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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

versão impressa ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.20 no.2 Bogotá jul./dez. 2018

https://doi.org/10.15446/lthc.v20n2.70501 

Artículos

Para uma teoria da burrice

Hacia una teoría de la estupidez

Toward a Theory of Stupidity

Matheus de Brito1 

1 Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil, theosdebrito@gmail.com


RESUMO

Este artigo pensa as condições da burrice como um estado de coisas e um processo, os quais estão associados, como tratamos na primeira parte do texto, a um quadro institucional que não consegue ou prefere não dar uma resposta teórica adequada ao que poderíamos chamar, frouxamente, de "epistemologia naturalizada", no sentido de "natural ao capitalismo tardio", e que será o tema da segunda parte. Na terceira, pensaremos como essa burrice sistematicamente produzida, por sua vez, está intrinsecamente associada à própria concepção dos objetos de estudo e de crítica literária.

Palavras-chave: estudos literários; anti-intelectualismo; crítica; teoria; discurso

RESUMEN

El artículo se ocupa de las condiciones de la estupidez como un estado de cosas y procesos que están asociados, como tratamos en el primer apartado del texto, a un marco institucional que no logra o prefiere no dar una respuesta teórica adecuada a lo que podríamos llamar, laxamente, "epistemología naturalizada", en el sentido de "natural al capitalismo tardío", de la que se ocupa la segunda parte. En la tercera, pensaremos cómo esta estupidez sistemáticamente producida, a su vez, está intrínsecamente asociada a la propia concepción de los objetos de estudio y de crítica literaria.

Palabras clave: estudios literarios; antintelectualismo; crítica; teoría; discurso

ABSTRACT

The first part of the article discusses stupidity as a state of things and processes associated with an institutional framework that fails to or prefers not to provide an adequate theoretical response to what we could loosely call "naturalized epistemology", in the sense of "natural to late capitalism", which is dealt with in the second section. In the third part, we reflect on the way this systematically produced stupidity is, at the same time, intrinsically related to the very conception of the objects of study and of literary criticism.

Keywords: literary studies; anti-intellectualism; criticism; theory; discourse

OTÍTULO DO TRABALHO SOA UM POUCO "politicamente incorreto", que é uma licença por regra associada ao incômodo com a ideia de democracia. É "incorreto" sobretudo porque um dos pressupostos da formulação de uma teoria1 é a possibilidade de observar um fenômeno desde fora, e aquele que evoca a ideia de "teoria da burrice" não apenas se exclui performativamente do conjunto observado como, por se tratar basicamente de uma censura, sugere estar moralmente acima de tudo aquilo. Mas ainda: "teorizar" a burrice vai de encontro às trends discursivas dos estudos literários. Em contrapartida, é um truísmo que um sintoma de burrice é imaginar-se fora dela, como se diz dos loucos. Alguém que manca do espírito, numa figura de Blaise Pascal, tem menos ciência disso do que alguém que anda torto. O manco do espírito julga torto. Só que é difícil julgar quão torto.

Isso seria suficiente para não falar em burrice, mas há alternativa? Idiota, bruto, inepto, néscio - pobre em faculdades. O valor conotado por essas expressões sempre surge em primeiro plano porque elas se referem a um campo semântico estruturado apenas via negativa. Dizer de alguém que é burro é negar que seja um homem, como ser dotado de razão e consciência. Essa é uma autorreferência comum às instituições liberal-democráticas, entre as quais, a Universidade. Consciência seria aquilo que faz das escolhas do indivíduo mais do que um reflexo animal; a razão por sua vez mediaria a consciência particular e o ideal regulativo universal "Humano". A burrice nesse sentido seria então uma incapacidade ontogenética, uma falha no desenvolvimento do indivíduo. Embora não seja o foco aqui, esse estrato mais visível indica o primeiro ponto duma teoria da burrice: a burrice é uma possibilidade universal. Como tal, a ideia de que alguém possa efetivamente ser burro causa desconforto ao discurso edulcorado do universal reconhecimento das capacidades dos homens, pois expõe a fragilidade de seus próprios pressupostos. Esses pressupostos só se consolidam pelo apagamento daquilo que na realidade nega o seu conceito, isto é, a burrice real desmente a universal capacidade dos homens. Digo isso pensando sobretudo na palavra de ordem de um estudioso que propunha uma "expulsão do espírito das ciências do espírito", que é como se chamam as Humanidades na Alemanha. A ideia é a de que o "espírito", que se associa ao ideal de Homem, estorva o saber.

O emburrecimento é total, não local, pertence ao universal na condição de prius do indivíduo, e não é derivado de nenhuma instância particular; é função sistêmica, e não uma questão de degeneração em curso ou uma condição progressivamente superada. Parece mais adequado seguir os velhos iluministas e tomar a incapacidade como realidade universal, só então pensando a saída da burrice como humanização. Do mesmo modo como não há noção moralmente higiênica que sirva ao propósito de elucidar algo sobre a "burrice", não há possibilidade de estar "fora da burrice". No entanto, minha comunicação tem por título "Para uma teoria da burrice" precisamente por conta do indissolúvel nexo entre a posição subjetiva de observador e o objeto observado, que limita desde dentro uma "teoria da burrice" a ser um bricolage sobre a burrice da teoria, numa polêmica particular. Esse nexo, da burrice como um estado objetivo do mundo, é o meu interesse aqui, e não a burrice como qualidade predicável a pessoas. Juntando tudo isso ao universo das Humanidades e dos estudos literários, ao meu título apelativo eu faria essa restrição. Seria algo como: Para uma teoria da burrice, ou: a crítica das Letras por uma fresta.

O que interessa aqui é pensar as condições da burrice, como estado de coisas e processo, como forma de interação social, os quais 1) associam-se a um quadro institucional que prefere não dar uma resposta teórica adequada ao que poderíamos 2) chamar de "epistemologia naturalizada", no sentido de "natural ao capitalismo tardio" ou à "democracia liberal", que é seu braço discursivo. Essa burrice sistêmica, por seu turno, 3) está intrinsecamente associada à própria concepção dos objetos de estudo e crítica das Humanidades.

1. Crises e a institucionalização da burrice

Não é possível, nesse espaço, oferecer um retrato acurado da relação entre as Humanidades e a institucionalização da burrice. Podemos, porém, tomar algum "nó" que nos sirva para perceber quais são os fios que aí se entrelaçam. Um deles é o topos da crise das Humanidades -o topos burro-em-fuga por excelência: as pessoas já não leem e estão cada vez mais burras, ninguém se importa com a literatura, juventude alienada, fim/ morte da arte (por vezes celebrada na televisão a cores), etc. Esse discurso, supostamente orientado contra o emburrecimento progressivo dos homens, subscreve o valor autoevidente, progressista, moralmente bom, edificante e democrático por natureza das instituições culturais burguesas. Mesmo quando essas instituições são questionadas -quando sua falência é, como a roda, reinventada-, no mais das vezes o que se pretende é uma abonação daquilo que lhes ficaria às margens, não contemplado por sua promessa: de um lado ficariam os defensores da grande cultura com cheirinho a naftalina, do outro, aqueles que a tal modo creem na mais-valia do lexema cultura que precisam projetá-lo novamente em produtos periféricos relativamente ao cânone. Esses ataques não atingem o núcleo duro dessas instituições, pois se limitam, por assim dizer, a alguma reconfiguração semântica, um trocadilho de reconhecimento.2

Eu trago aqui uma imagem datada do início dos anos setenta, uma de várias manifestações de uma figura da anticrise, que é muito mais interessante para a ilustração do "nó" de burrice:

A literatura torna-se uma justificação para o fim da hiperactividade [sic] interpretativa. A inexauribilidade torna-se uma justificação para cada nova geração de scholars literários que ganham o seu pão quotidiano com a emergência de novas interpretações. (Aguiar e Silva, Camões 37)

Cinco décadas atrás, vale lembrar, as Humanidades não se tinham espraiado como hoje. Nem o chamado "producionismo" -igualmente criticado pelos alarmistas- era, até onde sei, algo da ordem do dia. Se se tratar de Norbert Mecklenburg, ele mesmo um scholar vintaneiro à época -o que o Professor Mecklenburg aí exprime é mais do que uma recusa à aparente desqualificação da atividade interpretativa pelo arrasamento das tradicionais fronteiras que determinavam sua validade. O que parece ser um comentário chistoso à ebulição teórica e às modas emergentes3 ganha sério valor de verdade quando pensamos que esse topos do ganha-pão é ainda uma década depois retomado por Siegfried Schmidt, da Ciência da Literatura Empírica e da revista Poetics (Holanda), ao referir-se à interpretação como atividade central no mercado acadêmico, além de ser seguido por Hans Gumbrecht, que também dirá que a singular causa para a sobrevivência dos estudos literários é não termos o interesse de resolver a inconsistência de nossas premissas disciplinares.4 Poderíamos voltar a mencionar também Friedrich Kittler, que propunha na virada para a década de 1980 uma expulsão ou exorcismo do espírito das humanidades, um trocadilho análogo a desumanizar as Humanidades ("Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschaften"). Mais especificamente, Kittler saudava o pós-estruturalismo5 como corrente que dava cabo da figura do sujeito e do homem nas Humanidades, remetendo à conhecida passagem do Evangelho em que Jesus expulsa o demônio "Legião" para uma manada de porcos (Mateus 8:28-34; Marcos 5:1-20). Com efeito, o que essa série de tópicos e a analogia não dizem é do reestabelecimento e posterior ampliação da universidade europeia no Pós-guerra, que se dá com o ingresso massivo de jovens que não tinham uma formação prévia relativamente à cultura erudita, senão limitada ao discurso oficial do Estado.6 Esses são os energúmenos de Kittler.

Aversão e repulsa à instabilidade e aos usos da interpretação convergem, nesse contexto, com uma rebarbarização discursiva. No entanto, essa aversão faz uma petição legítima e diz: "isso não é vale-tudo", "isso não é um infantário". Seria possível objetar que o aparente excesso de espírito nas Humanidades é algo como o excesso de impulsos da época, mas isso não tornaria essas outras perspectivas imediatamente verdadeiras. O vale-tudo é falso, mas a inverdade tem a seguinte motivação: o mundo quer apagar a linha existente entre a academia e o senso comum, mas quer fazer isso reduzindo o intelecto à opinião. Essas injunções do mundo alimentam negações "do alto": desespiritualizar, desumanizar. Claro, Schmidt e Kittler, ou Gumbrecht, nenhum deles é particularmente "burro" nem simplesmente anti-intelectual de um modo abstrato, mas em sentidos específicos: Schmidt e Kittler, ao insistirem numa espécie de neopositivismo como remédio para a instabilidade própria à abertura da Universidade aos interesses da sociedade de massas; Gumbrecht em sua mais persistente investida num neossubstancialismo reconciliatório, que aqui e ali sugere que os estudos literários se rendam ao colorê do mundo administrado. Na medida em que intelecto é consciência, poderíamos falar num anti-intelectualismo por restrição da tarefa intelectual a questões de método -ou, melhor, de um (sempre pseudo) intelectualismo como figura invertida da burrice. Na medida em que é razão, e mais obviamente nesse caso, podemos falar num estilo anti-intelectual laxista, pretensamente orientado às vivências concretas das pessoas. Essas seriam as duas vibes da burrice hoje. Ambas na prática "desmentem" a definição de homem como dotado de razão e consciência, pois custeiam sempre uma às expensas da outra.

Enquanto um retrato a correr em paralelo, as condições de reforma das Universidades alemã e europeia levavam a uma situação que nos é bastante afim no Brasil quantas décadas depois: uma instabilidade de coordenadas cognitivas ou epistêmicas e, por conseguinte, uma série de impasses judi-cativos, de uma maneira descompassada associados a um curso acelerado de transformações do espaço acadêmico, cujo pregão democrático serve a obscuros imperativos sociopolíticos e econômicos. Aqui eu não poderia justificar, mas posso sumarizar o que surgiu na minha investigação doutoral e que voltará na sequência: impera hoje uma ideia de estudo da literatura cuja credibilidade se pauta na corroboração discursiva, e as dificuldades implicadas, de estabelecer o objeto e a natureza específica desse saber se juntam à consequente circularidade dos meios que supostamente lhe seriam adequados. É uma coerência excessiva com o estado social. A pobreza espiritual resultante é maquiada ou compensada pedagogicamente, num cenário que faz da Universidade a extensão da escolinha.

A conclusão é a esperada: uma das tarefas da teoria literária seria reinventar as condições da disciplinaridade de modo a responder a um problema específico da reprodução de nossas instituições. Essa tarefa não passa pela carnavalização das abordagens contra o espantalho dum status quo acadêmico, nem pela ratificação de imagens normativas de ciência, nem pela injeção de temas políticos, nem pela tentativa de fazer a academia prestar serviços ao mundo "secular" ou pela santificação beletrista dos objetos de estudo. As condições perpétuas da moda teórica reduzem o crítico a manipulador de categorias prontas-para-vestir e postas imediatamente a serviço de algum grupo. No mais, trata-se duma condição objetiva da reprodução das instituições, que se instala no âmago da atividade de produção de saber -a redução do pensamento a método, a atalho. Num sentido muito específico, método é o intelecto que virou burrice. O logro dessas tentativas está em se oferecerem muito apressadamente à burrice institucional, ao êxito sociopolítico da consciência reificada. A reinvenção depende hoje de uma radical autocrítica da burrice em todas as suas manifestações.

2. A teoria e o discurso da burrice

Outra forma de acessar o "nó" da crise é tomá-la como figura discursiva cuja finalidade por vezes é a de aproximar o conhecimento das Humanidades ao mais geral da experiência social, ou de reivindicar-lhe legitimidade. No Brasil, o quadro específico é a ampliação do acesso sem as garantias de funcionamento ótimo da Universidade, uma pseudodemocratização que segue compassos violentos ditados pela desigualdade social e pelas lacunas da educação básica. Sem condições de criar um espírito autônomo, que possa perceber o mundo à distância e, nessa medida, oferecer à sociedade respostas adequadas -respostas que sejam mais do que esse mundo já espera-, surgem dois aspectos da alienação das Humanidades: a porosidade discursiva hoje triunfante, isto é, a injeção imediata de expectativas sociais em meio aos seus propósitos cognitivos particulares, e uma subserviência espertamente lamentada relativamente às agências de pesquisa e esquemas de avaliação.

É verdade que uma das formas institucionais da burrice foi ou é, muitas vezes junto a um espírito ou ideal de "cânone", o alexandrinismo metodológico. A autonomia satisfeita consigo mesma. A burrice aí toma forma da crença conforme a qual a linguagem esotérica do especialista é capaz de, por si própria, conjurar uma verdade mais profunda do objeto, como se uma análise retórica exaustiva -para reprismar De Man- fosse fazer mais do que simplesmente falar sobre a própria linguagem antes de tudo empregue para configurar o objeto em causa. Essa imagem da burrice institucional, condensada na figura do erudito desprovido de vitalidade, é um bocado passée e a bem da verdade é um espantalho de que as gerações se servem para legitimar o seu estado determinado de burrice, desqualificando o velho. Essa crença condensa um processo característico da burrice, o curto-circuito no qual incapacidade de autonomia das faculdades converte-se prontamente em capacidade de verdade. Essa "epistemologia naturalizada", para retomar expressão do início, é também um estado histórico coletivo, o aspecto individuado do sistema social de comunicação.

Eu vou tentar caracterizar esse aspecto seguindo Theodor Adorno,7 sobretudo na Dialética Negativa. "Burrice", aliás, é uma palavra que quase desapareceu no curso das obras do autor, cedendo espaço à noção muito mais higienicamente imputável de "nominalismo". A doutrina do "nome" remete a uma discussão medieval, não à toa popularizada por Umberto Eco n'O Nome da Rosa, dado o estatuto quase dogmático de que passa a gozar nas Humanidades do século XX. Nominalismo é, grosso modo, a posição conforme a qual características ou propriedades universais não são mais do que mera palavra (nome, flatus vocis, um sopro da voz). Não interessa tanto a posição contrária, que é tabu sustentar, de que coisas como amor, causalidade, homem ou a literariedade existam em-si, embora só mediante (ou talvez não) suas manifestações particulares. O que o nominalismo epistemológico consegue, muito mais do que dar cabo dos demônios do espírito, é isolar e assegurar a unicidade do fenômeno diante do qual estamos, já que nos desobrigamos de lhes prover explicações extrínsecas e macrológicas, de reduzir o objeto à mera instanciação de alguma outra coisa já previamente conhecida. Quero chamar a esse aspecto do nominalismo algo como "regra do objeto".8

O mesmo não se passa no que poderíamos chamar "regra do sujeito". O nominalismo epistemológico deriva a dignidade da coisa, a sua unicidade, do processo social total que a engendra e, dessa forma, ao singularizá-la, resgata-a ao mesmo processo. Impede que ela se dissolva no amontoado de coisas do mundo. Uma ilustração simples de singularização, no âmbito das Letras, é a necessidade de estudarmos selecionando algumas obras a partir de um conjunto -digamos, romances produzidos no século XIX- e com esse fim aplicar o duplo critério da exemplaridade, segundo o qual nós temos antes de tudo o conjunto e a especificidade, sem o que não se justificaria a escolha de uma e não de qualquer obra. A regra nominalista do objeto começa quando recusamos o hiperônimo "romance" e descobrimos em determinada obra uma operação própria -damos com isso, por assim dizer, um nome próprio à obra. Tudo aquilo que não se mostra singular, nesse sentido, sucumbe sob a forma do típico. A consciência nominalista, em contrapartida, seria aquela que recusa ativamente ou mesmo proíbe a ideia de que o fenômeno que ela tem diante de si é outra coisa que não simplesmente aquilo, recusa-se a pensar o diverso, pois ela se sustenta com base na sua própria imediatidade. É uma questão prática a princípio, pois o pensamento é sempre excessivo relativamente à práxis cotidiana normalizante. No entanto, na medida em que esse "juízo torto" prático se torna a regra para a construção das referências do sujeito -isto é, na medida em que o indivíduo se apega tanto ao caráter imediato de suas impressões quanto à sua própria linguagem, como se ambas fossem suas e como se elas constituíssem em definitivo o que é o caso, então nós estamos diante da burrice em sua forma socialmente sancionada.

Na regra do sujeito, portanto, não é o fenômeno o depositário de uma dignidade emprestada à história e às instituições que são suas causas e fins, mas unicamente o sujeito reivindica para si essa dignidade. Adorno percebe essa burrice como esclerose e dá-lhe, na esteira de Lukács, uma coordenada sócio-histórica, seria o relativismo

uma limitada figura da consciência. De início, essa foi a do individualismo burguês, aquele que, sendo a consciência individual por sua parte mediada pelo universal, toma-lhe como algo último e por isso atribui o mesmo direito às opiniões dos indivíduos afinal particulares, como se não houvesse nenhum critério de sua verdade.9

É uma inversão que ressurge de modo paradoxal na sobreposição entre o individual -o argumento da minha opinião, da minha perspectiva, da minha voz- e o universal que o assegura. O direito de todos à opinião, perspectiva ou voz é o nexo puro de um indivíduo a qualquer outro e a todos os demais, transfigurado em moralidade. Não tem substância. Como na produção acadêmica não têm lugar essa figura moral do indivíduo e o consequente relativismo oco que ela implica, não é de se admirar que a burrice natural precise instruir-se e constituir-se em contrabando teórico.

Ainda a seguir Adorno, ou Lukács, um dos fatores do processo social de emburrecimento é o apagamento da consciência histórica. É possível percebê-lo melhor através de uma "escala de burrice instituída". Entre esse asseguramento do individual e o apelo à instância universal, que fica reservado para o sacramento da opinião, há uma série de círculos institucionais, que nunca surgem como constitutivos da experiência, mas são a posteriori endereçados, como a autoridade que vem ao socorro de juízos mal fundamentados relativamente às circunstâncias em que se apresentam. Ou "eu como especialista", ou "sustenta tal autor no livro tal", ou "é minha premissa teórica". Obviamente nada disso é burro, salvo quando: 1) parte da suposição da imediatidade como fundamento, de que resultaria 2) a possibilidade de partilha espontânea (com forte investimento afetivo na autoridade) e, por fim, 3) a partilha efetiva no coletivo dos que vestem a camisa do determinado conceito ou doutrina. Quanto mais desprovido de força de resposta, de capacidade de pensar a objetividade para além da simples reação imediata, mais as reivindicações de primazia da experiência individual se apoiam na circulação de figurinhas-mestres.

Posso aqui voltar a Adorno:

é somente graças ao princípio da autoconservação individual, com toda a sua estreiteza, que o todo funciona. Ele obriga cada indivíduo a olhar unicamente para si, prejudica sua intelecção da objetividade e, assim, se transforma pela primeira vez efetivamente no mal. [... vinte e algumas páginas depois] O encanto mítico secularizou-se e se transformou em interprenetração [sic] real e adaptada, sem solução de continuidade. O princípio de realidade ao qual os homens espertos obedecem para sobreviver cativa-os como magia negra; eles são tanto menos capazes e estão tanto menos dispostos a se livrar do fardo porque o mágico dissimula esse peso para eles: eles tomam esse fardo pela vida. (Dialéctica 260, 288)

A estreiteza, aqui, a burrice, é um circuito: depende da formação do ego como resposta às condições adversas da realidade, e, de seguida, duma recursão ou reentrada, do ensimesmamento que transforma o meio (o ego) em seu próprio fim. A gênese da contemporânea subjetividade (e nas derivadas concepções de Homem, História, etc.) parece tomar a figura de um umbigo que não cicatriza. Junto ao tema psicanalítico, Adorno volta à tese antropológica mais ampla de que o estágio mítico da consciência humana teria se convertido em lei das instituições modernas. Esse é um novo circuito formado pela acoplagem da autoconservação do indivíduo à conservação da espécie é um cordão umbilical. O que está em discussão não é tanto a consistência do ego, aquilo que já foi irremediavelmente feito aos homens, mas sobretudo a captura do processo de formação do sujeito pelo da reprodução do sistema, a rigor, pela perenização do mercado, do todo em nome do qual cada um dos homens é estropiado. A figura do "mágico" é a astúcia: o modo de produção assegura a participação de todos ao maximizar os mecanismos de emburrecimento, e suas injunções ao espaço do indivíduo são o ponto de acoplagem.

Contra o feitiço, Adorno sugeriria mais sujeito -isto é, mais movimento do sujeito em direção à coisa do que aquilo que é solicitado pela liturgia da sujeição. A saída do aprisionamento na burrice começaria pelo reconhecimento de que o caráter imediato da experiência é parte do processo social que a arregimenta. O imediato não é, dessa perspectiva, um fundamento, mas um aspecto. Ele tem de ser remediado. Esse meio caminho sem sombra de dúvida causa uma "angústia", própria talvez aos pensamentos "perigosos" e à psicanálise trivial, relativamente à dignidade ou ao papel da pessoa na constituição da experiência. Digo meio caminho porque, por um lado, a ideia da "experiência como parte do social" é por vezes canalizada pelo lugar-comum do "lugar de fala"10 e logo amordaçada pela representatividade, no sentido do enlatado discursivo compulsório (e não no do debate político-jurídico). Esse é um bom exemplo de como um insight crítico cai vítima da instituição da burrice: a introdução imediata do interesse suposto social vira uma terapia (inter)subjetivista ruim. Digo ainda meio porque, por outro lado, é essa incapacidade de autonomia que é visada por partidos objetivistas como os de Schmidt e Kittler, ou mesmo de Gumbrecht, que julgou escapar à questão. O método atua por supressão do sujeito como modo de assegurar a validade (objetividade, neutralidade, etc.) do conhecimento produzido. A sua recusa move-se no sentido duma apologia da condição residual do espírito. A mesma naturalização da incapacidade aparece nos retratos paroxísticos da subjetividade sem centro, que apenas demonstram entusiasmo por aquilo que ficou aquém do método, no estágio igualmente pré-social, pré-subjetivo da (pós-)individualidade inefável. Esse "aquém do método" é insustentável no âmbito acadêmico.11 Na medida em que é compensada, método e discurso fixam a incapacidade como sendo a natureza do sujeito individual. Domesticam o burro.

3. A astúcia da burrice na gênese de objetos teóricos

Além da burrice como situação político-institucional e como processo sociocultural, é possível pensar ainda na burrice como nexo teórico-discursivo do campo dos estudos literários, senão mesmo das Humanidades. Aí, a um só tempo, burrice designa qualidade, estado e processo. "Teórico-discursivo" implica que a ideia de "método" nas Humanidades não é substancialmente distinta12 da participação no time dos iluminados-como-eu. No estudo da literatura essa distinção é problemática porque a concepção de literatura via de regra indica algo puramente mental, um objeto que existiria no mesmo nível dos construtos utilizados para seu estudo. Um objeto empírico, diante de uma teoria científica, resiste a predicações ou sofre efeitos cujas causas não estão dadas, e é essa resistência ou esse não dado que organiza a construção de um objeto epistêmico através da pesquisa. Não se passa o mesmo ao objeto de consciência que é a obra literária. O objeto de consciência é extremamente suscetível a predicações -a sua mais básica conformação é condicionada por nossa atividade mental e, por isso, basta imaginar que uma vogal é aberta para mudar o sentido de um verso, ou lançar a hipótese de que um autor omitiu tal informação para acentuar determinado caráter da narrativa. Ele é quase sempre imediatamente dado para consciência. Isso não significa que o estudo não possa ser dotado de rigor, mas que o rigor é difícil de ser alcançado e, além disso, que descamba muito fácil. Isso é especialmente válido na época em que qualquer "pensamento" corriqueiro, mero resíduo da cognição, pretende alçar estatuto de insight genial. Seja como for, muito grosseiramente sumarizando a situação das Letras, o método ofereceria as condições para a produção discursiva (de consenso) ao mesmo tempo que o discurso determinaria o material a ser formalizado pelo método. Isso gera um problema de regressão infinita. Se olhado diretamente, o objeto é um espelho torto, reflete de modo deformado as expectativas com que o abordamos; se se lhe antepõe o outro espelho torto que é o pensamento, com a pretensão de chegar a um "algo" definitivo desse objeto... então, estamos feitos.

Vou propor aqui uma ou duas narrativas para como a burrice virou teoria, virtude ou práxis teórica. Em sua versão mais próxima à crônica disciplinar, que é patente na expressão "teoria da literatura", teríamos primeiro a literatura, um corpo de textos ligados a alguns grupos humanos, e só então passaríamos à sua incorporação ao espaço acadêmico -isto é, primeiro circulam uma variedade de objetos que levam o nome de literatura e então se constrói uma disciplina teórica e métodos de estudo em torno dessa coisa literatura. A falha desse retrato é não dar conta -tal como acontece ao que se pretende fora da burrice- das inércias que constituem a própria posição enunciativa. Falta-lhe não algum dado histórico, mas consciência das implicações. A segunda narrativa põe as implicações à vista, partindo do processo: primeiro se concebe um modelo normativo de "ciência", a partir do qual se propõe um programa de formalização específico sob o nome de "literatura", e esse conceito formal de literatura é preenchido por aquele corpo de textos de interesse para o conhecimento humanístico, mas que são conceitualmente estropiados para caber na designação "conhecimento literário". De seguida, o consenso parte de premissas mais ou menos concordantes com o espírito da formalização e, no plano mais amplo do discurso, funde o caráter estropiado do objeto teórico ao caráter estropiado dos homens reais.13 O método empobrece -lamentação conhecida-, o discurso legitima o estado de coisas.

A virtude da segunda explicação está em recordar que a literatura não está imediatamente disponível como fundamento de observações que ulteriormente possam dar origem a uma teoria "científica". É claro que existe um consenso anterior às disciplinas da atual Universidade, mas ele é fundamentalmente dotado de um teor normativo. Essa normatividade inerente aos sistemas de comunicação, que asseguram sua estabilização e, por conseguinte, uma de suas condições de efetivação, essa normatividade estropiada ao moderno conceito de literatura foi o que assegurou a diferenciação dela em relação a outras práticas discursivas e com isso sua progressiva autonomia. A imposição, porém, já inscreve no interior da coisa sua matriz teórica -a forma da comunicação fala mesmo antes de dizer algo, na medida em que as coerções do código assinalam nexos entre os homens e as coisas de que as instituições se compõem. Tudo isso se deixa ainda sentir noutro nome por vezes dado a uma porção de nossa investigação, poética. Não se trata apenas de o estudo teórico da literatura surgir, numa de suas origens recentes, como uma confusão de um modelo de ciência, mais ou menos contrabandeado pela linguística, a um modelo de produção discursiva. Os próprios objetos literários parecem já entramados numa espécie de realismo do conceito -não se trata duma coerência ou correspondência a coisas reais, "referentes" exteriores às obras, mas derivado da força pragmática das instituições que engendram, reproduzem e tornam as obras em nós sócio-historicamente determinados. Essa força pragmática é algo que não se reduz ao conjunto de enunciados e que, em verdade, mobiliza os enunciados em favor de outra coisa que não a própria instituição.

Esses aspectos normativos recalcados pela ideia de método se vingam, por assim dizer, na reinjeção de temas e partidos no discurso teórico -quando o discurso teórico nada mais é, ao fim e ao cabo, do que a teoria de uma instituição. Isso gera noções epistemológica e eticamente inconsistentes de estudo da literatura- não píncaros espirituais de contradições heroicas, mas tão só apodrecimento junto às demais figuras burguesas ensimesmadas: como na autoconservação irrefletida, estamos mais ocupados de desenrascarmo-nos em nossos partidos que de pensarmos sobre as condições totais do estudo da literatura e da vida do intelecto, cujo vazio dá lugar à imbecilização da sociedade total, que é sempre aquela que avança conosco. Onde o pensamento caiu presa do método, onde se obriga a repetir o gesto de resignação a qualquer imperativo, onde é refém de sua autossuficiência ou se pretende seguro do chão sob seus pés -esses são os nós que prendem à burrice. Contra isso, seria preciso de mais espírito: mais do que o método permite, mais do que o discurso exige -é preciso sobretudo de um espírito que se oponha às suas próprias inércias. Por isso a urgência da teoria da burrice.

Referências

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1É preciso propor distinções rápidas aqui: uma coisa é a crítica literária como atividade judicativa no interior de um sistema literário, outra é a teoria como instância reguladora ou reflexiva das condições desse sistema. Como campo discursivo, a teoria contemporânea nasce da disciplina acadêmica da Teoria Literária e está intimamente associada ao desenvolvimento de modelos explicativos —teorias particulares— do fenômeno literário e outras práticas culturais verbalmente mediadas. Entretanto, é bom senso desconfiar do mau emprego da relativa autonomia de que goza, pela qual o discurso teórico é tantas vezes atacado. Seja como for, a excentricidade do sujeito em relação ao fenômeno atina a uma epistemologia objetivista inocente e de pouco crédito.

2A palavra de ordem é, desde que os media de massa colonizaram a instituição decadente da vida privada, a "representação", a participação política ou reconhecimento pelo discurso vigente. Pese que a socialização formal dos excluídos tenha um correlato jurídico-político essencial para a distribuição de justiça social por parte do Estado, imaginar a literatura como discurso hegemônico parece uma piada e, aliás, uma piada de mau gosto. É uma politização histérica iníqua opor Machado de Assis à cultura de massas ou José de Alencar a Tati Quebra-Barraco, como se esse gesto fosse magicamente transformar as condições objetivas da população que vive à margem das garantias de dignidade, sem as quais nem mesmo a mais ingênua ideia de literatura é pensável. Aliás, perante as quais a ideia de literatura é simplesmente abominável. O fundamento discursivo do relativismo cultural é uma antropologia pequeno-burguesa mesquinha, associada a uma nova espécie de liturgia da interioridade. Com a destruição de um horizonte de emancipação real dos homens, o que sobra é um ressentimento bizarro relativo a qualquer forma de liberdade e a paranoia da perda da própria liberdade já "alcançada" Isso conjuga especialmente anti-intelectualismo e interesses sociais no âmbito acadêmico, em que a matéria jurídica cede ao arrogado amnésico do discurso.

3De uma perspectiva cronológica, a Teoria Literária tem três importantes momentos: sua preparação no Entreguerras, sua institucionalização acadêmica e relativa estabilização no Pós-guerra, e sua fragmentação nos anos oitenta, que marca o processo iniciado nos anos sessenta com o "(pós-)estruturalismo".

4Vale retomar aqui Aguiar e Silva: "A proliferação de métodos e de modelos teórico-críticos, o relativismo e o cepticismo que têm erodido internamente os estudos literários, o topos obsidiante do 'declínio' e da 'morte' da literatura, a má consciência acerca da relevância social e escolar do ensino da literatura, mas também um dogmático aristocratismo que se compraz em bizantinas análises formalistas ou que eruditamente se refugia num historicismo míope, têm contribuído sem dúvida para descredibilizar aquele ensino" (As Humanidades 49-50).

5Ao que parece, a primeira recepção do pós-estruturalismo e da desconstrução der-ridiana na Alemanha está mais ligada à sua dimensão teórica e sua crítica ao valor, que era a base das "velhas" Humanidades, do que às suas consequências discursivas —relativismo epistemológico, "ventriloquismo" acadêmico (nas palavras de H. U. Gumbrecht), "niilismo" (R. Wellek), "irracionalismo" (Habermas), etc—.

6 Rüegg situa o período de expansão e democratização da universidade no final da década de i960.

7Adorno usa a expressão "figura da consciência limitada" no sentido hegeliano de "figura da consciência", que aqui se pode abreviar como configuração de forças (momentos, i. e., aspectos) particulares em "desequilíbrio" no interior do processo cognitivo que é a vida do "Espírito", do todo social. Talvez seja mais imediatamente compreensível aos nossos propósitos tratar dum "aspecto individuado da comunicação", tomando a comunicação como o medium através do qual a sociedade como tal se constitui, só depois voltando à "dialética" do processo. Para o sentido específico de comunicação como sistema social, veja-se a obra de Luhmann.

8Para uma discussão mais demorada sobre o nominalismo e seus impasses nos estudos literários, remeto à proposta por Aguiar e Silva em seu Teoria da Literatura (19 e ss.). A ideia de "literariedade" —portanto, o fundamento mesmo de um discurso sobre literatura— como "conceito aberto" parece-me um passo em falso na medida em que descarta um e acata outro dos aspectos fundamentais do nominalismo, uma certa precedência "lógico-conceitual" cuja intenção de validade (universal) não alcança a do argumento pela força histórica (e sociocultural) do conceito particular de "literatura". Assim, remeto a considerações complementares desse autor, travadas de uma perspectiva, dessa vez, socioinstitucional, em As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino de Literatura e a Política da Língua Portuguesa.

9Esta tradução é minha. O original diz: "eine beschránkte Gestalt des BewuBtseins zu erkennen. Zunáchst war es die des bürgerlichen Individualismus, der das seinerseits durchs Allgemeine vermittelte individuelle BewuBtsein fürs letzte nimmt und darum den Meinungen der je einzelnen Individuen gleiches Recht zuspricht, als ob kein Kriterium ihrer Wahrheit wáre" (Negative Dialetik 38).

10Que hoje um juízo esteja sempre e quase espontaneamente obrigado a reconhecer seu "lugar de fala", por exemplo, comunica antes a naturalização da impotência vivida pelos indivíduos do que o reconhecimento de caráter emancipatório. Ainda que nalgumas circunstâncias seja eticamente motivada, essa ressalva tem um pressuposto epistemológico danoso, na medida em faz passar por autorreflexão o que não é mais do que uma limitação exterior, que a um só tempo 1) assume que "saber" é uma certa capacidade ou vantagem de experienciar os fenômenos e 2) e remete a validade dessa imediatidade a um bojo prévio, a que o indivíduo se imagina vinculado. Não existe gesto reflexivo aí, mas adesão. Embora seu conteúdo fórico seja aparentemente diferente, enunciados como "eu como especialista" ("filósofo, poeta, torcedor do Barcelona") no contexto de reivindicações de qualquer mais-valia ao tratar de dado assunto são idênticas em sua legitimação das coordenadas sagradas do sistema. Dizem, no seu conteúdo enunciativo: "vocês não-especialistas não estão autorizados" —e então: "ninguém aqui deve falar sem a autorização do Todo, cuja graça eu, como submisso especialista, alcancei"—.

11Pense-se, por exemplo, no sem conta de trabalhos que aplicam e "mobilizam" a noção de Presença avançada por H. U. Gumbrecht, ela mesma talhada como alternativa às exigências de conceitualidade e método nos estudos literários, talhada como evangelho liberal de reconciliação do espírito com o não-conceitual, contra a mobilização geral.

12Em sua forma manifesta, a distinção estaria em como se validam —um por meio da formalização e o outro via consenso. Como exporemos, esses critérios não estão separados em sua gênese, ou na gênese de seu objeto, mas sua separação em si é que resulta da já problemática intenção de "formalizar um objeto por natureza consensual". Um exemplo anedótico pode complementar essa observação: uma tradicional forma de afastar a crítica literária dos problemas "científicos" das Letras consiste em opor atitudes proposicionais de dicto a de re, como recente me objetaram numa comunicação sobre a prática filológica como modelo para a crítica literária. Grosso modo, de dicto implica uma restrição da validade da proposição ao universo semântico, enquanto de re implica a relação a um referente extralinguístico. A hermenêutica e a crítica literária não são "verificáveis", seus juízos remetem tão só a condições semântico-pragmáticas e assim não são "verdadeiros" nem "falsos" —sustenta o neopositivista. O grande problema é que atitudes de re são facilmente capturáveis pelo "faz-de-conta" da teorização, na medida em que a descrição de um determinado estado de coisas passa por condições de dicto se se quer confrontar com algum outro enunciado proposto —isso é sobretudo válido para objetos culturais. A regressão é, no costumeiro wittgensteiniano, infinita. Obviamente não subscrevo aqui nenhum construtivismo, e tampouco quero cobrar o estatuto de "ciência" ao conhecimento da literatura, mas não se pode dar a volta nem prescindir daquilo que é progressista no nominalismo.

13Exemplo curto e grosso: para que serve a literatura na escola, quando o próprio modelo escolar de exposição e avaliação promove a atrofia, por assim dizer, precisamente dos órgãos da recepção literária? É preciso afastar a ideia de comunicação a que ela fica reduzida quando na viciada companhia da gramática e da produção de texto. Seria antes necessário aplicar à didática um problema teórico: como conceber uma obra literária como dotada de uma "alteridade", de algo insolúvel no presente, mas de modo relevante para a nossa relação com a história social?

Cómo citar este artículo (MLA): Brito, Matheus de. "Para uma teoria da burrice". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 20, núm. 2, 2018, págs. 85-102.

Sobre el autor

Matheus de Brito es licenciado en Portugués con laudabiliter et honorifice por la Universidade de Coimbra (2011). Doctorado summa cum laude en Materialidades de la Literatura por la Universidade de Coimbra, y en Teoría e Historia Literaria por la Universidade Estadual de Campinas, bajo cotutela (2017). Actualmente, realiza investigación posdoctoral en la Universidade Estadual de Campinas, con el proyecto "O ethos do dissídio na lírica camoniana", auspiciado por la Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Es miembro colaborador del Centro Interuniversitario de Estudios Camonianos (Universidade de Coimbra).

Recebido: 14 de Novembro de 2017; Aceito: 29 de Janeiro de 2018

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