Introdução
Diferentes perspectivas recaem sobre a reflexão acerca do populismo tanto quando se trata de defini-lo (Mudde e Kaltwasser, 2017) como quando se trata de delimitar suas dimensões históricas (Pipes, 1964). Outro ponto de razoável controvérsia sobre esse fenômeno é aquele que ora o circunscreve como prejudicial, sob todas as suas formas, à democracia (Do Nascimento, 2018), ora o designa como elemento possível no sistema democrático (Laclau, 2005). Em que pesem todos esses conflitos, de natureza conceitual, histórica ou de pertinência em cenários democráticos, há incontornável consenso sobre o uso do termo e da categoria “povo” e apelo discursivo a ele pelos diversos populismos - vocábulo fulcral também na constituição da ideia de democracia.
Enquanto o populismo, relacionado quase sempre em sua origem ao Populist Party (ou People’s Party) estadunidense, tem em sua etimologia a ligação indefectível com o latim “populi” (povo); por sua vez, a palavra “democracia” advém do grego “demo” (povo) e “kratia” (governo), sendo traduzida como “governo do povo”, ou seja, um sistema de governo em que o poder é exercido por essa categoria.
Desse modo, ainda que o populismo não seja visto como um movimento ou uma ideologia que colabore para o pleno exercício da democracia, ele encontra, numa ideia de defesa do povo, mecanismos para a sua disseminação e de avanço sobre o eleitorado nas democracias representativas, modelo que se consolidou na Idade Contemporânea, em especial após a independência dos Estados Unidos. Mas que povo é esse?
Como vocábulo muitas vezes vazio de significado em si mesmo (Laclau, 2005), difícil de ser divisado, o termo “povo” se delimita sobretudo no logos (Dos Santos, 2019), na fala, nos discursos. O populismo crescente nas primeiras décadas do século 21, sobretudo a partir das manifestações nas mídias sociais, não escapa a essa percepção. O “tecnopopulismo”, como chamaremos neste texto o populismo1, cuja ascensão se dá pelos meios digitais, também constrói sua visão do que seria o povo em seus discursos, o que nos leva a perguntar, na verdade, que povo é esse no discurso populista.
Neste trabalho, investigamos um caso específico: a construção da ideia de povo pelos tuítes do presidente da República do Brasil no período de realização dessa pesquisa, Jair Bolsonaro2, de extrema direita e, por vezes, caracterizado como um político populista (Nascimento e Braga, 2021; Albernaz, 2019; Aggio e Castro, 2020; Parzianello, 2020). Afinal, a qual povo esses tuítes se referem? Nesse contexto, o objetivo é averiguar a construção das noções do que se constitui como o povo brasileiro no Twitter do então mandatário. Para tanto, realizamos a coleta dos tuítes de Jair Bolsonaro em duas etapas: a primeira, via web scrapping, a partir de um código escrito na linguagem de programação Python para “ler” o site Wayback Machine. A segunda, consistiu na conferência dos tuítes coletados no site Wayback Machine a partir do uso do API tweepy, com o objetivo de checar a existência e permanência dos tuítes diretamente no Twitter. Os textos foram submetidos a uma análise estatística simples para ter acesso às palavras mais usadas e sua frequência de uso. Em paralelo, também foi feita a análise de conteúdo (Bardin, 2011) das 110 postagens coletadas no período de 30 de dezembro de 2019 a 19 de junho de 2022. Consideramos a palavra “povo” como uma categoria e analisamos duas subcategorias relativas a ela: subcategorias “ativa” ou “passiva”. Consideramos povo como uma subcategoria “ativa” quando é sujeito, protagoniza uma ação, é independente e realizador. Em nossa análise, povo pertence à subcategoria “passiva” quando sofre a ação, é vítima e/ou está à mercê de um líder, de um governo, de algo ou alguém.
Compreende-se que esta pesquisa desnuda os mecanismos de comunicação do perfil oficial, em suas dimensões quantitativas e qualitativas, em se estabelecer como legítimo representante de um povo que é definido por esse mesmo representante, numa estratégia de propaganda que se retroalimenta e que, até agora, tem se mostrado eficiente.
Populismo e media
O termo “populismo”, como já sinalizado, não aglutina consenso em torno de si e, na verdade, “is far from obvious” (Müller, 2016, p. 2). Contudo, tem sido usado para descrever líderes de esquerda e direita na América Latina e nos Estados Unidos, além de políticos de extrema direita na Europa (Mudde e Kaltwasser, 2017). Nesta pesquisa, entretanto, trabalhamos com a síntese realizada por Mudde e Kaltwasser (2017), segundo a qual:
populism as a thin-centered ideology that considers society to be ultimately separated into two homogeneous and antagonistic camps, “the pure people” versus “the corrupt elite,” and which argues that politics should be an expression of the volonté générale (general will) of the people. (pp. 5-6)
No que tange a esses campos antagonistas, o populismo (ou o populista) se coloca como representante do povo, o único que pode lutar de maneira decisiva contra os privilégios das elites corruptas, sem ser, ele mesmo, corrompido por elas. Desse modo, o povo aparece como uma categoria idealizada, pura, vilipendiada pela aristocracia em seus direitos mais básicos. É dever do populista restabelecer ao povo esses direitos, mas seu poder só pode ser concebido em regimes democráticos, a princípio, pela vontade desse mesmo povo. É por isso que se considera que há três elementos principais no coração do populismo: o povo, a elite (ou as elites) e a vontade popular (Mudde e Kaltwasser, 2017). Portanto, o populismo requer que esse povo ao qual diz representar se reconheça nele e deposite nele sua confiança (e votos) - e esse convencimento passa, pelo menos desde o populismo russo (Ely, 2021; Venturi, 1960), pela comunicação que esse movimento estabelece com o que identifica como “o povo verdadeiro”: “the ‘common people’ (the part of the res publica made up of commoners, or in modern terms: the excluded, the downtrodden, and the forgotten)” (Müller, 2016, p. 22). Tudo que se opõe ao que se identifica como “povo verdadeiro” não deve ter legitimidade nem representatividade nessa perspectiva.
Embora seja indiscutível que exista um povo, ou vários povos, a sua definição é essencialmente uma construção (Mudde e Kaltwasser, 2017), posto que reduz a complexidade de uma população vasta e de identidades múltiplas a alguns poucos denominadores comuns. Muitas vezes, nada se encontra mais distante do que é um determinado povo do que sua representação. Tal qual a identidade nacional, portanto, a ideia de povo é um discurso, construído dialogicamente (Fiorin, 2009). Na elaboração de sua comunicação, é necessário que o populismo consiga convencer o povo de que ele é o que o populista diz que é.
É assim que, desde o populismo russo (narodnismo) do século 19, com a criação da Free Russian Press, passando pelo People’s Party nos Estados Unidos e pelo varguismo no Brasil, para citar alguns exemplos, os populistas se aproximam dos meios de comunicação para a disseminação de sua compreensão do que seria o verdadeiro povo. Não é à toa que esses mesmos meios de comunicação conheceram uma maior disseminação a partir das ações de propaganda que passaram a ser capitaneadas por esses movimentos, que apostaram na mediatização da política.
Um dos maiores exemplos dessa aproximação se deu na Rússia czarista, quando o narodnismo fomentou a criação de muitos jornais, especialmente publicados pela Free Russian Press, de cunho político ideológico, ainda que não partidários, uma vez que os partidos políticos na Rússia só seriam criados ao final do século 19. O próprio Alexander Herzen, considerado o pai do populismo russo e o fundador da Free Russian Press, chegou a afirmar que “the publishing of newspapers was at that time an epidemic” (Herzen, 1982, p. 364). Mesmo na Rússia czarista, sob rigorosa censura, o Kolokol, um dos principais jornais do narodnismo, chegou a ter uma circulação de seis mil exemplares por mês.
A mediatização da política (Deiwiks, 2009) se mostrou, ao longo do século seguinte, mais que uma estratégia, mas uma verdadeira necessidade numa sociedade cujo espaço público migrava cada vez mais para os meios de comunicação elétricos ou eletrônicos (Maitino, 2007)3. Enquanto os populistas russos, estadunidenses e brasileiros citados acima se utilizaram largamente dos jornais impressos e da rádio (no caso específico de Getúlio Vargas), os tecnopopulistas, que emergem nas três primeiras décadas do século 21, utilizavam-se dos meios digitais como forma de disseminar sua ideia particular de povo, bem como eliminar intermediários no diálogo com aqueles que podem vir ou são seus eleitores.
Assim:
O termo tecnopopulismo refere-se ao uso crescente da tecnologia digital para coordenar ações e decisões coletivas em nome das chamadas pessoas comuns. Os partidos tecnopopulistas usam a internet para engajar os membros de seu partido e depois afirmam que suas ações são expressões diretas do que o público deseja. (Leavy, 2018, p. 2)
Esse uso, que começou com os blogs políticos (Da Empoli, 2019), hoje se concentra nas mídias sociais, como Twitter, Facebook, Instagram, WhatsApp, Telegram e, mais recentemente, TikTok. Essas mídias, que permitem a publicação de conteúdos por usuários comuns, possibilitam também a circulação de informações que não passam por checagem profissional e que, no contexto político, podem funcionar como um poderoso instrumento de propaganda, sem sequer precisarem aguardar os períodos oficiais de campanha.
No Brasil, vivenciamos as mesmas estratégias durante as eleições presidenciais de 2018, em especial por parte de Jair Bolsonaro. E, embora também haja divergências quanto à caracterização do principal mandatário do país como populista (comparar, por exemplo, Maitino, 2020, e Gomes, 2022), uma boa fração de sua estratégia consistiu em definir para si e para sua audiência a que povo ele se referia quando se colocou como seu legítimo representante nessas plataformas diversas. Dessas, destaca-se o Twitter, rede em que Jair Bolsonaro mantém um diálogo mais constante e contínuo com sua audiência, e onde ele tem 9,3 milhões de seguidores4.
Twitter como plataforma política
Desde 2006, o Twitter ganhou importância como plataforma política decisiva em campanhas eleitorais, seja para difundir informação com o objetivo de direcionar, reforçar, recrutar e mobilizar (Rosseto, 2014), seja para gerar interação. De lá para cá, estudos acadêmicos têm buscado compreender o potencial da rede social para influenciar a política e difusão da informação, produzir efeitos do uso e exposição dos cidadãos às mensagens na forma de fazer política como também no crescente aumento do número de usuários - políticos e instituições - com presença na rede social. Em um primeiro momento, há enfoque otimista nas pesquisas com relação às possibilidades de utilização do Twitter para a difusão de informação e para a ampliação da participação dos usuários.
Já em 2010, os estudos começam a desenvolver críticas quanto ao uso do Twitter como plataforma política por parte dos que se valem da rede social para a propagação de suas ideias, assinalando falta de compromisso por parte desses atores bem como o uso heterodoxo da rede social com foco no ativismo de origem diversa, a construção de uma nova realidade comunicativa conectada no espaço híbrido e a subversão dos papéis políticos tradicionais por parte de personagens populistas. Mas foi só em 2016 que o uso do Twitter por parte de políticos populistas passou a ser examinado como objeto de estudo. Entre eles, estão os que concluem que há uma ausência de compromisso cívico por parte de atores políticos no Twitter e se dedicam à análise de características do espaço híbrido nele, em sua natureza preditiva, na polarização política e nas manifestações do século 21, que usaram a rede para sua organização e divulgação, bem como análise de sentimentos, de comunicação massiva e de aprendizagem de máquina no Twitter. É o que explicam os autores:
Su uso se caracteriza porque, en lugar de comprometerse con los ciudadanos para intercambiar puntos de vista y escuchar sus ideas, los populistas han utilizado Twitter para criticar a los críticos, llevar a cabo batallas personales y llamar la atención de los medios de comunicación. (Campos-Domínguez, 2017, p. 786)
Isso porque plataformas como o Twitter permitem o atravessamento do filtro dos meios de comunicação convencionais e compartilham as mensagens de forma muito mais direta com o público. Isso implica o planejamento e proposição de uma agenda alternativa à mídia de referência, sugerindo uma automediação informativa, interação entre os cidadãos, redefinindo o papel dos atores políticos populistas na comunicação política e nas suas relações com cidadãos e jornalistas (Alonso-Muñoz e Casero-Ripollés, 2018).
Essa comunicação direta entre líderes políticos e diferentes públicos, reforçada pelas características do Twitter, encontra ressonância no fato de que a rede social promove a fragmentação das mensagens, solo fértil para a polarização, a formação de bolhas informacionais e, com isso, a redução da possibilidade do confronto de opiniões dissonantes. É o que apontam Campos-Domínguez e Eva (2017):
A los ya constantes estudios sobre Twitter se suman, a partir de 2013, otro significativo volumen de investigaciones referidas a la fragmentación de los mensajes y cómo Twitter se confirma como una herramienta de polarización que refuerza las divisiones políticas existentes en la sociedad y reduce la probabilidad de encuentros casuales con opiniones diferentes. (Campos-Domínguez, 2017, p. 787)
Rosseto (2014) salienta que a utilização do Twitter como plataforma política se dá, principalmente, como ferramenta de campanha eleitoral (hoje permanente), para a divulgação de agenda, materiais de campanha, mobilizar seguidores, interagir com comentários e usuários da rede, para ataques a adversários, entre outros usos. De acordo ainda com Rosseto (2014), candidatos e líderes políticos têm preferência pelo Twitter porque veem na plataforma uma possibilidade de se comunicar de forma direta, com uma audiência massiva, reduzindo as chances de filtros, potencializando que suas mensagens alcancem, sem sofrer quaisquer tipos de alteração, os seus seguidores, já que disseminadas pelos meios de comunicação tradicionais, as mensagens certamente passariam por filtros e poderiam sofrer alterações comuns ao processo jornalístico.
Para além dessa perspectiva, o uso de hashtags tem sido fundamental para aqueles que buscam engajar indivíduos desconhecidos no debate de algum tema ou mesmo indicar quais são os temas importantes para a proposição de um debate entre os cidadãos. Ao discutirem o fim da política bipartidária e a ascensão do populismo na Espanha a partir do uso do Twitter, os autores apontam:
Most candidates devote a great share of their discourse to the repetition of political mantras that are too abstract to be decoded as specific measures. All of them resort recurrently to the notion of “change”, either to warn from its dangers or praising its perks, use Twitter to show appreciation and pride -an indirect way of showing off, as it reveals support by the groups who are being thanked-, or try to create sides by referring repeatedly to the notion of “us” or “the people”. Shallow words are much more abundant than deeper, insightful ideas of pure politics and proposals of specific measures, which redounds to the aforementioned thinness of Twitter in terms of encouraging debate. (Gelado-Marcos et al., 2019, pp. 10-11)
Entre as vantagens oferecidas pelo Twitter aos atores políticos populistas, estão o imediatismo, a gratuidade, a facilidade de uso, a capacidade de interação e a viralização dos conteúdos com pressupostos, muitas vezes, mais limitados do que os partidos convencionais: “el hecho de que Twitter ofrezca una comunicación no mediada les permite mantener el contacto directo con el ‘pueblo’, los principales receptores de sus mensajes, y eludir a sus enemigos, las ‘élites’, que controlan los medios convencionales” (Alonso-Muñoz e Casero-Ripollés, 2018, p. 1194). Como plataforma para divulgação das agendas populistas, o Twitter se sobressai, ainda, por permitir uma correspondência - homofilia - de características e interesses, facilitando a difusão, a recepção e o engajamento entre pares, o que gera uma câmara de eco das ideias difundidas.
Em consonância com as afirmações anteriores, pesquisa realizada por Penteado et al. (2022) identificou que, na Espanha, o uso do Twitter por políticos populistas mobilizou o tema da imigração e da corrupção, e, no Brasil, a análise feita do Twitter de Jair Bolsonaro, representante da extrema direita, identificou a mobilização das postagens em torno do “medo”. Especificamente no Brasil, o medo está associado à “ameaça comunista” e ao “antipetismo”.
O estudo de Penteado et al. (2022), como o que apresentamos neste trabalho, utiliza técnicas computacionais e inteligência artificial, e identifica nos tuítes da conta de Jair Bolsonaro analisados que o tópico mais abordado foi a autopropaganda e a divulgação de ações do governo, como inauguração de obras, segurança pública e impostos. Contudo, segundo os autores, esses tópicos não geraram grande repercussão entre os apoiadores. O segundo maior tópico abrange mensagens que os autores denominam de “comunicação”. Essas postagens demonstram a preocupação de Bolsonaro em manter ativa a sua comunicação direta com os seguidores. No recorte realizado pelos autores, que contempla 302 mensagens, os termos mais relevantes são “povo”, “Deus” e “liberdade”, os quais estão:
alinhados com o viés de comunicação populista de Bolsonaro na constituição discursiva de um “nós” (povo), com forte referência a valores religiosos (cristãos) e defesa da liberdade individual, muitas vezes associada a críticas a medidas de lockdown na pandemia e ataque aos “outros” (esquerda, imprensa, instituições, etc), distribuição de insumos (ambos no contexto de hospitais federais). (Penteado et al., 2022, p. 250)
As características populistas mencionadas por Penteado et al. (2022), relacionadas ao discurso de Jair Bolsonaro, à superficialidade do debate político no Twitter, presente em mensagens que servem para repetir “mantras” políticos abstratos, de acordo com a explicação de Gelado-Marcos et al. (2019), à capacidade de disseminação e viralização de conteúdos destacadas por Alonso-Muñoz e Casero-Ripollés (2018), bem como à massificação das mensagens sem os tradicionais filtros dos meios de comunicação apontada por Rosseto (2014), estão presentes em nossa análise a partir de coleta que realizamos na conta de Jair Bolsonaro, conforme demonstraremos a seguir.
A partir da coleta e da análise que realizamos, identificamos as características populistas nos tuítes de Jair Bolsonaro no período analisado relacionadas: 1) ao discurso de Jair Bolsonaro; 2) à superficialidade do debate político no Twitter, presente em mensagens que servem para repetir “mantras” políticos abstratos; 3) à capacidade de disseminação e viralização de conteúdos destacadas; 4) à massificação das mensagens sem os tradicionais filtros dos meios de comunicação. Essas e outras inferências, apresentaremos na análise a seguir.
O povo nos tuítes de Jair Bolsonaro
A coleta de dados do Twitter da conta de Jair Bolsonaro foi feita em duas etapas. Na primeira etapa, os tuítes arquivados no site web.archive.org5 foram coletados automaticamente com um código Python e armazenados em arquivos csv. O período de busca compreendeu de 30 de dezembro de 2019 a 19 de junho de 20226. Na segunda etapa, a partir do uso do número de identificação de cada tuíte coletado, com um segundo código Python, o Twitter foi acessado diretamente com o API tweepy, com objetivo de confirmar a existência e permanência dos tuítes. O acesso primário via web.archive foi necessário porque o Twitter limita a sete dias a busca pelo API, mas não há limite temporal de consultas se usado o número de identificação do tuíte. Cabe mencionar que o web.archive realiza registros - como se fossem fotografias - com uma frequência alta na linha do tempo do Twitter de Jair Bolsonaro, porém não é possível confirmar que a totalidade das postagens foram gravadas. Do ponto de vista estatístico, é possível afirmar que se trata de uma amostra ampla, igual ou próxima ao número de eventos do conjunto completo de tuítes.
Encontramos 19770 tuítes, dos quais 624 continham a palavra “povo”. Uma análise exploratória dos dados do período revelou que 3,2 % dos tuítes continham essa palavra. É importante esclarecer que o método do web.archive de fazer “fotografias” de páginas pode coletar duas vezes a mesma postagem e, por essa razão, tanto o número total de postagens como o número de eventos com a palavra “povo” apresentam repetições. Assim, consideramos a proporção para tornar o corpus mais representativo e, após eliminar as repetições dos tuítes salvos, identificamos 110 postagens na conta do Twitter de Jair Bolsonaro com tal palavra.
A partir da coleta dos dados, utilizamos os recursos do Python Word Cloud7 e do NLTK8 para fazer uma análise preliminar dos textos, verificando quais palavras acompanham com mais frequência a palavra “povo”, após a filtragem de artigos, preposições e demais termos sem significado no texto (Ferreira et al., 2022). Todas as letras foram colocadas em minúsculo para uniformizar a grafia dos dados sob análise. Na Figura 1, apresentamos a nuvem de palavras feita a partir do conjunto completo, com destaque para Brasil, governo, trabalhar, brasileiro, combate, Deus.
A Figura 2 evidencia a contagem exata das 15 palavras mais frequentes, das quais Brasil, todos e brasileiros têm um destaque maior. Os termos “governo”, “Jair”, “Bolsonaro”, “Deus” e “trabalhar” aparecem aproximadamente com a mesma frequência. Paralelamente à análise semiquantitativa, realizamos a leitura dos textos para contextualizar as postagens e verificar nelas a inserção desses termos frequentes.
Uma busca direta pelos contextos nos quais algumas das palavras frequentes estão inseridas, mostra que “Brasil” entra como um ente, “o Brasil do povo”, “o Brasil que queremos” ou “o Brasil pelo qual lutamos”, não aparecendo com sujeito de uma frase objetiva tratando de tema específico. O termo “brasileiros” entra geralmente associado ao povo brasileiro, tema de análise mais profunda a seguir. “Todos” se apresenta na maioria das vezes como cumprimento “bom dia a todos”, por exemplo. A palavra “liberdade” se apresenta muitas vezes associada aos lemas “liberdade e democracia” e “liberdade e família”, algumas vezes no papel de crítica a oposições apresentadas à liberdade do povo, fato contra o qual ele luta. “Governo” entra no contexto de propaganda, informando diretamente alguns atos ou fazendo a divulgação de seu ideário. “Deus” aparece na fala de Jair Bolsonaro como seu lema de campanha, como reforço do lugar que ocupa ser vontade de Deus, e como a fonte de força para as ações julgadas necessárias. Não é clara uma religiosidade no uso da palavra “Deus”, que remeta a alguma crença específica ou ritos religiosos. “Trabalhar” entra principalmente no contexto de críticas às restrições de mobilidade que ocorreram no período da pandemia da covid-19 (“o povo quer trabalhar”).
Ao analisar o corpus selecionado, identificamos que a palavra “povo” aparece como sujeito, mas majoritariamente como predicado e, portanto, alterna como ativo e passivo nos tuítes de Jair Bolsonaro, sendo que a condição de passividade (Figura 3) é maior nas postagens analisadas da rede social. Ao analisar as 110 postagens, identificamos 81 em que povo aparece como uma categoria passiva, 18 postagens com menção ativa relacionada ao povo, 11 postagens que, devido a não se enquadrar na categoria “passiva” e “ativa”, denominamos “neutra”. Isso reforça o que mencionamos anteriormente, o povo aparece como uma categoria vilipendiada9 em seus direitos mais básicos, vítima de governantes, da mídia, de um sistema que precisa ser combatido e que, nesse caso, ele próprio, Jair Bolsonaro seria o combatente em defesa do povo brasileiro. Observamos a ideia de um povo suscetível, frágil, à mercê de inimigos no tuíte em que Bolsonaro afirma que no governo dele as vacinas terão de ter comprovação científica e certificação pelo Ministério da Saúde e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão brasileiro responsável pela validação de vacinas e outros insumos da área da saúde. Jair Bolsonaro finaliza o tuíte com a seguinte frase: “O povo brasileiro NÃO SERÁ COBAIA DE NINGUÉM”.
Quando é sujeito ativo10, povo está vinculado ao voto11, à escolha do presidente da República, associado à autonomia e liberdade de escolha, relacionado com temáticas positivas no repertório e valores defendidos por Jair Bolsonaro. O tuíte sobre armar a população é um exemplo dos que realçam o povo como agente realizador no processo decisório: “DECRETOS DAS ARMAS/CAC. - JAIR BOLSONARO: Em 2005, via referendo, o povo decidiu pelo direito às armas e pela legítima defesa”. Em destaque, apontamos o trecho em que o povo é sujeito ativo em condições de decidir sobre seu futuro. A Figura 4 apresenta uma visão de liberdade ao povo graças ao acesso à internet. Claramente, o tuíte ataca as instituições de imprensa, especialmente a Globo, considerada por Jair Bolsonaro como uma inimiga da nação.
Há uma sequência de tuítes de Jair Bolsonaro relacionados ao verbo “trabalhar” que inserem o povo como uma categoria ativa12. O povo é ativo também quando elogia o então presidente da República, como é o caso do tuíte em que um apoiador de Jair Bolsonaro apresenta obra que estaria sendo concluída pelo, à época, presidente em Pernambuco. O tuíte O povo é o repórter. - Obras sendo concluídas. - Presidente Jair Bolsonaro também expressa que a verdade está nas redes - em especial a sua rede social -, é produzida por eleitores e apoiadores, e dá a entender que o trabalho dos repórteres pode ser dispensável, já que os seus seguidores são “testemunhas oculares” da verdade. Contudo, “povo” é uma palavra/categoria que aparece majoritariamente como passivo, que sofre a ação de um sujeito e, nesse caso específico, o sujeito é o então presidente da República e o seu governo, ou, quando é vítima13, o povo sofre a ação de agentes externos: instituições, presidentes de outros países, governadores14e15 e prefeitos, principalmente, quando est es são considerados por Jair Bolsonaro declaradamente seu inimigo e, portanto, inimigo da nação. Encontramos evidências de menções a outras ideias de povo, como o povo equatoriano16, argentino, cubano, venezuelano e israelense. Em todos esses casos, o povo é passivo, sofre a ação - positiva ou negativa - de governos, a depender das relações estabelecidas entre Jair Bolsonaro e os líderes políticos dos países mencionados.
Em nossa análise, identificamos ainda que, quando se trata de tuítes relacionados ao povo brasileiro, estes evidenciam que há um protagonismo do governo brasileiro, de Jair Bolsonaro na proteção de um povo frágil, que necessita de orientação, liberdade17, trabalho e da ação de uma espécie de salvador da pátria18,19e20, que atua para ouvir suas necessidades; identificar os riscos aos quais estão submetidos por parte dos outros considerados inimigos da nação; conferir autonomia pelo armamento desse povo para garantir sua liberdade; por vezes, esse povo é identificado como povo pernambucano, povo do Acre e povo de Rondônia21. Nesse tuíte, Jair Bolsonaro menciona corrupção22, atribuindo aos governos anteriores e evidenciando uma realização de seu governo. O povo é passivo diante da espera, e o Brasil aparece como um país diferente de anos atrás, reforçando o antipetismo, característica do populismo bolsonarista.
Entre os tuítes postados, observamos um em que Jair Bolsonaro menciona: “Nunca abandonarei o povo brasileiro, para o qual devo lealdade absoluta! Boa noite a todos!” e outro em que o, à época, presidente da República polariza com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e apresenta o que, segundo Jair Bolsonaro, seria uma realização do seu governo: “@LulaOficial, aceita que dói menos. A transposição do Rio São Francisco foi idealizada por Dom Pedro 2°, concluída pelo Presidente @jairbolsonaro e pertence ao povo Brasileiro! Pra quem quer saber a verdade, aí vai um vídeo bem explicativo”. Em outra postagem, Jair Bolsonaro destaca que ele seguirá com honestidade, honra e Deus:
Peço a cada um que está lendo essa mensagem que jamais desista das nossas cores, dos nossos valores! Temos riquezas e um povo maravilhoso que nenhum país no mundo tem. Com honestidade, com honra e com Deus no coração é possível mudar a realidade do nosso Brasil. Assim seguirei!
Em outro tuíte, Jair Bolsonaro dá garantias ao povo brasileiro de que este líder - referindo-se a ele - estará com o povo até o fim e menciona que há aqueles que desejam que sua relação com o povo brasileiro seja prejudicada: “Que desistam todos os que querem ver o povo distante de mim, ou que esperam me ver distante do povo. Estou e estarei com ele até o fim. Boa noite a todos!”
Embora a ideia de povo esteja associada à redução da complexidade, um tuíte23 analisado chama a atenção porque tenta unificar e atenuar quaisquer diferenças na categoria “povo”, apresentando uma ideia estandardizada e nada plural do que vem a ser a população brasileira. O tuíte publicado em 1º de maio de 2022, data comemorativa ao Dia do Trabalhador no Brasil, busca evidenciar a ideia de um povo unido. Essa afirmação feita no tuíte de Jair Bolsonaro pode ser facilmente contestada quando confrontada com as declarações do então presidente da República relativas aos povos originários, à orientação sexual, a questões de gênero, étnicas e raciais.
Uma outra observação importante em nossa análise é o fato de que os tuítes de Jair Bolsonaro privilegiam a formação de uma “bolha informacional” nas redes oficiais24e25 do, à época, presidente da República em contraposição à mídia de referência que ele insiste em descredibilizar, buscando eliminar os filtros e ampliar o alcance de suas mensagens nas redes digitais. O link do vídeo, com mais de 136 mil visualizações, leva ao canal de Jair Bolsonaro no YouTube, com mais de 6,3 milhões de inscritos, durante o período da pesquisa. Essa ação gera um processo de retroalimentação da informação26 junto aos seguidores com fonte nas redes sociais de Jair Bolsonaro e um afastamento desses seguidores do que podemos chamar “imprensa ou mídia de referência”, em que, para ser publicada, a informação precisa atender e cumprir critérios de noticiabilidade e rigoroso processo de apuração. A transferência de responsabilidade - quando essa é considerada por Jair Bolsonaro como negativa - está presente em seus tuítes sobretudo ao longo da pandemia da covid-19 com as ações restritivas orientadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para mitigar as consequências da circulação do vírus. Em nossa amostra, destacamos dois tuítes27 que evidenciam a transferência de responsabilidade a governadores e prefeitos, principalmente àqueles que seguiam mais rigorosamente as orientações sanitárias e, portanto, desafetos de Jair Bolsonaro. Um dos tuítes28 acusa gestores públicos de serem autoritários e restringirem a liberdade do povo.
Desse modo, o que identificamos em nossa análise é que os tuítes publicados na rede de Jair Bolsonaro buscam simplificar a ideia de povo, reduzir diferenças entre a nação, mas claramente estabelecer diferenças entre nós e eles, respectivamente, o grupo de apoiadores de Jair Bolsonaro e aqueles considerados inimigos da nação - todo e qualquer indivíduo que diverge, que contrapõe ou questiona as realizações de Jair Bolsonaro e de seu governo. Nesse contexto, cabe retomar a obra de Ortega y Gasset (1930), em que o autor define a massa como sendo “tudo aquilo que não se avalia a si próprio - nem no bem nem no mal - [...] que se sente ‘como toda a gente’ [...] se sente à vontade ao reconhecer-se idêntico aos outros” (p. 8). O trecho integra a obra A rebelião das massas e evidencia essa tentativa de estandardizar os diferentes públicos em uma ideia falseada de nação como sendo única, promovendo o enfraquecimento dos laços tradicionais e conduzindo os grupos sociais ao isolamento e à alienação em razão do uso de plataformas como o Twitter, que, como observamos anteriormente, reduz as chances de contatos próximos e amplia as condições das ilhas e bolhas informacionais.
A Figura 1 evidenciou as palavras mais utilizadas nos tuítes de Jair Bolsonaro com destaque para a palavra “povo - ideia central que nos motivou a realizar este trabalho -, seguida das palavras “liberdade”, “Brasil”, “governo” e “trabalhar”. Isso nos revelou que o contexto do uso das palavras mais frequentes remete à personificação de entes que compõe o governo e a governança do então presidente, e não são rigidamente conectados a fatos objetivos da população. Conexão mais direta com a realidade vem quando Jair Bolsonaro se opõe às medidas de contenção da pandemia da covid-19. Uma análise específica para o uso de Deus não remete à religiosidade, mas à justificativa de sua posição, seus objetivos e suas ações.
Além dessas palavras, nossa análise encontrou tuítes que citam versículos bíblicos e associam a figura de Jair Bolsonaro a um homem religioso, de conduta ilibada, dedicado ao trabalho, defensor da liberdade, formando uma imagem de um líder político do povo para o povo.
Conclusões
Fato já largamente explorado na bibliografia sobre populismo, referente à categoria povo, é que este é vazio de sentido em si mesmo, sendo sempre uma construção nos discursos dos atores populistas, portanto variável e ajustável à própria necessidade desses atores. No contexto das mídias sociais, em que se suprime a mediação tradicional que existia nos meios de comunicação de massa, o que interessa é fazer com que esse povo compreenda que o que o populista diz acerca dele é o que ele é realmente - ainda que esse ser seja pouco tangível.
Este estudo mostrou que, nos tuítes de Jair Bolsonaro, embora suas postagens produzam um alto engajamento, com taxas altas de compartilhamento e curtidas, o que o então presidente chama de povo segue pouco definido, mas não o que se espera que esse povo (tanto faz se na categoria ativo ou na de passivo): um apoio constante ao líder populista, que assume um caráter quase religioso (Fedotov, 1942). Dessa forma, a desinformação atua como um mecanismo de fortalecimento desse discurso que, apesar de não definir bem o que seria seu povo, conclama-o para as mais diversas manifestações de apoio ao político populista, implodindo a noção de periodicidade dos meios tradicionais, gerando mobilização e campanha permanentes entre seus eleitores, por meio do exagero, do emocional, do religioso e do engano.
Assim, embora não fique claramente delimitado quem é o povo do discurso de Jair Bolsonaro, o povo que se coloca nas trincheiras da web a seu lado o identifica e o nomeia como líder a ser seguido, pois é por meio dele que esse povo se “informa” e se autorrealiza.