SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 issue1Reading and Writing Life. Approaches to a Bio-Poetic PerspectiveDumoulié, Camille. Literatura y filosofía. La gaya ciencia de la literatura. Traducido por Juan Sebastián Rojas Miranda, Cali, Programa Editorial Universidad del Valle, 2017, 296 págs. author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.21 no.1 Bogotá Jan./June 2019

https://doi.org/10.15446/lthc.v21n1.74880 

Reseñas

Sedlmayer, Sabrina. Jacuba é gambiarra; Jacuba is a gambiarra. Edição bilíngue. Traduzido por Rodrigo Seabra, Belo Horizonte, Autêntica, 2017. 82 pp.

Luiz Eduardo da Silva Andrade1 

1 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil


Uma proposta para interpretar o Brasil

Ao propor uma releitura da "gambiarra" e da "jacuba" nas artes contemporáneas, Sabrina Sedlmayer abre uma chave de leitura para mais uma interpretação do Brasil e revisão dos métodos de estudo em literatura. A partir de um diálogo com Walter Benjamin e Giorgio Agamben, a autora aborda obras de Rivane Neuenschwander (artes plásticas), Cao Guimarães (fotografia), O Grivo (música) e Guimarães Rosa (literatura). A "gambiarra" e a "jacuba" são tomadas como paradigmas tipicamente brasileiros ou modelos de pensamento que problematizam o que se entende por performance, originalidade, reprodutibilidade, uso e experiência na cultura material e imaterial da nação. Desse modo, a publicação contribui para pensar como as imagens se interceptam nas artes e na literatura.

Um livro escrito com audácia. Essa é a impressão mais forte deixada por Jacuba é gambiarra, de Sabrina Sedlmayer, professora e pesquisadora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. A audácia se dá em pelo menos dois planos: no método e na conclusão alcançada. Embora seja uma divisão meramente didática, pois é natural que um aspecto leve ao outro - no caso do ensaio em questão, os desdobramentos da abordagem provocam a revisão dos métodos de "leitura do Brasil" e, com isso, já questiona o percurso crítico de certa tradição acadêmica.

A publicação foi lançada pela Editora Autêntica no segundo semestre de 2017. É uma edição bastante cuidada e criativa, a começar pela "gambiarrice" da costura vermelha exposta por um corte na lombada. Além disso, a publicação é bilíngue, traduzida para o inglês por Rodrigo Seabra, e com desenhos de Porfírio Valladares. As imagens distribuídas pelo texto são um rolo de barbante que vai da capa ao final do escrito, um candeeiro, algumas tomadas "T", uma folha e três muletas separando as seções, num jogo metalinguístico com as ideias da autora. Após a introdução, o ensaio é organizado com os seguintes títulos: "Das artes e da experiência", "Rastros", "Macunaíma olha", "Quadros de som, músicas de gestos" e "Do provisório, dos usares". Ainda que a discussão problematize uma imagem de Brasil - e careça, por isso, articular ideias densas -, o tom da escrita é sóbrio e fluido, numa demonstração de generosidade com seu leitor.

Jacuba é gambiarra é um dos poucos estudos da crítica contemporánea brasileira que se arrisca a transpassar pelos vários campos estéticos, como as artes plásticas, a fotografia, a música e a literatura. Calcada no diálogo com Walter Benjamin e Giorgio Agamben, a estudiosa despreza os modelos de leitura que resistem em distinguir e valorar os tipos de arte e de linguagem como expressões isoladas em meio aos afetos da vida. Para Sabrina Sedlmayer, "gambiarra" e "jacuba", tomadas como chaves de leitura, são modelos de pensamento criadores de várias dinámicas da nossa forma de vida brasileira, as quais são latentes na arte contemporánea. Essa é, certamente, a proposição mais audaciosa do texto.

Não há qualquer sugestão de que gambiarra é falta, desajuste, economia, escassez, refugo. Fazer gambiarra significa criar, tal como as esculturas de Véio - e a vida que dá para a madeira retorcida que estava morta -, ou mesmo pensar a ambivalência da famigerada loucura dos restos artísticos de Arthur Bispo do Rosário. Quem faz gambiarra garante um novo uso, o qual só se realiza plenamente com a desativação dos velhos usos. O fazer crítico de Sabrina Sedlmayer percorre, pois, esse limiar com um tipo de questionamento criador de novas imagens acerca do próprio objeto manipulado.

A pesquisadora diz que

os usuários da gambiarra e da jacuba são os inventores do cotidiano: quase invisíveis, clandestinos, astutos, apegados à pirataria (e não só cibernética). Quem faz jacuba ou gambiarra esnoba o poder, além de criar um léxico -mais do que uma palavra, um repertório de gestos, ações, objetos e receitas que nos interpela em sua generosa invenção. (65)

A jacuba tem seu registro no português brasileiro desde o século xix, a exemplo do Dicionário da língua tupy, de Gonçalves Dias. Mais adiante aparece também em Os sertões e no Grande sertão: veredas. O significado varia, embora esteja sempre relacionado a comida pouco elaborada - um prato simples, com poucos ingredientes. A gambiarra também se perde na origem e na definição, mesmo assim a imagem mais comum é a do fio com os bicos de luz.

Diante desses paradigmas tipicamente brasileiros, os rolos de barbante que se ligam da capa até o fim do texto metaforizam a reflexão lançada sobre uma emaranhada cena artística contemporánea em que os artistas têm frequentemente nomeado seus trabalhos de "gambiarra". Nesse mesmo fluxo estão alguns discursos críticos que têm utilizado o termo conceitualmente para compreensão e leitura de determinadas obras.

O pressuposto tomado é o de que "gambiarra" e "jacuba" são significantes que "interceptam o campo estético, literário e musical contemporáneo e questionam a noção de performance, de originalidade, de reprodutibilidade, de uso e de experiência, além de tocarem fundo em aspectos da cultura material e imaterial" (17). É diante desse contexto, vulgarmente chamado de "improvisado", que a pesquisadora aborda os discursos sobre a preparação das Olimpíadas do Rio 2016 e segue para análise de obras de Rivane Neuenschwander, Cao Guimarães, O Grivo e Guimarães Rosa.

A hipótese lançada é a de que esses dois termos performam as artes e a literatura de tal modo que definem um traço típico da arte brasileira. Ao mencionar o conceito de "performance" em Paul Zumthor,1 Sabrina Sedlmayer demonstra como a expressão "isto é uma gambiarra" é ao mesmo tempo um reconhecimento da obra e uma atualização da recepção, da produção e do contexto. A jacuba e a gambiarra performariam um oxímoro - o passado e o presente, o velho e o novo, o ser e o não-ser (devir), o eu e o tu - que traduz uma tática especificamente brasileira de se "auto-re-conhecer".

Na seção "Das artes e da experiência", a pesquisadora retoma textos críticos de Lisette Lagnado e Moacir dos Anjos, além de abordar a realização das Olimpíadas do Rio 2016 e as noções de uso para Benjamin e Agamben. A partir de um estudo de Lisette Lagnado sobre a figura do malabarista, de Cildo Meireles, ressalta-se a percepção de que "nem toda alternativa diante da precariedade, do gesto mal-ajambrado, realizado com produtos descartáveis, destinados ao desuso, ao lixo, seja necessariamente gambiarra, e de que nem todo artista consiga equilibrar-se reflexivamente tal qual um malabarista" (19).

A imagem que salta dessa colocação é a de que a gambiarra é um exercício de pensamento, presente nas interrogações acerca das formas de sobrevivência. A conclusão é que o malabarista e a gambiarra se entrelaçam porque acionam um território, um tipo de discurso com acento político para além da dimensão estética, cuja percepção passa ao largo de qualquer ideia de "pouquidão", mas, sim, de "oposição" (23).

No comentário sobre um texto de Moacir dos Anjos, que questiona se haveria alguma marca específica da arte brasileira contemporánea que a distinguiria dos outros países, Sabrina Sedlmayer argumenta com elegante eufemismo que os apontamentos do ensaísta têm potencial cognitivo, porém repetem a discussão já sedimentada pelos Estudos Culturais sobre mestiçagem, sincretismo, crioulização. O avanço de Moacir dos Anjos, apesar da falta de precisão dos conceitos, seria o lançamento do conceito de "gambiarra" como elemento organizador desse debate (23).

Dessa forma, a reiterada afirmação de que o "toque brasileiro" para suprir a carência tecnológica ou a falta de recurso econômico é a gambiarra não satisfaz nem atende ao debate empreendido. Discursos como os que salientaram a nossa inventividade e o improviso na abertura das Olímpiadas do Rio 2016, ou aqueles que tratam do reaproveitamento de materiais, só invertem a relação hierárquica ao dizerem que o "lixo vira luxo", algo próximo da carnavalização em Bakhtin, como escreve Sedlmayer.

Segundo a estudiosa, no cerne desse debate está a "noção de uso", a qual se relaciona com a figura do jogo em Walter Benjamin e com a "inoperosi-dade" em Giorgio Agamben.2 A jacuba e a gambiarra seriam operações que cancelam e desativam um velho uso para substituir e criar um novo uso. O fundamento desse gesto está relacionado ao que Agamben pontua sobre a restituição ao uso comum daquilo que outrora era religioso ou sagrado. Em outras palavras, Sabrina Sedlmayer defende que a gambiarra questiona as formas consagradas de uso, uma vez que desativa a "religião capitalista" e sua esfera do consumo, para criar um novo uso do pensamento e dos objetos.

Muito diferente dos modismos do prefixo "re-" - reutilizar, reusar, renovar, reciclar, refazer - que aparecem comumente como dispositivos da espetacularização, a estudiosa defende que sua tese não faz essa apologia, mas busca pensar os rastros, os ruídos, o efêmero. Projeta-se, então, a necessidade de se problematizar essa zona indiscernível onde a gambiarra atinge sua potência. É nesse lugar que estariam algumas das obras de Rivane Neuenschwander, Cao Guimarães, O Grivo e Guimarães Rosa. Destaque-se, de antemão, que outro ponto comum nessas obras é a forma solidária com a qual convidam seu expectador-leitor a interagir com o trabalho artístico.

Ao abordar, na seção "Rastros", a obra de Rivane Neuenschwander, destaca-se o caráter sobrevivente dos trabalhos da artista: além da "Gambiarra" exposta no Museu de Arte da Pampulha, são destacadas também exposições cujos rastros de vida aparecem nas cascas de alho, listas de compras, poeira, cascas de laranja. Ressalta-se também a participação do outro nos trabalhos de Rivane, pois "além de ser um momento de recepção, é também confronto entre recepção e performance" (35).

É em "Macunaíma olha" que o livro intitulado Gambiarra, de Cao Guimarães,3 é analisado. O artista, semelhante à personagem antropofágica de Mário de Andrade, colhe imagens durante anos em várias cidades do Brasil e da América do Sul. A fotografia reproduzida tem o torso de uma mulher vestindo um sutiã em que uma das alças é segurada por um clipe. Sabrina Sedlmayer dirá que o trabalho de Cao promove uma expansão do termo "gambiarra" quando "aproxima-o, ontologicamente, das noções de sobrevivência e formas de vida" (35). É desse modo que a gambiarra insurge contra os modos de consumo espetacularizados. Na seguinte passagem, há uma das colocações mais precisas da autora: "ato inventado por cada um, qualquer um, que tenha utilizado de astúcia para sanar a adversidade do presente" (37). Percebe-se a insistência em demonstrar que a gambiarra está no limiar entre o uso do comum e a conversão em objeto artístico (fotografia).

Ao tratar da música em "Quadros de som, músicas de gestos", aborda-se a produção do coletivo O Grivo e releva-se a descoberta de novos sons e texturas imagéticas no trabalho desse duo mineiro. Os trabalhos reproduzidos no livro são Máquina lata e Piano mecânico, (40-41). Além dos artefatos que constroem, essa noção de performance deslocada para outra forma de uso "não opera distinção entre sons musicais e ruídos" (45), por conta disso demanda do seu ouvinte uma nova maneira de interação. A gambiarra está justamente nesse lugar da experimentação do som, do ruído, da imagem, da montagem das peças.

Com Guimarães Rosa, na seção "Do provisório, dos usares", vem a jacuba, dieta do sertanejo-jagunço ou bandido-soldado, em Grande sertão: veredas. A preparação varia de doce para salgado, quente ou frio, sem contar os inúmeros ingredientes que podem ser combinados para enganar a fome.

A jacuba surge, na prosa de Rosa, como espécie de fórmula que comporta, a um só tempo, o alimento com ingredientes básicos, capaz de temporariamente saciar, e também algo que se assemelha à sua escrita - uma dinámica ousada, sem formas "estáticas, cediças, inertes, estereotipadas, lugares comuns." (47)

O provisório da jacuba pode ser a fome que sempre volta e a recombinação dos ingredientes - todavia o resultado é o mesmo. Tal como a gambiarra, Sabrina Sedlmayer demonstra que a criação da jacuba varia, sendo passível de consideráveis alterações da composição, e ainda assim permanece intangível no seu léxico, como se carregasse nela mesma a subjetividade criadora do uso, sem o costumeiro apreço pela materialidade do objeto.

Na finalização, a autora evidencia como o olhar sobre essas artes perscruta o que há de sobrevivente; aquilo que resiste no limiar do que seria o "original" e a "cópia", mas sem requerer qualquer status quo ao novo objeto. Antes de qualquer conclusão apressada, é bom ressaltar que Sabrina Sedlmayer não confunde gambiarra com desinteresse, falta de potência, suprimento apenas da necessidade básica. Muito pelo contrário, a pesquisadora expõe que a gambiarra é a "relação do qualquer um com a civilização tecnológica", quer dizer, é o interstício da magia com a técnica, é a invenção "material" do presente, é a fome saciada de diversas formas, tudo, sem qualquer perspectiva "vindoura". É o cotidiano inventado sem espetacularização.

A conclusão desse estudo já se revela na (im)precisão do título Jacuba é gambiarra. A crítica mostra como essa expressão dignamente tautológica é diretamente proporcional à nossa (in)definição identitária brasileira. O pensamento mais latente do livro é o de que vivemos entre a magia e a técnica. Dizer que a criatividade, a espontaneidade e a resiliência são traços ímpares da nossa sociedade não serve de compensação ao, questionável, afastamento do chamado "mundo desenvolvido" - ideia recorrente em diversos "intérpretes do Brasil", a exemplo de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Antonio Candido, embora nem todos esses sejam diretamente citados.

Ao dialogar com essa tradição, Sabrina Sedlmayer foge dos binarismos e ufanismos para defender que subjetivamente não há qualquer atraso tecnológico ou carência de pensamento na criação da gambiarra. Fazer gambiarra significaria operar no limite: sem os excessos da vida contemporánea - inventados pela lógica de consumo da sociedade do espetáculo; nem a falta criadora de afetos de sofrimento - como se fosse índice de inaptidão mental desprezar o modelo de evolução hegemonicamente instituído.

Dessa forma, calcada na leitura de Lévi-Strauss e na forma do bricolage, a estudiosa defende uma solidariedade entre o plano técnico e a reflexão mítica, pois a gambiarra não seria antítese da técnica, da mesma forma que magia e ciência também não podem ser colocadas em lados opostos.

Com esse livro, a autora questiona justamente esse lugar indiferenciado da gambiarra, sugerindo que ela poderia ser uma "espécie de palavra-valise utilizada para suprir certa lacuna nos níveis lexical (vocabulário), pragmático (ação), semántico (cognitivo) e sintático (lógico), ou se sua reiterativa presença no português brasileiro demonstraria, ao contrário, o vigor e a potência que somente um pensamento abstrato é capaz de sustentar" (53).

O gambiarrista é o sujeito situado entre a experiência do objeto e o conhecimento material deste. Não há a típica distáncia criada entre a abstração e a instrumentalidade. A gambiarra movimenta o objeto e seus sentidos ao mesmo tempo em que cria novos usos. Usos estes que não correspondem a uma falta no sentido do consumo, mas no seu aspecto de preenchimento daquilo que pode e precisa ser aprimorado na vida.

Jacuba é gambiarra contribui de forma bastante aguda para a renovação da crítica cultural brasileira. É uma leitura necessária para quem busca se aventurar nos estudos das artes em geral e da literatura. Como já foi dito, tanto pelo método de abordagem quanto pela discussão proposta, é um dos raros livros que consegue a originalidade das ideias sem recair na retumbáncia vazia do embate gratuito; da mesma forma, despreza também a vaidade das conclusões desmedidas. Sem qualquer demérito, agora, é possível afirmar que esse limiar alcançado é digno de uma potente gambiarrista.

1Zumthor, Paul. Performance, recepção, leitura. Traduzido por Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich, São Paulo, Cosac Naify, 2007.

2Agamben, Giorgio. Profanações. Traduzido por Selvino José Assmann, São Paulo, Boitempo, 2007, p. 75.

3Guimarães, Cao. Gambiarras. Série fotográfica (trabalho em andamento). 127 fotografias. Dimensões variadas.

Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons