculos XIX e XX, no entanto consolida-se nos anos vinte com a obra pioneira do sociólogo Maurice Halbwachs e do historiador da arte Aby Warbug. Embora não sejam usualmente reconhecidas dentro do cânone dos estudos de memória, as obras literárias de George Orwell A Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1949) são críticas implícitas das políticas da memória postas em marcha pelos totalitarismos do século XX. Em vez disso, Em busca do tempo perdido -escrita por Marcel Proust entre 1913 e 1922- é um referente amplamente reconhecido neste campo. No entanto, depois de 1950, ano em que Halbwachs publica A memória coletiva, seria abandonada a problemática da memória como campo de reflexão e pesquisa, até o seu resurgir nos setenta e auge nos oitenta, época em que tem lugar o chamado de boom da memória. Conhecido mesmo como giro ao passado ou giro subjetivo, o boom da memória é um fenómeno característico da segunda metade do século XX, surgido depois da Segunda Guerra Mundial e exacerbado nos anos setenta e oitenta pela crescente globalização do mercado capitalista e as indústrias culturais. Há duas tendências convergentes explicando este giro ao passado, especialmente sensíveis durante os anos oitenta: por um lado, a aceleração do tempo e a experiência histórica, a aparição de um novo "regime de historicidade" presentista a cuja sombra cresceu a preocupação pelo património e multiplicaram-se as comemorações e os "lugares da memória"; e por outro, a irrupção do testemunho da vítima/ sobrevivente de grandes eventos traumáticos, especialmente a Shoa na Alemanha, o Apartheid na África do Sul e as ditaduras militares na América Latina. Ambos os fenómenos contribuíram para o esgotamento da historiografia (nacional-oficial) como único relato válido, autorizado e possível sobre o passado.

Pesquisas e reflexões neste dossier

Esta edição de Memória e Sociedade apresenta artigos que abordam as relações entre memória, história e política em diferentes países iberoamericanos entre o século XIX e o século XXI, a partir de casos de estudo e reflexões teóricas. Estas pesquisas desde a história, as ciências sociais e enfoques transdisciplinares aportam, sim dúvida, aos debates atuais sobre memória social. Os artigos que compõem este dossier propõem diferentes eixos temáticos ou entradas analíticas para estudar os processos de elaboração da memória social. Marta Penhos reflete sobre a articulação entre imagem, verdade e temporalidade a partir da análise de imagens produzidas em diferentes momentos históricos: as gravaduras que ilustram o relatório da Viagem do Beagle a Terra de Fogo no início do século XIX, as fotografias de face e perfil que objetivam desde um olhar antropológico e criminalístico os indígenas da Pa-tagónia no contexto da campanha do deserto na parte final do século XIX, e as fotografias de cartão de identidade dos desaparecidos-detentos durante a ditadura militar argentina, resignifi-cadas por parte de organizações de direitos humanos, familiares e artistas. O texto enfatiza nas continuidades -de um registro temporal para outro- dos regimes de representação e os relacionamentos de poder que os sustentam; concretamente, evidenciam-se as conexões entre o projeto civilizatório imperial e nacional do século XIX e o terrorismo de Estado do século XX.

Por sua vez, as contribuições de Gabriel Samacá e María Gabriela Micheletti exploram as tensões políticas inerentes às comemorações rituais. Tanto no caso do Centenário da morte do General Santander (Colômbia, 1939) como no do Centenário de nascimento de Estanislao López (Argentina, 1886) são evidentes fenómenos como: o papel privilegiado atribuído aos heróis e grandes homens na historiografia e outros registros da memória nacional; as disputas entre a cidade capital, coração do Estado, e as elites regionais por estabelecer uma versão oficial da gênesis da nação e definir sua agencia histórica em tal processo; o papel experto e vigilante dos letrados congregados em diversas academias, associações científicas e comissiones comemorativas; a produção de objetos culturais como textos, monumentos e obras públicas, lugares e veículos da memória que acompanham as celebrações e reafirmam seu sentido; e, por fim, as contradições e contingencias das comemorações: a distância entre os planos da celebração e sua efetiva execução.

Os artigos de Jefferson Jaramillo e Carlos del Cairo, Camilo de Melo e Mónica Giedelman, e Óscar Rueda dão conta dos processos de musealização e patrimonialização associados com os objetos, práticas e símbolos que as sociedades decidem vao fazer parte do seu devir histórico e são constitutivos de sua identidade e valores culturais, pelo qual merecem se proteger, conservar e conhecer. O primeiro texto aborda o polêmico ingresso na coletânea do Museu Nacional da Colómbia de um objeto pessoal pertence de um famoso guerrilheiro, assim como a configuração de ecomuseus exóticos na Amazónia colombiana. O segundo apresenta interessante reflexão sobre as relações entre museu, memória e património, e socializa o projeto Girassol-Museu de Arqueologia e Etnologia da usp, levado a cabo recentemente em uma favela de São Paulo. Finalmente, o terceiro pega os planos de desenvolvimento departamental de Santander (Colómbia) como fonte para o estudo dos processos de patrimonialização e estímulo ao turismo histórico e cultural em marcha nesta região.

Outra das entradas analíticas propostas é o relacionamento da memória com o espaço, com o território. Junto com as comemorações, a maioria dos estudos que se ocupam das políticas da memória e os usos públicos da história partem desta relação entre memória e espaço, em especial no que tem a ver com os monumentos, memoriais, marcas territoriais e sítios históricos. Paolo Vignolo apresenta interessante aproximação do "lugar de memória" por excelência: o cemitério, a "cidade dos mortos", que funciona como espelho que reflete a história e as políticas culturais, identitárias e de memória da "cidade dos vivos". Especificamente, Vignolo adentrase na história do cemitério central de Bogotá e, sobretudo, a que parece se constituir na nova "avenida da memória", a Avenida del Dorado ou rua 26, para terminar remarcando a pertinência -no momento atual de construção de memória histórica e negociações de paz na Colómbia- do recém inaugurado Centro de Memória, Paz e Reconciliação.

Por outra parte, o artigo de Víctor Francisco Sam-Pedro Blanco, Bruno Miguel Carriço dos Reis e José Manuel Sánchez Duarte introduz-nos no problema da influência dos meios de comunicação na conformação da memória coletiva, especialmente em contextos de justiça transicional, busca de verdade histórica e reparação. Os autores rastejam as representações históricas do franquismo e a transição à democracia no seriado de televisão Cuéntame cómo pasó a partir de um trabalho de campo com questionários em trinta e dois grupos de discussão, que proporcionou a identificação de oito tipos diferentes de memórias frente a estes processos históricos, determinadas pela geração, o entorno sociopolítico e o grau de politização dos participantes. O último artigo do dossier, a cargo de Graciela Rubio, situa-se na problemática encruzada entre memória, justiça e perdão. A autora analisa os discursos sobre memória histórica presentes no debate público chileno durante a transição democrática, tomando como principais fontes primárias os informes das comissões da verdade histórica (Rettig, 1994 e Valech, 2004). Rubio aponta para a influência da cultura católica nos processos de elaboração de memória histórica no Chile e traça a inviabilidade do perdão como condição para a reconciliação, que corre o risco de se converter em impunidade, caso de não estar precedido pela garantia da justiça e a verdade. O presente número monográfico pretende ser (auto) crítico sobre as teorias e estudos da memória, discutir seu papel, enfoques e alcances, e, ante todo, procura lhes dar profundidade histórica, se aproximando da temática proposta desde uma perspectiva de longa duração, que permita articular o problema das políticas da memória e usos públicos da história com estruturas como a coloniali-dade ou o Estado nação e não exclusivamente a partir dos conflitos armados e traumas sociais dos séculos XX y XXI.