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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.16 no.1 Bogotá Jan./June 2014

https://doi.org/10.15446/lthc.v16n1.44327 

http://dx.doi.org/10.15446/lthc.v16n1.44327

DERIVAS INTEGRAIS

DERIVADAS INTEGRALES

INTEGRAL DERIVATIVES

 

Carlos Eduardo Schmidt Capela
Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
capela@cce.ufsc.br

Artículo de reflexión.
Recibido: 19/01/14; aceptado: 31/03/14


Este estudo se centra em um único romance de Samuel Rawet, Viagens de Ahasverus..., no qual o personagem do título experimenta a impossibilidade da morte como condenação a um exílio absolutamente radical. O conceito de mancha (Benjamin) é articulado ao poder de Ahasverus de metamorfosear-se, com o que ele e o romance transgredem a ideia de um tempo linear e homogêneo; a isso se soma sua capacidade de assumir as mais diversas perspectivas de nomes que fazem parte da história humana. Em seguida, analisa-se uma passagem particularmente enigmática da narração, a partir das noções leibnizianas de derivada e integral, assim como da de diagrama, de Deleuze.

Palavras-chave: Samuel Rawet; Viagens de Ahasverus...; nome próprio; metamorfose; mancha; diagrama.


Este estudio se centra en una única novela de Samuel Rawet, Viajes de Ahasverus..., en la que el personaje del título experimenta la imposibilidad de la muerte como condena a un exilio absolutamente radical. El concepto de mancha (Benjamin) es articulado al poder de Ahasverus de metamorfosearse, con el que él y la novela transgreden la idea de un tiempo lineal y homogéneo; a esto se suma su capacidad de asumir las más diversas perspectivas de nombres que hacen parte de la historia humana. Luego se analiza un pasaje particularmente enigmático de la narración, a partir de las nociones leibnizianas de derivada e integral, así como de la de diagrama, de Deleuze.

Palabras clave: Samuel Rawet; Viajes de Ahasverus...; nombre propio; metamorfosis; mancha; diagrama.


The study focuses on one of Samuel Rawet's novels, Travels of Ahasverus..., in which the protagonist experiences the impossibility of death as the condemnation to an absolutely radical exile. Benjamin's concept of mark is linked to Ahasverus' power of metamorphosis, thus allowing both the character and the novel to transgress the idea of linear, homogeneous time. To this must be added Ahasverus' ability to assume the perspectives of the most diverse names that form part of human history. The article then analyzes a particularly enigmatic passage of the narrative, on the basis of the Leibnizian notions of derivative and integral and of Deleuze's notion of diagram.

Keywords: Samuel Rawet; Travels of Ahasverus...; proper name; metamorphosis; mark; diagram.


Há cem anos já era verdade que eu estaria hoje a escrever, como daqui a cem anos será verdade que agora escrevi.

Leibniz, "Teodiceia"

QUALQUER UM QUE TENHA TIDO o prazer de se aventurar pelos meandros de algumas das ficções deixadas por Samuel Rawet sabe, por experiência própria, que os desafios inerentes a tal exercício decorrem, em larga medida, de uma persistente sensação de desnorteio, que quase de cabo a rabo acompanha a leitura.1 Isso porque a prosa do autor insiste em operar a partir de um processo de apagamento de referências, não apenas espaciais e temporais, mas também, senão sobretudo, discursivas. A dificuldade de estabelecer marcos físicos definitivos, ou a simples impossibilidade de localização de acontecimentos narrados, com frequência reverbera na inviabilidade de discernir, com pretensa clareza olímpica, a proveniência de uma parcela nada banal das sentenças lidas (descontada, é claro, a atribuição ingênua da proveniência de tudo o que se encontra escrito numa narrativa à persona autoral).

No campo do jogo literário, os nomes decerto constituem operadores fundamentais. Os nomes próprios, ou pelo menos apropriados (como "o narrador", por exemplo), garantem a narratividade, a sugestão ou a impressão de encadeamentos de eventos ou argumentos sempre expostos de modo descontínuo e fragmentário. Na aula inaugural de seu curso sobre Leibniz, de 1980, Gilles Deleuze observa que tal filósofo foi o primeiro a defender a ideia de que os conceitos são, isto é, funcionam como, nomes próprios, na medida em que também eles implicam noções individuais e, portanto, asseguram historicidade. A verdade da literatura e a literatura como verdade ao menos se tomadas em um âmbito tradicional, dependem do fato de que um conjunto de enunciados convirja sobre determinado nome, que define uma dada perspectiva, assim como a verdade da filosofia, ou qualquer possibilidade de verdade, subordina-se ao sistema de conceitos escolhido para formular um raciocínio, logo necessariamente preexistente, e que outrossim descortina uma ou mais perspectivas passíveis de ser rastreadas.

Inaugurando uma matriz de pensamento que mais tarde será bastante cara a Nietzsche, Leibniz, segundo Deleuze, teria sido o primeiro filósofo a assumir o perspectivismo de maneira radical, isso na medida em que, para ele, cada noção individual, cada nome e cada conceito definem um ponto de vista que, desse modo, se torna mais relevante do que aquele (ou aquilo) que com ele, e a partir dele, se projeta enquanto imagem. Menos que uma unidade de antemão postulada, fundada pelo pensamento, como aparece em Descartes, por exemplo, o sujeito para Leibniz é subordinado ao ponto de vista, que, como assinala Deleuze, ao definir cada noção individual, "é mais profundo que aquele que nele se situa" (2006, 34).2

O leitor de ficções de Samuel Rawet é forçado a se deparar, mesmo sem o saber, com o esquema leibniziano levado a seu extremo limite. Pois muitos dos nomes próprios, normalmente transcritos em prol da identificação de personagens, não raro perdem ou são desprovidos de sua força de assinatura, advindo daí muito da sensação de desamparo. Entre nomes, no caso, e enunciados que não têm aqueles que a eles correspondem como objetos, a vinculação tende a ser tênue, ou de todo ausente, com o que é instaurado um domínio textual que se pauta por instabilidades, resultantes da presença de séries recorrentes em que a indefinição do locutor (e também, no plano do narrado, muitas vezes do interlocutor, por conta do mesmo processo) acarreta ambiguidades. O ponto de vista alcança assim uma prevalência absurda: não necessariamente se vinculando a determinado nome específico, ele se dissemina ou deriva entre nomes distintos. Resulta que o dito ganha uma sorte de independência e passa a valer muito mais como indicativo de um dizer do que como qualificador daquele que o teria dito, porquanto muitos dos ditos podem virtualmente remeter a mais de um dos nomes transcritos em dado relato.

Como a individualidade é posta em xeque em diversas das narrativas de Rawet, ao percorrê-las cabe aos leitores declinar questões cruciais que traduzem os espantos e a sedução que os congregam. São questões como tais, apenas à primeira vista simples: quem, afinal, ali fala tais ou quais proposições que em mim (que as li) permanecem como um eco cuja origem é indefinida e indiscernível? Quando foi dito este enunciado, em quais circunstâncias? A quem cabe responsabilizar por proferimentos ou sentenças que repercutem e, no final, parecem remeter à própria linguagem, ou ao próprio da linguagem, como se essa, enfim redimida, tivesse invadido e conquistado um domínio no qual e ao qual ela deveria necessária e docilmente se submeter, em favor da clareza, de uma legibilidade indubitável?

Retornando incessantes, questões como tais atestam a manutenção de uma atmosfera de incertezas que impossibilita um fechamento terminante do sentido, sempre pronto, portanto, para proliferar, num incessante movimento de dispersão, que de modo algum pode ser confundido com o exercício de uma mera dissimulação (pois esta traria de volta, agora, talvez, pela porta de trás, a integridade ou a assinatura do sujeito, que ao final teria preservada sua presumida unidade). O caráter acusativo da palavra, articulado em particular com base no foco propiciado pelo nome próprio, tomado como um primordial elemento caracterizador pelo qual a todo e qualquer enunciado devem ser identificadas autorias inquestionáveis (mesmo que seja a partir do estilo, por exemplo, ou de outras modalidades de marcas linguísticas), mesmo que abstratas, transcendentais, é deste modo colocado em suspensão e suspeição. Com isso, o poder decisório do leitor acaba por se encontrar afetado e, no pior dos casos, pode redundar num gesto atributivo em essência autoritário, que transgrede e arruína as regras do jogo literário.3

O fora de tempo e lugar característico de vozes ficcionais, cujas consequências mais drásticas, em termos narrativos, começaram a ser exploradas de modo mais sistemático sobretudo ao longo do século xix, contaminam o "ser" e o "estar" das personagens, incluídas as personagens do autor e do narrador, que, por sua vez, fazem o possível para sequestrar e ocultar tais vozes, entremeando-as no tecido impessoal do narrado que a todas contêm. Os pronomes, indicativos e dêiticos, alcançam uma tensa zona de indecidibilidade e perdem a função usual de remeterem aos núcleos de emissão de onde procedem as palavras, que assim escapam ou vazam dos dutos que deveriam conduzi-las como produtos de proveniência assegurada, de maneira que o próprio, da propriedade, e o comum, da comunidade, têm suas fronteiras borradas, singular e plural acabando então por se confundir. Trata-se de um uso estratégico dos modos discursivos, em que o discurso direto alterna-se com o indireto livre e o indireto, com o agravante de que este tem não raro diminuída ao mínimo a distância que, de maneira usual, separa observador e observado. Esse cuidado e rigor característicos da escritura de Samuel Rawet porventura ajudem a explicar, ao menos em parte, a profunda admiração que ele nutria por escritores como Franz Kafka e Clarice Lispector, para citar apenas dois nomes cujas narrativas atestam um grande esforço no sentido de explorar as mais diversas possibilidades e implicações da escrita literária.

Vale lembrar que uma técnica qualquer, no caso uma técnica narrativa, arrisca a não ser nada mais que uma simples técnica, e desaguar em banal formalismo, caso não chegue a se integrar com propriedade ao contexto e à situação ficcionais a que conforma, caso não se ajuste a estes, dando expressão ao que reclamam ou podem vir a reclamar. Isto é: no mínimo, uma demanda por uma política, ou melhor, por uma ética da escritura.

No intuito de indicar como a imbricação entre a matéria narrada e a técnica narrativa tem o poder de azeitar a máquina da leitura, potencializando ao máximo as suas possibilidades, e atuando, assim, em prol de uma expressividade que beira o limite do insuportável, tomo aqui como paradigma -isto é, como um fenômeno ou evento cuja inteligibilidade não precede a ele, mas procede dele, ou melhor, para ser fiel a Giorgio Agamben, está "'ao lado' (pará)" dele, e nesse sentido a todos concerne (2009, 37)-, toma-se aqui como paradigma uma novela de Samuel Rawet publicada em 1970, um dos experimentos ficcionais mais radicais e pertinentes jamais realizados em língua portuguesa: Viagem de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado.

O título de antemão acende aquela luz amarela, alerta do cisma relativo à iminência da cisma: estar em viagem, com efeito, implica um estar em movimento, um deslizar sobre esse lugar nenhum que nos cerca, num constante em e de passagem, com o que a terra por onde se passa será sempre alheia, na medida mesma em que a noção substantiva de propriedade pressupõe imobilidade ou imobilização. E, ainda como efeito do estar em viagem, dessa vez no tempo, o passado ali é posto no futuro, e esse no passado, na recordação do sonho, de modo que também o tempo torna-se estranho, emanação desse grande Outro que sempiterno assombra. Por fim, Ahasverus, o nome próprio, remete à personagem lendária que irrompe desde as entranhas da história cristã oficial.

Tal nome adentra o espaço da novela designando aquele que foi, e desde então permanece, condenado, por Cristo, ao exílio o mais abominável impossível, isso em represália ao suposto fato de ter se recusado a ajudar o Salvador, e, ainda mais, ter ousado dele zombar, quando ele rumava, o peso da cruz sobre os ombros, para o Calvário. O exílio que sobre ele recai o encadeia ao infindável do tempo, esse que é aquele sem passado e sem futuro, o que lhe furta a possibilidade da morte e o obriga a se manter vagando entre os viventes até o final dos tempos, no juízo final. Ahasverus, que faz parte de uma linhagem que conta com outros nomes célebres, como Prometeu e Sísifo, não por acaso também condenados a um sofrimento quase eterno por potências sobre-humanas, constitui uma excrecência, ou uma mancha, condição essa que, por outro lado, retira dele o melhor de sua singularidade, pois sua nódoa, sua imagem maculada, adquire a perturbadora propriedade de potencialmente se projetar sobre a humanidade como um todo. No seu caso, no entanto, o sentido lendário se inverte: ele é menos um modelo de virtude a ser imitado, como um santo, que um exemplo a ser a todo custo evitado.

Porque a mancha, conforme argumentou o jovem Walter Benjamin, ao surgir à flor da pele, e de modo involuntário, em consequência de uma sensação íntima (que leva alguém a corar, por exemplo, e assim denunciar que algo incontrolável lhe atravessa), exclui "qualquer aspecto pessoal", dando vazão a um processo generalizante pelo qual a personalidade é desintegrada "em certos elementos primitivos". Ao expor um sentir interior, geralmente provocado por uma falta ou uma culpa cujo significado se articula com a exigência ou a necessidade da expiação, ela atua como meio, é uma mediadora que, além do mais, se estabelece justo no quiasma em que tempo e espaço se articulam. Do ponto de vista temporal, essa conexão entre culpa e expiação proporcionada pela mancha é, segundo Benjamin, da ordem da magia, "no sentido em que a resistência do presente entre o passado e o futuro é eliminada, irrompendo passado e futuro numa conexão mágica sobre o pecador" (2011, 83-84). Essencializadas, a culpa e a expiação são o que resta para aqueles que trazem consigo uma mancha, ainda mais se essa se perpetua, como prova e desafio a cumprir.

Ahasverus pode ser visto como um dos exemplos sempre-vivos de um estado de exceção, e de excesso, tanto mais insuportáveis porquanto mais comuns do que nem sempre se imagina. Articulando sagrado e profano, desafiando geografias e cronologias dadas como contínuas, a personagem ocupa uma posição estranha, de evidente limiaridade, posto que nela exclusão e inclusão alcançam seu ponto de inflexão, e acabam por se conjugar segundo uma sintaxe que afronta quaisquer lógicas maniqueístas. Incluído ao ser excluído, excluído enquanto incluído: é essa situação sacrificial, quase incompreensível, que lhe é imposta, uma provocação para o pensamento.4

Em vista de características como tais não admira ter Ahasverus despertado a atenção, no decorrer da dança dos séculos, de um número nada desprezível de artistas. A personagem por ele interpretada vai deste modo passo a passo assumindo crescente autonomia, tendendo ao menos em certa escala a se desprender dos relatos iniciais que lhe conferiram existência, ao que tudo indica de matriz popular. Ela não apenas ultrapassa marcos de tempo e espaço, mas ainda, em sua contínua errância, fronteiras de gêneros e de modalidades artísticas.

Ahasverus, Ahasver, Ausero ou Assueros, o judeu errante, também conhecido como Buttadeu, Larry el caminante, Joseph Cartaphilus, Juan Espera en Dios ou João Espera em Deus, Michob-Ader, Samer ou Samar, Catafilo, Catafito ou Catáfito, Isaac Laquedem, entre outros mais apelidos, ultrapassa mesmo as fronteiras da arte para se tornar personagem emblemática em outros campos de conhecimento. Como na reflexão proposta por Siegfried Kracauer sobre o conceito, e o problema, da História. Ele ali é a encarnação, e não podemos esquecer, conforme sublinha Marie-José Mondzain, que "só a imagem pode encarnar" (2009, 25), é a encarnação na qual se reúnem todas as últimas coisas antes da última, como reza o subtítulo do livro de Kracauer, "The last things before the last". Que o imagina, com sua aparência "indizivelmente terrível", como o único ser que "teria um conhecimento de primeira mão sobre os desenvolvimentos e as transições, pois apenas ele em toda a história teve a involuntária possibilidade de experimentar os processos do devir e da decadência" (Kracauer 1994, 157). Clave essa, aliás, que orienta o romance de Jean D'Ormesson, Histoire du juif errant (1990), no qual Ahasverus aparece como testemunha, e logo narrador, de alguns dos eventos mais determinantes da história mundial, sobretudo no período em que desde então sobrevive, cujo início antecede em algumas décadas à crucificação do Cristo.

Na novela assinada por Samuel Rawet, esse dom de imortalidade, essa pena, é desdobrado na capacidade com que a personagem é dotada de se metamorfosear, o que a leva a adquirir o poder da ubiquidade. Ela se revela apta a assumir a posição, e o papel, não apenas de qualquer ser, mas ainda de qualquer ente ou entidade do mundo, em qualquer momento e lugar. Esse é um dos modos pelos quais o fio do tempo cronológico é rompido, facultando-lhe adentrar, configurando-o, no tempo próprio do registro da arte, um tempo de gozos e angústias, ocaso do tempo convencional, tempo de memória e de desejos. Por isso Ahasverus ali pode ser, entre outros, Marc Chagall, em Paris, meditando sobre aquela que seria a Crucificação branca, tela concluída em 1938, pode ser também o corvo Vicente, do relato homônimo de Miguel Torga, ou o mestre Domingues, protagonista de "A abóboda", das Lendas e narrativas, de Alexandre Herculano, ou, ainda, o velho Baruch Espinoza, que no texto aparece "estirado num leito de Amsterdam" e cercado pelas suas "ferramentas para polir lentes" (Rawet 2004, 471).

O caráter excessivo de Ahasverus decorre não apenas de sua capacidade de encarnar os mais distintos pontos de vista, mas, ainda, da possibilidade de multiplicar ou fracionar uma dada perspectiva. Isso porque a personagem, na novela, consegue fragmentar a si mesma, pluralizando-se, desdobrando-se em vários seres de existência simultânea. Porém, mesmo em situações como tais, a narrativa não se exime de deixar aflorar paradoxos e incertezas. É que ocorre na passagem em que a mancha que é, em sua ânsia de plenitude, não se satisfaz com as duas formas em que a princípio se dividira, de íncubo e súcubo, e Ahasverus começa a se espalhar em múltiplos de 2, até que surge um conflito quando, como expõe o relato, na passagem de 8.902 a 16.384, "deu-se a passagem a 16.383" (Rawet 2004, 463). O erro na multiplicação de Ahasverus, no caso, repete e amplifica um equívoco nas contas apresentadas no corpo da própria narrativa, pois 8.192, e não 8.902, tal como ali aparece, constitui potência de 2 (2 elevado à 14ª potência), enquanto o número grafado, 8.902, é a duplicação de nada mais, nada menos, que um número primo (4.451), isto é, uma grandeza indivisível, ou redutível tão somente a si mesma, que acaba assim por manter-se singular no mesmo passo em que, graças à duplicação, surge também espelhada.

A personagem mostra-se então como a unidade plural nele reunida, como uma expressiva singularidade compósita em que duas figuras idênticas se combinam para formar uma outra figura (como no caso da junção, a partir da comunhão da hipotenusa, de dois triângulos isósceles e retângulos, de que resulta um quadrado). Tal erro, pouco importa se deliberado ou não, ao mesmo tempo reitera a vinculação entre Ahasverus, de um lado, e Cristo, de outro, ambos assim irmanados pela irredutibilidade de suas situações, vínculo que predomina até próximo do final da novela, quando o protagonista acaba por se rebelar contra qualquer ser transcendente. Cristo que, na narrativa, vale frisar, é chamado de "nazareno", nome que a personagem de Ahasverus, com a surpresa da evidência até certo momento não percebida, embora transparente, descobre nada mais ser que um derivado do nome próprio Nazaré.

Como talvez já seja possível depreender, números e nomes passeiam pelo texto, com alguma frequência, ao modo de cifras, ou seja, como elementos dotados de valores ou qualidades intrínsecos com o poder de se combinar para formar novos elementos, sem que necessariamente deixem de preservar ao menos parte das propriedades que os distinguem, ainda que apenas no registro da memória. É o que ocorre, no plano dos números, com os algarismos entre 0 e 9, de cuja justaposição resulta o conjunto infinito dos demais numerais a partir do 10, que expressam quantidades específicas sendo, no entanto, anotados com base na estranha justaposição daquelas grandezas singulares neles combinadas.

De modo análogo, no caso dos nomes, ao se metamorfosear em outros seres ou entes, em especial em outros indivíduos cujos nomes no âmbito da história e da cultura operam ao modo de conceitos, resgatando e abrindo narrativas, Ahasverus a um só tempo molda-se a esses outros indivíduos, assumindo em parte atributos deles específicos, permanece com alguma consciência de si e, ainda, por fim, torna-se um híbrido, ou uma mescla, de si e de um outro específico cujo lugar assumiu.

Antes de avançar, todavia, convém, no momento, no intuito de retomar a discussão acerca dos recursos narrativos mobilizados pelo narrador das Viagens de Ahasverus para dar conta da espantosa capacidade de proliferação da personagem, lançar mão de um entre os vários fragmentos perturbadores da novela, que doravante irá ocupar posição de destaque na discussão em curso. A passagem a ser citada tem como ponto de partida a cena há pouco lembrada, relativa à vinculação entre "nazareno" e Nazaré, localidade esta que em algumas situações Ahasverus havia compartilhado com Cristo. A citação presta-se ainda para demonstrar o grau de complexidade característico da novela, pelo que de antemão espera-se que seja escusada a sua longa extensão:

Compreendeu tudo quando viu na mesa, ao lado da bandeja, a nota do hotel em que se hospedara em Nazaré. Poucos escudos para tantos sonhos! Era o mar, a atração do mar, era a água, um elemento bem ligado à luz. O nazareno apenas como possibilidade de ideia, lhe sorrira irônico, malicioso. Ou era o nome, a sugestão do nome? Ahasverus deu um salto, atônito. Lavou as mãos, estarrecido com a própria estupidez. Pensara no mar, na beleza, candura, euforia, mistério, profundidade, tormenta, vagas em turbilhão, o mar fonte primeira, o mar do plâncton, pensava nas regiões abissais. Mas o evidente ali estava, provocando-lhe arrepios não sabia por quê. Talvez por ser evidente. Nazareno. Nazaré. Ahasverus deitou-se novamente, disposto a não se deixar dominar pela avalanche de sugestões que a evidência trazia em si, como pura evidência, desligada do momento, do fato do momento. Evidência como chegada daquilo que está diante do nariz. Para conseguir deslocar-se dali para ali mesmo pronunciou a palavra varina. E a palavra trouxe-o de novo a NAZARÉ. De novo a NAZARENO. De novo à palavra. De novo a AHASVERUS. AH. HAS. AHA. SVER. AHA. ERUS. E dessa vez, sim, o turbilhão. Não precisou de muito esforço para metamorfosear-se em pura consciência e ouviu, por dentro e por trás do ouvido: L'univers - miroir d'un nombre. Em que língua? Número. Nome. Havia uma linha abaixo da qual se formava uma cor de terror. Havia uma linha acima da qual não havia cor, portanto, nem negro. Acima da linha um pensamento puro jogava. A, 1. B, 2. C, 3. D, 4. E, 5. F, 6. G, 7. H, 8. I, 9. J, 10. Certos números tinham precedência. Zero. Três. Sete. Seis. Mas o principal era o Um. Em determinado momento o Zero e o Um começaram a brincar e do esconde-esconde brotavam objetos perfeitos, criaturas perfeitas, ideias perfeitas, esferas perfeitas. Mas entre o Zero e o Um, mantidos a certa distância, brotou uma luz total. O pensamento anulou-se, a pura consciência se desfez e Ahasverus, como prova concreta de Ahasverus, gemeu e sorriu. (459-460)

Na passagem, na qual o mar, em sua movência, assegura o deslizamento dos nomes, e o abissal, como uma mancha ou uma espuma, aflora à superfície, fica evidente que nomes e números se desdobram, fragmentam-se, decompõem-se e se recompõem numa deriva frenética que levam consigo narrador, narratário, e, por fim, a personagem, a efetivamente se deslocarem, a errarem como uma ou com uma varina, "dali para ali mesmo", através de uma linguagem que se torna ela mesma liquefeita. Se a relação entre "nazareno" e "Nazaré" parece óbvia a Ahasverus, apenas porém no modo do a posteriori que com frequência tira o peso de qualquer mistério ou questão antes em suspenso, algo de análogo, porém não de similar, pode porventura ser dito, ou experimentado, acerca do caráter enigmático da cena.

O enigma pode ser definido como um argumento, uma narrativa ou uma imagem cuja compreensão ou esclarecimento definitivo nunca é alcançado. Ele constitui, portanto, uma sorte de máquina, um aparelho que coloca o pensamento em marcha, conduzindo-o adiante até o limite em que ele se resolve ou se dissolve em palavras, isto é, em evento.5 Por exemplo, com a menção ao sorriso que imita ou ao gemido que ecoa Ahasverus, na qual a mancha ou culpa em que este consiste -indicada no fragmento pela deriva de seu nome até chegar ao "ERUS" derradeiro, que acena para o erótico que nele penetra e lhe abre o corpo- garante a preservação da força marítima da oscilação que o arrebata, turbilhonante.

Um enigma é, nas palavras de Mario Perniola, uma proposição cuja força provém da "tensão interrogativa que suscita", em razão da sua "capacidade de se explicar simultaneamente sobre vários registros de sentido, todos igualmente válidos, e que deste modo abre um espaço suspensivo intermediário que não é destinado a ser preenchido" (2009, 30-31). O enigma portanto se enovela como uma dobra e, como tal, remete ao barroco.

A passagem citada, de todo modo, é recheada por uma série de alusões, mais ou menos veladas, a um filósofo barroco há pouco mencionado, e não por acaso, como então indicado, com afinco estudado por Gilles Deleuze, esse que é também um pensador barroco e do barroco: Leibniz, o filósofo do "pensamento divertido", que Deleuze qualifica como um grande jogador, um dos "grandes fundadores da teoria dos jogos" (2006, 22). Embora não seja possível, nesse hoje em que esse texto se escreve (e sempre terá sido escrito), afirmar com segurança que seja de Leibniz o arranjo de palavras que passa por detrás e por dentro do ouvido de Ahasverus, "L'univers - miroir d'un nombre", a expressão tem de todo modo uma inflexão inegavelmente leibniziana, e seus termos de fato configuram zonas de interesse do filósofo: universo, espelho, número, e, claro, relação entre elas, isto é, reflexões, inflexões, reverberações entre imagens de pensamento, imagens e pensamentos.

Na "Teodiceia" (2014) Leibniz apresenta proposições sucintas como aquela: a mônada é definida como "espelho do universo", e as almas, que constituem uma sorte de suplemento da mônada, conferindo-lhe, sublinhe-se, imortalidade, são "espelhos vivos ou imagens do universo". E Leibniz faz afirmações que, num modo de todo ahasvérico, colocam em questão a ideia de um tempo contínuo e homogêneo. De acordo com ele, a vida não irá se esgotar de maneira natural, pois em sentido estrito não irá ocorrer destruição e tampouco morte completa. Animais e almas, outrossim, começados com o começar do mundo, só encontrarão seu término caso o mundo encontre seu fim.

Disso decorre, como exposto em "Uma série de maravilhosas demonstrações sobre o universo" (1676), que as "coisas" que estão no tempo, sobre e entre as quais a princípio nada tem o dom de interferir, independentemente de medições cronológicas ou recensões cronográficas, de algum modo se tocam, desafiando a pretensa sucessividade temporal, desestabilizando a noção de que é impossível que passado e futuro irrompam em algum agora presente. E Leibniz defende ainda, em "Sobre a origem fundamental das coisas" (1697), a ideia de que a derivação é o único procedimento que torna possível a transformação ou metamorfose de tudo aquilo que existe, isso em função de sua firme convicção acerca da impossibilidade da ocorrência de uma nova criação, após a divina, de maneira que tudo que há ("as coisas") não pode senão derivar de coisas de antemão existentes.6

Reserva-se para o divino o princípio da razão suficiente, como garantia de que qualquer ser tenha uma razão de ser e de existir que ele não poderá jamais alcançar, Leibniz, para pensar a existência terrena, opera a partir da noção de causalidade. Esta torna possível considerar que cada elemento de um dado conjunto pode, ao menos virtualmente, entreter relações com cada um dos demais elementos, de modo que parte e todo se imbricam no plano incomensurável dos eventos. Os acontecimentos da História, com isso, não apenas estão de alguma forma interligados uns aos outros, mas ainda concernem a cada um dos seres individuais, que através deles se conectam.

Em outras palavras: a noção de sujeito por ele postulada faz de cada um parte do todo, de tal forma que o todo - o absolutamente plural - e o uno - o absolutamente singular - se refletem, pulsam e pensam juntos, embora em graus diferentes. "A noção de sujeito", como afirma Leibniz, e repete Deleuze, "expressa a totalidade do mundo" (2006, 30). Torna-se então imperativo, para Leibniz, distinguir cada unidade, de modo a garantir a preservação de distinções e diferenças, ao invés da existência de apenas uma massa amorfa de vida. Ou maciça, tanto faz.

Como antes colocado, porém em um contexto diferente, Leibniz, para tanto, recorre ao princípio da perspectiva, o qual postula que aquilo que distingue cada ser é a perspectiva segundo a qual esse ser expressa o mundo, e o mundo, enquanto totalidade, nada mais é que a somatória desse conglomerado de pontos de vista que se deslocam tempo-espaço afora. Algo que apenas a sabedoria divina consegue, segundo Leibniz, realizar com plenitude.

A partir daí é possível constatar que a pertinência, e a necessidade, da variação de perspectivas que atravessa a novela de Samuel Rawet responde ou corresponde ao poder de Ahasverus de se metamorfosear, e, assim, assumir, porém não simultaneamente, ao modo do divino, mas apenas serialmente, o ponto de vista de outros quaisquer seres e entes. Com o detalhe de que em bom número das situações ali narradas o ponto de vista atualizado, ou quando menos referido, é o de personagens e personalidades literárias e artísticas, as quais o relato incorpora. Também nesse sentido o território que a personagem percorre, em suas andanças, lhe é amiúde alheio (é de certo modo o próprio alheio), ou, por outra, chega a ele através da mediação de alguma modalidade de linguagem, a qual, como qualquer linguagem, borra as fronteiras entre o vivido e o imaginado.

O campo das artes fornece o arquivo privilegiado de onde são retiradas experiências ou referências que surgem reelaboradas ao longo das viagens de Ahasverus. O conjunto inesgotável dos pontos de vista desse arquivo configura, em ampla medida, as perspectivas narrativas nas quais a personagem se enreda. O ponto de vista desta, e aquele da voz narrativa, são secundários em relação a essa série de perspectivas que vão se deslocando entre os diversos momentos de um espaço narrativo reticular, modulável, de qualquer forma esponjoso. No decorrer da novela, tais perspectivas são cada vez atualizadas e descortinadas por cada um dos nomes citados, por cada unidade que lhes empresta suas "pequenas percepções", para permanecer com a formulação de Deleuze (2006, 36).

A percepção - isso que é da ordem do que não pode ser expresso, mas apenas sugerido por alguma modalidade de linguagem, como é o caso da ordem da mancha que irrompe à flor da pele, ou do sorriso e do gemido de Ahasverus -, para Leibniz, tem por correlata a apercepção, que é aquilo que podemos, cada um de nós, em uma diferença infinitesimal, expressar com clareza e distinção. A perspectiva, nesse sentido, constitui uma sorte de apercepção da percepção, isto é, a expressão clara e distinta de um indivíduo com respeito ao quinhão do mundo que lhe corresponde compreender e exprimir, e que é percebida obscura e confusamente pelos demais. É o grão da razão que concerne a cada um, cuja emergência brota do corpo: gemido, sorriso, lágrima, suor, tudo isso que provém de dentro e que emerge em resposta àquilo que nos afeta.

Leibniz foi um grande matemático, tendo como áreas de forte interesse, entre outras, a análise combinatória e o cálculo binário, esse mesmo que está na raiz do universo informático, todo ele moldado entre o 0 e o 1, ou seja, entre um vazio e um total, uma ausência e uma presença absolutas. Nesse intervalo, que propicia um sem número de possibilidades, demoram também as formas e os conceitos ideais, entre eles o mundo ideal, que para Leibniz é esse mundo aqui, o melhor mundo possível posto que criado por Deus, resumo da substância universal e que encerra o infinito na incompossibilidade entre o real e o virtual, entre o factual e o ficcional, entre a ciência e a arte (ou o mito, dependendo de como este seja conceituado).

Leibniz foi ainda um dos criadores do cálculo diferencial e integral, que compreende as funções complementares da derivada e da integral. A derivada é uma função que atua sobre a diferença, tornando-a mais e mais evanescente, até o limite de seu apagamento, quando ela se resume a uma grandeza nua. A despeito dessa tendência à anulação que uma sequência de derivações de uma equação particular acarreta, Leibniz propõe que a razão entre duas derivadas sempre sobrevive, isto é, a relação entre elas produz sempre alguma coisa, um algo quantificável e, portanto, passível de ser considerado e pensado. Isto é, embora a identidade ou a essência de uma coisa seja impossível de ser preservada, porquanto evanescente, com a exceção do que é próprio do divino, Leibniz advoga que coisas distintas adquirem um significado que é fruto da relação entre elas, relação essa que por sua vez abre aquele domínio no qual o tempo deixa de obedecer à mera sucessividade. A perfeição de "objetos", "criaturas", "ideias" e "esferas", nesse contexto, é apenas um caso, que a despeito de sua idealidade, ou em decorrência dela, não invalida que um incontável de relações seja estabelecido entre tudo aquilo que está fora do âmbito da perfeição. Os incontáveis imperfeitos entretêm, inclusive, relações pertinentes com os elementos do universo perfeito.

As metamorfoses de Ahasverus, na novela, que podem ser tomadas como derivações, atualizam relações possíveis com outras personagens do arquivo da cultura, nomes que atuam como porta de entrada, ou emblemas, para que narrativas relacionadas a tais nomes, que compõem uma imensa memória, virtualmente presente, retornem segundo o vaivém do protagonista, de maneira geral à primeira vista fortuito, sobretudo a partir do momento em que, no relato, ele deixa de se fixar na personagem do "nazareno". Assim como os nomes, ou como tudo aquilo que pode provir de um nome, ou de uma imagem, também narrativas são na novela atualizadas, porém de um modo que deriva, e difere, daquele estabelecido pela tradição, o que por outro lado não impede que ela, a tradição, não deixe de estar de algum modo presente, posto que citada ainda que de forma oblíqua. Os predicados atribuídos a Ahasverus se combinam, em graus nunca de antemão definidos, com aqueles ligados a cada um dos nomes em que ele se metamorfoseia. Ocorre uma espécie de enxerto entre referências diversas, que produz algo de distinto.

A função integral, por sua vez, implica uma impossibilidade de totalização, o que pressupõe uma identidade de essência, um fechamento, nunca, contudo, realizável pelos humanos, na medida em que constitui outro privilégio ou atributo de Deus. Ao narrar o processo pelo qual Ahasverus, num primeiro momento, procura com todas as suas forças aproximar-se do divino, para depois, na sequência, concluir pela necessidade de desvincular-se do "nazareno", ou de outras manifestações humanas da divindade (como o "Sidartha", por exemplo), a novela acena para o mal-estar decorrente da difícil situação humana, espremida entre a afirmação de si e a submissão a uma potência transcendente, entre sua significante insignificância e a postulação de uma total soberania.

Ahasverus, com efeito, deixa para trás a angústia de seu sempre infrutífero caminhar, "à procura de Deus", para daí aceitar o universo como algo inatingível e inesgotável, "que escapava à sua compreensão", o que fará com que ele se identifique com todos os demais seres e entes (e mesmo com abstrações, como uma "consciência"), acabando por ver-se enquanto um enigma tautológico ("era apenas o que era"), responsável, contudo, por criar e manter vínculos com o que lhe é estranho, isto é, o alheio. Ele então se define como "um criador permanente de realidades singulares em conflito com outras realidades singularizadas", escapando assim de cair na maior tentação imaginável, "absolutizar-se como deus, perder-se na indistinção de sua consciência se gerando ao contato com uma totalidade que sempre o ultrapassou e ultrapassará" (Rawet 2004, 471). Por isso, na conclusão da narrativa, Ahasverus, ao se metamorfosear num sem número de seres e entes, tem o propósito de tão somente "sondar" o mundo, isto é, perceber o mundo enquanto outro, segundo uma perspectiva sempre outra. Inclusive como outro de si mesmo, o que fica explícito quando Ahasverus se metamorfoseia em "AHASVERUS", a caixa alta marcando a irredutível diferença resultante da passagem, da relação das modalidades de um mesmo ser, mas que nem por isso, como na passagem há pouco citada, deixa de trazer em seu próprio íntimo a potência da subdivisão.

O fragmento antes transcrito incorpora ainda outro elemento inquietante, uma proposição que engendra um novo enigma resultante do estabelecimento de uma relação entre nomes e números, entre o sistema de codificação numérico e o sistema de codificação alfabético. Com a menção à sequência de letras entre A e J, combinadas em sua sucessão à sequência de números entre 1 e 10, resulta, caso as sequências sejam dispostas em coordenadas, nos eixos das abscissas e das ordenadas, o desenho de um diagrama. Neste, ademais, é assinalada, caso se trace uma linha que una os pontos em que as projeções de cada número e letra se encontram, uma diagonal inclinada 45 graus em relação ao ponto zero, em que o eixo das abscissas e das ordenadas se cruzam, conforme indicado abaixo (gráfico 1):

O desenho resultante apresenta, ou melhor, reapresenta, os dois triângulos retângulos, e isósceles, unidos pela diagonal que compartilham. Acima dela, da diagonal, o texto identifica a ausência de qualquer cor, o que configura um domínio em que impera uma modalidade do indistinto, uma totalização, expressa pela ideia da unidade, na qual joga um "pensamento puro" (pode ser o espaço do "Um", depois mencionado). Abaixo dela, é postulada a presença de uma "cor do terror", também um absoluto que não deixa de ser outra modalidade do indistinto, de uma unicidade (pode ser o espaço do "Zero", adiante nomeado). O gráfico imaginado (e retorna a questão: por quem?) institui um traço, ou um limite, por mais ínfimo que seja, no qual a indistinção (das duas plenitudes complementares) é interrompida, mesmo por apenas um átimo, o que deixa entrever um intervalo em que o distinto passa a ser possível, antes que a fronteira do vizinho império da indistinção de novo o anule. Aí, nesse abismo, nessa região abissal em que entre o "Zero" (o excesso de cor) e o "Um" (a ausência de cor), caso mantidos na distância certa, brota uma "luz total", é onde a vida acontece. Nessa transversal, que enquanto traço une-separa, de todo modo interrompe, abre-se (ou brota) a possibilidade do estabelecimento, mesmo provisório, de forças mínimas, mas que, caso entretenham relações, podem ousar ferir ou rasgar a couraça dos incomensuráveis do além e do aquém, do acima e do abaixo que a todos comprimem. O traço situa assim o território onde a existência é possível, realizável no modo da modulação, da deriva e da errância.

Uma existência que persiste em sua metamorfose infindável, que não se anula nos absolutos da luz, em que fulguram apenas formas ideais, ou do terror, que implica uma ausência também ideal de formas, mas que, de todo modo, consistem em abstrações resultantes da imposição de um pensamento puro, ou da pureza (pois da alternância, do "esconde-esconde" de que brincam o "Zero" e o "Um", esses incomensuráveis, brotam apenas "objetos perfeitos, criaturas perfeitas, ideias perfeitas, esferas perfeitas", isto é, tudo aquilo que obedece a modelos e se distancia do confronto, da explosão ou do turbilhão que marca e mancha os seres e as coisas desde e para sempre imperfeitos).

Ali, nesse traço que constitui uma espécie de corda bamba em que a vida a custo se equilibra, relações entre os nada que são os seres têm algum peso específico, mesmo que no modo de uma permanente impermanência, de uma impertinência. Aí se situa o corte, o rasgo ou a fenda que podem apoiar o clíno e o klímax, a escada e a gradação, de que advém a declinação, ou seja, a nomeação e a derivação, e a inclinação, no sentido de estar inclinado a, ou por, um estar dobrado como e com o barroco. É aí, nesse não-lugar, que pode ter lugar o clinamen, palavra com a qual Lucrécio, conforme Mario Perniola, designa "o encontro entre os átomos que dá vazão à formação do mundo" (37), e que propicia a ocorrência de uma continuidade de distinções, isso a despeito da imensa força dissuasiva do indistinto que a ameaça.

Em Pintura, Gilles Deleuze discute o conceito de diagrama, expressão que inclusive fornece o subtítulo para o livro que reúne as aulas de seu curso oferecido na Universidade de Vincennes, entre março e junho de 1981. De acordo com o argumento então exposto, o diagrama relaciona-se intimamente com a pintura, introduzindo um tipo de similutude que opera de modo analógico, escapando por isso do âmbito mais restrito do código que, por obedecer a regras convencionais, fica restrito ao âmbito digital. A característica inicial atribuída ao diagrama decorre da relação entre as ideias de caos e gérmen, pelas quais postula-se a existência, nele, de uma ordem do abismo, ordem essa traçada por uma mão desencadeada, ou seja, liberada de sua subordinação a coordenadas visuais previamente determinadas. Deleuze, com isso, afasta-se de uma concepção da pintura como arte visual, fundada pela linha e pela cor, considerando-a, ao contrário, como antes de tudo ligada ao sistema conjugado do traço e da mancha, cuja conotação é da ordem da mão ou do gesto. Traços e manchas, de todo modo, para ele não constituem uma forma visual, posto que avessos a uma diferenciação definitiva, aparecendo como espécies de derrubamento. Daí o tom cinza que o autor encontra no diagrama, "o cinza do negro/branco em que se derrubam todas as coordenadas visuais", e "do qual vai sair a gama de luz", "e o cinza do verde/roxo do qual vai sair toda a gama de cores" (Deleuze 2007, 99).

Deleuze define a mancha como o cinza cuja tensão escapa da dialética entre a mão e o olho, e recai, como mácula, sobre a própria mancha de que provém. Esta traz consigo, portanto, a potência da diferenciação, também característica do traço, que não se confunde com a linha na medida em que possui a propriedade de em nenhum momento preservar, como esta, uma direção constante e definida.

O diagrama, enquanto relacionado ao sistema do traço e da mancha, a exemplo do que em outro registro foi observado por Walter Benjamin, também segundo Deleuze atua no quiasma em que repousam um antes e um depois, um passado e um futuro, isso na medida em que interrompe a anterioridade do mundo visual extraindo dele, em um depois, a própria pintura, cuja propriedade maior, por assim dizer, é a de desfazer semelhanças, o que permite o surgimento de verdadeiras imagens, potências. O diagrama, nesse sentido, atua no revés da representação, desfazendo-a para que possam sobrevir presenças, isto é, imagens não dotadas de semelhança prévia.

Voltando mais uma vez à narrativa assinada por Samuel Rawet, agora a partir da perspectiva desdobrada por Deleuze, torna-se possível perceber que o diagrama nela projetado, e, neste, o traço que envia ao turbilhão compartilhado pelo narrador, pelos leitores e por Ahasverus, não apenas abrem uma brecha no vasto campo em que o indistinto reina absoluto, como assinalam a pertinência e a pertinácia do processo de apossamento, também transitório, de elementos de uma tradição narrativa, e artística, que Ahasverus incansável realiza. Tal tradição fornece um arquivo de textos, sons, imagens e sensações, consiste numa espécie de paleta, de onde eventos e situações históricas e ficcionais são recortados e reanimados, depois de passarem por um processo de derivação, cuja valência beira o inesgotável e que lhes permite pairar sobre o limite do indistinto. Na novela, de modo análogo ao que ocorre no âmbito da pintura, segundo a formulação de Deleuze, o diagrama derruba e reconfigura matérias e materiais pré-conformados, idealmente perfeitos, e instala "uma possibilidade de fato" (2007, 102), algo que apenas se produz, algo em permanente produção, sempre colocando em relação planos distintos, de outro modo incompatíveis.

O evidente incômodo causado pelas Viagens de Ahasverus, ao modo de um alento, evidencia a desilusão ante o fato de a evidência não encerrar um sentido único, não encerrar com o sentido. O incômodo é sintoma da dificuldade de lidar com enigmas inelutáveis, anunciada pela personagem de Ahsverus, ela mesmo enigmática, mancha que é, posto que seu destino é o de tornar impossível a chegada a qualquer destino definitivo, a qualquer resolução final. Com ela, que nos alerta para o duro, mas, a depender do ponto de vista, reconfortante fato de que a história, e as narrativas, estão sempre abertas, de que são e serão incontáveis, a verdade, qualquer verdade, aparece como um conceito desprovido de lugar e tempo próprios, que está e é exilada em terra alheia, e nada mais faz que convidar a pensar na deriva, e à deriva, o que só traz um ainda mais derivar.


1 No campo literário, Samuel Rawet (1929-1984) foi contista, dramaturgo e ensaísta. Publicou as seguintes coletâneas de contos: Contos do imigrante (1956), Diálogo (1963), Os sete sonhos (1967), O terreno de uma polegada quadrada (1969) e Que os mortos enterrem seus mortos (1981), além das novelas Abama (1964) e Viagem de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado (1970). Alguns de seus ensaios foram reunidos em Consciência e valor (1969), Homossexualismo, sexualidade e valor (1970), Alienação e realidade (1970), Eu-tu-ele (1972) e Angústia e conhecimento (ética e valor) (1978). Colaborou também, com contos, ensaios e artigos de opinião, em diversos jornais e revistas, sobretudo do Rio de Janeiro e de São Paulo. Recentemente a editora Civilização Brasileira publicou seus Contos e novelas reunidos, organizado por André Seffrin (2004) e seus Ensaios reunidos, organizado por Rosana Kohl Bines e Leonardo Tonus (2008). As peças de teatro de sua autoria permanecem, em sua grande maioria, ainda inéditas.

2 Referindo-se ao caráter inovador do pensamento perspectivista proposto por Leibniz, Deleuze ressalta: "Jamás se había identificado el concepto y el individuo, jamás una voz en el dominio del pensamiento había resonado para decir que el concepto y el individuo son lo mismo. Siempre se había distinguido un orden del concepto que remitía a la generalidad y un orden del individuo que remitía a la singularidad. Aún más, siempre se había considerado como evidente que el individuo como tal no era comprehensible por el concepto, se había considerado que el nombre propio no era un concepto" (2006, 31).

3 As referências, neste parágrafo, provêm notadamente de Michel Foucault, em especial da conferência "O que é um autor?", em Ditos e escritos III - Estética: Literatura e pintura, música e cinema (2001, 264-298).

4 O conceito de sacrifício é aqui considerado com base na discussão sobre o Homo sacer, realizada por Giorgio Agamben em Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I (2002).

5 A noção de aparelho (ou aparato), aqui mencionada, tem por base proposições de Jean-Louis Déotte, que brevemente o define, em La época de los aparatos (2013), como "la mediación entre el cuerpo (la sensibilidad afectada) y la ley (la forma vacía universal) que Schiller designaba forma soberana. La ley, que no debe entenderse aquí en un sentido limitado, jurídico, es aquello por lo cual, gracias a un aparato, el cuerpo parlante se abre a lo que él no es: el acontecimiento" (27) (destaques no original).

6 Traduções para o português de parágrafos escolhidos da "Teodiceia", bem como dos originais de "Sobre a origem fundamental das coisas" e de "Uma série de maravilhosas demonstrações sobre o universo" estão disponíveis no endereço da página Leibniz Brasil: www.leibnizbrasil.pro.br


Referências

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Déotte, Jean-Louis. 2013. La época de los aparatos. Trad. Antonio Oviedo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo.         [ Links ]

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Foucault, Michel. 2001. Ditos e escritos III. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Org. Manoel Barros da Motta. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

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