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Revista Historia de la Educación Latinoamericana

Print version ISSN 0122-7238

Rev.hist.educ.latinoam.  no.15 Tunja July/Dec. 2010

 

INTERFACES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
NO ENSINO SUPERIOR: OLHARES
PROSPECTIVOS SOBREAEDUCAÇÃO
COMUNITÁRIA PÚBLICA NÃO-ESTATAL
DE IDENTIDADE LUTERANA NO BRASIL
1

INTERFACES BETWEEN PUBLICAND
PRIVATE IN HIGHER EDUCATION:
PROSPECTIVE VIEWS ABOUT PUBLIC
COMMUNITY EDUCATION NON-STATE
OF LUTHERAN IDENTITY IN BRAZIL

 

Alvori Ahlert2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná -Brasil
Grupo de Investigação HISULA
alvoriahlert@yahoo.com.br

Recepción: 30/05/2010
Evaluación:11/07/2010
Aceptación: 10/11/2010
Artículo de Reflexión


RESUMO

O presente texto apresenta uma investigação bibliográfica sobre a relação entre o público e o privado na história recente do ensino superior brasileiro com o objetivo de um olhar prospectivo para a educação comunitária de identidade luterana. Apresenta-se uma análise de alguns referenciais de concepção de educação comunitária pública no contexto do ensino superior, que evoluíram para a compreensão de educação comunitária pública não estatal e seus significados e responsabilidades como uma interface entre o público e o privado em educação, cuja discussão é apresentada no terceiro momento deste texto. Com um olhar prospectivo, aponta-se para as potencialidades da educação pública não-estatal para o contexto das instituições identificadas com a identidade luterana.

Palavras-chave: Educação Comunitária, Educação Pública Não-Estatal, Identidade Luterana.


ABSTRACT

This paper presents a literature search on the relationship between public and private in the recent history of Brazilian higher education with the goal of a prospective outlook for community education of Lutheran identity. It presents an analysis of some references to the design of community education in the context of public higher education, which evolved into the understanding of community education non-State public and their meanings and responsibilities as an interface between public and private education. Whose discussion is presented at the third time this text. With a prospective outlook, points to the potential of non-state public education into the context of the institutions identified with the Lutheran identity.

Key words: Community Education, Public Education Non-State, Lutheran Identity.


INTRODUÇÃO

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma
do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos
mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos
ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa - Poeta e escritor português, 1888-1935

Este texto propõe um debate sobre a educação comunitária pública nocontexto da identidade luterana. É vastamente documentada e afirmada a contribuição da Reforma Protestante para o desenvolvimento educacional no Ocidente. Embora Lutero não tenha especificado uma concepção de educação nos seus textos, pois estava profundamente preocupado em primeiro lugar com a formação de pessoas para a vida eclesiástica, sua visão comunitária levou-o a posicionar-se também sobre a formação geral, fazendo com que seus posicionamentos impactassem decisivamente a educação no início da Modernidade. Referenciais de Lutero são encontrados em inúmeras obras sobre História da Educação como as de Franco Cambi (1999), Frederick Eby (1976), Mario A. Manacorda, (1989), Eliane Marta T. Lopes (1981), entre outros. Sua concepção de educação pública, universal e gratuita para quem não pode custeála é considerada como a contribuição mais importante na historiografia educacional. Por isso, acertadamente, Lorenzo Luzuriaga vê na Reforma a gênese da educação pública. "A educação pública, isto é, a educação criada, organizada e mantida pelas autoridades oficiais - municípios, províncias, Estados - começa, como dissemos, com o movimento da Reforma religiosa no século XVI." 3

Em primeiro plano Lutero entendia a educação como tarefa dos pais, mastambém como compromisso precípuo das autoridades em todos os níveis, porque, na sua concepção, nenhum pecado mereceria maior castigo do que deixar de educar uma criança.4 E educar bem as crianças significava ter uma estrutura social que garantisse este acesso indistintamente para todas elas, isto é, também para as crianças pobres ou para as crianças cujos pais não davam valor nenhum à educação. Daí ser necessário manter gente especializada para esta tarefa, gente mantida comunitariamente. E esta era, segundo Lutero, tarefa do Estado: garantir educação para todos.

Por isso certamente caberá ao conselho e às autoridades dedicarem o maior esforço à juventude. Sendo curadores, foram confiados a eles os bens, a honra, corpo e vida de toda a cidade. Portanto, eles não agiriam responsavelmente perante Deus e o mundo se não buscassem, com todos os meios, dia e noite, o progresso e a melhoria da cidade. Agora, o progresso de uma cidade não depende apenas do ajuntamento de grandes tesouros, da construção de muros, de casas bonitas, de muitos canhõese da fabricação de muitas armas. Inclusive, onde há muitas coisas desse tipo e aparecem alguns loucos, o prejuízo é tanto pior e maior para a aquela cidade. Muito antes, o melhor e mais rico progresso para uma cidade é quando tem muitas pessoas bem instruídas, muitos cidadãos sensatos, honestos e bem-educados. Estes então também podem ajuntar, preservar e usar corretamente riquezas e todo tipo de bens.5

Assim, temos em Lutero o início da escola público-comunitária, ou seja, uma escola que deve ser tarefa dos pais, da comunidade, do Estado e de quem pode financeiramente ajudar a mantê-la. Este fundamento histórico foi o impulso para o nascedouro de inúmeras escolas comunitárias que hoje constituem a Rede Sinodal de Educação.

A história da escola comunitária evangélica de confissão luterana confundese com a própria história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). A condição histórica que trouxe ao Brasil um contingente de imigrantes europeus no final do século XIX e início do século XX fez desembarcar neste continente, não somente milhões de corpos sedentos por uma oportunidade de vida, trabalho e dignidade, mas também um povo com uma cultura diferente, gestada por longa tradição para a qual a educação era tida como um pilar fundamental no desenvolvimento e na construção de riquezas que aqui vieram buscar.6

Hoje a Rede Sinodal constitui-se numa sólida rede de escolas comunitárias, sendo uma expressão da identidade luterana no contexto educacional brasileiro. E para se manterem fiéis à sua identidade luterana, precisam evoluir, cada vez mais, para a condição de escolas comunitárias públicas não-estatais.

Assim, para darmos conta de nossos objetivos com o presente texto, vamos inicialmente abordar a relação entre o público e o privado em seu momento históricomaisrecente.Aseguir iremos analisar alguns referenciais da concepção de educação comunitária pública no contexto do ensino superior, que evoluiu para a compreensão de educação comunitária pública não estatal, cuja discussão será apresentada no terceiro momento deste texto. E o quarto momento de nossa reflexão e análise será uma tentativa de um olhar prospectivo para essa idéia de educação pública não-estatal para o contexto das instituições identificadas com a identidade luterana.

1. O público e o privado em educação no Brasil

O contexto das grandes mudanças sociais engendradas pelo movimento neoliberal nas últimas três décadas do século XX trouxe, para a agenda empresarial, a educação como um grande negócio a ser explorado planetariamente, conforme já abordado anteriormente. Desta forma, o conceito privado em educação passou a adentrar na agenda educacional. Por um lado, crescente movimento nacional em defesa da escola pública e, do outro lado, as políticas públicas neoliberais, impulsionadas pela crise do Estado, implicaram a defesa da entrada mais agressiva do capital privado na educação.

Dirce Mendes da Fonseca desenvolveu importante pesquisa em torno deste tema no início da década de 90. Sua investigação buscou apreender a ideologia privatista desenvolvida pelo Conselho Federal de Educação. Essas reflexões trazem à tona o campo de discussão sobre o conceito privado em educação que marca as políticas educacionais das décadas de 80 e 90. Segundo Fonseca, os fundamentos da ideologia privatista situam-se na década de 60.

Após o Movimento de 1964, a elite dirigente procurou implementar um projeto comprometido com os interesses do setor privado da economia e com o fortalecimento de um dado padrão de desenvolvimento capitalista. Essa política tem vinculação orgânica com o quadro estrutural no qual se pautou o processo do desenvolvimento dependente brasileiro.7

O modeloeconômicogestado pelos governos militares demandou uma expansão da educação, sobretudo no ensino superior. Conforme Fonseca, esse processo de privatização doensino superior construídonas décadas de60, 70 e80 foiamplamente estudado por Vahl, 1980; Oliveira, 1984; Cunha, 1975, 1981 e 1986; Dias, 1982; Saviani,1985eMartins,1988.8 Neste período o ensino superior tornou-se objeto de um aguçado interesse da iniciativa privada. Um interesse que abriu caminhos ideológicos e legais para a entrada do capital privado no setor educacional. Este processo fez surgir conceitos próprios do privado em educação. Segundo Fonseca,

O sistema de ensino privado no Brasil apresenta variações quanto ao aspecto jurídico e quanto ao aspecto de propriedade. O sistema de ensino superior privado constitui-se de universidades, federações a estabelecimentos integrados e isolados. Da perspectiva da propriedade, as instituições privadas caracterizam-se em escolas leigas, confessionais (essas últimas pertencentes a grupos religiosos, protestantes, espíritas e outros) ou comunitárias. A personalidade jurídica dessas instituições denomina-se associação civil e fundação.9

Estes temas vão confluir numa disputa acirrada na discussão e votação da Constituição de 1988. A discussão introduziu a concepção comunitária de educação, centrando-se na criação e manutenção de escolas comunitárias para cobrir a ineficiência de escolas públicas e aprofundando a polêmica sobre educação pública, educação comunitária, confessional e privada.

Por um lado, as escolas comunitárias constituídas em regiões carentes de escola pública disputaram espaço no orçamento público para sua existência. De outro lado estavam as escolas particulares de ensino onde se agruparam as escolas privadas eas escolas comunitário-confessionais.Aforça representada pelo segundo grupo levou à aprovação da seguinte redação da Constituição de 1988:

Art. 213 - Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: - Comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; I - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.10

Esta concepção garante a possibilidade de o Estado destinar recursos para as escolas comunitárias, filantrópicas e confessionais. Com isso os setores envolvidos com educação passaram a buscar definições sobre que tipo de escola pode ser caracterizada como comunitária, questão na qual o Conselho Federal de Educação "lavou as mãos", repassando para os Conselhos de Educação a responsabilidade dessa definição. "A proposta da CNBB, AEC e Abesc define como instituições educacionais comunitárias as que atendem interesses da comunidade, compõem seus órgãos de gestão garantindo a presença de representantes da comunidade e preenchem as exigências da Constituição Federal."11

Para Sposito e Ribeiro, a proposta da CNBB eAEC fazia uma clara distinção entre a escola comunitária e as escolas comunitárias confessionais e filantrópicas. Enquanto que, para as comunitárias, se exigem os princípios da gestão democrática, para as comunitárias confessionais se garantiria uma autonomia plena apesar de poderem receber recursos públicos.12

Também a Igreja Evangélica de Confissão Luterana - IECLB, através de seu Departamento de Educação e de seu Conselho de Educação, promoveu uma discussão para posicionar-se diante das questões referentes à educação no texto constitucional em construção naquele período. No Documento Final do XVI Congresso Nacional de Professores da Escola Evangélica, realizado em julho de 1986, a agremiação das escolas reivindica que o texto constitucional garanta "[...] a continuidade do pluralismo como forma de viabilização do direito de escolha entre escola estatal e comunitária". (IECLB, 1986, p.17) E, quanto ao financiamento da educação, o Estado "[...] repasse verbas à escola comunitária de 1o ao 3o grau".13

O Projeto de lei de Diretrizes e Bases de 1990, no seu artigo 18, definiu as instituições em públicas e privadas.As públicas administradas pelo poder público e as privadas, administradas por entidades jurídicas ou pessoas físicas de direito privado, porém, com uma nova subdivisão:

[...] comunitárias, quando criadas com ou sem a interveniência do Poder Público, são organizadas, mantidas e administradas por associações comunitárias, cooperativas ou sindicatos e têm por objetivo o atendimento de necessidades educacionais da comunidade; confessionais, quando organizadas e mantidas pelas diversas denominações religiosas, reconhecidas pelos respectivos conselhos ou federações de Igrejas, prestam serviço pedagógico em cumprimento de sua missão específica; filantrópicas, quando cumpridos os requisitos exigidos por lei, dedicam-se a suprir carências educacionais específicas e oferecem ensino gratuito na proporção das doações e subvenções recebidas do Poder Público, ainda que sob a forma de bolsas de estudo.14

Ainda, segundo a autora, é neste contexto que uma nova categoria passa a intermediar a discussão sobre a distinção entre educação pública e educação privada. Trata-se do conceito de educação comunitária.15

Acreditamos que aqui começa um equívoco no contexto da discussão sobre o público e o privado em educação. Conforme vimos acima, a idéia de educação comunitária remonta às próprias origens da educação no Brasil. Não se trata, portanto, de um conceito novo em educação, mas talvez de um conceito não suficientemente considerado pela historiografia da educação, ou tratado de forma parcial e preconceituosa.

O mesmo equívoco está presente na análise de Sposito e Ribeiro, para quem a concepção de escola comunitária nasce a partir da organização de pequenas escolas nas periferias das grandes cidades na década de 70, portanto, somente num processo de urbanização já consolidado.

Num levantamento bibliográfico não exaustivo sobre Escolas Comunitárias, conseguimos recolher um material que diz respeito, prioritariamente, a pequenas escolas criadas por iniciativa de moradores de bairros carentes das cidades, como alternativa de escolarização para a população de baixa renda excluída das redes públicas de ensino. Essas "escolinhas", trabalhando basicamente com ensino pré-escolar e com a alfabetização de crianças, jovens e adultos, vêm se expandindo desde a década de 70, notadamente em algumas capitais do Norte e Nordeste e no Rio de Janeiro. Elas funcionam em Centros Comunitários, sedes de Associação de Moradores ou ainda em locais cedidos por algum morador ou igreja local. Comportam em média duas ou três turmas por período, crianças nos períodos diurnos e adultos à noite.16

Esta forma de organização de escolas comunitárias ganhou notoriedade quando pesquisadores começaram a analisá-las sob o aspecto de seu significado social, de sua viabilidade no sentido de atender, de forma diferenciada, as classes populares onde a escola pública ainda não chegava com seu compromisso de uma educação de qualidade democratizada. Entretanto, ela está ancorada na dependência de verbas públicas e de recursos de fundações e organizações não-governamentais (ONGs), dados contextos sociais onde estão inseridas.

As agências através das quais essas escolas têm conseguido apoio são, principalmente, as secretarias municipais ou estaduais, de Educação ou Assistência Social, além da Fundação Educar para a educação de jovens e adultos. São citados também, participando menos expressivamente, o extinto Projeto Interação Básica em Diferentes Contextos Culturais, a Cohab, a Funabem, a Fundação Brasileira de Educação (Fumbrae), a LDB, associações comerciais, empresas privadas, além de agências estrangeiras ligadas a instituições religiosa.17

Antes da LDB 9394/96, as escolas comunitárias não se subordinavam aos órgãos normativos ou administrativos educacionais, mas foram desenvolvendo embrionariamente experiências de gestão pedagógica e administrativa democrática.

Entretanto, o conceito de escola comunitária carrega vários sentidos. Nestas várias faces da escola comunitária existem exemplos que se constituíram numa importante força educacional. Trata-se da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC).

Essa instituição teve sua origem em l943, quando um grupo de estudantes de Recife lançou um movimento filantrópico denominado Campanha do Ginasiano pobre. A campanha objetivava a criação de ginásios gratuitos para jovens que não tinham condições de freqüentar ginásios particulares, numa época em que a oferta nesse grau de ensino era praticamente inexistente. A Campanha se expandiu pelo país; a partir de 1952, reestruturou seus métodos de ação, delegando às comunidades locais o financiamento das unidades de ensino. Em 1953, passou a receber subvenções do Governo Federal. A rede CNEC oferece o ensino correspondente ao antigo ginasial (asquatroúltimassériesdo 1ograu)e cursosde 2o grau, regular,e supletivos, principalmente em municípios do interior, onde a oferta do Estado nesses níveis é deficiente. Em l987, a CNEC possuía uma rede de 1270 escolas espalhadas por 970 municípios, atendendo a 437 mil alunos.18

Importante diferencial no contexto da educação comunitária são as experiências no ensino superior. Existe um significativo número de universidades comunitárias de origem e controle confessionais, entre as quais, as mais expressivas são as universidades católicas brasileiras, com destaque para as PUCs, a Universidade Presbiteriana Mackensie (em São Paulo), e a Universidade Metodista de São Paulo. Mas talvez as experiências mais significativas sejam as do território do Estado do Rio Grande do Sul, onde as mais representativas deste conceito são: a Universidade Regional do Noroestedo Estado do RS (UNIJUÍ), a Universidade de Caxias do Sul (UCS) e a Universidade de Passo Fundo (UPF), Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Universidade Regional Integrada (URI), Universidade Regional da Campanha (URCAMP), Universidade do vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bem como os Centros Universitários, como, por exemplo, a UNIVATES do Vale do Taquari, o La Salle, de Canoas, etc.

A universidade de Caxias do Sul é mantida por uma Fundação que reúne o governo federal, estadual e municipal, a Mitra Diocesana, a Câmara da Indústria e Comércio e a Sociedade Hospitalar Nossa Senhora de Fátima. A Universidade de Passo Fundo originou-se do consórcio de duas instituições: o Consórcio Universitário Católico, constituído pela Diocese de Passo Fundo e por um grupo de entidades católicas, e a Sociedade Pró- Universidade de Passo Fundo, integrada por profissionais liberais. Atualmente é mantida por uma fundação cujo patrimônio figura como "da comunidade". Ou seja, a entidade é absolutamente despersonalizada, sem dono ou proprietário. Assim, os acréscimos ao patrimônio são considerados acréscimos ao patrimônio público, o que, segundo o documento da própria Universidade, diferencia esta Fundação sem fins lucrativos, embora não se faça referência explícita aos seus integrantes, bem como ao patrimônio.19

Com isso não se afirma que todas elas são exemplo de gestão democrática e exercem sua condição de comunitariedade, na qual todos os concernidos têm vez e voz. Certamente há várias dentre estas que se tornaram efetivamente empresas, cujo objetivo primordial é a expansão e o lucro. Entretanto, por tudo isso acima descrito, não é possível negar experiências bem mais amplas e legítimas em educação comunitária, o que muitas vezes não é considerado em educação. Por isso é necessário polemizar o comunitário para além de um passado recente.

Fonseca vê na posição histórica da Igreja em dividir com o Estado a tarefa da escolarização um viés que tem sustentado a presença da iniciativa privada na educação. Na medida em que ela (a Igreja) defende sua perspectiva pública de educação confessional, ela estaria sustentando o espaço para que uma tendência do empresariado invista na educação como negócio. Assim, a autora entende que esse papel da Igreja tem contribuído para a privatização da educação."A privatização do ensino tem como componente a força do segmento confessional que passou a ter seus interesses representados pela Federação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Fenen), entidade que engloba o ensino privado, no Brasil."20

No nosso entender, a questão da polêmica sobre o comunitário na educação perpassa o entendimento sobre o conceito de comunitário. Embora não desejando examinar a exaustão o conceito de comunidade, Sposito e Ribeiro afirmam que a idéia de comunidade constitui sua força no pensamento conservador do século XIX como um elemento constitutivo do pensamento conservador.21 Isso significa que a burguesia cooptou esse conceito para justificar o seu enriquecimento.

Por outro lado, o pensamento pedagógico mergulhou o seu significado em ambigüidades, "[...] ora utilizando-a como modelo de análise de situações educativas que tende a obscurecer o conteúdo real das relações sociais marcadas pela diferença, pelos conflitos e antagonismos."22

Silva compartilha deste entendimento a partir do que denomina de "[...] processo de metamorfose dos conceitos que acompanha as transformações políticas, sociais e econômicas da atualidade".23 Para a autora, o conceito de comunidade veio experimentando ressignificações ao longo século XX, decorrentes dos processos de urbanização e instrumentalização que desnudaram o Estado diante de sua incapacidade de controle e segurança social nos grandes centros urbano-industriais, obrigando a população a organizar sua vida social e política.

Esta visão teria sido combustível para o pensamento liberal e neoliberal do último século, cabendo à população resolver seus próprios problemas. E isto também vale para as políticas públicas. Segundo Silva24, a idéia de educação comunitária está presente no discurso do Estado brasileiro desde a década de 40, quando o Estado tem chamado as comunidades organizadas a assumirem tarefas educacionais.

No entanto, não podemos assentar esta discussão apenas nos meados do século XX.25 A educação confessional foi uma das primeiras experiências em educação no Brasil, e ela permitiu um importante desenvolvimento cultural em distantes regiões que o Estado não alcançava com suas políticas educacionais e sociais. No nosso entender, em educação, o envolvimento comunitário é muito anterior ao afirmado por Silva. A participação comunitária em educação é histórica e, portanto, é legítima no contexto nacional até que a sociedade civil conquiste um Estado que esteja sob o controle da sociedade e possibilite educação de qualidade de forma universalizada. Segundo Paulo Freire,

Os grupos populares certamente têm o direito de, organizando-se, criar suas escolas comunitárias e de lutar por fazê-las cada vez melhores. Têm o direito inclusive de exigir do Estado, através de convênios de natureza nada paternalista, colaboração. Precisam, contudo, estar advertidos de que sua tarefa não é substituir o Estado no seu dever de atender às camadas populares e a todos os que e as que, das classes favorecidas, procurem suas escolas.26

2. Educação comunitária pública não estatal - o caso do ensino superior

Uma das contribuições pioneiras para este debate encontra-se nas reflexões de Walter Frantz, ex-presidente da Mantenedora da Universidade Regional doNoroeste do Estado do Rio Grande do Sul -UNIJUÍ e ex-reitor da instituição. Para ele, a universidade comunitária é uma organização pública não-estatal, que veio preencher um vácuo regional na questão do ensino superior. Na ausência do Estado em proporcionar ensino superior na região, a comunidade regional assumiu este compromisso. Para ele, esta organização não pode ser confundida com um organismo privado de educação. "A organização de espaços comunitários, na área da educação, não deve ser entendida como uma iniciativa de privatização do espaço da educação, mas de um esforço pela construção de novos e ampliados espaços públicos de educação."27

Apoiado na pesquisa de inúmeros autores e nas experiências próprias como dirigente da instituição, Frantz reclama, primeiramente, uma clara distinção entre o privado e o comunitário e, em seguida, reivindica também uma distinção entre comunitário e confessional. Entende o autor que há semelhanças entre o confessional e o comunitário, a ponto de a maioria dos autores, ao referirem-se às universidades comunitárias, julgarem estar falando de ambas.

Conforme já foi visto, iniciativas confessionais de longa tradição, na área da educação escolar ou na do ensino superior, em especial, também se autodenominam de comunitárias. Têm elas características comuns com as iniciativas comunitárias laicas. Por isso, os dois modelos de iniciativas são, comumente, chamados de comunitárias. A maioria dos autores as denomina de comunitárias, indistintamente.28

Frantz, porém, quer uma distinção, propondo denominar as universidades laicas de comunitárias para diferenciá-las das confessionais. Ele argumenta esta diferença com base na natureza de sua constituição.

Segundo ele, a natureza da instituição confessional estaria num conjunto ideológico de um grupo que possui determinada confissão religiosa, o que permitiria entender que a instituição pode ser considerada como uma propriedade privada. Já a natureza jurídica de uma fundação, ou organização laica, não possui propriedade privada de nenhuma natureza.

Frantz caracteriza ambas as organizações com base em João Luiz de Morais:

Segundo ele, a iniciativa confessional apresenta as seguintes características: o patrimônio pertence a um grupo confessional, constituído sob forma de sociedade civil;as suas atividades não têm fins lucrativos; os excedentes financeiros são aplicados nos objetivos educacionais da entidade:a administração do estabelecimento é subordinada, em última instância, à mantenedora; o controle da gestão e das finanças é feito no âmbito da mantenedora e, em última instância, pela organização confessional; a destinação do patrimônio, em caso de cessação das atividades, é deliberada pela autoridade confessional, ressalvada a aplicação em atividades de interesse social. Enquanto isso, segundo as iniciativas comunitárias, têm como características os seguintes aspectos:o patrimônio é de uma comunidade, sem depender de famílias, empresas ou grupos com interesse econômicos; a organização não tem finalidade lucrativa; aplica os eventuais excedentes financeiros na entidade; é constituída sob a forma de fundação de direito privado ou, ainda, de associação ou de sociedade civil: não privilegia seus integrantes, associados ou filiados, em relação à coletividade na prestação de seus serviços; administrativamente, em última instância, é subordinada a um Conselho de representantes da comunidade à qual está ligada; em alguns casos, também do Poder Público (federal, estadual ou municipal); o controle da administração e da gestão financeira de todos os seus recursos é feito com a participação da comunidade à qual está ligada, e, no caso das fundações, pelo Ministério Público; o patrimônio, em caso de cessarem as atividades, é destinado à outra instituição congênere.29

Nosso objetivo aqui não é discutir esta diferenciação. Embora existam diferenças, nós acreditamos que, justamente, as semelhanças é que se impõem quando seguimos nosso entendimento de comunitário como uma forma de público. E é sob este aspecto que a discussão de Walter Frantz nos permite definir as escolas de educação básica e as instituições de ensino superior confessional como também sendo organizações de natureza comunitária pública não-estatal, o que implica, entretanto, considerar alguns elementos fundamentais, constitutivos dessas instituições.

Para Frantz,

[...] uma descrição ou conceituação mais precisa das iniciativas de organização comunitária do ensino superior, das quais pode nascer um modelo bem caracterizado, deve levar em conta diferentes aspectos, tais como: a propriedade, a destinação e o controle do patrimônio da mantenedora, a eleição de seus dirigentes; a gestão, a representação e a participação da comunidade na universidade.30

Esta semelhança entre as instituições confessionais e comunitárias laicas traz contribuições e conseqüências fundamentais para o futuro da educação comunitária de origem confessional. São instituições que, constituindo-se em públicas não-estatais,31 devem submeter-se, legal e eticamente, aos mesmos preceitos das demais instituições públicas e estatais.

3. Educação comunitária pública não-estatal - implicações para a educação comunitária pública de identidade luterana

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Federal n. 9.394/ 96, promulgada em 20 de dezembro de l996, define, no artigo 20, as categorias de instituições de direito privado:

I. Particulares em sentido estrito, assim entendidas as que são instituídas e mantidas por uma ou mais pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que não apresentem as características dos incisos abaixo; II. comunitárias, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas, inclusive cooperativas de professores e alunos que incluam na sua entidade mantenedora representantes da comunidade; III. confessionais, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideológica específicas e ao disposto no inciso anterior; IV. filantrópicas, na forma da lei.32

A lei, portanto, cita, em separado, duas formas de educação que se constituíram historicamente: comunitárias e confessionais. Esta definição é fruto da disputa entre as diferentes tendências que visavam garantir espaço na educação nas décadas de 80 e 90.

Entretanto, elas não são necessariamente distintas. Na medida em que buscam as mesmas condições de existência no contexto das categorias de instituições privadas, ambas lutam para distinguir-se das empresas privadas que investem em educação com o objetivo de auferir lucro. As escolas ou universidades ou faculdades particulares, de capital privado, são instituições que não gozam de legalidade quanto à obtenção de recursos públicos para educação, pois têm o ensino como uma mercadoria a negociar com a sociedade.

Já as demais, citadas nos incisos II, III, IV, são escolas que não visam a lucros e, em ocorrendo excedentes, são obrigadas a reinvesti-los integralmente nas finalidades a que se destinam.

Trata-se de escolas e instituições de ensino superior que têm nas suas mantenedoras seu suporte legal, econômico, financeiro e patrimonial. Essas mantenedoras podem ser de escolas de Educação Básica ou de Ensino Superior constituídas por membros indicados pelas agremiações civis que por elas respondem juridicamente.

Estas instituições, tanto confessionais, quanto laicas, possuem, segundo Frantz, uma dimensão pública, de cunho sociológico, devido às seguintes características:

[...] a instituição mantenedora não está subordinada a nenhum interesse empresarial de pessoas físicas ou de grupos, mas unicamente a um objetivo social; seus bens não são propriedade de ninguém em particular, não são transmitidos por herança e têm uma profunda vinculação ou com região ou com um amplo contingente da população; a evidência de que a instituição não tem dono aparece, entre outras, na rotatividade dos cargos de direção da universidade; o controle e a participação no poder está com amplos segmentos da sociedade civil, através de suas organizações mais representativas.33

Em estudo mais recente sobre o comunitário como público não-estatal, João Pedro Schmidt apresenta um elenco de características que devem ser consideradas para a definição do público não-estatal:

Como formulação provisória, sugere-se que sejam entendidas como públicas não estatais as organizações e instituições comunitárias
·criadas e mantidas pela sociedade civil organizada;
· orientadas ao interesse coletivo, não pela lógica do mercado;
· autônomas em relação ao Estado;
· que assumam a identidade pública não estatal;
· adequadas aos princípios da administração pública.34

As semelhanças entre as instituições confessionais e comunitárias laicas trazem conseqüências fundamentais para o futuro da educação comunitária. São instituições que, constituindo-se em públicas não-estatais, devem submeter-se, legal e eticamente, aos mesmos preceitos das demais instituições públicas e estatais.

Essa condição de público não estatal possibilita às instituições participarem do destino de verbas públicas estatais. Entretanto, fundamental para as políticas que repassam recursos públicos ou isentam de tributos e outros encargos sociais estas instituições é a sua condição de transitoriedade e transparência. Esta condição torna-se garantia de avaliação social, de compromisso com a qualidade de ensino e de redirecionamento dos recursos e do patrimônio. Os recursos públicos, nestes casos, somente devem ser canalizados para as instituições que têm a garantia de condição pública não-estatal de seu patrimônio. No caso das instituições de ensino superior, o Decreto Presidencial n. 2.306/97, de 19 de agosto de 1997, no seu art. 2o, normatiza as responsabilidades de gestão econômica e patrimonial das mantenedoras dessas instituições públicas nãoestatais.

Art. 2o. As entidades mantenedoras de instituições de ensino superior, sem finalidade lucrativa, deverão: I. elaborar e publicar, em cada exercício social, demonstrações financeiras certificadas por auditores independentes, com o parecer do conselho fiscal, ou órgão similar; II. Manter escrituração completa e regular de todos os livros fiscais, na forma de legislação pertinente, bem como de quaisquer outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial, em livros revestidos de formalidades que assegurem a respectiva exatidão; III. Conservar em boa ordem, pelo prazo de cinco anos, contados da data de emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem como a realização de quaisquer outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial; IV. Submeter-se, a qualquer tempo, à auditoria pelo Poder Público; V. Destinar seu patrimônio a outra instituição congênere ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades, promovendo, se necessário, a alteração estatuária correspondente; VI.

Comprovar, sempre que solicitado:a aplicação dos seus excedentes financeiros para os fins da instituição de ensino superior mantida; a nãoremuneração ou concessão de vantagens ou benefícios, por qualquer forma ou título, a seus instituidores, dirigentes, sócios, conselheiros ou equivalentes; a destinação, para as despesas com pessoal e técnicoadministrativo, incluídos os encargos e benefícios sociais, de pelo menos 60% (sessenta por cento) da receita das mensalidades escolares provenientes da instituição de ensino superior mantida, deduzidas as reduções, os descontos ou bolsas de estudo concedidas e excetuando-se, ainda, os gastos com pessoal, encargos e benefícios sociais dos hospitais universitários.Parágrafo único. A comprovação do disposto neste artigo é indispensável para fins de credenciamento e recredenciamento da instituição de ensino superior.35

Portanto, isso requer uma dimensão ética e transparente de gestão democrática dos recursos, bem como uma proposta pedagógica construída por todos os concernidos: comunidades escolares, mantenedoras e comunidades externas.

Em resumo, acreditamos que o debate sobre as instituições de ensino superior deve ser aplicado também às escolas de educação básica, o que significa que as escolas da Rede Sinodal de Educação, identificada como a identidade luterana, devem assumir efetivamente o caráter de escolas comunitárias públicas não-estatais. Precisam normatizar suas ações políticas, econômicas, patrimoniais e pedagógicas segundo os critérios éticos e legais daquilo que seja uma instituição pública não-estatal. Por isso, para Herbert de Souza,

Para a escola confessional só resta, portanto, um caminho: abrir mão de escola-empresa para ficar com a escola-serviço à comunidade, serviço à fé, serviço aos pobres, serviço à construção de uma sociedade justa, fraterna e democrática. [...] A escola católica, se quiser ser democrática, só tem um caminho: ser escola comunitária. [...] A escola comunitária não é uma empresa privada, mas uma sociedade civil sem fins lucrativos.36

Os mesmos princípios certamente se aplicam as escolas da Rede Sinodal que, através do Departamento de Educação da IECLB, se vinculam a um significativo número de comunidades confessionais e civis, principalmente na região Sul do Brasil. Conforme Evaldo Luís Pauly, estas escolas também são escolas comunitárias: "Todas são escolas comunitárias por duas razões: não distribuem lucros entre seus dirigentes, não são propriedades privadas, pois pertencem a mantenedoras controladas por comunidades religiosas. No entanto, em minha avaliação, são efetivamente empresas privadas, que vendem seus serviços educacionais no mercado."37

Este conceito mais elástico, porém, não menos rigoroso, de escola comunitária, por um lado habilita a receber recursos públicos ou isenções fiscais, por outro lado delas exige novas posturas e ações que garantam uma ampla e efetiva participação comunitária, que permita um reforçamento da sociedade civil para a busca de uma democracia que garanta o controle do Estado pela vontade da maioria social.

CONCLUSÃO

Olhares prospectivos para o ensino superior comunitário público nãoestatal de identidade luterana

A educação comunitária pública não-estatal de identidade luterana tem sido tímida na ocupação de seu espaço no cenário educacional brasileiro. Embora sua presença visível na Educação Básica na região sul do país, seu ingresso na atuação em educação de nível superior não se efetivou, considerando seu know-how educacional. Há dez anos atrás, na primeira forte onda de expansão do ensino superior na Nova República, muitas pessoas de identidade luterana acalentavam o sonho da expansão do ensino superior da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB. Entretanto, este sonho não tomou forma, nem em um sentido de construção teórica e nem na prática.

Paradoxalmente a essa onda de expansão nacional, a IECLB continuou olhando apenas para dentro de si, isto é, preocupada somente com a formação de suas Obreiras e Obreiros, com excelência acadêmica, é verdade, mas apenas para os ministérios específicos no âmbito das comunidades, sem conseguir enxergar no seu entorno social a grande necessidade em contribuir no desenvolvimento cultural, tecnológico e científico da sociedade na qual está inserida por meio das escolas comunitárias públicas e das potencialidades latentes de um ensino superior.

A omissão da rede de escolas comunitárias públicas não-estatais de educação básica perdeu a primeira grande onda de expansão. E com isso as instituições de identidade luterana perderam recursos, energias, conhecimentos e pesquisadores, deixando de dar uma contribuição muito importante no ensino superior em outras áreas do conhecimento. A rede de escolas comunitárias de identidade luterana tinha tudo para evoluir para a formação de nível superior, o que, infelizmente, não se efetivou.

Por isso, a modo de conclusão de nossa análise e reflexão sobre a educação comunitária publica no contexto da identidade luterana, queremos olhar de forma prospectiva, ou seja, de agora para frente. E o cenário parece expressar uma nova onda de expansão do ensino superior propulsada pela projeção do crescimento econômico e pela nova onda de crescimento técnico-industrial e de produção projetada para o Brasil nos próximos anos. "A educação superior passou a fazer parte do rol de temas considerados prioritários e estratégicos para o futuro das nações: generaliza-se a convicção de que o desenvolvimento requer, cada vez mais, uma ampliação dos níveis de escolaridade da população."38 Neste contexto, mais do que nunca, educação de qualidade e expansão da produção de conhecimentos de nível superior continua sendo a principal premissa para sustentar este crescimento.

Por isso, assim acreditamos, a rede de escolas comunitárias públicas de identidade luterana tem diante de si uma nova e primorosa oportunidade de se firmar como uma contribuição qualificada para o ensino superior brasileiro.

O cenário da educação superior, assim nos parece, aponta para isso. Estudos que analisam a trajetória da educação superior apontam para a enorme defasagem do país nessa área. Embora o extraordinário volume de recursos aportados pelo governo federal nos últimos anos, as estatísticas continuam mostrando que, para o desenvolvimento desejado pela população brasileira, muito ainda precisa ser investido e realizado em educação superior.

No Plano Nacional da Educação, em 2000, a projeção para 2010 era de incorporação de 30% dos jovens de 18 a 24 anos ao nível superior. No início desta década, o percentual desta população correspondia a 10%. Mesmo após um intenso crescimento da matrícula, chegou-se apenas a 13% de taxa líquida (que compara o número de estudantes de 18 a 24 anos com o total de jovens nesta coorte) e 23,8 % com relação à taxa bruta (que considera o total de estudantes independente da idade), uma das mais baixas do continente latino americano em comparação com a Argentina (65%), Chile (47.8%) e com a média da América Latina (31,7%).39

Estes dados demonstram as possibilidades reais de espaço para a expansão do ensino superior de identidade luterana enquanto organizações que se colocam na interface entre o público e o privado. Tais instituições fundamentadas numa identidade historicamente reconhecida e baseadas em Accountability educacional, ou seja, que estabeleçam objetivos claros e ambiciosos com metas e mantém as pessoas responsáveis pelo cumprimento das mesmas, que estabeleçam incentivos claros de forma que todos os envolvidos no sistema educacional tenham um nível dedesempenho apropriado, que ajudema assegurar que as instituições educacionais ofereçam o nível de educação esperado, que publiquem de forma transparente seus resultados econômicos e sociais, terão público para suas vagas a serem ofertadas nos mais variados cursos de ensino superior.

Mas para isso é preciso, no dizer do poeta em epígrafe, "abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, quenos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos". E isso não significa abandonar os princípios ético-luteranos, mas ousar. Haverá dificuldade, sim. Basicamente de recursos financeiros, pois a maioria da população que está fora do ensino superior e deseja nele ingressar são pessoas economicamente mais pobres. Mas como afirmam Neves; Morche; Anhaia (2009) existem hoje dois programas públicos federais de ampliação do acesso para inclusão social no ensino superior privado e comunitário. Trata-se do Programa Universidade para Todos - ProUni e do o novo crédito educativo - FIES.

Segundo esses autores,

O ProUni é um projeto inovador do governo federal que tem como objetivo a concessão de vagas para estudantes de baixa renda em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos. Em contrapartida, as IES que receberem alunos beneficiados pelo Programa terão isenção de alguns tributos. O programa foi regulamentado por meio de Medida Provisória n° 213/2004 em 2004, e institucionalizado pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005.
O Programa prevê a concessão de bolsas de estudo integrais e parciais (de 50% e 25%), para cursos de graduação tradicionais (duração de quatro anos) e seqüenciais de formação específica (dois anos).
40

Embora este mecanismo seja criticado pelos defensores dos 100 % (percentual) público para a educação superior, o próprio Ministério da Educação tem demonstrado a viabilidade econômico desse meio de financiamento do ensino superior numa perspectiva público-privado.

O Ministério da Educação reage a esta crítica e contra argumenta que o que se deixa de arrecadar é irrisório, se comparado ao benefício da ampliação do acesso a grupos antes excluídos. Segundo dados do MEC, a renuncia fiscal em 2005 atingiu RS107 milhões, beneficiando 112.275 alunos, a um custo aluno de apenas RS 970,00, em contraste com o custo de US$ 9.000 do aluno no sistema público (OECD, 2007, p. 172). Em 2007, a renúncia fiscal chegou a R$ 126 milhoes, beneficiando 163.854 estudantes a um custo de R$ 769,00 por aluno.41

Um segundo modelo de financiamento público para o ensino superior em instituições não estatais é o Programa de Financiamento estudantil (FIES). Este programa sofreu reformulações recentes para ampliar as possibilidades de financiamento da educação superior.

Em 2007, as regras do FIES foram modificadas (Lei 11.552/19.11.07) para facilitar o ingresso dos alunos à universidade. As novas normas alteraram o limite de financiamento do programa para até 100% do valor da mensalidade, abrangendo também, além dos cursos de graduação, os cursos de mestrado e doutorado. Antes o limite era de apenas 50%. Os estudantes que cursarem cursos de licenciatura podem contar com o financiamento total da mensalidade e comjuros de 3,5%ao ano; para osdemais cursosde graduação, os jurossão de 5,5%ao ano e de 6,5%ao ano para os cursosde mestrado e doutorado.42

Além disso, as instituições educacionais de identidade luterana têm sua origem numa instituição eclesiástica de forte cunho comunitário. A IECLB congrega atualmente 466 paróquias e 1803 comunidades nos seus 18 sínodos. Acreditamos que um trabalho de sinergia com estas comunidades pode constituirse numa força para uma maior inserção no ensino superior.

Para finalizar, algumas estratégias iniciais para prospectar a educação superiorcomunitária não-estataldeidentidadeluterana:Acreditamosqueoponto de partida seja a constituição de um GTI (Grupo de Trabalho Interdisciplinar) para promover uma intensa campanha de seminários e informações nas comunidades da IECLB, nas escolas da Rede Sinodal e na mídia sobre a contribuição da concepção luterana de educação, sobre estudos e pesquisas desenvolvidas nesta área e sobre as potencialidades de contribuição da educação de identidade luterana na interface entre o público e o privado no ensino superior.

E, a partir daí, desenvolver um planejamento prévio e adequado para realizar pesquisas que indiquem as melhores regiões do país para se investir no ensino superior.

Além disso, estabelecer parcerias com outras instituições afins, empresas, institutos de pesquisa, igrejas, associações de diferentes interesses locais, regionais e nacionais. Mas para concretizar este movimento faz-se necessário, acima de tudo, desprender-se dos lugares seguros, descer do monte onde foram construídas tendas seguras e liberar a criatividade, isto é, indo ao encontro de ações inovadoras e éticas, que possam resgatar a verdadeira razão de ser da identidade luterana; reconstruir, transformando as escolas em instituições públicas não-estatais. Significar exercer a coragem com responsabilidade evangélica dos antepassados, acionar habilidades em avaliar alternativas, calcular riscos, fazer escolhas, e abdicar de soluções fáceis, agindo com velocidade e firmeza diante das adversidades. Como lembra Paulo Freire, "Mudar é difícil, mas é possível."43


1 Texto base para a palestra proferida no VIII Simpósio de Identidade Luterana realizado nos dias 01 e 02/06/2010, nas Faculdades EST, em São Leopoldo (RS), Brasil.

2 Pós-Doutorando em Educação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Doutor em Teologia, Área Religião e Educação, pelo Instituto Ecumênico de Pós-Graduação -IEPG, da Escola Superior de Teologia -Faculdades EST, Mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul UNIJUI. Professor Adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE campus de Marechal Cândido Rondon, onde ensina sobre Fundamentos da Educação. Membro do Grupo de Extensão e Pesquisa em Educação Física Escolar (GEPEFE) e do Grupo de Pesquisa "Cultura, Fronteia e Desenvolvimento Regional". Membro associado da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE). Membro do HISULA -Grupo de Investigación "Historia de la Universidad. Latinoamericana", de la Universidad Pedagógica y Tecnológica de Colombia - Tunja, Colombia.

3 LUZURIAGA, Lorenzo. (1959): História da educação pública. São Paulo, Nacional, p. 5.

4 LUTERO, Martim. (2000): Educação e reforma. São Leopoldo, Sinodal, p. 16.

5 LUTERO, Martim. (2000): Educação e reforma. São Leopoldo, Sinodal, p. 19.

6 AHLERT, Alvori. (2008): "Educação e migração: A educação comunitária de confissão luterana no Brasil" en Revista de Antropologia Experimental, España, Universidad de Jaén, p. 194.

7 FONSECA, Dirce Mendes Da. (1992): O pensamento privatista em educação. Campinas, SP, Papirus, p. 32.

8 FONSECA, Dirce Mendes Da. (1992): O pensamento privatista em educação. Campinas, SP, Papirus, p32.

9 FONSECA, Dirce Mendes Da. (1992): O pensamento privatista em educação. Campinas, SP, Papirus, p. 32.

10 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, p. 111.

11 SPOSITO, Marília Pontes, RIBEIRO, Vera Masagão. (1989): Escolas comunitárias: contribuição para o debate de novas políticas educacionais. São Paulo CEDI, p. 9.

12 SPOSITO, Marília Pontes, RIBEIRO, Vera Masagão. (1989): op., cit, p. 10.

13 IECLB. (1986): Departamento de Educação. Educação e Constituinte. São Leopoldo,p.18

14 FONSECA, Dirce Mendes Da. (1992): O pensamento privatista em educação. Campinas, SP, Papirus., p. 23-24.

15 FONSECA, Dirce Mendes Da. (1992): op., cit, p. 24.

16 Ibídem., p. 12.

17 Ibídem., p. 15.

18 Ibídem., p. 21.

19 Ibídem., p. 22.

20 FONSECA, Dirce Mendes Da. (1992): op., cit, p. 35.

21 SPOSITO, Marília Pontes, RIBEIRO, Vera Masagão. (1989): Escolas comunitárias: contribuição para o debate de novas políticas educacionais. São Paulo CEDI, p. 24.

22SPOSITO, Marília Pontes, RIBEIRO, Vera Masagão. (1989): op., cit, p. 24.

23 SILVA, Ronalda Barreto. (2001): Educação comunitária: além do Estado e do mercado? Cadernos de Pesquisa, p. 89.

24 SILVA, Ronalda Barreto. (2001): op., cit, p. 90.

25 Cremos que a afirmação de Silva desconsidera a própria história da educação ao afirmar que: "No Brasil, apesar de o trabalho com comunidade ter surgido na década de 40, sua disseminação, como prática, verifica-se na década de 50, ligada à perspectiva de solução para os problemas sociais e de valorização da comunidade como unidade básica do desenvolvimento do meio rural são, na opinião de Souza (l996), as principais questões que buscam no DC uma estratégia de superação". p 91.

26 FREIRE, Paulo. (2003): Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. P. 78.

27 FRANTZ, Walter. (2002): Universidade comunitária: uma iniciativa pública nãoestatal em construção, p. 17.

28 FRANTZ, Walter. (2002): op., cit, p.69.

29 Ibídem., pp. 71-71.

30 Ibídem., p. 21.

31 Aqui assumimos a definição de Walter Frantz sobre o que denomina de comunitário, fundado no novo conceito de público não-estatal.

32 Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei Federal nº. 9394/96/ apresentação Esther Grossi, p. 26.

33 FRANTZ, Walter. (2002): Universidade comunitária: uma iniciativa pública nãoestatal em construção, p. 69.

34 SCHMIDT, João Pedro. (2010): "O comunitário em tempos de público não estatal", em Avaliação, p.34.

35 BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei Federal nº. 9394/96/ apresentação Esther Grossi, p. 82-83.

36 Ibídem., p. 29.

37 PAULY, Evaldo Luis. (2002): Ética, educação e cidadania: questões de fundamentação teológica e filosófica da ética na educação. São Leopoldo, RS, Sinodal, p. 162.

38 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; MORCHE, Bruno; ANHAIA, Bruna Cruz de. (2009): Educação Superior no Brasil: acesso, equidade e as políticas de inclusão social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Programa de Pós-graduação em Sociologia. Grupo de Estudos sobre Universidade (GEU), p. 2.

39 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; MORCHE, Bruno; ANHAIA, Bruna Cruz de. (2009): op., cit, p. 2.

40 Ibídem., p. 9.

41 Ibídem., p. 11.

42 Ibídem., p. 14.

43 FREIRE, Paulo. (2001): Política e educação: ensaios, p. 79.


FUENTES

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