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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.22 no.1 Bogotá Jan./June 2020  Epub Apr 13, 2020

https://doi.org/10.15446/lthc.v22n1.82296 

Artículos

A lírica de guerra na poética de Manoel de Barros

La lírica de guerra en la poética de Manoel de Barros

War Poetry in the Poetics of Manoel de Barros

Paulo Eduardo Benites de Moraes1 

Josemar de Campos Maciel2 

1Universidade Federal de Rondônia, Rondônia, Brasil paulo.moraes@unir.br

2Universidade Católica Dom Bosco, Mato Grosso do Sul, Brasil maciel50334@yahoo.com.br


RESUMO

A poesia de guerra pode ser considerada um gênero autêntico da primeira metade do século XX, como afirma Murilo Marcondes de Moura. Face Imóvel, obra publicada em 1942, de Manoel de Barros, pode ser lida diante de uma tradição oriunda da poesia de guerra. Nesse sentido, é uma obra que enfrenta a história dialogando, especialmente, com os poetas que produziram nas décadas de 1940 e 1950. Destaca-se, no diálogo com a tradição, uma aproximação às poéticas de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, em suas obras consideradas mais engajadas, e Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo, de 1945.

Palavras-chave: lírica de guerra; Manoel de Barros; poesia brasileira; tradição

RESUMEN

La poesía de guerra puede considerarse un género auténtico de la primera mitad del siglo XX, como afirma Murilo Marcondes de Moura. Face Imóvel, obra publicada en el 1942, de Manoel de Barros, puede leerse ante una tradición oriunda de la poesía de guerra. En este sentido, es una obra que se enfrenta a la historia dialogando, en especial, con los poetas que produjeron en la década del 1940 y 1950. Se destaca, en el diálogo con la tradición, una aproximación a las poéticas de Mário de Andrade y Oswald de Andrade, en sus obras consideradas más comprometidas, y Carlos Drummond de Andrade, en A rosa do povo (La rosa del pueblo), de 1945.

Palabras clave: lírica de guerra; Manoel de Barros; poesía brasileña; tradición

ABSTRACT

As Murilo Marcondes de Moura states, war poetry can be considered an authentic genre of the first half of the 20th century. Manoel de Barros' Face Imóvel, published in 1942, can be read within the tradition deriving from war poetry. In this sense, it is a work that confronts history by entering into dialogue with poets writing between 1940 and 1950. In this dialogue with tradition, his approach to the poetics of Mario de Andrade and Oswald de Andrade, in their most socially engaged works, and of Carlos Drummond de Andrade, in A rosa do povo (1945) stands out.

Keywords: war poetry; Manoel de Barros; Brazilian poetry; tradition

Notas introdutórias

FACE IMÓVEL É UMA OBRA distante esteticamente das outras obras de Manoel de Barros. O próprio poeta não atribui valor de destaque à obra: "Face imóvel, editado pela Século XX, do Rio, é meio engajado na política. Eu não gosto deste livro" (citado en Ricciardi 99).

Para Miguel Sanches Neto, "há uma desvalorização do homem particular que pode ser facilmente explicada. Num momento de guerra em que a espécie humana corria perigo, o poeta dirige seu olhar, de maneira não-individualizada, para ela" (12). Com isso, os diálogos, os erros criativos, as inovações linguísticas passam por uma sensível mudança estética, apresentada por uma obra conflituosa transpassada por um discurso hermético. Aliás, Sérgio Milliet, que estudou a fundo a poesia construída nesse contexto, explica que o hermetismo acontece porque

o poeta se isola em códigos misteriosos, incompreensíveis para o comum dos homens, por se ver fora de seu tempo: no mundo hostil ao poeta, no mundo que dispensa o poeta, que atenta para sua eficiência, a máquina, a demagogia, a guerra, a padronização, que fazer senão escolher-se, isolar-se, evadir-se. (Milliet 138)

O hermetismo na poesia de guerra é conhecido. Até protege o poetante. No caso de Edmond Jabès, por exemplo, escreve, em 1963, o Livro das interrogações (Le livre des questions) e o dedica "àqueles, enfim, cujo caminho de tinta e de sangue passa através dos vocábulos e atravessa os homens.."" E "[e] u grito, eu grito, Yukel. Nós somos a inocência do grito!" (Jabès 8). Há uma tensão entre o querer loucamente ser ouvido como um grito, e a tentativa de esconder-se para preservar-se, como um caminho de sangue-tinta, como um corpo de papel. Jabès enfatiza a soleira, a impermanência de uma diáspora que configura a alma como estrangeira e a literatura como uma configuração desse estranhamento em uma "economia da diferença" (citado em Mole 54).

Nesse sentido, Face imóvel ocupa um lugar de desconforto estético dentro do conjunto da obra de Manoel de Barros e insere-se numa tradição bastante peculiar da poesia brasileira. Dessa maneira, nossa proposta de leitura é anotar de que modo a guerra atravessa os poemas de Face imóvel. Uma vez que se trata de uma obra tão díspar em relação às grandes linhas de força da poética de Manoel de Barros, buscaremos mostrar como a guerra passa a ser elemento integrante dos poemas e como ela é construída esteticamente.

A lírica de guerra na poesia brasileira moderna

Murilo Marcondes de Moura, em seu trabalho sobre Murilo Mendes, realiza um estudo sobre o poema "Janela do Caos", do livro Poesia liberdade. Nesse trabalho, o crítico nota um princípio norteador para a leitura do poema de Murilo Mendes que denomina de poesia social ou poesia de guerra (Moura 165); o que atualmente tem chamado de lírica de guerra, expressão usada em uma fala sobre a obra A rosa do povo, de Drummond, durante o Simpósio Internacional setenta anos de A rosa do povo, realizado em 2015, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.1

Em extensão ao seu trabalho, o professor e crítico publicou, em 2016, O mundo sitiado: a poesia brasileira e a Segunda Guerra Mundial, no qual faz uma discussão entre a chamada poesia de circunstância e poesia de guerra. Essa discussão tem como núcleo as proposições de Goethe e, após fazer um percurso apresentando-nos as diferenças de toda ordem entre os autores na tentativa de chegar a um consenso entre poesia e circunstância, afirma: "considera-se a melhor poesia de circunstância aquela em que a dimensão mais íntima alcança uma voz forte, em que o lirismo, portanto, se sobressai" (Moura 19).

O ponto que interessa para os efeitos deste texto é tomar a Primeira Guerra Mundial como um acontecimento inaugural do século XX, o que, segundo Moura, engendra "uma crise radical de perspectivas e de linguagens, produzindo uma espécie de obsolescência retórica de modo a exigir formas novas de expressão" (93). Dentro desse contexto, a obra de Manoel de Barros, e outras obras da tradição da poesia brasileira, vale-se da ocorrência desse evento na criação interna da poesia, o que vale dizer que a guerra aparece não só como tema, mas tem impactos nos procedimentos estéticos do processo criativo do poeta.

Além de compreendermos a guerra como um evento inaugural do século XX, como afirmara Marcondes de Moura, a sua relação com a literatura expande os sentidos possíveis. Entre eles, um que se desdobra para os objetivos deste texto é olhar a guerra como um elemento que interfere no processo de representação artística. O evento de uma guerra, em sua dimensão geológica, biológica, história, psicossocial etc., gera marcas e experiências traumáticas. Nesse sentido, uma das formas para que a literatura se aproprie do tema da guerra e promova o giro representacional é servir-se das marcas traumáticas das experiências catastróficas, simbolizando-as. Vale lembrar, nesse ponto, a proposição do escritor brasileiro Bernardo Carvalho: "a catástrofe costuma trazer em si um problema de representação" (237). Tal frase, presente num conto publicado num projeto que discute a questão da catástrofe e da representação, sob a organização de Márcio Seligmann-Silva, apresenta uma contradição fundamental para a relação da literatura com a guerra: se a condição para a representação é a catástrofe, é a própria catástrofe que promove a dificuldade de representação. Tal ambiguidade já fora posta, por exemplo, por T. Adorno: "escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque hoje se tornou impossível escrever poemas" (29), ou W. Benjamin, em seu ensaio famoso "O narrador", que aponta para o fim da faculdade de intercambiar experiências.

Diante desse contexto, convém observar como a tradição da poesia brasileira moderna, marcada pela lírica de guerra, se apropria desse evento e o transforma em procedimentos poéticos. Lembremos, em uma primeira visada, Mário de Andrade, em Lira Paulistana,2 e Oswald de Andrade, em Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão (1942). Constata-se que foi durante os anos iniciais da década de 1940 que a lírica de Mário de Andrade segue em direção aos temas de caráter mais social e político. Sem deixar de lado, diga-se de passagem, a configuração lírica de ruptura adquirida no início do movimento modernista brasileiro.

O crítico João Luiz Lafetá é quem melhor percebe essa perspectiva política mais densa de Mário de Andrade nesse momento. Em um estudo sobre a poética do autor de Macunaíma, à luz de um ensaio de Antonio Candido, Lafetá constata que Lira Paulistana perfila com uma dicção poética de "maneira engajada", isto é, com "o tema do choque social" (18).

João Luiz Lafetá faz uma leitura crítica de um ensaio de Antonio Candido, escrito em 1942, "O poeta itinerante", publicado em O Discurso e a Cidade, ensaio em que Candido tenta esquematizar "os vários aspectos, várias maneiras e vários temas" (citado em Lafetá 72) da atividade lírica de Mário de Andrade, tendo como base a obra Poesias, de 1941.

Ao fazer a leitura crítica da leitura empreendida por Antonio Candido, João Luiz Lafetá chama atenção para o seguinte fato:

[O]lhando o conjunto das Poesias Completas, só nos seria possível acrescentar mais um aspecto, uma maneira e um tema, que àquela altura não se poderia mesmo conhecer porque não eram públicos: o poeta político, a maneira de combate engajada e o tema do choque social, presentes em O Carro da Miséria, Lira Paulistana e Café. (7)

Dentro desse contexto dos últimos aspectos mencionados por João Luiz Lafetá, é possível considerar a poética de Mário de Andrade integrante da tradição lírica brasileira de guerra. À luz dessas reflexões introdutórias sobre Mário de Andrade, considere-se a leitura do seguinte poema:

Abre-te boca e proclama

Em plena praça da Sé,

O horror que o nazismo infame

É.

Abre-te boca e certeira,

Sem piedade por ninguém,

Conta os crimes que o estrangeiro

Tem.

Mas exalta as nossas rosas,

Esta primavera louca,

Os ticos-ticos mimosos,

Cala-te boca. (M. Andrade 496)

O que salta, em um primeiro plano do poema, é o jogo antitético que se constrói. Seja pelo encadeamento linguístico, trabalhado no aspecto morfossintático dos termos empregados (abre-te vs cala-te), seja no plano das imagens que são construídas seguindo esse ritmo conflitante (Sé vs Nazismo/crime/rosas).

A contrariedade de ritmos, imagens e tons é uma marca registrada em toda a obra Lira Paulistana, que terminará com o célebre poema "A Meditação sobre o Tietê", escrito entre 30 de novembro de 1944 e 12 de fevereiro de 1945. Mário de Andrade morreu em 25 de fevereiro de 1945, treze dias depois de terminar o poema.3

Na esteira da poética social marioandradina, segue a última fase de Oswald de Andrade, em Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão. Consideremos o seguinte poema:

Alerta

Lá vem o lança-chamas

Pega a garrafa de gasolina

Atira

Eles querem matar todo amor

Corromper o pólo

Estancar a sede que eu tenho doutro ser

Vem de flanco, de lado

Por cima, por trás

Atira

Atira

Resiste

Defende

De pé

De pé

De pé

O futuro será de toda a humanidade

(O. Andrade 207)

De modo bem diverso dos preceitos da Poesia Pau Brasil, esse poema de Oswald de Andrade, de 1942, apresenta-se com maior maturidade sentimental. Oposto ao poema-piada do período inicial do Modernismo, agora os versos sedimentam o valor humano. São versos simplificados, curtos, rápidos, porém de uma força contumaz, que acerta o leitor como um tiro. Ao mimetizar uma ação tensa de guerra, percebemos uma voz lírica atordoada, sem saber localizar-se no mundo, veja-se a desorientação dos versos: "Vem de flanco/de lado Por cima, por trás".

Se, por um lado, os versos perdem, de certo modo, aquele brilho do humor, do sarcasmo e da ironia da fase inicial, por outro, destaca-se a densidade de conteúdo dos versos de "Alerta". Vemos a configuração de um sujeito que, mesmo desorientado, permanece "De pé", resiste e tem esperança no futuro da humanidade - ou ao menos afirma que as suas ações possuem uma transcendência simbólica para esse mesmo futuro.

Ao lado da última fase de Mário de Andrade, e ao lado da fase da valoração do ser integral de Oswald, temos a crescente lírica de Carlos Drummond, que, em 1940, já havia publicado Sentimento do Mundo e, em 1942, José.

Carlos Drummond, por sua vez, já se lança como poeta de forma bastante madura, com uma poética de muito combate, o que o liga, de certa forma, ao posicionamento poético de Mário de Andrade - na fortuna crítica de Drummond, isso pode ser corroborado com a correspondência entre Drummond e Mário. Mas é em A rosa do povo, de 1945, sobretudo, que haverá o que Murilo Marcondes chama de expansão do lirismo.

Tal fato deve-se a uma constatação da estrutura que envolve os poemas de A rosa do povo. São poemas longos, com um tom narrativo, poemas densos que exigem bastante fôlego. Tal adensamento está presente não só na forma, mas, sobretudo, na profundidade de conteúdos e reflexões a que os poemas nos levam.

Há, na obra mencionada, um espírito de guerra que pairava no mundo. Tal sentimento vai culminar em A rosa do povo, que tem em seu cerne poemas sobre a guerra. Consideremos a leitura de trechos de um único poema, "Carta a Stalingrado":

[...] A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.

Os telegramas de Moscou agora repetem Homero.

Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um

mundo novo

que nós, na escuridão, ignorávamos.

Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,

na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,

no teu arquejo de vida mais forte que o estouro

de bombas,

na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.

Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.

[...]

(Drummond 128)

Como uma das marcas dos poemas de guerra destaca-se o fato do enfrentamento da realidade. A lírica de guerra do início do século XX contribuiu para emplacar um grande paradoxo na história da literatura. É um gênero que nasce e divide o mesmo tempo e espaço da literatura vanguardista. De um lado, a lírica de guerra que demarca um topos e deixa flagrante que se pretende uma atitude lírica referencial, a partir de um dado previamente estabelecido; de outro, a literatura vanguardista marcada pela rarefação dos sentidos, com uma tendência à abstração muito mais acentuada. É curioso perceber com duas posições estéticas completamente díspares conviveram no mesmo tempo e espaço. Não podemos esquecer, ainda que de passagem, que algumas características do Futurismo, sobretudo com Marinetti, traziam referências à guerra.

Diante dessa contextualização um pouco mais teórica, ao olharmos para o trecho selecionado do poema de Drummond, é visível o estigma referencial. A referência a Homero, em uma primeira visada, nos remete à guerra que o poeta grego consagrou; as marcas que apresentam a cidade (destruída, morta) encaminham o poema para o tom de negatividade e para o cenário de guerra.

Além disso, há uma dicção poética que entoa o sentido da catástrofe. Os versos são construídos sob uma perspectiva narrativa no sentido de organizar a sucessão de fatos num arcabouço simbólico. O que faz sentido quando pensamos no título do poema: "Carta a Stalingrado", ou seja, há um elemento prosaico que dita a dicção poética dos versos.

Esse tom narrativo do poema acentua-se pelo modo como é estruturado. É possível dividi-lo em partes: a primeira inicia-se com o verso inicial e termina com o verso "na tua fria vontade de resistir", transcrito acima; a segunda inicia-se como o verso "Saber que resistes". Note que o verso sequencial retoma a ideia do verso anterior pelo emprego do mesmo verbo: resistir. Essa estrutura se repete ao longo do poema:

[...] as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas,

entregues sem luta,

aprendem contigo o gesto de fogo.

Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!

[...]

(Drummond 129)

[...] contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate, e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!4

(Drummond 219)

Esse encadeamento dos versos demarca a estrutura do poema e o ritmo cadenciado. Ao mesmo tempo, reforça a personificação do tu do poema. Trata-se de um eu-lírico que se dirige a um tu, Stalingrado, que ganha status de um ente, um ser pulsante. Os seguintes versos, no cerne do poema, dão-nos essa referência: "sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?" (Drummond 219).

O ponto nevrálgico do poema é a elevação de Stalingrado a um lugar que representa a humanidade. Ainda, atua como um canto para o resgate da humanização que se perdera com a guerra. Além de "Carta a Stalingrado", Drummond tem outros poemas nesse mesmo livro que tomam como referência a guerra, mantendo a mesma dicção poética.

Face imóvel

Seguindo a esteira dessa tradição poética, Face imóvel, obra publicada em 1942, é um livro que destoa do tom poético mais aclamado pela crítica e leitores de Manoel de Barros, e que, a nosso ver, destoa por uma particularidade em especial: a sombra da guerra. Diante de uma tradição brasileira que confronta a história, sobretudo os poetas que produziram nas décadas de 1940 e 1950, com especial destaque para Drummond, em A rosa do povo, de 1945, Manoel de Barros pode ser enquadrado no rol de poetas que escreveram poemas de guerra.

A obra Face imóvel recebeu algum destaque quando foi publicada. No dia 26 de outubro, na seção do Jornal Globo, intitulada "O mundo das letras - poetas", assinada por Eloy Pontes, houve uma menção ao poeta e à sua mais nova obra. Na edição de 5 de novembro do jornal, a seção "Livros e autores", por sua vez, dizia que Manoel de Barros, então com 25 anos, era um poeta "moderníssimo", com os seus 32 poemas em 53 páginas de Face imóvel, publicado pela Editora Século XX: "Alguns de seus poemas têm a maior das virtudes, a síntese", afirmava, dando o exemplo do poema "Aurora do front".5

A obra Face imóvel é, por vezes, deixada à margem dentro do conjunto das obras de Manoel de Barros. Contudo, ela nos apresenta particularidades interessantes, tanto do ponto de vista da sua recepção e circulação na época em que foi lançada quanto do ponto de vista estético. Além do enfoque dado pelo Jornal Globo, em 1942, a nova edição de Face imóvel, lançada pela Alfaguara, em 2016, traz uma reprodução de uma edição da obra que o poeta enviou a Mário de Andrade com a seguinte dedicatória:

Mário de Andrade, quantas vezes, nesta minha admiração por você, fiquei vendo seus gestos de longe, ouvindo sua voz... Parecia-me, a mim, que quem escrevia aquelas coisas não era um homem de carne e osso.

of. o autor Manoel de Barros. Rio, 16-10-42. Escritório Irmão Barros Ltda. Mato Grosso - Corumbá

(Barros, Poemas 56)

Essa dedicatória pode apontar para uma certa filiação à qual Manoel de Barros se aproxima. Para além desses fatos que envolvem a circulação da obra e do poeta, aponta-se para a filiação estética que segue essa mesma tradição. Face imóvel, portanto, pode ser inserida no escopo das obras que se valem do hermetismo, do tom apocalíptico da guerra, da negatividade, da presença da morte.

Lembremos, por exemplo, um poema de Carlos Drummond do livro José, que antecede tanto a obra de Barros quanto serve de prenúncio da dicção poética que será alcançada em A rosa do povo. O poema se intitula "Os rostos imóveis", eis alguns versos: "[...] Sentir-me tão claro entre vós, beijar-vos e nenhuma poeira em boca ou rosto. [...] na minha vida, na vida de todos, na suave e profunda morte de mim e de todos" (Drummond 35). Os versos desse poema de Drummond cantam a morte, a morte de um eu e a morte de tudo e de todos que o cercam. É um pouco esse tom de perda, de fechamento, de morte que se vê nos poemas de Face imóvel.

O segundo poema da obra Face imóvel já nos insere no universo poético da guerra:

Rua dos acos

[...] Toda espécie de gente ali

Circulava e bebia uniforme.

Uniforme era a feiura das casas -

O ar triste que eles tinham;

Mas também o ar de traição

Atrás das cortinas vermelhas.

[...]

(Barros, Poemas 60)

Nessa obra, a visão poética está voltada para a uniformidade, para a universalidade. Ao contrário dos personagens particulares e individuais de 1937, em Poemas concebidos sem pecado, agora o foco poético é construir uma ideia da espécie de gente, isto é, um olhar mais atento para a figura do ser humano em sua universalidade. Note-se que a uniformidade está concretizada em versos. É interessante observar, também, o recurso do encadeamento das estrofes dos poemas que, em alguma medida, é o mesmo recurso estilístico utilizado por Drummond em "Carta a Stalingrado": "Circulava a bebida uniforme/Uniforme era a feiura das casas".6 Nesse sentido, a obra de Manoel de Barros está lado a lado com A rosa do povo, de Drummond que, por sua vez, solidifica o terreno para a lírica de guerra com as suas obras anteriores: Sentimento do mundo e José. Contudo, Manoel de Barros, já com uma consciência plena do contexto da guerra, compõe um estilo de versos que será encontrado também na obra de Drummond. Mesmo sem haver um diálogo mais próximo entre os dois poetas, ambos compartilham do mesmo espírito poético e criam uma lírica de guerra bastante símile.

Há poemas emblemáticos na obra de Barros que sugerem essa mudança de posicionamento do poeta, o sentimento de perda, a opção por se ocupar do universalismo em detrimento da localização do Pantanal, por exemplo. Vejamos "Poema do menino inglês de 1940":

[...] Agora parece que estou me despedindo de alguém

De alguma coisa que vai morrendo dentro de mim

mesmo.

Que seria? Seriam aquelas cortinas velhas de nossas

Janelas?

Aqueles muros tão conhecidos nossos?

[...]

Agora sinto que estou me despedindo de alguma coisa

De alguma coisa que está morrendo dentro de mim

mesmo.

(Barros, Poemas 62)

Ou o poema "Aurora no Front":

Das mãos caíam rezas como orvalho

Caíam rezas das mãos curvas

Sobre a aurora entrevista

No fantástico andar dos gatos.

(Barros, Poemas 61)

Nesses dois poemas é possível perceber a atmosfera de perda, de morte, de sentimentalismo que aflora de uma voz lírica que se propõe a pensar os valores humanos, as mazelas por que passam as civilizações. Tais poemas não apresentam, esteticamente, grande diferença em relação aos da primeira obra; são versos sintéticos, curtos, que representam esse sentimento súbito que toma o poeta, como se pode ver no poema "Aurora no Front", e tendo em "Front" uma clara alusão à guerra. No "Poema do menino inglês", percebemos essa mudança poética, uma voz lírica se questionando repetidamente sobre o seu próprio ser.

É visível que ocorre o mesmo que Sérgio Milliet percebeu nos poetas desse período: "Há um isolamento, um encolhimento para se investir em uma linguagem mais universal" (s. p.). Um conflito entre o eu-poético do poema de Barros na personificação de Cabeludinho que se esvai por conta de um sentimento de despedida de alguma coisa do próprio eu, que arriscamos a dizer que é a própria condição de poesia.

Em Face imóvel, há uma série de figuras que sugerem esse bloqueio, obstáculos que impedem o menino Cabeludinho de cometer seus delírios poéticos. Citamos poemas cujos títulos já apresentam esses empecilhos: "O muro"; "O solitário"; "A paz"; "Mansidão"; esses títulos curtos, solapados por uma força súbita de conflito, marcam uma poética oclusiva, encerrada, hermética, o que pode ser constatado pelo poema "Instante anunciado":

Um chapéu velho!

Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,

Esmaecido pelo sol, cobria.

Mas sei que não chorava

E nem tinha desejo de falar.

(Barros, Poemas 68)

São poemas que não desejam falar, pelo contrário, desejam se esconder por detrás dos muros, querem se ver solitários, desviar o olhar que se esvai por sob o chapéu. Contudo, a poesia busca um reduto, busca a paz, sair de uma mansidão sorrateira para dar espaço a um discurso poético que recupere a voz lírica de um menino Cabeludinnho que emane vida, luz, peraltagens e traquinagens com a palavra.

Notas finais

À luz das leituras que foram propostas, acreditamos que a obra Face imóvel, de Manoel de Barros, não pode ser completamente deixada de lado dentro do conjunto das obras do poeta. É uma obra díspar, desconfortante, que não segue o curso das principais características destacadas pela crítica.

Contudo, se tem alguma validade a consolidação de uma lírica de guerra, se há uma tradição dentro da poesia brasileira, como os poetas que aqui foram mencionados, sem deixarmos de lado que há uma tendência bastante forte dessa perspectiva na poesia estrangeira, Manoel de Barros confronta a história, confronta uma tradição e afirma-se, desde cedo, como uma das vozes mais significativas da literatura brasileira. Além disso, abre-se mais uma possibilidade de leitura da obra Face imóvel, como uma obra que se enquadra no gênero poesia de guerra.

Além do exposto, haveria a considerar o espaço da inscrição da lírica de guerra no interior das tentativas feitas por intelectuais brasileiros para encontrar os rumos e os sentidos de uma reconstrução de um país que se descobre atravessado pela experiência da guerra. Este pode ser mais um lugar a partir do qual Manoel de Barros merece uma posição de reconhecimento, ao lado de outros poetas que, a seu modo, não apenas interpretam, como banham o Brasil com seu lirismo.

Referências

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1A fala pode ser encontrada na íntegra no YouTube, sob o título "A Rosa do Povo e a poesia brasileira da Segunda Guerra Mundial", por Murilo Marcondes de Moura.

2No arquivo de Mário de Andrade, o dossiê com os manuscritos de Lira Paulistana conserva praticamente a totalidade das fases da escritura. Quando faleceu, em 25 de fevereiro de 1945, Mário de Andrade trabalhava nos textos de Lira Paulistana. Neste trabalho, utilizamos a obra publicada em Poesias Completas, organizada por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancora Lopez.

3Informação presente em Poesia Completa, organizada por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancora Lopez.

4O grifo é nosso.

5Na edição de novembro de 2014 do Jornal Globo, Gustavo Villela escreve sobre a repercussão de Face Imóvel nas duas edições de 1942 do mesmo jornal.

6O grifo é nosso.

Cómo citar este artículo (MLA): Benites de Moraes, Paulo Eduardo, e Josemar de Campos Maciel. "A lírica de guerra na poética de Manoel de Barros". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 22 núm. 1, 2020, págs. 179-194.

Sobre os autores Paulo Eduardo Benites de Moraes es doctor en Letras-Estudios Literarios por la Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (TJFMS). Profesor adjunto del Departamento de Lenguas Extranjeras e investigador de planta de la maestría en Estudios Literarios de la Universidade Federal de Rondônia (DLE-JINIR), Porto Velho, Rondônia. Hace pasantía de posdoctorado en el marco del Programa de Posgrado Stricto Sensu Maestría/Doctorado en Desarrollo Local en la Universidade Católica Dom Bosco (JICDB), Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Investigador del Grupo de Investigación Estudios Críticos del Desarrollo y del Laboratorio de Humanidades (LABUH-ucDB-CNPq). Josemar de Campos Maciel es doctor en Psicología por la Pontifícia Universidade Católica de Campinas y posdoctor en Estudios Culturales por la Escuela de Artes, Ciencias y Humanidades de la Universidade de São Paulo (EACH-USP). Docente de planta del Programa de Posgrado Stricto Sensu Maestría/Doctorado en Desarrollo Local en la Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Líder del Grupo de Investigación Estudios Críticos del Desarrollo y del Laboratorio de Humanidades (LABUH-ucDB-CNPq).

Recebido: 04 de Janeiro de 2019; Aceito: 01 de Janeiro de 2020

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