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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

versão impressa ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.21 no.1 Bogotá jan./jun. 2019

https://doi.org/10.15446/lthc.v21n1.74878 

Notas, entrevistas y traducciones

Uma visão crítica da juventude japonesa no período pós-guerra: análise do conto "Um trabalho estranho", de Kenzaburō Ōe

Una visión crítica de la juventud japonesa en el periodo posguerra. Análisis del cuento "Un trabajo extraño ", de Kenzaburō Ōe

A Critical Appreciation of Japanese Youth during the Postwar Period. Analysis of the Story "An Odd Job" by Kenzaburō Ōe

Waldemiro Francisco Sorte Junior1 

1 Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Brasília, Brasil. waldemiro.junior@planejamento.gov.br


Resumo

Este artigo analisa o conto "Um trabalho estranho" (kimyō na shigoto) de Kenzaburō Ōe ( ), publicado em 1957, no qual o autor realiza uma crítica à juventude pós-guerra japonesa. Ōe presenciou a Segunda Guerra Mundial, a subsequente derrota japonesa e o período de ocupação norte-americana no país. Sua infância e juventude foram marcadas pelo choque entre os valores tradicionais japoneses e os ideais ocidentais. A discussão de diversos trechos da referida obra demonstra que o autor utiliza-se dos personagens e da narrativa do conto para censurar a letargia, ausência de comprometimento com questões político-sociais e falta de aspirações futuras por parte de sua própria geração.

Palavras-chave: literatura japonesa; geração pós-guerra; Kenzaburō Ōe; período Shōwa crítica social; existencialismo

Resumen

Este artículo analiza el cuento "Un trabajo extraño" (kimyō na shigoto) de Kenzaburō Ōe (), publicado en 1957, en el cual el autor realiza una crítica a la juventud japonesa posguerra. Ōe presenció la Segunda Guerra Mundial, la subsecuente derrota japonesa y el periodo de ocupación norteamericana en el país. Su infancia y juventud han sido marcadas por el conflicto entre los valores tradicionales japoneses y los ideales occidentales. La discusión de diversos fragmentos de la referida obra señala que el autor utiliza los personajes y la narrativa del cuento para censurar la apatía, la ausencia de comprometimiento con cuestiones político-sociales y la falta de aspiraciones futuras por parte de su propia generación.

Palabras clave: crítica social; existencialismo; generación posguerra; Kenzaburō Ōe; literatura japonesa; periodo Shōwa

Abstract

The article analyzes the story "An Odd Job" (kimyō na shigoto) by Kenzaburō Ōe ( ), published in 1957, in which the author carries out a critique of postwar Japanese youth. As Ōe witnessed World War II, the ensuing Japanese defeat, and the period of American occupation of his country, his childhood and youth were marked by the conflict between traditional Japanese values and Western ideals. The analysis of selected parts of the story shows that the author uses both characters and narration to denounce the apathy, absence of commitment to political and social issues, and lack of aspirations for the future of some of the members of his own generation.

Keywords: social critique; existentialism; postwar generation; Kenzaburō Ōe; Japanese literature; Shōwa period

Introdução

ESTE ARTIGO EXAMINA O CONTO "Um trabalho estranho" (kimyō na shigoto), de Kenzaburō Ōe (), publicado em 1957, no intuito de demonstrar que essa história funciona como uma alegoria à situação da sociedade japonesa no período pós-guerra. Trechos selecionados do conto demonstram que Ōe realiza, por intermédio da descrição do comportamento e atitudes dos personagens, uma crítica à letargia e à falta de comprometimento com questões políticas e sociais por parte da juventude de sua geração.

Existem diferentes formas de se abordar uma obra literária. É possível analisá-la pela perspectiva linguística, enfatizando o estilo empregado e o uso de técnicas como metáforas, aliterações e assonâncias. É também possível explorar uma obra pelo contexto histórico no qual foi produzida, enfatizando questões sociais, conflitos de classes, problemas políticos, além de outros aspectos. Na verdade, "por ser um membro de uma sociedade, o escritor não pode deixar de refletir em sua obra aspectos dessa mesma sociedade, ainda que eleve a um plano estético seus problemas pessoais" (Montes 247). Pode-se, ainda, examinar uma obra investigando-se as experiências de vida de seu autor, como forma de identificar os principais fatores que sobre ele exerceram influência. Nessa linha, é possível que se procure encontrar a própria intenção do autor no momento da concepção de sua obra. Entretanto, conforme assevera Wellek (77), deve-se ter em mente que existem inúmeras variáveis de caráter inconsciente capazes de influenciar o escritor no momento da criação, levando a um hiato entre intenção consciente e a execução real. Além disso, uma obra acabada possui uma existência própria, que não se encontra restrita a uma intenção, ainda que explicitamente exposta pelo autor. Assim, entende-se que um julgamento apropriado de uma produção artística exige um esforço além do conhecimento das intenções e antecedentes do seu autor, englobando diversas outras variáveis, como as de cunho histórico-cultural, linguístico, estético etc.

Neste trabalho, o conto "Um trabalho estranho" é abordado primordialmente pelo enfoque histórico, dada a influência das mudanças político-sociais ocorridas no período em que foi escrita. Utiliza-se também os antecedentes do autor como forma de elucidar diversas alusões existentes na obra às condições da juventude japonesa no período pós-guerra. Por fim, dado que uma obra literária possui existência própria após a sua concepção, este estudo apresenta trechos do conto para sustentar a análise proposta.

A presente análise contribui para a literatura acadêmica por examinar um conto de Kenzaburō Ōe até o momento pouco discutido no âmbito da produção científica em língua portuguesa. Além disso, conforme asseveram Selden, Widdowson e Brooker (4), a discussão de relações sociais na literatura permite que o leitor se abstenha de abordar as obras como se fossem livres de qualquer teorização, renovando o seu interesse e envolvimento com novas possíveis leituras de uma mesma narrativa.

Este estudo encontra-se dividido em quatro seções, incluindo esta introdução. A seção a seguir apresenta uma breve descrição da carreira literária de Kenzaburō Ōe, enfatizando aspectos relevantes de sua infância e adolescência que contribuíram para a crítica social e o aspecto humanitário presentes em suas obras. A seção três é dedicada a uma análise detalhada do conto "Um trabalho estranho", incluindo a apresentação de diversos trechos que parecem demonstrar a intenção do autor de criticar a letargia da sua geração. A seção final conclui o trabalho.

A crítica social na obra de Kenzaburō Ōe

Kenzaburō Ōe nasceu em 1935, em Uchiko (), uma pequena cidade situada na província de Ehime (), na ilha de Shikoku (). Suas obras literárias exploram grande amplitude de temas, embora estejam mais centralmente focadas em questões sociais e humanitárias, tais como as vítimas do bombardeio atômico de Hiroshima, as lutas da população de Okinawa e os desafios das pessoas com necessidades especiais (Fay). Parte significativa das obras de Ōe "reflete sua profunda ansiedade em relação à guerra nuclear e seu comprometimento com a paz, o meio ambiente e a justiça social" (Cameron, "Starting").

O período em que Ōe cursava literatura na Universidade de Tóquio corresponde ao momento em que os escritores existencialistas estavam em seu auge, e o autor foi fortemente influenciado pela literatura francesa moderna, principalmente por Jean-Paul Sartre, sobre quem escreveu seu trabalho de graduação. Ōe também dedicou-se à leitura de autores norteamericanos como William Faulkner, Saul Bellow e o existencialista Norman Mailer, além de escritores japoneses que surgiram logo após o fim da guerra (Yoshida, 80; Treat, 101; Bradbury, Cohn e Wilson, 135). Portanto, pode-se observar considerável influência da literatura existencialista em suas obras, sobretudo em suas primeiras produções literárias. O próprio Ōe reconhece grande inspiração de Sartre em suas obras iniciais, tais como O orgulho dos mortos (Shisha no ogori ), A captura () e "Um trabalho estranho" (Sakurai 372-373).

O existencialismo de Sartre é marcado pela ideia de que o homem possui total liberdade e, por essa razão, vive em um mundo no qual os valores não são preexistentes, mas criados a partir de suas próprias opções. O homem é assim visto como o responsável pelas suas decisões e pela criação de seus próprios valores e propósitos, o que gera uma sensação de constante angústia em função da sua natureza mortal e da consciência da sua capacidade latente de alterar o rumo de sua história (Hardré 541-542; Kohnp 395). Na literatura, a influência do existencialismo é observada em obras cujo enfoque se encontra em protagonistas que se deparam com os resultados de suas escolhas ou devem prestar contas de suas decisões. A angústia do personagem central é um tema recorrente desse tipo de literatura e constituem também traços marcantes os sentimentos de perda, fracasso, alienação, solidão, desespero e monotonia (Waters 87-88, 92).

Sakurai (372) atribui a afinidade entre Sartre e Ōe ao fato de ambos terem vivenciado em seus países a desolação de uma sociedade devastada pela guerra e ocupada por forças inimigas. Loughman (38) enfatiza a presença da sensação de alienação do período pós-guerra em diversos personagens das primeiras obras de Ōe. Em Dezessete (Sevuntīn ) e Arranque os brotos, atire nas crianças (Memushiri kouchi ), os protagonistas mostram-se como jovens que vivem em um ambiente turbulento, na busca de uma identidade. Eles sentem-se abandonados e possuem um grande pavor da morte. Loughman (38) afirma que esse temor é um reflexo da consciência da ausência de um criador e de que a morte representa o fim absoluto.

Em relação à ficção, as obras de Kenzaburō Ōe encontram-se centradas em dois temas principais. O primeiro diz respeito às dificuldades enfrentadas por pais de filhos com necessidades especiais, tais como os romances Uma Questão Pessoal (kojintekina taiken), publicado em 1964, e Dias Tranquilos (shizukana seikatsu ), publicado em 1990. Embora esses livros não sejam autobiográficos, eles estão conectados à experiência pessoal de Ōe de criar um filho com deficiência. No momento de seu nascimento, Hikari, o filho mais velho de Ōe, foi diagnosticado com encefalocele, ou hérnia cerebral, e os médicos aconselharam os pais a não manterem a criança com vida. Ōe e sua esposa sabiam que a criança enfrentaria diversos desafios físicos e sociais durante a sua vida, mas optaram por mantê-lo vivo. Apesar de ter sofrido atraso em seu desenvolvimento, ser portador de autismo, além de ter limitações de comunicação e deficiências visuais, Hikari tornou-se um famoso compositor (Cameron, "Kenzaburō" 31-32; Fay).

O segundo tema recorrente nas obras de ficção de Kenzaburō Ōe é o confronto entre os valores e mitos tradicionais japoneses e a sociedade moderna do período pós-guerra, como é o caso do livro O grito silencioso (Man'en Gannen no Futtoboru ). publicado em 1967. Em obras dessa categoria, Ōe revisita mitos e contos folclóricos de sua infância e normalmente retrata um "narrador forçado a examinar ilusões por ele mesmo criadas para possibilitar a vida em comunidade" (Fay). Tais romances também se encontram profundamente enraizados no conflito de valores vivenciado por Ōe durante sua vida. Como nasceu em uma pequena vila, Ōe frequentemente ouvia sobre a natureza divina do imperador do Japão (Sakurai 370). Não obstante, sua experiência como estudante no período pós-guerra e seu envolvimento com questões políticas, especialmente em relação à derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e o bombardeio de Hiroshima, transformou-o em um indivíduo bastante crítico em relação ao governo japonês. Conforme afirma Sakurai (370), Ōe iniciou o ensino médio vinte meses após o fim da guerra e foi um dos primeiros alunos a estudar sob o currículo desenvolvido por especialistas provenientes dos Estados Unidos durante o período da ocupação, destinado a rejeitar princípios tradicionais japoneses e doutrinar os alunos no sistema de valores norte-americanos. Como consequência, Ōe se tornou um grande defensor da democracia e da nova constituição japonesa, que se mostrava pacifista e retirava do Japão o direito de possuir um exército. Nessa nova era, Ōe mostrou-se como ativo defensor de direitos humanos, participando de movimentos humanitários, manifestações nas ruas e até mesmo greves de fome.

Em função desses conflitos durante sua infância e adolescência, que marcam sobremaneira parte de sua vida literária, Ōe sempre se mostrou bastante crítico em relação ao Japão. Por exemplo, apesar de ter recebido o prêmio Nobel de literatura em 1994, o escritor rejeitou a condecoração japonesa Ordem da Cultura (Bunka kunshō), que é conferida pessoalmente pelo imperador e constitui a mais alta homenagem no país. Ōe frequentemente condenava as ações hostis de seu país durante a guerra em relação aos países vizinhos. Conforme assevera Barshay (3), a experiência japonesa na guerra deixou cicatrizes não somente nas vítimas do bombardeio atômico em Hiroshima, mas também em diversas nações asiáticas que sofreram com a expansão geopolítica do país no ímpeto da busca da hegemonia regional. Consciente dessas questões, Ōe afirma, em seu discurso de recebimento do prêmio Nobel, que achava difícil encontrar justificativas para dissertar sobre o Japão como uma nação bela e achava mais correto falar sobre o Japão como a nação da ambiguidade (Barshay 3). Conforme afirma o próprio Ōe ("Japan" 339) em seu discurso, a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial foi uma oportunidade para que o país tentasse renascer a partir de uma situação de grande miséria e sofrimento, retratada pela "escola pós-guerra"1 dos escritores japoneses. O amparo moral para os japoneses que desejavam esse renascimento era a ideia da democracia e a determinação de jamais travar uma guerra novamente. Entretanto, Ōe enfatiza que, de modo paradoxal, as pessoas e o estado japonês que se sustentavam em tal amparo moral não poderiam ser considerados inocentes, pois estavam manchados por seu passado histórico como invasores de países asiáticos.

Já com relação à categoria de não ficção, Kenzaburō Ōe é conhecido pelo ensaio intitulado Notas sobre Hiroshima (Hiroshima nōto ), publicado em 1965. Ōe considera que sua experiência em Hiroshima se encontra intrinsecamente relacionada às complicações após o nascimento de Hikari. Foi exatamente no período em que estava se esforçando para manter seu filho vivo apesar do problema cerebral, que Ōe participou de uma conferência em Hiroshima, centrada em questões políticas concernentes a armas nucleares. O autor ficou extremamente desapontado com discussões a respeito de "armamentos nucleares limpos" e "armas da justiça", e decidiu não mais participar da conferência. Com a finalidade de criar um ponto de vista independente no tocante à questão, ele decidiu visitar um hospital dedicado ao tratamento de vítimas da bomba nuclear. No hospital, entrevistou diversas vítimas do incidente em Hiroshima, incluindo um médico que se feriu durante o bombardeio. Notas de Hiroshima é um ensaio que resultou dessa experiência (Cameron, "Starting").

No que diz respeito ao estilo, a literatura de Ōe pode ser considerada como oposta à de autores como Yasunari Kawabata ( 1899-1972), também vencedor de um prêmio Nobel no ano de 1968. Kawabata era defensor da corrente do neossensorialismo (shinkankakuha) e seu estilo é caracterizado por uma forte subjetividade, no sentido de que os leitores precisam abordar suas obras por intermédio de seus sentidos, ou seja, conferindo especial atenção a alterações de sentimentos e humores nos personagens durante o desenvolvimento da narrativa. Ōe, por outro lado, possui um estilo mais direto e objetivo, e o leitor deve estar mais atento a extrair as implicações políticas e sociais de suas obras. Não obstante, no que tange à temática de seus livros, o apoio a causas humanitárias, suas atitudes com relação à democracia e suas críticas contra o nacionalismo japonês e a adoração ao imperador, Ōe posiciona-se em situação de antagonismo direto ao escritor Yukio Mishima ( 1925-1970). De fato, o ativismo nacionalista de Mishima, que confluiu para o seu ritual de suicídio como tentativa de restituir o poder ao imperador do Japão, demonstra o quão conflitante era a visão desses dois importantes literários japoneses (Sakurai 370-371).

"Um trabalho estranho": estereótipos da letargia da juventude no pós-guerra

"Um trabalho estranho" foi o primeiro conto publicado por Ōe e narra a história de um grupo de estudantes universitários que aceita um trabalho temporário de abater 150 cães previamente utilizados em experimentos por um hospital. O conto recebeu um prêmio do Jornal da Universidade de Tóquio (Tokyo daigaku shinbun), no qual foi publicado em 1957 (Sakurai 372; Ono 86).

Os estudantes universitários do conto foram contratados temporariamente, de uma forma clandestina, para exterminar os cachorros. A história possui cinco personagens sem nome: o protagonista que narra a história em primeira pessoa, um exterminador profissional de cães (), um estudante de uma faculdade particular (), uma estudante do sexo feminino ( ) e um personagem conhecido unicamente como "o homem" (), que explica o trabalho aos estudantes e para quem as carcaças dos cachorros mortos são entregues. Os cães estavam abrigados em um galpão atrás do hospital, e o trabalho do narrador-protagonista era trazê-los um a um para uma área cercada na qual seriam abatidos pelo exterminador de cães. Além de matar os cachorros, o exterminador também retirava suas peles. O estudante da faculdade particular era responsável por entregar a carcaça dos animais ao "homem", e a estudante era encarregada de se livrar da pele dos animais (Ōe, "kimyō" 253).

Desde o primeiro dia de trabalho, o protagonista repara na passividade dos cachorros. Ele pondera se tais animais, por terem sido mantidos por muito tempo em um galpão, cada um amarrado a uma estaca, teriam se acostumado com a situação e perdido toda a sua hostilidade. "Mesmo se eu entrar na cerca", afirma o protagonista, "eles não latem"2 (Ōe, "kimyō" 253). Essa passagem do conto já revela, ainda que de uma forma sutil, uma das alegorias utilizadas por Ōe no conto, que seria ilustrar a apatia dos estudantes universitários japoneses no período pós-guerra, por intermédio da descrição da passividade e da falta de hostilidade dos cães que aguardavam o momento do abate. Conforme assevera Sterngold, enquanto "olha para os animais amontoados", o protagonista "os compara com estudantes universitários japoneses". O seguinte excerto do conto ilustra essa comparação de uma forma mais direta:

Os cachorros estavam completamente misturados. Havia quase todos os tipos de cachorros híbridos. Entretanto, de certa forma, eles pareciam semelhantes [...]. E eu me perguntava por que eles se pareciam tanto. Seria por que todos eram de raça inferior e magricelos? Seria por que estavam todos amarrados a estacas e tinham perdido completamente a sua hostilidade? Certamente era isso. E pode ser que o mesmo acabe ocorrendo também conosco. Ao perder completamente a nossa hostilidade e compartilhar a nossa apatia, nos tornávamos cada vez mais parecidos uns aos outros e renunciávamos

Uma visão crítica da juventude japonesa no período pós-guerra... a nossa individualidade: esse era o retrato de nós, ambíguos, estudantes japoneses.3 (Ōe, "kimyō"253-254)

Uma outra passagem de "Um trabalho estranho" também parece aludir à letargia dos estudantes universitários japoneses. O protagonista relata possuir vinte anos e afirma se sentir extremamente cansado e incapaz de nutrir entusiasmo por qualquer coisa. Enfatiza também sua incapacidade de alimentar raiva por um longo período e conclui que provavelmente essa seja a razão pela qual ele não tinha interesse em política nem tampouco vigor para se unir a movimentos estudantis:

Eu não tinha o costume de sentir ódio profundo. Além do fato de me sentir cansado diariamente, também não conseguia alimentar ódio em relação à crueldade do exterminador de cães. No momento que alimentava algum ódio, esse sentimento logo sumia. Eu não conseguia participar dos movimentos estudantis dos meus amigos. É certo que eu não me interessava em política, mas, no fim das contas, eu não participava porque não conseguia alimentar uma ira de forma contínua. Às vezes, eu procurava ver se conseguia me sentir bastante irritado, mas sempre o esforço para revigorar a ira me cansava demais.4 (Ōe, "kimyō" 254)

Conforme já destacado, os personagens no conto não possuem nome, o que parece ser outro artifício para mostrar que eles representam a geração de Ōe. Nesse sentido, os personagens também se assemelham aos cães do conto: cada um possui suas próprias características físicas, mas são equivalentes em sua letargia e passividade. Ademais, o uso de personagens sem nomes também simboliza a ausência de ideais, realizações e aspirações futuras dessa geração. Na verdade, Montes ao analisar outra obra de Ōe, A captura (Shiiku), tece comentário análogo, afirmando que, ao não dar nome aos personagens, o autor "evidentemente não quis criar pessoas 'de carne e osso', mas sim arquétipos ou símbolos que abarcam um terreno maior que o indivíduo" (249).

Ono afirma que Ōe, em suas primeiras obras, sobretudo nas décadas de 1950 e 1960, combina alguns aspectos de sua própria vida com o sofrimento dos protagonistas, que não conseguem se tornar adultos (85-86). Entretanto, não parece adequado considerar tais obras como autobiográficas, uma vez que Ōe dificilmente poderia ser identificado com um dos personagens centrais de seus contos, que se mostram frequentemente imaturos. Na verdade, vários desses protagonistas sentem-se "torturados pela incapacidade de se transformarem em pessoas maduras na sociedade japonesa do período pós-guerra" (Ono 85), e, portanto, pode-se dizer que Ōe tende a projetar as principais características da geração pós-guerra nos protagonistas de suas histórias. Dessa forma, Ōe utiliza-se da história desses personagens centrais como "alegorias irônicas para explicar a sociedade pós-guerra japonesa" (Ono 86).

Um outro conto de Ōe, também publicado em 1957 e que possui uma temática semelhante à história "Um trabalho estranho", objeto do presente estudo, é "O orgulho dos mortos". Assim como "Um trabalho estranho", "O orgulho dos mortos" é narrado em primeira pessoa, o que tende a revelar o intuito de Ōe de retratar a sensação de impotência de sua geração. O enredo de "O orgulho dos mortos" possui certa semelhança com "Um trabalho estranho", pois, enquanto neste o protagonista possui o trabalho de se livrar de corpos de animais, naquele o personagem central lida com corpos de seres humanos. Ono sustenta que, em "O orgulho dos mortos", "os seres humanos mortos no tanque de água são superiores [ao protagonista] tanto em termos de maturidade física quanto em termos do sentimento de realismo em relação à vida e à morte" (88). Nathan destaca que os protagonistas das primeiras obras escritas por Ōe foram expulsos da segurança da infância para um mundo que não guardava qualquer relação com o passado (XV). Os valores sob os quais foram educados viam-se repentinamente dilacerados com o término da guerra, de forma análoga à destruição de Hiroshima e Nagasaki. Assim, tais personagens confrontavam-se no mundo pós-guerra com "um vazio gigantesco, uma enervação, um silêncio terrível que se assemelha à eternidade que sucede a morte" (Nathan, XV).

Um assunto recorrente em "Um trabalho estranho" é a reação dos personagens em relação à maneira utilizada pelo exterminador de cães para matar os animais. Ele os abatia desferindo um forte golpe com um bastão e, logo após, fazendo um corte em sua garganta, de forma que o sangue do animal escorresse em um balde (Ōe, "kimyō" 254). O protagonista, apesar de reconhecer que aquele método era um tanto quanto cruel ou vil (hiretsu - ), sentia que não deveria criticá-lo. Isso porque, para o protagonista, aquela crueldade era algo que um indivíduo precisa desenvolver para conseguir lidar com trabalhos extremos como aquele. Além disso, conforme já destacado, o protagonista não conseguia alimentar um sentimento de ira por muito tempo, razão pela qual não era capaz de guardar um forte rancor contra o exterminador de cães (Ōe, "kimyō" 254).

É interessante assinalar que o exterminador de cães, em determinado momento do conto, compartilha com o protagonista que certa vez alguém o havia aconselhado a utilizar-se de veneno para abater os cachorros. O exterminador, no entanto, afirma que ele jamais faria algo desse tipo, primeiramente porque não gostava da ideia de dar veneno aos cães e depois sentar-se confortavelmente tomando chá, esperando que morressem. Ele acredita que a forma correta de abater os animais é ficar defronte ao cachorro e desferir um golpe fatal com um bastão. O exterminador acrescenta que ele utiliza o mesmo bastão para abater os animais desde criança. Uma segunda razão apresentada pelo personagem para não envenenar os cães é que o uso de veneno faz o corpo dos animais dissipar um odor desagradável. Finalmente, o exterminador afirma que ele simplesmente gosta demais de cachorros para matá-los usando veneno (Ōe, "kimyō" 254-255). Essas afirmações demonstram não só que o exterminador de cachorros seguia um rígido código profissional de conduta, mas também que ele de fato gostava dos animais, ainda que o seu trabalho fosse abatê-los.

Outra passagem do conto que demonstra o afeto do exterminador de cães pelos animais é quando ele trava uma discussão com um funcionário do hospital sobre quem seria responsável por alimentá-los nos dois dias que antecediam o abate. O exterminador se mostra extremamente irritado quando descobre que não havia ninguém responsável por alimentar os cães e afirma que isso era uma grande crueldade. "Vocês vão deixá-los morrer de fome?", questiona irritadamente o exterminador (Ōe, "kimyō" 256).5 O exterminador então solicita ao funcionário do hospital que lhe dê restos de comida do hospital, para que ele mesmo possa preparar a ração dos animais.

A estudante considera o modo de pensar do exterminador de cães como a externalização em sua vida profissional da consciência de uma tradição ou cultura específica do seu tipo de trabalho. Ela afirma que, no caso do trabalho de artesãos, a cultura é externalizada pelas suas técnicas e objetos que elaboram e se encontra relacionada ao seu estilo de vida. Os artesãos, entretanto, constituem um exemplo de uma cultura que é aceita e considerada bela pela sociedade. Não obstante, a estudante assevera que outras profissões, apesar de lidarem com atividades consideradas sujas, maculadas ou inferiores pela sociedade, também possuem consciência de uma cultura própria, como é o caso da profissão do exterminador de cães, ou mesmo de prostitutas. A estudante acrescenta que, ao aceitar aquele trabalho temporário, também ela e os outros estudantes ficaram completamente imersos naquela cultura (Ōe, "kimyō"255). Esse argumento apresentado pela estudante também revela a influência da filosofia existencialista no conto, pois ressalta o caráter empírico e o papel da experiência do indivíduo na construção de seus valores, ao enfatizar que o exterminador de cães consolidou seu código de conduta a partir da sua escolha de vida e de sua atuação profissional.

Para o estudante da faculdade particular, por outro lado, a maneira utilizada pelo exterminador de cães para abater os animais era muito cruel e revoltante. No decorrer do conto, o estudante tem vários desentendimentos com o exterminador de cães, incluindo na passagem anteriormente referida acerca da falta de alimentos para os cachorros que seriam abatidos. O estudante afirma que o exterminador estava sendo extremamente vil por querer alimentar os animais que seriam mortos. Para o estudante, parecia que o exterminador estava tentando amansar os cães que em breve seriam por ele abatidos. É interessante observar, entretanto, que, para o exterminador de cães, a crueldade estava em deixar os cães passarem fome nos dois dias anteriores ao seu abate. Conforme já apontado, o exterminador afirmava gostar demais de cães para deixá-los sem comida (Ōe, "kimyō" 256).

Por diversas vezes, o estudante também externaliza a sua discordância em relação à forma como o exterminador lida com os animais e reclama com frequência das condições adversas nas quais eram mantidos. "Nós podemos ver além dessas paredes", diz o estudante referindo-se às paredes do galpão, "mas os cães não podem, estão apenas aguardando para serem abatidos por aquele sujeito" (Ōe, "kimyō" 257).6 Em função de comentários como esse, a estudante acaba por chamá-lo, em um tom ligeiramente depreciativo, de "humanista", conforme diálogo transcrito adiante nesta seção.

As reações e opiniões a respeito da forma como o exterminador de cães mata os animais revela o traço psicológico predominante de cada um dos personagens. O exterminador de cães parece mostrar-se confiante e seguro de que desempenha seu trabalho da forma adequada e, portanto, acredita ser um bom profissional. Ele segue uma ética profissional rígida e possui um forte senso de responsabilidade e integridade. Além disso, apesar da natureza cruel da sua profissão, ele de fato realiza o seu trabalho de uma forma eficaz. Na verdade, parece um contrassenso constatar que o exterminador de cães, apesar de ser o responsável por sacrificar os animais, é o único personagem que realmente se importa com eles. Em um conto que retrata cachorros sendo sacrificados, é interessante observar que o personagem responsável por matar os animais não é retratado como uma pessoa vil.

O protagonista, por outro lado, mostra-se como um indivíduo de natureza letárgica, que, apesar de não ser indiferente aos problemas das outras pessoas, não tem energia e vigor suficientes para participar de movimentos sociais e defender ideais. Na verdade, é questionável até mesmo se ele possui algum ideal ou posicionamento político. O protagonista parece estar dominado por um forte sentimento de apatia em relação à vida. Essa sua característica psicológica pode ser inferida pela sua opinião no que tange à forma utilizada pelo exterminador de cães para matar os animais, em um excerto do conto anteriormente transcrito. Inicialmente, o protagonista considera tal maneira de abater os animais como cruel, mas ele decide não criticá-la por não ter a capacidade de nutrir e manter sua raiva. Conforme ele próprio afirma, no momento que tentava alimentar alguma raiva, esse sentimento logo se dissipava (Ōe, "kimyō" 254).

É interessante ressaltar, entretanto, que, ao final do conto, o protagonista age de forma proativa para abater um dos cães, uma ação iniciada pelo estudante da faculdade particular, mas que ele não teve a capacidade de concluir. Essa passagem, transcrita mais à frente neste estudo, tende a demonstrar que o protagonista não era emocionalmente entorpecido por completo e que possuía energia para superar sua empatia em relação à vida. Isso parece demonstrar a existência de um vestígio de esperança de que o protagonista possa vir a se tornar uma pessoa mais entusiasmada e socialmente ativa. Pode-se sustentar que essa foi também uma forma encontrada por Ōe para demonstrar que ele ainda tinha esperanças em relação à juventude japonesa do período pós-guerra, apesar de considerá-la apática e letárgica.

Já a estudante parece ter uma visão pessimista e negativa em relação ao mundo e, conforme assinalado pelo narrador-protagonista, é uma pessoa que não sorri frequentemente. Essa característica da estudante foi por ela mesma confirmada, no diálogo a seguir:

"Você não sorri frequentemente, não é?" Disse eu.

"É. Pessoas com a minha personalidade não costumam sorrir muito. Quando eu era criança já não sorria. Então, às vezes, eu sinto que até me esqueci como é que se sorri [...]".7 (Ōe, "kimyō" 255-256)

Pode-se argumentar que a estudante funciona como a voz da razão no conto. Conforme já assinalado, ela é a personagem que pondera sobre os motivos que levavam o exterminador de cães a utilizar um método cruel para abater os animais. Além disso, ela demonstra compreender a lógica por trás do comportamento de cada um dos personagens e apresenta explicações objetivas para seus comportamentos, personalidades e modos de pensar. O fato de que ela é uma pessoa triste e pessimista parece ter sido uma maneira criada por Ōe para aventar uma outra questão social, a saber: aqueles capazes de compreender o funcionamento da sociedade e de analisar de forma objetiva o ambiente social e político em que vivem acabam se tornando pessoas melancólicas, taciturnas e pessimistas. Dessa forma, até mesmo aqueles com capacidade de discernimento tornam-se apáticos e não fazem nada para implementar mudanças no meio social.

O estudante da faculdade particular, por sua vez, frequentemente discute verbalmente com o exterminador de cães, especialmente em relação ao modo por ele utilizado para matar os animais, que o estudante considera ser muito cruel. Ele sempre está irritado com o trabalho e várias vezes reclama da condição na qual os cães são mantidos e da maneira como são tratados. Ele talvez possa ser considerado um "humanista", como afirma a estudante, mas, às vezes, não está claro se ele realmente está preocupado com a condição dos animais ou simplesmente incomodado com o trabalho desagradável e insalubre que tem de desempenhar. Essa irritação com o trabalho fica evidente quando afirma que o sangue dos cães está tão encrustado em suas unhas que não consegue removê-lo e que, mesmo esfregando o sabão com muita força, o mau cheiro dos cães não desaparece (Ōe, "kimyō" 258).8 Por outro lado, em muitos diálogos, observa-se um tom exageradamente altruísta, como na conversa com a estudante em que é chamado de "humanista":

"Foi um erro você ter aceitado este trabalho", disse a estudante.

"Isso não é verdade", disse o estudante da faculdade particular ficando ainda mais irritado. "Mesmo que eu não aceitasse este trabalho, o homem que o fizesse ficaria com o sangue dos cães tão encrustado em suas unhas que não conseguiria removê-lo e teria em seu corpo um vívido odor fétido. Isso para mim seria insuportável".

"Você é um humanista, não é?", disse a estudante com uma voz insípida.

O estudante abaixou seus olhos injetados de sangue e calou-se.9 (Ōe, "kimyō" 257-258)

Um incidente ao fim do conto tende a ilustrar de forma adequada os traços psicológicos do protagonista, do exterminador de cães e do estudante da faculdade particular. Nessa passagem, o exterminador de cães está prestes a matar um grande cachorro e, para torná-lo mais dócil, age de uma forma que é vista pelo estudante da faculdade privada como sendo extremamente vil. Os dois começam a discutir verbalmente, e o exterminador afirma que o estudante sempre reclamava muito, mas ainda não havia abatido nenhum animal. Indignado, o estudante pega o bastão e desfere um golpe na cabeça do cão. Apesar de ficar severamente ferido, o cachorro não morre com aquele golpe. Nesse momento, o exterminador pressiona o estudante a finalizar o trabalho: "'Ei, mate logo o cão' grita o exterminador com uma voz tomada pela ira, 'não faça o animal sofrer'" (Ōe, "kimyō" 259).10 O estudante, entretanto, começa a tremer e não é capaz de abater por completo o animal. É o protagonista que arrebata o bastão das mãos do estudante e desfere o golpe mortal no cachorro. Apesar do ocorrido, o estudante logo volta a reclamar, reprovando a atitude do protagonista e acusando-o de atacar um animal inofensivo, que já era incapaz de oferecer qualquer ameaça:

"Você fez algo terrível", disse o estudante da faculdade particular. "O quê?"

"Você é um covarde. Esse cachorro já não oferecia qualquer ameaça, estava completamente enfraquecido".

O ódio subiu à minha garganta. Porém, eu dei as costas e retirei a coleira do pescoço do cachorro. Eu não tinha nenhum interesse pelo estudante da faculdade particular.11 (Ōe, "kimyō" 259)

Ōe parece usar o estudante da faculdade particular para tecer mais críticas às atitudes da juventude japoneses no período pós-guerra. É certo que tal personagem possui, até certo ponto, um senso de humanitarismo e parece estar procurando um ideal a seguir. Não obstante, ele mostra-se extremamente ingênuo e suas convicções não parecem adequar-se ao mundo real. Assim, apesar de possuir boas intenções, ele parece não entender que seu modo de pensar é utópico em relação às reais condições da sociedade.

Na verdade, o discurso do estudante contra a crueldade do exterminador de cães assemelha-se ao preconceito sustentado pela sociedade medieval japonesa contra um grupo marginalizado denominado eta (). Esse preconceito já era observado em eras anteriores da história japonesa, mas mostra-se mais explícito no período Edo (1603-1868), no qual foi instituído pelo governo Tokugawa um rigoroso sistema de classes que impedia a ascensão ou mudança de classes. O sistema era composto por quatro classes, sendo que a dominante era a dos samurais, seguida sucessivamente pela dos camponeses, dos artesãos e, finalmente, dos comerciantes. Havia, ainda, grupos que estavam acima de tal sistema, representados por monges budistas e xintoístas, o imperador e a família imperial, além dos xoguns da família Tokugawa, bem como grupos situados abaixo desse sistema de classes, incluindo profissionais do entretenimento e indivíduos que lidavam com atividades consideradas impuras, como sacrificar animais e lidar com suas carcaças. O grupo eta era constituído por párias que tinham como uma de suas principais atividades a remoção da pele de animais que seria utilizada em outras atividades produtivas e mercantis. Eram, portanto, indivíduos que desempenhavam um trabalho relevante para a sociedade, pois davam uma destinação para a carcaça dos animais abatidos e extraíam a pele que seria usada na produção de diversos produtos de couro, mas que ainda assim eram marginalizados e alvos de preconceito (Sorte Junior 233-234). O estudante da faculdade particular apresentava um comportamento semelhante, pois ele aceitou aquele trabalho temporário e pretendia receber uma remuneração para executá-lo, mas mesmo assim insistia em criticar a maneira como o exterminador de cães abatia os animais, sem apresentar qualquer solução alternativa. O fato de que Ōe também aborda a questão de grupos marginalizados no Japão em suas obras e a escolha de uma história de um exterminador de cães que retira a pele dos animais e lida com suas carcaças como tema do conto tendem a apontar uma provável alusão ao grupo eta do Japão medieval.

Por fim, cumpre destacar a influência do existencialismo, comum nas obras iniciais de Ōe, em "Um trabalho estranho". Inicialmente, observa-se que há ênfase na responsabilidade dos seres humanos na construção de seus próprios valores. Conforme já destacado, tal processo de construção de valores é ilustrada de forma mais evidente pelo exterminador de cães, que possui um rígido código de ética profissional desenvolvido por anos de experiência em sua atividade.

O enfrentamento dos personagens com o resultado de suas próprias escolhas também é um tema recorrente na literatura existencial. No conto, ele é retratado pela dificuldade do estudante da faculdade particular de levar a cabo sua decisão de realizar aquele trabalho e colocar em prática os valores humanitários que defendia verbalmente. É o caso do incidente ao fim do conto, no qual o estudante da faculdade particular se mostra incapaz de desferir o golpe final no cão agonizante, que enfatiza o teste ao qual são submetidos os seres humanos de tomar suas escolhas e por elas responderem. Além disso, cumpre enfatizar que, apesar de terem executado um trabalho insalubre, desgastante e penoso, por razões alheias à sua vontade e ao seu controle, nenhum dos personagens foi remunerado ao final do conto e nem possuíam vias para se insurgir contra o não pagamento, dada a natureza clandestina da tarefa. Esse fato também coloca em evidência o confronto das pessoas com o resultado das próprias decisões.

Percebe-se, ainda, a presença do caráter existencialista em "Um trabalho estranho" em função do conflito com o outro, observado na interação entre os personagens. Ao enfatizar a liberdade de cada indivíduo em criar seus próprios valores e códigos de conduta, o existencialismo também destaca o choque inevitável ante a consciência da existência de outros seres humanos, que também possuem liberdade de tomar suas decisões e desenvolver seus arcabouços valorativos pessoais. Trata-se, portanto, de um conflito entre liberdades (Hardré 540-541). No conto, essa questão mostra-se mais evidente na interação entre o estudante da faculdade particular e os demais personagens. A discrepância entre os valores por ele pregados e aqueles defendidos pelo exterminador de cães desencadeia diversos choques entre esses dois personagens ao longo do conto. Também se observa esse conflito nos diálogos travados pelo estudante da faculdade particular com o narrador-protagonista, que se mostrava indiferente e desinteressado, e com a estudante, que possuía uma posição mais pragmática e racional.

Conclusão

Este artigo discutiu o conto "Um trabalho estranho", de Kenzaburō Ōe, demonstrando que o autor se utiliza de uma história sobre o abate de cachorros anteriormente usados para experimentos em um hospital para fazer uma alegoria à letargia e à falta de engajamento social e político da juventude japonesa do período pós-guerra. O conto foi publicado em 1957, quando o escritor possuía 22 anos e estudava literatura francesa na Universidade de Tóquio (Sakurai 372). É possível concluir, portanto, que Ōe tece críticas à sua geração, por intermédio da história em apreço.

De fato, a geração pós-guerra no Japão foi obrigada a se confrontar com inúmeros ideais conflitantes, especialmente em relação a premissas básicas nas quais se fundamentou a sociedade japonesa do período Meiji (1868-1912). O Japão foi derrotado na Segunda Guerra Mundial, a autoridade do imperador foi consideravelmente reduzida, e os Estados Unidos impuseram uma série de restrições e mudanças políticas no país durante o período de ocupação. Conforme já mencionado, o próprio Ōe foi criado desde criança com a imagem da supremacia do imperador e observou a destruição de todos esses ideais após a derrota do Japão na guerra. A juventude japonesa desse período, portanto, viveu em um país que subitamente rejeitou seus valores tradicionais e estava procurando encontrar novos.

A maioria dos personagens no conto tende a refletir os diferentes impactos que as mudanças sociais e políticas acarretaram na população japonesa. O protagonista mostra-se apático e sem interesse por qualquer questão política. Ele é um exemplo dos estudantes aos quais se refere no início do conto, que se assemelham aos 150 cães que esperavam o abate, por já haverem perdido por completo a sua hostilidade. A estudante, por sua vez, é extremamente racional e capaz de compreender o raciocínio e comportamento dos demais personagens, mas é uma pessoa triste e melancólica. Ela representa, portanto, parte da sociedade que possui uma visão aprofundada do cenário político-social, mas desenvolveu uma visão pessimista sobre as possibilidades de mudanças futuras. Já o estudante da faculdade privada simboliza as pessoas que estão em busca de ideais, mas não têm a coragem de colocá-los em prática ou simplesmente nutrem um pensamento ingênuo e utópico de que a realidade pode se moldar às suas próprias convicções. Também é possível sustentar que o estudante ilustra a hipocrisia na sociedade, uma vez que seu discurso frequentemente reflete aquilo que é considerado correto e justo, mas sua retórica diverge grandemente de suas ações concretas.

O exterminador de cães é de certa forma diferente dos demais personagens por não ser um estudante e por não ser um trabalhador temporário nessa linha de trabalho, já que era um profissional veterano nessa atividade. Ele é mais velho que os demais e pode-se inferir, pelas suas afirmações, que já vem desempenhando tal trabalho há anos. Por essa razão, ele parece ter desenvolvido um código de ética profissional rígido e possuir, conforme salienta a estudante, uma consciência da cultura do seu tipo de trabalho, que define a forma adequada de desempenhá-lo. Portanto, o exterminador de cães simboliza as pessoas na sociedade que trabalham para o seu próprio sustento e já não realizam considerações profundas sobre questões filosóficas relacionadas às suas atividades laborais. Observa-se que o trabalho desempenhado pelo exterminador de cães era de fato necessário, uma vez que o hospital efetivamente precisava eliminar os 150 cachorros. Além disso, por mais que se busque uma forma menos dolorosa de se abater animais, trata-se de um trabalho intrinsicamente agressivo, por envolver a retirada da vida de um ser. Não obstante, os personagens do conto tecem diversos comentários sobre como seu trabalho é cruel, sujo e repugnante. Isso também tende a retratar a hipocrisia da sociedade, de forma semelhante ao caso dos párias no Japão medieval.

Na verdade, observa-se que as críticas sociais e os aspectos existencialistas suscitados por Ōe por intermédio desse conto ainda se mostram atuais, por tratarem de questões essenciais relativas à natureza humana. Conforme assevera Treat (99), Ōe insistiu em classificar Notas sobre Hiroshima como uma obra de "literatura" e não como um ensaio, uma vez que para ele a preocupação central do livro é o questionamento sobre o que significa ser humano. Portanto, as reflexões contidas em suas primeiras obras, inclusive no conto "Um trabalho estranho", apesar de tratarem da geração pós-guerra japonesa, mostram-se relevantes por tocarem em assuntos de interesse universal. São, portanto, de grande importância para a crítica literária artigos que se dediquem à análise das obras iniciais de Kenzaburō Ōe, sobretudo em língua portuguesa, na qual ainda são escassos.

Referências

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1 A escola pós-guerra de escritores (sengohasakka) foi um movimento de autores japoneses que procurou descartar tradições obsoletas e explorar novas ideias e técnicas de modo a alinhar a literatura japonesa a tendências mundiais contemponōtorâneas. Embora Ōe não tenha feito parte desse movimento, uma vez que iniciou sua carreira depois que a escola havia perdido seu ímpeto, o autor teve êxito em atingir os principais ideais dela (Sakurai 370).

2Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

3Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

4Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

5Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

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7Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

8Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

9Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

10Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação: .

11Livre tradução do autor. O texto original possui a seguinte redação:

Cómo citar este artículo (MLA): Sorte Junior, Waldemiro Francisco. "Uma visão crítica da juventude japonesa no período pós-guerra: análise do conto 'Um trabalho estranho', de Kenzaburō Ōe". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 21, núm. 1, 2019, págs. 297-319.

Sobre el autor

Waldemiro Francisco Sorte Junior es doctor en Desarrollo Internacional por la Universidad de Nagoya, en Japón (2009). Es graduado en Derecho por el Centro Universitário de Brasília (2001) y en Administración de Empresas por la Universidad de Brasília (2002) y es licenciado en Japonés por la Universidad de Brasília (2014). Actualmente, trabaja en el Ministerio de Planeación, Desarrollo y Gestión. Anteriormente, fue investigador asociado en el Centro Internacional de Políticas para el Crecimiento Inclusivo (IPC-IG) del Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD) y Abogado de la Caja Económica Federal. Sus principales áreas de investigación incluyen literatura y cultura japonesa. Entre sus principales publicaciones en el área de literatura están Shifting Values toward Profit-Making in Edo Japan: Insights from the Book "Ugetsu Monogatari" (2016), publicado en el periódico Interdisciplinary Literary Studies: A Journal of Criticism and Theory, The Pennsylvania State University Press, Estados Unidos, y A beleza e sensualidade que emana do sadismo e crueldade: o conto "A Tatuagem" de Tanizaki Junichiro (2018), publicado en la Revista de Estudios Japoneses, Universidad de São Paulo, Brasil.

Recebido: 06 de Janeiro de 2018; Aceito: 12 de Março de 2018

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