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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.15 no.1 Bogotá Jan./June 2013

 

LITERATURA COMPARADA: TRAJÉTORIA E PERSPECTIVAS

LITERATURA COMPARADA: TRAYECTORIA Y PERSPECTIVAS

COMPARATIVE LITERATURE: PAST AND FUTURE ITINERARIES

 

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
paulonolasco@ig.com.br

Joyce Alves
Universidade Federal da Grade Dourados - Brasil
joycemiuki@hotmail.com

Artículo de reflexión.
Recibido: 15/11/12; aceptado: 03/04/13


Este trabalho visa avaliar a dimensão contemporânea e em particular os estudos da prática comparativa, conforme nos é proposta a renovação da pesquisa na área da chamada Literatura Comparada. A partir da leitura e análise de textos representativos que se referem às bases de comparatismo, o artigo prossegue comparando textos e ensaios mais recentes, procurando, assim, extrair deles as ideias e práticas de pesquisa ainda muito significativas tanto no que diz respeito ao ensino e à história do sujeito como também, e em especial, para a revitalização de investigação e crítica nesta área do conhecimento. A partir desta perspectiva, é claro agora que, não só no Brasil, mas também em uma dimensão global, a Literatura Comparada mostra reflexões contemporâneas sobre seu vigor e produtividade cujo resultado indica a prática de fertilidade comparativa significativa e o papel do sujeito intelectual e cultural nas ciências humanas.

Palavras-chave: Literatura Comparada; pesquisa em literatura; comparatismo hoje; crítica literária; teoria literária.


Este trabajo busca evaluar la dimensión contemporánea de los estudios de Literatura Comparada, como se propone en la renovación de la investigación en el área. El artículo analiza textos representativos que se refieren a las bases del comparatismo y prosigue comparando textos más recientes, buscando extraer de estos las ideas y prácticas de investigación aún muy significativas tanto para la enseñanza y la historia del sujeto como, y en especial, para la revitalización de la investigación y la crítica en esta área del conocimiento. Desde esta perspectiva, es claro ahora que, no solo en Brasil, sino en una dimensión global, la Literatura Comparada demuestra su vigor y productividad, cuyo resultado indica la fertilidad de la práctica comparativa y el rol del sujeto intelectual y cultural en las ciencias humanas.

Palabras clave: Literatura Comparada; investigación en literatura; comparatismo hoy; crítica literaria; teoría literaria.


This article seeks to assess the contemporary, and especially the practical, dimension of comparative studies, in particular in the renewal taking place in the area of Comparative Literature. Starting with an analysis of representative texts relating to the foundations of comparative studies, it goes on to compare more recent texts, in search of the ideas and research practices which are still relevant today, both as relates to the teaching and history of the subject and, more especially, for a revitalizing of research and criticism in this field of knowledge. From this perspective, it is clear that today, not only in Brasil but in a global context, Comparative Literature is demonstrating its vigor and productivity, proving the fertility of comparative practices and the central role of the intellectual and cultural subject in the field of human sciences.

Keywords: Comparative Literature; research in literature; comparative studies today; literary criticism; literary theory.


Du fait que l'épigrafe est une citation, il s'ensuit presque nécessariement qu'ele consiste en un text.

Genette, 1998

GÉRARD GENETTE, EM SEUILS, AO refletir acerca da semiótica do paratexto, diz-nos que a epígrafe, como uma citação em exergo (isto é, aquilo que está fora da obra - ex ergon -, datando-a, situando-a no tempo, como a inscrição do ano numa moeda ou numa medalha), joga com a economia geral dos sentidos e participa da rede de relações que é toda narração.

Citar antes de começar é elevar ao lugar de produção de sentidos e, assim, fazer ressoar palavras cujas formas deveriam dominar a cena. Cito, portanto, deixando que ressoem, palavras de Wladimir Krysinski, extraídas do ensaio "Narrativas de valores: os novos actantes da Weltliteratur" que dominarão a cena que lhes trago: "Na falta de respostas imediatas e transparentes a todas essas questões, prefiro buscar solução ao problema da Weltliteratur com uma simpatia cognitiva e sem pretensão alguma de esgotar o assunto" (Krysinski 2007, 3).

A partir dessa citação, o primeiro dos desafios que se apresenta ao estudioso do comparatismo, hoje, diz respeito à provocação, não tão atual, a responder à indagação, historicamente (re)formulada, sobre "O que é Literatura Comparada?".

Não bastasse ser uma indagação antiga, no sentido de saber o que se recobriu sobre o rótulo de Literatura Comparada no passado, é ainda pertinente, sobretudo, na intenção de acompanhar os desdobramentos e evoluções desta disciplina, de sua prática, seja na teoria, na história e na crítica dela mesma e de suas produtivas contribuições num contexto de modernismo finissecular e de pós-modernidade cultural. Essa reflexão constituiria o segundo desafio para o que buscamos aqui formular no curto espaço deste artigo.

Dentro dessa perspectiva, o maior desafio historicamente apresentado ao comparatista, hoje de forma mais que provocativa, matizada de saberes a-disciplinares e indisciplinados, refere-se ao desafio mesmo de recortar campos de saberes de tal forma que o cientista das ciências humanas responda às indagações acerca do lugar de onde fala e de sobre o que deveria falar.

O comparatista, o professor de Literatura Comparada hoje, não deve desconhecer a bibliografia constitutiva de um formidável compêndio e "cânone"1 que se foi avolumando em torno do assunto, onde muita tinta se fez correr, particularmente pela dinamicidade, mobilidade e volatilidade2 que sempre pautou a atividade comparatista desde os seus primórdios, nos escritos de Goethe e Mme. de Staël, seja nas futuras formulações mais conhecidas como "textos fundadores"3.

Isto posto e tendo em perspectiva a citação inicial de Wladimir Krysinski, a nos sobreavisar de que o universo do discurso da Literatura Comparada, ao acompanhar a vivacidade de seu objeto - a Literatura -, é de uma autofagia constante, propomo-nos discorrer sobre os aspectos anunciados, se não os alcançando na amplitude histórica que suscitariam, mais fixados nos aspectos teórico-críticos que hoje nos ocupam enquanto pesquisador e professor da área do comparatismo.

Ao retomar, assim, a interrogação de George Steiner em um texto recente, cujo título e reflexões desenvolvidas mostram-se como em trompe-l'oeil da discussão que nos ocupa, de modo nuclear como a prática comparatista, realiza-se como modos de saber e de fazer num estrito modo de olhar em trânsitos, limiares e passagens. Já de início interessa-nos o título-epígrafe do texto originariamente publicado, Lire en frontalier, o qual Tania Carvalhal, depois, seguindo sua perspicácia crítica, dará amplificação em um de seus textos, "Fronteiras da crítica e crítica de fronteiras", reunidos no conhecido livro de crítica, O próprio e o alheio (2003), de título indicialmente instigante, a acentuar a ideia de trânsito entre textos e sentidos pressupostos nestes e na cultura.

À ideia de "fronteira", amplamente matizada hoje em dia pelas ciências humanas, George Steiner, ao tentar responder à onipresente indagação "O que é Literatura Comparada?", sublinha que todo ato de recepção em linguagem, em arte e música é um ato comparativo e, em seguida, conclui que: O processo semântico é um processo de comparação. Ler é comparar. Trata-se, portanto, de uma orientação metodológica na qual a Literatura Comparada torna-se herdeira de Babel, com o campo de pesquisas comparatistas que envolve toda a problemática relacionada à produção e à recepção de sentidos textuais. Segundo a feliz conceituação de George Steiner:

Tudo que se passa entre as línguas, entre os textos de períodos históricos ou de formas literárias diferentes, as interações complexas de uma tradução nova e das que a precederam, a antiga mas sempre viva rivalidade entre as letras e o espírito, todo esse comércio é o da literatura comparada. (Steiner 2001, 159)

Ao evocar a onipresença de Babel, Steiner completa seu pensamento ao dizer da literatura comparada que ela escuta e lê desde Babel, assim considerando que em toda operação hermenêutica há uma comparação tácita, a mais simples afirmação de preferência é "uma comparação com". Percebemos, então, que a natureza dessa operação entranha-se em todo e qualquer ato de inteligibilidade, em todo o cognoscível que envolve signos e produção de sentidos. Daí, o irrecorrível lugar epistemológico e axiológico no qual se encontram as ciências humanas em geral e da linguagem em particular, restando ao comparatista uma atividade de ainda maior perspicácia, quintessência com relação ao seu ofício, ou seja, na direção de acolher, no emaranhado cipoal dos signos e sentidos, o todo do que interessa às diversas e possíveis formas de abordagens que compõem a atuação comparatista:

Para mim, a Literatura Comparada é, na melhor das hipóteses, uma arte de ler rigorosa e exigente, um estilo de ouvir ou ler atos de linguagem que privilegiam certos componentes desse ato. Esses componentes não são negligenciados em qualquer modo de estudo literário, porém na literatura comparada eles são privilegiados. (Steiner 2001, 158)

Seguindo este raciocínio, a noção de "fronteira" sugere uma produtividade vital, particularmente na medida em que valoriza modos de ver comuns à noção de "articulação", essa não menos importante em nossas práticas de conhecimento. Isto demanda uma reflexão mais pontual.

A expressão "lire en frontalier", segundo Steiner, ganha uma orientação metodológica e, entendida como símile de comparação, significa operação de "leitura na aproximação", ou de "modo fronteiriço": frontalier é o que está ou vive na fronteira, nos limiares, e carrega também o sentido do que é "fronteiro", o que é situado "em frente". Ou, de outra forma, equivale a dizer que os procedimentos solicitados pela semelhança e a diferença, ou a analogia e o contraste estão na base do próprio ato de inteligibilidade: "Le français fait sonner à l'oreille que, dans la raison, un rôle décisif revient à la comparaison" (Etiemble 1993)4. Nessa perspectiva, são igualmente elucidativas as reflexões críticas que encontramos em trabalhos recentes como Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (2008), no qual o crítico redimensiona a noção de "fronteira" em vários níveis da produção e da inscrição do sujeito Autor, seja na coletânea de contos de Quiroga, seja na própria produção crítica do escritor Quiroga. E chama a atenção para a polissemia do termo "fronteira", cuja adjetivação "fronteiriço" e "fronteiro" são qualificativos diversos entre si: enquanto o primeiro corresponde à tradução portuguesa de "borderline" designa, em psicanálise, distúrbios entre a neurose e a psicose; o segundo, "fronteiro", recupera originariamente a atividade crítico-germinativa numa outra espessura, a de frontis, fachada (Alves-Bezerra 2008, 20-54). Assim perspectivada, a crítica de fronteira vem ao encontro da reflexão central de Steiner, bem como ao das reflexões da ensaísta de "Crítica de fronteiras e fronteiras da crítica".

Nesse ensaio, o tom recai sobre o procedimento que estimula a interação entre linguagens, o interdiscursivo, o interdisciplinar, desafios que se encaminham para a necessidade de formulações de outros projetos capazes de sustentar nossa capacidade de articulação entre os saberes. Mormente no campo de batalha, que também quer dizer "front", já sinalizando para o campo de atuação que deparamos na contemporaneidade cultural. Ao afastar a noção dicotômica ou excludente, vai-se ao encontro da noção produtiva de limiar, o que alude, portanto, à de fronteiro, ao que está para além dos marcos e linhas de demarcação e que procura no "front" os sentidos de passagem, ultrapassagem, de deslocamentos e os de transformações:

Falar em fronteiras com relação à crítica literária não quer dizer fixar limites para uma ou outra forma de atuação crítica, pois sabemos, ao ler um texto, se a orientação que ali predomina é textual, psicológica, ideológica, biográfica, sociológica, etc. ou se está a mover-se num conjunto de associações. Quer dizer, cada atuação crítica se identifica pela postura epistemológica e a fundamentação teórica que assume. Em outras palavras, o ato crítico se define em si mesmo. E, ao caracterizar-se, constrói os seus próprios limites. (Carvalhal 2003, 170-171)

Com efeito, como vimos salientando, a prática comparatista e o próprio rótulo de Literatura Comparada, que, de alguma forma, fora tradicionalmente balizado pela ideia de "comparação", sobrevive na reformulação do seu próprio preceito paradoxal, ou seja, a Literatura Comparada não se baseia na comparação; quer dizer, não se baseia apenas na comparação, trata-se, sobretudo, muito mais amplamente, de relacionar. Na compreensão deste termo, no que ele compartilha com o de articulação, reside o ponto cego de um trompe-l'oeil raramente perspectivado: à literatura comparada caberia o exercício de "proporcionar o diálogo não só entre as literaturas e as culturas, mas também entre os métodos de abordagem do facto e do texto literários, segundo a natureza da questão levantada pelo investigador" (Machado e Pageaux s. f., 17).

Decorrem desse indecidível, que constitui a seleção e o olhar de cada investigador/observador - segundo a ardilosa arquitetura com que cada um entra e sai de Babel -, todas as formas e práticas possíveis do que chamamos literatura comparada e produção do conhecimento. Se a clássica conceituação começava por ensinar que "a literatura comparada é a arte metódica" (Brunel, Pichois e Rousseau 1995, 139-144), hoje essa analogia só pode ser produtiva em sentidos quando "a 'arte', como toda a 'Arte', é a do trompe-l'oil...".

- A pintura é uma gaia-ciência, uma máquina de produzir anjos e quimeras, objectos que são e não são objectos; é uma máquina carnal cujo mistério reside na pele, à flor da pele, e cuja profundeza reside na superfície. A pintura baralha todas as categorias, pintura que pensa de um modo necessariamente possessivo e reflecte o próprio gesto de pensar e representar. Pintura e dinâmica de forças e secretas pressões que a consciência não alcança. Um castelo da alma que produz visões, cartas e epifanias, falsos espelhos e enigmas. (Costa 2009, 461)5

Noção essa, do trompe-l'oeil, que vem da filosofia contemporânea, em ensaio intitulado "Zeuxis e Babel - Imagens de Filosofia", cujo autor inicia dedicando-o a George Steiner significativo paratexto dessas reflexões. Ao reunir Babel e trompe-l'oeil, duas imagens portentosas de "confusão", o filósofo põe em cenário a potência da "articulação", como própria do conhecimento, sem esquecer que Babel é o observatório que tenta unir os mundos subterrâneo e cavernoso, a terra e os céus. A palavra "Babel", diz o filósofo, em hebraico, quer dizer Porta de Deus (Bab-Ilu/Bab-Porta e El-Deus), Porta do Céu, e "bâlal" aponta para "confundir"; "baralhar-embrulhar":

Em suma, a marca da contemporaneidade, se é que existe contempo-raneidade(s), reside então nessa explicação-complicação de cruzamentos e escritos. [...] E isto porque a maravilha das maravilhas já não é que o Ser seja, mas sim que as metáforas, os transportes e as diferenças, persistam e se reflictam infinitamente, como num caleidoscópio ou no modelo reticular de Penélope, infatigavelmente urdindo e desurdindo a sua teia, até a exaustão. Contemporaneidade que nos assiste também na distribuição, circulação, tradução e na criação do que alguns chamaram provocatoriamente de artrologia - não astrologia, mas que sei eu disso - ou aquela ciência dos articuli, das articulações entre dispositivos de saber, de poder saber. (Costa 2009, 461)

Resta agora, dentre os aspectos que vimos remarcando acerca da natureza e função da Literatura Comparada, evocar o que passou a ser o componente e tempero mais geral, mobilizador dos estudos literários e comparados: o contexto histórico-sociológico que deslocou as premissas do pensamento, num afastamento crucial, seja da perspectiva de passagem da modernidade para a pós-modernidade cultural, seja na reverificação da própria modernidade lato sensu, que, de um modo ou de outro, resultou no que reconhecemos hoje como estádio contemporâneo das ciências humanas e o chão cultural que tudo envolve, não mais sob rótulos consagrados, antes sob o de "Pós-Tudo", inclusive do famoso poema concreto de Augusto de Campos, de 1984.

Enumeráveis têm sido os actantes transformadores da Weltlitera-tur. Algumas dessas ocorrências, revolucionárias das ideias e pensamentos, devem aqui ser lembradas, à guisa de remissão a um dos preceitos mais fertilizadores da literatura comparada, qual seja, o da "contextualização" das práticas de conhecimento6.

René Wellek, em um texto antológico, "A crise da Literatura Comparada", anunciara não só com as palavras de abertura, mas especialmente com o impacto que conduziu à deriva o comparatismo institucional, o tom daquelas turbulências num mundo de pós-guerra: "O mundo (ou melhor, nosso mundo) encontra-se em estado de crise permanente, pelo menos desde 1914. Os estudos literários, em suas formas menos violentas e silenciosas, também estão divididos por conflitos metodológicos desde essa mesma época" (Wellek 1994, 108).

Marco decisivo para o futuro do comparatismo, a crítica de Wellek nesse ensaio exerceu papel fundamental na mudança de rumos metodológicos na orientação da disciplina e mesmo na polivalência de sua conceituação, tal como chegou aos nossos dias. Também Wladimir Krysisnki, em texto recente e já citado, enfatiza esse estado de revolvimento planetário no pós-guerra e constata que não só a gloriosa época das teorias (o formalismo, o new critiscim, a sociologia literária, a sociocrítica, a crítica marxista, a semiótica, entre outras) passou, na medida em que todos os movimentos críticos pareciam saber "o que é literatura", e que as certezas epistemológicas flectiram consideravelmente, mas que também o "corpo da literatura" é imenso, inapreensível em sua totalidade, que o menor recanto do mundo reflete todas as escalas do jogo dos valores. A literatura é poliglota. Fala centenas, milhares de línguas. Ressalte-se que, assim, segundo Krysinski, os cinco actantes da literatura mundial -o local, o nacional, o marginal, o institucional e o universal- implicam uma dialética do reconhecimento na qual a ideia de Weltliteratur não mais corresponde às formulações de seu surgimento com Goethe, e por encontrar-se hoje em formação constante, seu equilíbrio é instável, tornando impensável sua defesa, senão como utopia funcional a serviço de uma visão de mundo unitária, impossível de ser sustentada:

Deve-se admitir que, grosso modo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, desde o momento em que se instalou a tão profunda crise do Estado-Nação e do Estado-Federação, desde o advento do nomadismo moderno que se constituiu em fenômeno planetário e em resultado do empobrecimento vertiginoso de uns e do enriquecimento de outros, resultado das múltiplas guerras locais e não tão locais, dos golpes militares e das ditaduras, deve-se admitir que o local e o marginal forçam o nacional, o institucional e, portanto, também o universal a agir. Com isso o universal tem dificuldades para reencontrar-se numa unicidade de estruturas temáticas ou formais que pareciam evidentes para Goethe, mas que são indecidíveis hoje. (Krysinski 2007, 8)

A partir daí, quer venha de escritores como Virginia Woolf7, quer de intelectuais e filósofos, sobremodo especial dos movimentos sociais e das revoltas modernistas, a constatação geral é a de que as relações humanas, a explicação cartesiana do mundo, a compreensão euclidiana da realidade, perderam ou mudaram de solo. Nesse contexto, o prefixo de "pós-guerra" veio espelhar outros; interessa-nos mencionar os de "pós-modernidade" e de "pós-disciplinaridade". Sobre o assunto, há hoje uma farta bibliografia; salienta-se, entretanto, o que se refere ao "sentido forte da condição pós-disciplinar", que teria como meta a releitura da modernidade8, por um lado, e a transformação da prática e divulgação do conhecimento como função pós-disciplinar, por outro:

Para tanto, além de transformar a insatisfação em eficácia desconstrutora da ordem disciplinar instituída - através do trabalho de sua decomposição, reavaliação, transvaloração e transformação - é preciso, parece-me, que simultaneamente se extrapolem, também os limites da própria questão disciplinar e da atividade intelectual tal qual se definiram nas academias modernas, lúcidas, mas confinadas ao diálogo entre pares. É preciso também violar essas fronteiras, e buscar estar a altura de alianças eficazes - participação, contiguidade - com outros grupos sociais e outros campos discursivos, com aqueles - aquilo - que muitas vezes elegemos, à distância, como nossos objetos de interesse intelectual. Esses seriam ímpetos pós-disciplinares fortes. (Cunha 1999, 105)

Como se vê, um sentido trágico está a envolver a situação da Literatura na cultura e o seu lugar nos currículos e na própria grade de leitura. O desafio da contemporaneidade é continuar repetindo a indagação sobre o que é literatura e do questionamento se tem ela importância, repondo questões tão candentes como se a leitura literária significasse não apenas abertura ao mundo, aos livros, mas também à biblioteca infinita que constitui, hoje, o patrimônio cultural como um todo. Assim expandida, a condição da pós-disciplinaridade torna-se gesto radical a envolver a nossa noção de "texto", não mais de "texto literário", mas inclusivamente a de hipertexto, numa condição de textos de caráter mutante e de um leitor que esboça caminhos possíveis e acidentais. Sob essa condição, como lembrou Krysinski, aquelas antigas teorias da literatura muito pouco respondem à "condição" contemporânea:

Nesta situação, de certo modo incomensurável, reaparece de forma nova a figura do paradoxo. Esse é um lembrete para a teoria da literatura que precisa aprender o seu sentido alterado, não para salvaguardar, mais uma vez, um lugar singular na esfera cacofônica da cultura de contextualização veloz, mas para, de algum modo, colocar à prova e legitimar a sua própria importância e sobrevivência. (Olinto 2001, 111)

Com efeito, sem pretensão alguma de esgotar o assunto, o cruzamento de fronteiras, o consequente compromisso com a pós-disciplinaridade, tem marcado a pauta contemporânea dos discursos sobre a literatura. No Brasil, em especial, não só os congressos da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), mas também uma consistente reflexão crítica, oriunda de ensaios de pesquisadores nos departamentos de literatura, resultam numa bibliografia e "programa" de estudos para o comparatismo, de reconhecida notoriedade neste campo. De um modo geral, dentre outros aspectos mais debatidos nesse campo de pesquisa propriamente dito, destacam-se, em uníssono, os de que os discursos sobre a literatura movimentam-se, hoje, num contexto em que os conceitos e noções presentes nesse território não provêm apenas dela mesma, mas dos discursos das ciências humanas:

Trânsito entre saberes, diluição de fronteiras, limiares críticos, interdisciplinaridade, transdiciplinaridade, são termos que traduzem uma diversidade de interesses e a insistência em uma perspectiva teórica e interpretativa que revela um deslocamento, onde prolifera a reversão de valores e hierarquias. (Hoisel 2001, 73)

Percebe-se aí a formação de um paradigma que nos interessa repercuti-lo, ainda, à guisa de conclusão. Aliás, se em todo movimento literário há um aspecto de revolta e tradição, assim também o campo da crítica responde com um paradigma e, neste caso, o campo da pesquisa abre-se como possível resposta às nossas indagações. De fato, como se pode observar na trajetória de um escritor como Roland Barthes, constatam-se nela perspectivas diversas, de acordo com o percurso da pesquisa que vai se atualizando em função do renovado olhar do pesquisador em relação com o contexto sociocultural. Tanto é assim que Tania Carvalhal, em ensaio instigante9, demonstra como a obra de Roland Barthes está ligada à noção de seuil, de trânsito e principalmente à ideia de transgressão e de ultrapassagem - paradigma que nos acompanhou até aqui. Com esse élan para a pesquisa, reconhece-se na trajetória do escritor que, sem ser um comparatista de oficio, ele o foi avant la lettre, na medida em que contribuiu para a alteração de paradigmas. A atividade crítica corroboraria com a da pesquisa, e faria com que a articulação do campo literário com outras disciplinas, como a etnologia, a filosofia, o marxismo, a psicanálise, a teoria da escrita e do texto, contribuíssem para os avanços das práticas pós-estruturalistas como os estudos da tradução, o dos pós-coloniais e os dos Estudos Culturais10.

O dado mais importante, talvez, no conjunto da obra barthesiana, parece ser a insistência com que o crítico responde à pergunta sobre "o que é a crítica?": "o trabalho do crítico não é descobrir o significado secreto de uma obra - uma verdade do passado - mas constituir o inteligível do nosso tempo", ou ainda, "o que sempre me fascinou na vida é o modo como as pessoas tornam seu mundo inteligível".

Para este rumo, sinalizaria o trabalho da pesquisa:

Talvez uma sugestão desta natureza seja necessária e sutil em nosso trabalho de pesquisa neste momento extremamente instável impreciso que vivemos no qual não apenas se modifica o perfil cartográfico de uma cidade, mas as relações sociais, econômicas e afetivas entre os indivíduos e as expectativas cotidianas em todo o mundo. Cabe ao comparatista a difícil tarefa de dar claridade às relações que ora se conformam de maneira diversa e inesperada e tentar, pelo confronto contrastivo, como quer Barthes, "tornar o nosso mundo inteligível". (Carvalhal 2002, 150)

É ainda a comparatista Tania Carvalhal (2005, 177) que, ao refletir sobre a atualidade dos estudos comparatistas, observa: "entendemos, então, cada vez mais que não é possível pensar em campos de saber estanques, conclusos e fechados em si mesmos, pois o que se acentua é a natureza híbrida dos diversos domínios do conhecimento e da expressão artística, sua inter-relação". E com perspicácia acrescenta: "A literatura comparada, como prática crítica, se inscreve no movimento de mudança das demais modalidades críticas, delas se distinguindo não pelos objetos que estuda, mas pelas perguntas que formula e pelos modos de aproximação de que se vale" (178). Já Rita Bittencourt (2010), ao retomar a discussão sobre o comparatismo hoje, assim chama a atenção para o que recobriria contemporaneamente a prática de "comparar" enquanto método de trabalho:

Comparar, então, significa fazer do próprio fim um objeto de leituras, dramatizando-o e tornando-o capaz de, no limiar do impossível e da morte, gerar textos, combinações, relações que considerem a própria ausência de linhas estáveis, de receitas e de respostas totalmente visíveis e coerentes, como lugares de produção de sentido. (Bittencourt 2010, 145)

À guisa de conclusão, prolongam-se os versos finais, em adágio, metáfora e prática tradutora, com os quais a Tania Carvalhal lança longe o desafio do comparatismo de hoje: "Sob égide do cavaleiro errante, em suas múltiplas variações, a literatura comparada vive a aventura dos tempos e enfrenta, na formulação de perguntas, a sua permanente validação" (Carvalhal 2006, 17).


1 Nesse sentido, é ilustrativo o livro de Armando Gnisci (2002, 487-518), "o manual mais completo e atualizado sobre o campo dos estudos literários" que, inclusive, dedica um capítulo inteiro ao levantamento de "Las herramientas del comparatista / bibliografías, manuales, revistas, enciclopedias y diccionarios: una red compartida". Também, para que se possa refazer o percurso da Literatura Comparada em sua trajetória como disciplina, veja-se o ensaio "Literatura Comparada: Ontem e Hoje", de Neide de Faria (1988, 14-20).

2 Com efeito, vale a adjetivação que acentua o culto a essa apaixonante e tão polimorfa disciplina em constante movimento, e de contínuos desafios - "discipline labile", "perspective critique qui doit produire, ajuster et vérifier ses demarches interprétatives" -, como bem a caracterizou Wladimir Krysinski.

3 Confira, por exemplo, a tradução desses textos fundadores, publicados no Brasil por Eduardo Coutinho e Tania Franco Carvalhal (1994).

4 René Etiemble já se serviu da similitude ao intitular o livro Comparaison nes't pas raison: la crise de la littérature comparée.

5 A citação foi extraída do ensaio "Zeuxis e Babel - Imagens de Filosofia", cujas linhas/entrelinhas desconstroem e resinificam a aventura viva da contemporaneidade.

6 Com propriedade, Tania Carvalhal observa, em texto apresentado no encontro da Latin American Studies Association, em 1998, em Chicago, que: "A aproximação de literaturas e culturas de contextos diversos [...] permite distinguir o que é diferente [e] também favorece o conhecimento das bases comuns, isto é, pemite a descoberta da existência de laços e de raízes, de um ethos cultural, que funda uma comunidade. Simultaneamente, sublinhando o contextual, ou seja, o que faz veicular as culturas através das literaturas, coloca-se em evidência a alteridade, ou em outras palavras, a marca da diversidade. Deste modo, o lugar de onde se fala, associado ao lugar onde se está na cultura, torna-se, mais uma vez, categoria distintiva que orienta o procedimento comparatista" (Carvalhal 2000, 13-20).

7 Em "Character in Ficcion", Virginia Woolf dirá: "Em ou por volta de dezembro de 1910, a natureza humana mudou. [...] Todas as relações humanas mudaram - entre patrões e empregados, maridos e mulheres, pais e filhos. E, quando as relações humanas mudam, há ao mesmo tempo uma mudança na religião, no comportamento, na política e na literatura."

8 Em "Literatura Comparada e Estudos Culturais: ímpetos pós-disciplinares", Eneida Cunha explora a função pós-disciplinar ao se servir da citação de Lyotard: "entendido assim, o pós [...] não significa movimento de come back, de flash back, de free back, ou seja, de repetição, mas um processo em ana, um processo de análise, de anamnese, de anagogia e de anamorfose, que elabora um 'esquecimento radical'" (Cunha 1999, 99-105).

9 Referimo-nos ao "Limiares, passagens e paradigmas: o curso da pesquisa" (Carvalhal 2002, 147-150). Também, para que se acompanhe a trajetória da obra barthesiana, veja-se: Perrone-Moisés 2004, 83-88.

10 Neste sentido, como sublinha Carvalhal, a alteração de paradigmas reflete-se nas propostas e títulos de trabalhos que já modificaram, à época, tanto o perfil da universidade como algumas estruturas sociais, cuja orientação não era só de superfície, mas correspondia à variedade de orientações teórico - críticas com que um estudioso da literatura se deparava: Douwe Fokkema publica "A literatura comparada e o novo paradigma", Eva Kushner publica "Em direção de uma tipologia dos estudos de literatura comparada" e Gerald Gillespie, "Rinoceronte, unicórnio ou quimera? Visão polissistêmica de uma possível tipologia da literatura comparada no próximo século" (Carvalhal, 149).


Referências

Alves-Bezerra, Wilson. 2008. Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga. São Paulo: Humanitas.         [ Links ]

Bittencourt, Rita. 2010. O comparatismo à beira do fim: tensões do híbrido poético. Em Schimidt (Org.), 137-48. Sob o signo do presente: intervenções comparatistas. Porto Alegre: UFRG.         [ Links ]

Brunel, Pichois e Rousseau. 1995. Que é literatura comparada? São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Carvalhal, Tania Franco. 2000. "Lugar e função da literatura comparada nos processos de integração cultural". GLÁUKS - Revista de Letras e Artes / UFV 4 (jan./jun.): 13-20.         [ Links ]

Carvalhal, Tania Franco. 2003. O próprio e o alheio: Ensaios de literatura comparada. São Leopoldo: Unisinos.         [ Links ]

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