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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.23 no.1 Bogotá Jan./June 2021  Epub Apr 06, 2020

https://doi.org/10.15446/lthc.v23n1.90597 

Artículos

Saberes ausentes da "Cidade Letrada". Por um Iluminismo mestiço

Saberes ausentes de la "Ciudad Letrada". Por una Ilustración mestiza

Absent Knowledge from the "Lettered City". For a Mestizo Illustration

Rogério Mendes1 

1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Currais Novos, Brasil rogeriomendes@ceres.ufrn.br


Resumo

O presente artigo sugere empreender argumentos sobre a importância dos saberes afrodescendentes e indígenas, no processo de formação das sociedades e letramentos latino-americanos, desde a compreensão do conceito de "cidade letrada". A partir de apontamentos de marcos históricos e literários, o artigo apresenta possíveis razões que inviabilizam cosmogonias, cosmovisões e epistemologias que compõem o mosaico cultural multiconstitutivo latino-americano e comprometem uma perspectiva crítica literária ampla, atual e democrática. Ao valorizar as contribuições orgânicas da diversidade cultural e enfatizar a perspectiva de suas vozes sem mediações, acredita-se contribuir para visibilizar a importância de referências críticas que representem as marcas históricas e antropológicas da região e como repercutiram em sua Literatura. Espera-se, com isso, reiterar a necessidade de novas sensibilidades e epistemologias críticas para compreender, de maneira responsável, a demanda de projetos críticos e criativos que relevam e valorizam referências heterogêneas e ancestrais como base e criticidade.

Palavras-chave: crítica-literária; cultura afrodescendente; cultura indígena; literatura hispano-americana

Resumen

El presente artículo presenta y desarrolla la importancia del conocimiento afrodescendiente e indígena en el proceso de formación de sociedades y saberes latinoamericanos, a partir de la comprensión del concepto de "ciudad letrada". Por medio de apuntes sobre hitos históricos y literarios, el artículo presenta posibles razones que invisibilizan las cosmogonías, cosmovisiones y epistemologías que conforman el mosaico cultural multiconstitutivo latinoamericano y comprometen una perspectiva crítica literaria amplia, actual y democrática. Al valorar los aportes orgánicos de la diversidad cultural y enfatizar la perspectiva de sus voces sin mediación, se considera que estas razones contribuyen a visibilizar la importancia de los referentes críticos que representan las marcas históricas y antropológicas de la región y cómo impactaron su literatura. Se espera, con ello, reiterar la necesidad de nuevas sensibilidades y epistemologías críticas para comprender, de manera responsable, la demanda de proyectos críticos y creativos que resalten y valoren referencias heterogéneas y ancestrales como propuesta de un sistema crítico.

Palabras clave: crítica literaria; cultura afrodescendiente; cultura indígena; literatura hispanoamericana

Abstract

The present article suggests taking arguments about the importance of Afro-descendants and indigenous knowledge in the process of formation of Latin American societies and literacies from the understanding of the concept of "lettered city". Based on notes of historical and literary landmarks, the article presents possible reasons for the invisibility of cosmogonies, cosmovisions, and epistemologies that make up the Latin American multiconstitutive cultural mosaic and compromise a broad, current, and democratic literary-critical perspective. By valuing the organic contributions of cultural diversity and emphasizing the perspective of their voices without mediation, this article is believed to contribute visualizing the importance of critical references that represent the historical and anthropological marks of the region and how they impacted their literature. It is hoped, with this, to reiterate the need for new sensitivities and critical epistemologies to understand, in a responsible way, the demand for critical and creative projects that highlight and value heterogeneous and ancestral references as a basis of a critic system.

Keywords: literary criticism; Afro-descendant culture; indigenous culture; Latin American literature

Subalternização e Cidade Letrada

OLIVRO A CIDADE DAS LETRAS (1985), do ensaísta e crítico literário uruguaio Ángel Rama, é, sem dúvida, uma das principais obras da crítica cultural e literária na América Latina. O estudo do uruguaio para o presente artigo é de fundamental importância porque questiona a estratégia de ocupação e a hegemonia da elite intelectual responsável pela institucionalização das hierarquias culturais e da civilidade desde os tempos coloniais. Rama contribui, assim, para compreender as bases intelectuais que forjaram compreensões avessas à ideia da diversidade cultural que constitui a América Latina. É a partir da fissura do "não reconhecimento" ou da "não admissão" de saberes e patrimónios outros, distintos dessa matriz, como os indígenas e afrodescendentes, que se torna pertinente a discussão na presente reflexão.

A pesquisadora argentina Beatriz Colombi, no artigo "La gesta del letrado: sobre Ángel Rama y La ciudad letrada", argumenta que a referência dos saberes das elites colonialistas e criollas configurava e respaldava os centros urbanos latino-americanos que eram, em verdade, extensões objetivas e subjetivas de referencialidades culturais de núcleos políticos e administrativos das metrópoles. Logo, as diretrizes administrativas constituíam-se exclusivistas, proselitistas, no que diz respeito à aplicabilidade e expansão de valores em orientações "cidadãs". Por essa razão, os indígenas e africanos não dispunham de instrumentalidade e compreensão para se incluírem no letramento oficial, o que fez com que se "justificassem" e implementassem razões para o não reconhecimento de alteridades, já que em sua matriz original não se preconizava uma participação ampla de outras referências cosmogónicas. O projeto da Cidade Letrada apresentou como base civilizatória a institucionalização de valores "humanistas" ocidentais nas Colónias, como se observa nas colocações do crítico literário Ángel Rama:

[P]erceberam, progressivamente, que haviam se afastado da cidade orgânica medieval em que haviam nascido e crescido para entrar em uma nova distribuição do espaço. [...] Esse comportamento permitia negar ingentes culturas e começar o edifício do que se pensava ser mera transposição do passado. [...] Gradualmente, de forma inexperiente, foram descobrindo a tela redutora que filtrava as experiências velhas já conhecidas, o stripping down process, clarificação, racionalização e sistematização que a própria experiência colonizadora ia impondo, respondendo não a modelos reais, conhecidos e vividos, mas a modelos ideais concebidos pela inteligência, que terminaram impondo-se regular e rotineiramente na medida da vastidão da empresa, de sua concepção organizativa sistemática. Através do neoplatonismo, que serviu de condutor cultural para o impulso capitalista ibérico, foi recuperado o pensamento que já havia sido expresso em A República. (A cidade 24-25)

Das investidas iniciais de conquista aos ímpetos "revolucionários" nos séculos XVIII e XIX, a cidade assumiu relevância protagonista e paradigmática para as instâncias políticas estrangeiras no continente. As cidades, mais especificamente, os centros urbanos, passaram a respaldar a figura do intelectual público como instrumento representativo e burocrático para (r)estabelecer a centralidade e organização da administração, que esteve, quase sempre, vinculada aos valores civilizacionais e ancestrais dos criollos. As preocupações da casta criolla, por sua origem e formação, reiteraram saberes responsáveis pela dificuldade em lidar com a otredad. Algo que pode ser observado, por exemplo, nos testemunhos dos navegadores e conquistadores; no debate entre intelectuais "humanistas" sobre a legitimidade da natureza espiritual dos nativos e dos escravizados que se estenderam às evangelizações dos mesmos. As impressões conclusivas e legitimadas pelas letras coloniais nada mais eram que razões que impulsionaram a ambição expansionista do Velho Mundo sobre os Outros Mundos no processo de colonização das Américas. Com a consolidação da "Cidade Barroca" (Rama, A cidade), sucederam-se os assentamentos das práticas legislativas que (re)afirmaram tradições sobre desenvolvimentos de outras tradições que integravam a diversidade da complexa ambiência das colónias. A força política dos argumentos oficiais pautados na necessidade dos interesses alinhados ao diálogo com as metrópoles fez com que, pela força e domínio das letras, inviabilizasse--se a participação mais abrangente de patrimónios humanos mais amplos. Ou seja: narrar a cidade no século XIX apresenta a continuidade ou, ainda, semelhanças com a maneira como foi narrada a América no século XVI pelos estrangeiros. As semelhanças entre os tempos e as formas de narrar possuem relevância, porque indicam que as "independências" lideradas, em sua maioria, pelos liberais criollos não se apresentaram como processo de ruptura ou autonomia sobre uma lógica colonial, e, sim, o seu aperfeiçoamento na medida em que se sofisticou a rejeição da realidade mestiça americana pela instituição das letras. A cidade no século xix aprimorou o estamento burocrático colonial do século XVI e continuava disposta a constituir e estabelecer bases extensivas das civilizações do Ocidente. Ao intensificar e complexificar as relações burocráticas legislativas, os criollos inventaram um espaço que favoreceu o desenvolvimento de uma ideia de território sociodiscursivo que instituiu círculos e hierarquias de poder a partir da restauração e permanência da perspectiva "ilustrada" sob o pretexto de (re) criar, ou consolidar, uma ideia de intelligentsia simpática a uma ideia parcial e arbitrária de tradição que ignorou ou minimizou outras tradições. O uso da literatura como mecanismo propagandístico da difusão desses valores agravou ainda mais a distância que já havia entre estrangeiros, nativos e escravos, que já constituíam a unidade hibrida civilizacional americana ao longo do processo de formação das sociedades americanas. De algum modo, talvez intuitivamente, a afirmação de uma literatura ou cultura letrada poderia ser compreendida como uma maneira de marcar traços de distinção e legitimidade ante os mestiços, negros e índios, "iletrados", por não se adequarem aos princípios desse processo como civilidade.

Um processo que, segundo o sociólogo colombiano Santiago Castro-Gómez, no livro La hybris de punto cero: ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (2005), reflete um alinhamento vinculado a uma "ruptura planetária" no modo como a natureza era compreendida. Principalmente porque as cosmogonias africana/afrodescendente e dos nativos se fundamentavam integrativamente com preceitos orgânicos vinculados ao entendimento e à lógica da natureza, e não com bases racionalistas e ilustradas como as dos ocidentais. Se antes de 1492 predominava uma visão orgânica do mundo, em que a natureza, o homem e o conhecimento formavam parte de um todo inter-relacionado, com a formação do sistema-mundo capitalista e a expansão colonial da Europa, essa visão orgânica, ou quaisquer outras com ela relacionadas, começaram a ser subalternizadas em detrimento dos avanços de um liberalismo racionalista cada vez mais presente nas colónias. A emergência do antropocentrismo e o encanto das conquistas científicas e territoriais fizeram com que, pouco a pouco, natureza e homem se tornassem duas categorias ontológicas distintas, e, a função do conhecimento passasse a relacionar-se, ou confundir-se, com o desejo de controle racional e apropriação de todas as coisas, como também reconhece o antropólogo mexicano Enrique Leff, no livro Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza (2006), na extensão dessa ideia na Pós-Modernidade. Principalmente após a difusão e repercussão dos paradigmas cartesianos, consolidou-se o distanciamento entre sujeito (indivíduo) e objeto (natureza) como forma de controle do conhecimento para que assim se articulassem normativas e registros formais sobre a ideia do conhecimento em favor de uma referencialidade (euro)cêntrica e política. Uma base que se perfez como metodologia e contribuiu, de maneira significativa, para a ideia do "conhecimento verdadeiro" (episteme). E esse mesmo conhecimento não poderia realizar-se de outro modo senão por meio do cogito e difusão de epistemologias em tratados que compartilharam o universalismo racionalista que se distanciava das contribuições espirituais e pragmáticas subjetivas que não se apresentassem como antropocêntricas. Esse método seria a demonstração do alcance e do domínio que poderia exercer a racionalidade ocidental, mas que se distinguia das outras racionalidades, e que, ao distinguir--se, preconizava subalternizações. Este seria um dos maiores momentos em que se consagraria o antropocentrismo que legitima e sustenta as bases da Modernidade enquanto legitima e sustenta as bases da Colonialidade. No entanto, seria oportuno (re)considerar que poderia haver outras sistemáticas e operacionalidades distintas no que se refere a saberes e racionalidades que foram tanto ignorados quanto negados nesse processo. Nesse caso, ao relevarem-se as multirreferencialidades constitutivas planetárias já conhecidas naquele momento pelas investidas da expansão marítimo-comercial. Não seria absurdo pensar ou relativizar a ideia de antropocentrismo em detrimento de antropocentrismos, pois naquele momento havia a certificação de outras civilizações que operacionalizam outros tipos de saberes, como os indígenas, os africanos e os asiáticos, por exemplo. Desse modo, pode-se observar o nexo pertinente que se emprega como distinção no binómio Modernidade-Colonialidade e que resultara, em muitos casos, na rebeldia e insubmissão do que, posteriormente, por parte dos índios e dos negros, aqui se fundamentou como Pedagogia da Cimarronaje.1 Algo que fica evidente nas palavras oportunas de Castro-Gómez, quando afirma que: "A ciência e os embaixadores do Iluminismo instituem critérios para distinguir outras formas de vida e outras formas de saber para controlar, integrar e modernizar o que é distinto"2 (145). As considerações do colombiano, que se alinham à perspectiva do Coletivo Decolonial (Grupo/Geração de pensadores), são importantes porque esclarecem alguns dos problemas centrais da relação entre Modernidade e Colonialidade, que são a referencialidade, difusão e legitimação dos saberes a partir da perspectiva eurocêntrica e epistemológica. Na prática, a imposição dessas metodologias promove violência em relação aos patrimónios ancestrais de culturas outras que não possuem em sua base a articulação de um letramento que na efetivação das pautas coloniais foi definitivo como assentamento da "Cidade Letrada", segundo Rama (A cidade), algo que perdura até os dias atuais, por exemplo, no modo e no modelo que não preveem participação isonómica, horizontal e democrática ampla, relevando-se o não reconhecimento de patrimónios de povos diversos que constituem as diversas unidades civilizacionais latino-americanas.

A perspectiva da Ilustração repercutiu no sentimento da visão romântica empreendida em sua versão hispano-americana. Os intelectuais criollos argentinos, por exemplo, ao sentirem-se deslocados em meio a "índios selvagens", negros e mulatos, em espaço desprovido de uma tradição que os legitimasse como representação e consciência universalmente aceitas, voltaram-se para as bases referenciais de pensamento estrangeiro aos quais acreditavam estar integrados numa espécie de "resgate de pertencimento" voluntarioso. Em face à arbitrariedade e inaptidão para a governança dos que não souberam conciliar as diferenças e realidades mestiças, recorreram aos modos que os tornariam distintos. Ao tomarmos o exemplo argentino, a insatisfação com os rumos políticos provincianos instaurados pelo governador Juan Manuel Rosas (1829-1832) e a proposição de descontentamento sobre essa realidade fizeram com que Domingos Faustino Sarmiento escrevesse o livro Facundo: civilização e barbárie (1845). Imbuído na intenção "pátria" de impulsionar a formação de um estado nacional independente, que representasse de maneira idiossincrática o que considerava ser a representatividade civilizatória dos argentinos, acabou por apresentar um projeto liberal pautado na dialética entre a ideia de civilização, que tinha como cerne a realidade e anseios de um contexto urbano, a cidade, e a barbárie, que tinha como referências a fragmentação e complexidade "anacrónica" do que considerava o universo rural, que apresentou numa espécie de tratado do drama civilizacional argentino para explicar inapetência e justificar as hierarquias valorativas. No entanto, a perspectiva de Sarmiento é simplista, absoluta, binária com base em contrastes que se apresentavam de maneira imparcial em acordo com sua utopia romântica e liberal. Sarmiento apresenta os conflitos entre o homem e a natureza; entre o colono e o índio; entre a cidade e o campo como representações fidedignas do que para ele se apresentava como civilização e barbárie. A Argentina, por possuir recursos naturais abundantes e rotas favoráveis ao comércio, acreditava que a convivência com os "distintos" obstaculizava a ideia referencial, distante, europeia, de progresso. Desse modo, o gaucho, os índios, os negros e os mulatos, desprovidos da compreensão e articulação desses valores, eram a razão que inviabilizava a articulação de suas pretensões. Por sua formação e mentalidade, media a ideia de progresso de seu país a partir da ideia de progresso observado na Europa e nos Estados Unidos, dos quais era entusiasta, como pode ser observado no livro Viajes en Europa, África y América, quando afirma sobre essas localidades:

Suas ideias e modas, seus homens e romances, são hoje o modelo e a diretriz de todas as outras nações; e começo a crer que isto nos seduz por todos os lados, o que acreditamos ser imitação, nada mais é que aquela aspiração da natureza humana de se aproximar a uma espécie de perfeição, que é em si mesma e se desenvolve mais ou menos, segundo as circunstâncias de cada povo.3 (203)

Acontece que, na busca por um projeto pautado na ideia de civilização, Sarmiento não encontrou, a não ser em si e nos seus, os criollos, a própria referência, refutando, assim, motivações culturais integradoras, abdicando, portanto, de observar e considerar, distante de um deslumbramento pessoal, bases que poderiam ser úteis para a elaboração e reconhecimento tanto de uma condição híbrida, quanto de um pensamento original e condizente com sua própria realidade. É a partir da exclusão das otredades que o argentino afirma princípios unilaterais de consciência que acredita serem racionais, humanos e civilizados. Ao apresentar-se mais exclusivista do que esclarecido, incorpora a base dos valores elitistas letrados que configuram historicamente as matizes que fundamentam a Cidade Letrada, que, por sua vez, continuariam a subalternizar culturas que dispõem de outros mecanismos independentes para se legitimarem relevantes, como esclarece a pesquisadora Marta Pena de Matsushita, no artigo "El Romanticismo y el Liberalismo". Para ela, o Romantismo na América Latina e, mais especificamente, na América Hispânica, aparece caracterizado pela vocação social e política da literatura vinculada às "adversidades" sociais que dificultavam a projeção de um modelo civilizacional referencial uno e criollo. Coube atribuir aos homens pensadores das letras uma missão "regeneradora" fundamentada em bases pautadas na ideia de progresso a partir da relevância instrumental do conhecimento criollo/europeu que, no contexto americano, assumiu perspectiva de "ajuste" e desenvolvimento como "franquia romântica" aos concílios de interesses individuais e locais como originalidade de "utopias românticas". De acordo com Matsushita:

Diante dessa tomada de consciência surgiram duas atitudes: tentar estabelecer os critérios básicos de uma cultura latino-americana que, sem negar o que a Europa poderia oferecer, se afastasse da imitação, ou aplicar critérios europeus para atacar e julgar o atraso e a barbárie ensinado no ambiente local. O Romantismo tentou integrar os dois critérios, então, partindo de uma crítica à realidade sociopolítica existente, tentou chegar à definição de um estado de ser original.4 (194)

Perspectiva que pode ser observada no próprio livro Facundo: civilización y barbarie, onde Sarmiento descreve o território, seus habitantes e os hábitos locais e, ao mesmo tempo, refuta-se a ideia de isonomia que apresenta a América mestiça:

Da fusão dessas três famílias [espanhola, africana e indígena] resultou um todo homogêneo, que se distingue pelo amor ao ócio e à incapacidade industrial, quando a educação e as exigências de uma posição social não vêm para impulsioná-la e tirá-la do seu ritmo normal. Muito deve ter contribuído [...] incorporação dos indígenas que fizeram a colonização. As raças americanas vivem na ociosidade [...].Isso sugeriu a ideia de introduzir negros na América, que produziu resultados tão fatais. Mas a raça espanhola não se mostrou mais dotada de ação, quando foi vista nos desertos americanos abandonada aos seus próprios instintos.

[...]

Dizer que eles não serão nem são capazes de guiar-se e governar a si mesmos é um absurdo; fazem isso há muitos anos e isso é suficiente: é verdade que em seu estado atual e até que tenham passado por mudanças consideráveis, eles não puderam alcançar o grau de iluminação, civilização e cultura dos europeus, nem estar em pé de igualdade com eles em uma sociedade da qual ambos fazem parte.5 (60, 64-65)

Talvez isso justifique a invisibilidade, ou visibilidade tardia, dos indígenas em articular e desenvolver a representação de suas vozes e projetos literários dentro das disposições que fundamentaram e legitimaram a Cidade Letrada. Isso porque a perceptiva dos valores essenciais que envolvem a compreensão e expressão de mundo dos indígenas fundamenta outras sensibilidades - oralidade, corpo e espiritualidade - que foram subalternizadas e julgadas nulas ou inferiores perante a articulação exclusivista e hegemónica do letramento. Basta, para isso, observar, os espaços reservados nos compêndios de historiografia e crítica literária dedicados para as contribuições da expressividade indígena, assim como dos afrodescendentes, e o reconhecimento e validade de seus pressupostos críticos e criativos como narrativa, linguagem e valor prático e simbólico. Essa sensibilidade seria importante, dentro da perspectiva crítica, na concepção, análise e compreensão do corpus per se, e não a partir de referências outras, distantes, que visam à adequação ao establishment das Letras. Por diferenciarem-se, quase sempre são relegados à exceção ou à deslocada (inter) disciplinaridade - antropologia, etno-linguística, sociologia, etc. - numa espécie de apêndice articulado como exceção, particularidades, exotismo, mistérios não elucidados pela razão estabelecida. Se os preceitos da Literatura devem estar vinculados à expressão de representatividades sobre o que, hipoteticamente, define sujeitos pelo que sentem e pensam, não seria absurdo supor que entre a vasta gama de sujeitos representados haja maneiras distintas de sentir, pensar e expressar o mundo à revelia do que se estabelece como normativo nas disposições da crítica literária. Caberia ao crítico literário dispor de sensibilidades para compreender e admitir o que seria interpretado como "exceções" e não adequá-las às disposições de normativas configuradas a partir de experiências e desígnios parciais com pretensões universalistas, subalternizando cosmogonias e cosmovisões outras. Ao não promover a preocupação e o esforço para esse reconhecimento, a crítica literária posiciona-se como replicante, procuradora, de referências exclusivistas e proselitistas da manutenção de uma razão que na prática relativiza-se e mostra-se intransigente com o ambiente que ao nível histórico, sociológico, antropológico e filosófico apresenta-se radicalmente diverso. Persiste a dúvida sobre se a ausência ostensiva dos indígenas e afrodescendentes no cânone da historiografia e crítica literária latino-americana se dá por desconhecimento, indiferença ou intransigência pessoal ou corporativa.

Indigenismo e Cidade Letrada

O indigenismo, como conceito, surge no início do século XX como proposta para discutir questões relacionadas à natureza e aos interesses indígenas. Mais: para pensar sobre a "invisibilidade" de suas tradições nos processos latino-americanos de desenvolvimento político, social e cultural, pois, historicamente, pelos colonialistas e criollos, os indígenas e suas culturas foram interpretados como intrusos ou "anomalias" civilizacionais quando deveriam ser referência, do ponto de vista antropológico, do que poderia ser a América Latina quanto a conhecimentos e virtudes genuínos que a definem, diacronicamente, como história. No entanto, o Indigenismo se apresentou, ou foi apresentado, como movimento intelectual nacionalista. O marco de sua emergência, tardia, vincula-se à criação, em 1940, do 1o Congresso Indigenista Interamericano, no México, para discutir a realidade e o papel dos nativos nas sociedades a partir da consolidação de um estamento burocrático comum entre as Américas para defender o que poderia ser considerado legitimação e direitos. De maneira curiosa, a relevância do debate esteve à mercê de um consenso à revelia dos próprios indígenas. Os indígenas foram representados, em sua maioria, por políticos e burocratas de diversos países, com exceção dos representantes do Chile, o deputado e ministro Venancio Conuepan Huenchual, de ascendência mapuche, e do Panamá, Ruben Pérez Cantule, da etnia Cune. Na ocasião, à revelia de uma representatividade mais consistente, foram discutidas questões que, aparentemente, não eram prioritárias dentro do que historicamente poderiam ser reivindicações dos indígenas. Foram apresentadas e discutidas as seguintes pautas:

  1. Debater políticas desenvolvidas pelos Estados americanos no intuito de dar cabo aos problemas que confrontavam as populações indígenas com o objetivo de integrá-las à nacionalidade correspondente;

  2. Pensar formulações políticas e ideologias para a América considerando a realidade/viabilidade da condição de nações modernas, incluindo projetos nacionais que visibilizassem e tornassem possíveis as identidades indígenas;

  3. Desenvolver ideias organizadas em torno da imagem do índio, considerando o conceito de indianidade pelos "não índios" a partir de preocupações e finalidades dos próprios indígenas;

  4. Responder a questionamentos sugeridos por brancos: por que os países pluriétnicos são atrasados? O indígena é um entrave ao desenvolvimento das políticas desenvolvimentistas nacionais? Por que não questionar o modelo desenvolvimentista global que secundariza a cultura indígena?

Ao considerar a perspectiva da Cidade Letrada, observa-se que, mais uma vez, prevalece a dificuldade histórica de reconhecer a representatividade autónoma de vozes e culturas em detrimento da hegemonia do criollismo letrado. Prevaleceu a representatividade de sentimentos e motivações políticas tão distantes quanto parciais, que se renovaram como uma sofisticada herança e permanência de valores algozes. Em perspectiva semelhante, o mesmo pode ser dito sobre a produção literária indigenista na América Latina. Pode-se mencionar, sob o prisma das hispanidades, alguns exemplos representativos de obras como Huasipungo (1934), de Jorge Icaza (Equador); El Mundo es ancho y ajeno (1940), de Ciro Alegría (Peru); Leyendas de Guatemala (1930) e Hombres de maíz (1949), ambos de Miguel Angel Astúrias (Guatemala), e Los ríosprofundos (1958), de Jose María Arguedas (Peru), que se apresentaram mais como propostas de mediações e meditações sobre a representatividade da realidade e cultura dos indígenas na América do que como representação da realidade dos indígenas per se. Não se quer com isso, aqui, estabelecer juízos valorativos a respeito das relevâncias e contribuições, significativas, das obras dos escritores mencionados, mas indagar sobre a importância da produção e veiculação das vozes e interesses indígenas pelos próprios indígenas e sobre a centralidade e dependência das letras como via absoluta para o reconhecimento e legitimação de valores culturais diversos quando muitos não dispõem da instrumentalidade para fazê-lo. Ao recorrer a mediações, ainda que responsáveis e significativas, de outros que não sejam os representantes vivenciais das Histórias, os que por ventura tiverem contato com essas literaturas e experiências poderão incorrer em parcialidade. Nesse sentido, aqui, caberiam as palavras do escritor, jornalista, sociólogo e ativista peruano José Carlos Mariátegui, citado por Rama no texto "Regiões, literaturas e culturas" (Aguiar e Vasconcelos 300), quando em 1928, apresentou argumentos em torno de alguns desses aspectos ao ressaltar que "uma literatura, se tiver de vir, virá a seu tempo. Quando os próprios índios estiverem prontos para produzi-la". Suscita-se, com isso, o seguinte questionamento: a ideia sobre a consciência do universo indígena submete-se e depende do alcance e anuência dos versados pela escrita da Cidade Letrada? É possível que, diante da realidade que se apresenta e se complexifica, a resposta seja afirmativa, pois, dos tempos coloniais aos recentes, a participação mais ostensiva dos povos africanos e indígenas nas Américas só foi possível a partir da "admissão" desses povos como letrados, em concordância com as diretrizes da hegemonia burocrática da Cidade Letrada. A partir do duplo letramento desses povos, observa-se um movimento genuíno e substancial de articulação, pautado não apenas pela necessidade de contar suas versões sobre a história de opressão. Identificase nessa articulação o ensejo de reivindicações formais de participação política, isonômica, e veiculações que legitimam e garantem a expressão de suas cosmogonias e cosmovisões. Basta observar o desenvolvimento de políticas públicas nos últimos quinze anos que viabilizaram a notoriedade dos patrimónios desses povos, como a educação e a identidade civilizacional ao marcar contrapontos ante os históricos avanços dos monopólios intelectuais do Ocidente. É motivo de júbilo constatar o também avanço das editoras brasileiras ao publicarem estudos filosóficos dos povos originários, além de relatos cosmogônicos realizados pelos próprios indígenas, a exemplo das Potiguaras Eliane e Graça Graúna; o Munduruku Daniel e o Makuxi, Jaider Esbell, apenas para citar alguns, no intuito de visibilizar e fortalecer a intelectualidade e letramento originário. Uma forma de expressar não apenas uma ideia de resistência, mas, principalmente, a consciência de uma pluralidade de histórias e existências que compõe o mosaico multiconstitutivo latino-americano. Mais: indício autonômico da Cimarronaje, que incita e visibiliza a independência e atuação crítica sobre si. Uma iniciativa que se junta a iniciativas hispano-americanas como fomento intelectual, a exemplo do antropólogo quechua Ollantay Itzamná, que se apresenta como sujeito e coletividade representativa em seus próprios escritos, através de valores nem sempre visibilizados, mas articulados como contrapartida a uma homogeneização cultural que persiste na América Latina. No artigo "No nacimos indios, nos hicieron indios", Ollantay Itzamná questiona o uso da palavra índio. Quem são os índios? Pondera que há um processo de replicação valorativa que privilegia referencialidade e julgamento civilizatório e que exclui não apenas a base essencialista do que os constitui como ancestralidade, mas também opera a partir dos seus posicionamentos como desventura política da subalternização e questionamento da legitimidade de suas contribuições efetivas como humanidade e ethos, relativizando-os e apropriando-se da narrativa histórica, situando-os, também, numa imobilidade depreciativa de sua imagem e caráter, reduzindo-os ante as disposições produtivas como "irrelevantes" e excluindo-os como cidadãos.

A palavra índio é a materialização mais crua do darwinismo sociopolítico e cultural que foi intencionalmente aplicado na colónia e nas repúblicas bicentenárias a nós os nativos, com o objetivo de nos desumanizar. Ou seja, assumindo-nos como não humanos, complemento (de trabalho) para as novas terras usurpadas. Portanto, se nem mesmo contamos como humanos, não podemos ter direitos ou propriedade. Muito menos podemos ser cidadãos plenos (apenas eleitores, nunca governantes). [...] O índio é uma construção sociopolitica e cultural da colònia, e fortalecida pelas repúblicas. Os invasores não encontraram em Abya Yala habitantes vagos, brutos, resignados e ignorantes. Eles não encontraram índios. Eles encontraram nativos do lugar que nos primeiros documentos chamam de "naturais". A categoria índio foi uma construção colonial para desumanizar filosoficamente os nativos, negar-nos direitos, se apropriar de nossas terras e bens e nos explorar sem nos eliminar.6 (s. p.)

A questão perpassa pela necessidade de rever a maneira como se compreende e "define" ao nível histórico, antropológico e filosófico a ideia de humano. A persistência de uma ideia arbitrária e de um padrão que valorizam e centralizam uma variante implica na desvalorização e destruição de patrimònios culturais, que poderiam, quando compreendidos, contribuir para o aperfeiçoamento no processo de desenvolvimento humano, político e filosófico. A operacionalidade das relevâncias dos valores humanos, materiais e espirituais não poderia ser articulada a partir de centramento referencial pautado sob a condicionalidade estratégica de ocupação de territórios e planos educacionais à revelia do que constituem povos distintos. Daí a pertinência da insurgência "Ilustrada" dos cimarrones, pautados na inclusão de suas cosmogonias e cosmovisões por reivindicação plural e democrática que integra, naturalmente, o imaginário inclusive político das humanidades, o plural em detrimento das singularidades e das ambições cêntricas.

Agora, você dirá que as montanhas e vales do México, Guatemala, Equador, Peru, Bolívia e outros são habitados atualmente por seres submissos, resignados, desconfiados, sujos, analfabetos, brutos, etc. Em parte sim. Mas não somos índios. Somos seres humanos que chegaram para encarnar a dominação e a estigmatização que nos são impostas há séculos. Se alguns de nós ainda somos "índios" (colonizados), não nascemos índios. Eles nos fizeram índios. Portanto, não somos uma realidade "natural", inata ou definitiva. Somos uma realidade configurada politicamente e estamos em processo de emancipação dessa configuração. [...] Produto das histórias desastrosas e irredimíveis, e das nossas circunstâncias adversas, fomos assumindo (encarnando), em muitos casos, atitudes, papéis, sentimentos e até mesmo uma falsa consciência de sermos índios para sempre. O sistema colonial e republicano repetiu (inoculado) a nós dois, ativa e passivamente, nossa situação de "ignorante", "bruto", "selvagem", "resignado", até o limite em que o complexo de inferioridade nos habita. Mas é apenas isso: um complexo. E assim como foi construído, podemos e devemos também nos desconstruir e nos libertar.7 (Itzamná s. p.).

Assim como Itzamná, pode-se listar inúmeros insurgentes, cimarrones, "ilustrados" por subversão, provocadores e propositores independentes que oferecem sistematizações críticas que reivindicam outras maneiras de conceber a articulação de pensamentos e outras liberdades na América Latina. Uma delas é a socióloga e antropóloga boliviana, de descendência aymará, Silvia Rivera Cusicanqui, que, inclusive, apresenta no livro Ctíixinakax Utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores, uma perspectiva que pode ser muito ilustrativa para a reflexão sobre a autonomia dos povos originários. Segundo relato no livro, Cusicanqui, ao conversar com o escultor aymara Victor Zapana, ouviu que, de acordo com a cosmogonia dos originários bolivianos, havia animais que saíam das pedras e que eram entidades poderosas que conviviam entre os povos, atuando na orientação e proteção da vida cotidiana. Essas entidades, segundo Zapana, nomeavam-se ch'ixinakax utxiwa e não se determinavam como pretas ou brancas e, ao mesmo tempo, poderiam apresentar-se como ambas. Poderiam ser serpentes que se movimentavam nas superfícies e acima delas, nas árvores; poderiam ser masculinas e femininas ou, ainda, pertencer ao céu ou à terra, habitando todos os espaços, como a chuva, os rios e os raios. Da ética xamanista aymara, Cusicanqui abstrai a metáfora como contração ch'ixi e efetiva a hipótese descolonizadora boliviana como proposta para articular princípios da epistemologia ch'ixi. Ch'ixi, portanto, significaria uma palavra que não se determinaria, mas, ao mesmo tempo, poderia determinar significados moventes, admitindo e compreendendo a natureza que se relacionaria de maneira pacífica entre opostos, contraditórios, diferentes. A ideia, então, conformar-se-ia tanto como valorização ancestral quanto como articulação de micropolíticas vivenciais insurgentes, podendo determinar uma nova relação, isonômica, entre os povos originários e os que a eles se mesclam, a exemplo dos que se afirmam distintos a partir de uma tradição criolla que suplanta aos que a ela não se alinham como política e hegemonia. A proposta de Cusicanqui está interessada na construção de um terceiro espaço, interseccional, de convivência, que teria como base e valores a relação simbólica e vivencial que os define como experiências, valores cosmogónicos e ancestralidade aymara.

A noção ch'ixi, como tantas outras (allpa, ayni), obedece à ideia aymara de algo que é e não é ao mesmo tempo, ou seja, a lógica do terceiro incluído. Uma cor cinza ch'ixi é branco e não branco ao mesmo tempo, é branco e também preto, seu oposto. [...] O poder do indiferenciado é que ele combina opostos. Assim como allqamari combina branco com preto em perfeição simétrica, Ch'ixi combina o mundo indiano com seu oposto, sem nunca se misturar a ele.8(Ch'ixinakax 69)

Trata-se de uma sugestão que gesta um espaço de convivência e tolerância com as alteridades sem que as partes que as constituem interfiram nos seus processos de legitimidade do outro ao mesmo tempo em que se apresenta como projeto civilizacional de autocrítica de um percurso histórico adverso bem como o seu reprocessamento ou reinvenção. Pode-se dizer que, Cusicanqui, a partir do reconhecimento dos valores e ancestralidades aymara, encontra apoio formal nas disposições do ensaio "La creación de la pedagogía nacional", do político e advogado boliviano Franz Tamayo, que pretendia sistematizar saberes e metodologias bolivianas para e pelos próprios bolivianos em contraposição às reverências e paródias a uma intelligentisia criolla na Bolívia. Tamayo e Cusicanqui suplementam-se no que diz respeito à proposição formal de uma educação, pensamento e valores que deveriam respaldar a essência dos povos bolivianos.

Em A criação da pedagogia nacional, Tamayo aborda de forma autocrítica a miscigenação boliviana como síndrome de uma encruzilhada psicológica, que denomina com o termo bovarysmo, inspirado nas leituras do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Essa noção servirá de metáfora para que eu compreenda o bloqueio que nos impede de lembrar nossa própria herança intelectual. Pois bem, é paradoxal e lamentável que tenhamos de legitimar as nossas ideias recorrendo a autores que colocaram a questão do colonialismo na moda, ignorando ou negligenciando trabalhos teóricos anteriores, que, embora não usassem as mesmas palavras - e mesmo que as usassem - podiam interpretar e questionar o experiência colonial, e particularmente a colonização intelectual das elites (hoje rebatizada de "colonialidad del saber") com ousadia e veracidade.9 (Cusicanqui, Um mundo 28)

Ao abordar a importância das tradições aymara, que relevam individual e coletivamente (Jiwasa) as memórias e performances dos corpos (Lup'iña-Amuyt'aña) a convergirem como consciência de um passado (Qhipnayra), Cusicanqui tece a tessitura de uma superfície, trama da (auto)crítica que destaca o que acredita ser a posição boliviana ante a diversidade dos mundos no próprio mundo, em específico, boliviano. Nesse ensejo, chama a atenção a proximidade que se estabelece entre o pensamento e proposições-tear da mulher indígena, aymara, Silvia Rivera Cusicanqui com a tradição Guaraní do tear Ñanduti. Ñanduti é uma palavra guarani que significa "teia de aranha". No entanto, mais do que seu significado etimológico, Ñanduti se relaciona com uma prática que se vincula às tradições do povo guarani exercida, exclusivamente, por mulheres e resultado transcultural das relações Canárias do tear na América durante o período colonial.

Oriunda das missões metropolitanas coloniais nas Américas, legitimadas pelos criollos, as práticas do tear do Tenerife passaram a ser exercidas pelas mulheres indígenas, escravas e mestiças, sob orientação dos criollos, na construção de utensílios domésticos que se materializaram como ponchos, colchas, panos de prato e fronhas para almofadas, devendo seguir os desenhos que ilustravam os motivos e a natureza da distante e desconhecida Europa. Segundo a poeta, crítica de arte e jornalista espanhola radicada no Paraguai, Josefina Plá (1993), não há indícios de que a cultura da tecelagem pré-hispânica guarani contara com o trabalho através de agulhas, sendo essa uma contribuição espanhola, que, além da instrumentalidade do tear, contribuiu com as sugestões-base de representações que rementem às mandalas mourisco-andaluzes evocadas e suplementadas pela tessitura guarani ñanduti em suas formas. A orientação dos hispânicos e criollos na Colônia paraguaia era determinar, para o melhor conforto, o simulacro de modus vivendi e operandi da metrópole que poderia estar presente nos motivos das rendas.

No entanto, é pela maneira como foi consubstanciada ao modo local, guarani, que a prática se notabiliza. O trabalho das mulheres guaranis distinguiu-se ao representar a insurgência contra as orientações segundo as quais deveriam ser reproduzidas apenas as idiossincrasias dos sentimentos nostálgicos e subconscientes metropolitanos. Ao invés disso, elas passaram a reverenciar os motivos das ecologias e ancestralidades guaraní. O resultado exprimiu ambas as referencialidades, consubstanciando-se como uma prática transcultural que resultou na excelência do tear ao conseguir exprimir a síntese da representatividade intercultural da época, mas que, no entanto, à revelia dos Canários, fez prevalecer a estética e motivos - cores, fauna, flora, objetos cotidianos laborais etc. - correspondentes às vontades e digressões guaranis. A insurgência das mulheres guaranis consiste na beleza e consciência que fundamentam a cimarronaje, não apenas do tear das mulheres guaranis de outrora, mas também do tear de mulheres como Cusicanqui, agora. Independente das relações e distanciamentos implicados pelo tempo, o que se observa é a representação de mundo particular e não a partir de uma ideia de mundo distante, forjado e impossível para as mulheres que possuíam suas próprias imaginações e entendimentos sobre o que se apresentava como realidade. Tanto a realidade ñanduti quanto a ch'ixi são espaços interseccionais constituídos pela negociação das consciências e arbítrios que configuram os protagonismos das vontades insurgentes cimar-rónas. Então, dessa forma, as mulheres guaranis subverteram, à revelia dos criollos, a representação dos motivos que as confere como essencialidade e história cotidiana e ancestral. Os motivos que passaram a ser expressos pelas mulheres guaranis nos ñandutis dividiam-se, segundo o médico, professor, escritor, antropólogo e etnólogo Edgar Roquette Pinto, na "Nota sobre o Ñanduti do Paraguai", em quatro grupos de representação: 1) fitomorfos: arroz, em sua espiga; avatí, flor de milho; jasmins; yviraí-ty-Yovai, espécie de bromélia; 2) zoomorfos: gúyratí, garça; yapeusa, caranguejo; panambí, mariposa; ñandú guasú; aranha; 3) eskeimorfos (objetos manufaturados): kurusu, crucifixo; apyté, mandala ñanduti; tatakuá, forno; e 4) miscelânea: aña yurúu, boca do diabo, apenas para citar alguns exemplos. Para, Josefina Plá, no artigo "Ñanditu: encrucijadas de dos mundos":

Esses motivos configuram um mundo experiencial, e nele um panorama imagético e psicológico feminino, onde a criatividade encontra seu âmbito dominada ou simplesmente não solicitada ou estimulada por outras motivações extrínsecas. Um mundo de imagens familiares e imediatas que dão a medida secretamente acariciada de suas experiências, sua nostalgia, seu cotidiano.10 (3)

A seguir uma representação ilustrativa do tear Ñanduti na forma original das Canárias (ver figura 1):

Figura 1 Silvia Pastorello. "Merletto di Teneriffe". mycanarias.com, 07 de agosto del 2017. Web. 

E a forma destacada pelas mulheres guaranis (ver figura 2):

Figura 2 "Exemplo do tear guaraní", "Curso para aprender a confeccionar Ñanduti". Ip. Agencia de Información Paraguaya, 13 de fevereiro del 2018. Web. 

O Ñanduti não deixa de apresentar-se como "alfabetização", genuíno letramento, expressividade guarani que se contrapôs às imposições normativas da educação da Cidade Letrada. Comunicou, à sua maneira, razão de ser e estar no mundo como poesia imagética, tecelã, pela subversão do trabalho pelas mulheres. Expressou um mundo que não é apenas ornamento e que poderia significar transgressão, que refletiu enaltecimento do caráter mestiço hispano-americano. Por essa razão, mais que "bordadeiras", as mulheres tecelãs guaranis apresentaram-se como restauradoras de si, como individualidade e coletividade, no encaje.

Afrodescendência e Cidade Letrada. Fundamentos da inscritura como intelectualidade e letramento africano e afrodescendente

A pesquisadora e socióloga argentina Rita Segato, no texto "La monocromía del mito: o donde encontrar África en la nación", questiona:

Onde a África pode ser encontrada na nação? Qual é o seu lugar na formação nacional? Como o elemento africano se processou na construção de cada sociedade nacional ao longo do tempo? Como as tradições africanas penetraram e construíram seu caminho na história?11 (99)

As indagações de Segato são pertinentes porque buscam refletir sobre a maneira como foram reconhecidas as contribuições dos afrodescendentes no processo de formação das sociedades latino-americanas. Ressalta-se que a partir da instauração do modus operandi da Cidade Letrada, com suas bases parcialmente humanistas e logocêntricas, comprometeram-se as genuínas maneiras dos afro-latino-americanos de expressarem sentimentos e tradições como irrefutáveis saberes que permaneceram tácitos sob a anuência arbitrária das autoridades políticas e letradas do criollismo. A herança dessa lógica depreciativa tornou possível o avanço de uma pedagogia civilizacional que inviabilizou o entendimento de uma África humana e possível. Como reconhecer as contribuições de povos desprovidos de cristandade, não necessariamente desprovidos de escrita, e uma forjada e material ideia de progresso? Onde estariam as suas tradições, heróis e riquezas? Como concebê-los relevantes e integrantes na conjectura do plano que se propunha como Nação?

É possível que surpreendesse a muitos que uma das possibilidades que se poderia destacar como resposta aos questionamentos de Segato sobre a articulação e sobrevivência das tradições afrodescendentes em meio à efetivação de uma colonização de imaginários e saberes fosse uma árvore, o Baobá, também conhecida como a "árvore das palavras" - algumas dezenas, centenas ou milhares delas agora estão espalhadas, em cruzo, pelos quatro cantos do mundo. Segundo o professor e pesquisador Amarino Oliveira de Queiroz, em sua tese As inscrituras do verbo: dizibilidades performáticas da palavra poética africana (122), o Baobá se configurava mais do que como uma árvore. Apresentava-se como espaço, real e simbólico; lúdico e sagrado onde acontecia a transmissão de conhecimentos sagrados, filosóficos; tradicionais quando o corpo era extensão da fala como expressividade e performance comunicativa, cênica, para incluir dança e mímica corporal, na manutenção das memórias significativas e ancestrais do povo tradicional africano. Um lugar onde a transmissão e a compreensão do conhecimento se apresentavam "vivas", dinâmicas, por diversas gerações. Era dessa forma orgânica e humana que aconteciam as relevantes contribuições culturais e de letramento africanas.

O Baobá representa para muitas culturas africanas o testemunho e a cumplicidade das memórias e vidas que dali em diante mantêm-se vivos, de maneira irónica, lógicos e viáveis. Centro referencial do convívio e modos de ser e operar os sentidos das virtudes e conhecimentos, o Baobá torna possíveis vidas que se expressam diante de outras vidas; vegetal que irradia filosofia. O Baobá significa e marca os referenciais de sabedorias experenciadas, acumuladas e compartilhadas que fundamentaram o ethos de sucessivas gerações de povos que habitaram o lugar de (con)vivências em que a árvore foi plantada. Cultivar o Baobá relaciona-se ao cultivo de raízes. Cultivar as raízes do Baobá significa cultivar a vida que, por excelência, desenvolve uma beleza existencial que é orgânica, que se contempla e que se comparte como frutos. Ecologia não como Ciência, mas como ciência, cultivo que alinha e perfaz o percurso do tempo das sabedorias como riquezas imateriais que se conflagraram e constituíram os africanos e afrodescendentes que nela confessaram dúvidas, tragédias, sentidos que metaforizaram a vida como literatura que não se escrevia. O escritor colombiano Zapata Olivella, por exemplo, em sua epopeia Changó, el Gran Putas, por meio de Ngafúa, narrador, babalorixá, compartilha o desenho do tempo e o percurso das belezas, sabedorias, das alegrias, das tristezas africanas na função testemunhal da diáspora africana nas Américas.

Eu sou Ngafúa, filho de Kissi-Kama Dame, pai, a tua voz que cria imagens, A tua voz tantas vezes ouvida na sombra do baobá. Kissi-Kama, pai, acorde!

Aqui te invoco esta noite, junte minha voz com suas histórias sábias. Minha dor é grande.12 (42)

De algum modo, para o autor afro-colombiano, o Baobá torna possíveis epopeias que não necessariamente, ou popularmente, se escrevem, mas se testemunham como cumplicidade ao alcance das raízes da tradição viva, africana e afrodescendente que integram uma das funções literárias, que é a expressão dos sentimentos culturais individuais e coletivos.

Árvore-metáfora, no Baobá habitam as memórias-narrativas de como se processaram os ethos basilares dos conhecimentos africanos como ações e memórias. Os Baobás se apresentam como catalizadores temporais que medeiam os modos de interpretar, compreender e instrumentalizar o sentido "operacional" do tempo que concentra, por meio do contar e recontar vidas, a imortalidade de memórias que tornam possíveis a unidade cósmica do percurso sapiencial da consciência afrodescendente. O indivíduo tradicional africano não assimila o tempo como sequência progressiva e lógica que compartimenta e organiza razoabilidades pedagógicas existenciais. Portanto, a lógica cosmogónica e "cosmovisionária" tradicional africana é genuína ao diferir das disposições hegemónicas, unívocas, da prevalência Ocidental dos saberes em dimensão planetária. O tempo das sociedades africanas tradicionais é difuso e simultâneo, e dialoga em linguagens e performances que requerem sensibilidades genuínas para comunicar-se e fazer-se compreender. Por essa razão, não seria absurdo reconhecer e compreender o que têm a dizer e contribuir os intelectuais africanos na fortuna da crítica literária e cultural como dialética entre os mundos - como no poema "Um Beijo", do poeta Limam Boisha, do Saara Ocidental, país hispanófono africano: "Um beijo / somente um beijo, separa / a boca da África / dos lábios da Europa" (44). O Tempo, "Pai" de todos os saberes, é fenomenologia anterior à invenção da humanidade. A oralidade e o corpo são expressividades, tecnologias e invenções anteriores à escrita. Talvez nisso consista a distinção, e também repreensão, dos ocidentais em relação aos africanos que empreenderam outras linguagens e finalidades ao lidarem com o conhecimento orgânico da natureza. A linguagem do tempo é múltipla, movente, e reage a partir de suas necessidades, daí a oportunidade de empregar a expressão para traduzi-la. Ainda que haja tantas outras formas, essa talvez poderia ser uma das possibilidades de conceber respostas aos questionamentos de Segato (99) sobre como foi processado o elemento africano na construção das sociedades nacionais ao longo do tempo e como os africanos (re)constituíram tradições na história moderna latino-americana. Trata-se da compreensão de um tempo distinto e de uma maneira orgânica e particular na operacionalidade da pedagogia dos saberes que não é entendida por muitos. Queiroz, inclusive e oportunamente, enaltece algumas outras reflexões importantes a esse respeito. Ao mencionar a proposta de caracterização estética africana pretendida pelo crítico nigeriano Fidelis Odun Balogun, citado por Salvato Trigo, lembra que:

[A] tradicional percepção africana do tempo é totalizante, envolvendo uma simultaneidade entre passado, presente e futuro, no que diferiria completamente daquela que marca o homem europeu ocidental. Isto não denotaria uma incapacidade de assimilar a tripla dimensão temporal, mas, ao contrário, uma diferenciada relação de importância no estabelecimento dela. [...] outros aspectos como o caráter social das obras, movendo-se dentro de um comprometimento ao mesmo tempo lúdico e pedagógico de seus autores; a relação semiótica que o homem da África mantém com a Natureza; a expressão verbal diferenciada, onde o ritmo extrínseco, a exemplo daquele produzido pelo tantã, é valorizado como traço mnésico e marcado pela capacidade de despertar emoção tanto no nível psicológico como no nível mágico, tornando-se e-moção, isto é, movimento de comunhão do homem com as forças cósmicas. (116)

O que justifica o "estranhamento" de muitas pessoas e outras culturas em relação ao modus operandi tradicional africano é a maneira, "cósmica", como se reconhecem e perfazem a captação e tradução dos símbolos e valores essenciais para o desenvolvimento cultural e humano desses povos. É justamente na tentativa de captar e traduzir a complexidade cósmica do que Queiroz chama de "inscritura" ou "dizibilidades performáticas da palavra poética africana" - expressão que traduz a essencialidade "poética" como educação que compreende a Natureza como diálogo e expressão em analogias e formas na busca pela "expressão exata" - que aqui se compreende ser por meio da ideia do conceito de "inscritura" que se marca e afirma, sintetiza-se e traduz-se, tanto a cosmogonia quanto a cosmovisão africana como expressão de saberes. É justamente no compromisso de identificar a linguagem etérea necessária aos saberes que se manifesta a natureza como e por meio da ancestralidade através da qual se compreende a vinculação com o sagrado quando se conta uma estória/história. Narrativas que se apresentam "abertas", multifacetadas, utilizando a fala, o canto, o grito, o corpo, o gesto, a dança, o toque do instrumento que emana som como traduzibilidades e expressões necessárias para o entendimento dos saberes como cultura que empreende o tempo como saber ancestral que concede e admite diversas instrumentalidades relativas como palavra e performance em continuum religare.

A linguagem do tambor também é uma palavra, e até uma palavra privilegiada, pois são os mortos que falam por meio desse instrumento, regulando as pulsações da vida. Entre o ritmo da palavra e os tambores há um contraponto, um diálogo [mas] o tambor falante não é um alfabeto morse, senão uma escrita perfeitamente decifrável, dirigida ao ouvido e não ao olho. Escrever para comunicar notícias rapidamente, e também para contar e cantar, ou seja, literatura narrativa e lírica. Muitos épicos sobreviveram séculos na pele da bateria, tocada por profissionais que levaram vários anos para se formar. O ritmo dos toques era puro efeito musical, senão uma ajuda essencial à memória, tarefa que rima, aliteração e o ritmo da palavra se cumpriam na poesia europeia.13 (Colombres 130)

Algo que é reiterado pelo pensamento da poeta, coreógrafa, dançarina, estilista e ativista afro-peruana, Victoria Santa Cruz, em seu livro Ritmo: el eterno organizador. Ao referir-se às particularidades das contribuições africanas no contexto peruano, ela reitera o sentido do holismo como inteligência superior a que se refere Hampaté Bá. Para Santa Cruz, o reconhecimento da experiência e sabedoria que se emite a partir da palavra imprimiria sonoridade e ritmo que poderiam ser compreendidos e representados pelo corpo como dança numa espécie de consciência, sintonia e celebração com La Unidad Superior. Isso significaria considerar que a realidade, tempo, é uma desordem que poderia ser ajustada a partir de sons e movimentos conscientes que desenvolveriam uma inteligência-una por meio de um ritmo que estruturaria uma espécie de dança mística, religare, celebração cósmica mediada por corpos que não estariam mais dispersos.

[A] experiência tem o sabor do saber orgânico que revela tanto o valor do que se conseguiu na tentativa, quanto o que está contido em não o ter conseguido. Portanto, na experiência, não há falha. Se fazemos parte de uma Ordem Superior, se em nossa essência existe - mesmo quando estamos plenamente conscientes disso - um aspecto dessa ordem; o que precisa ser feito é recuperar a tensão rítmica da união. À medida que produndo - ao longo da minha vida - nas formidáveis bases rítmicas herdadas, elas me revelaram, com a clareza do orgânico, que, embora africanas, são cósmicas.14 (Santa Cruz 32-33)

A aqui oportuna consideração acerca do entendimento e experiência sobre as dimensões subjetivas, espirituais, que permeiam a cultura africana faz com que Victoria Santa Cruz mencione o tambor como "dizibilidade da palavra performática". Na sua origem e diáspora, relembra Nei Lopes (662), quando utilizado ritualisticamente, era considerado auxilio-palavra, veículo de contato entre os vivos e os mortos, que promoviam culto e performance pela energia vital de suas peles evocando a presença da celebração com os deuses. A palavra como articulação que une dimensões cosmogónicas em detrimento da operacionalidade e expressividade de cosmovisão que define a identidade cultural africana mediada pela representação do corpo e instrumentalidade humana como saber e intelectualidade.

Compreende-se, a partir da Tradição Africana, a figura humana mediadora e difusora na metodologia e transmissão desses saberes, o griot. Pode-se compreender os griots, em acordo com Hampaté Bá, como casta de intelectuais responsáveis pela transmissão e perpetuação dos conhecimentos constituídos pela tradição africana ao longo do tempo. Os griots também podem ser comparados a artistas especializados que recorriam à poesia, ao canto, à encenação, à música, à dança para tornar expressiva e eficaz a transmissão de suas estórias como ação performática. Um modus que a um só tempo aglutinava memória, imaginação, testemunho e inventividade com várias formas de execução articuladas pelo corpo que conferiam ao griotismo status artístico. Para Hampaté Bá (202) existiam três categorias do griotismo: 1) os griots músicos, que compunham, cantavam e tocavam instrumentos monocórdios como guitarra, corá e tantã e, dessa forma, transmitiam e preservavam a música antiga; 2) os griots embaixadores e cortesãos, vinculados à nobreza ou família real; e 3) os griots genealogistas, historiadores e poetas. Observe-se que, no conjunto dessas habilidades, o griot detinha um papel central e versátil na disseminação da cultura africana, dando à palavra caráter concêntrico e, ao mesmo tempo, "multi-perspectivístico" das culturas africanas, cuja maior contribuição pode ser compreendida como fundamento que dinamiza a expressividade humana para além da escrita como prática comunicativa existencial que deteve na oralidade seu ponto estrutural.

Diversos autores africanos se debruçaram sobre esta relação com a palavra para teorizarem e desenvolverem algumas práticas, como é o caso da griotique. Surgida por volta da década de 70 do século passado na Costa do Marfim, e relativa sobretudo à expressão teatral, entre seus mentores e divulgadores se encontravam dois estudiosos da questão griot: os dramaturgos e poetas marfinenses Aboubacar Cyprien Touré e Niangoran Porquet. Na perspectiva sinalizada por este último, o termo griotique traduzia um conceito literário e artístico de teatro apresentado como representativo de especificidades do teatro negro africano. Ao espelhar-se na arte performática griot, a experiência griotique reivindicou uma síntese entre poema, drama e narrativa curta, estabelecendo, portanto, um "teatro total", resultante da integração entre o verbo, a expressão corporal, a música, a poesia, a dança e a recitação. (Queiroz 109)

É importante frisar que a oralidade é auxiliada pelas diversas marcas expressivas como performance, que potencializam, de acordo com Queiroz (15), o "teatro total", o conceito de "Inscritura" através do qual se reconhecem as possibilidades e vias expressivas do corpo como canal de "dizibilidades" das "poéticas" e saberes ancestrais africanos. Daí a impertinência que se confere às bases que estipularam as políticas e letramentos das nações latino-mericanas incongruentes a não reconhecerem a diversidade das cosmogonias e cosmovisões, incluindo-se aqui as africanas que as integraram como Unidade. Talvez por essa razão, Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino afirmam que o corpo em "transe africano", por suas ancestralidades e saberes guardados, apresenta-se como representação descolonizadora, pois o colonialismo ao longo da História apresentou-se normatizador, disciplinador e domesticador dos corpos africanos que "falavam" e aprenderam a "gingar" e "driblar" como estratégia de sobrevivência para que não fossem submetidos às relações de domínio - o corpo que gerou pecado e ameaçou as catequeses; o corpo como instrumento e submissão do trabalho escravo; o corpo servil das mulheres negras e o corpo necessariamente viril para os homens negros - uma vez que é no aprisionamento e "silenciamento" do corpo que também se aprisiona a gama de saberes e ciências "encantadas".

Simas e Rufino, ainda e no entanto, em entrevista intitulada "Por una 'epistemologia macumbera' y una reivindicación de los saberes subalternizados" e concedida à Revista, dizem que os "saberes outros", no caso, em específico, africanos, não colocam em "xeque" a validade e legitimidade dos saberes ocidentais modernos. O problema residiria na maneira como a política dos saberes modernos articulara-se ante a diversidade e autonomia dos "saberes outros" de modo a inviabilizar a coexistência e debates, ontológicos, sobre as diversas orientações e a legitimação dos saberes que se afirmam, quase sempre, de maneira política e arbitrária.

O professor e pesquisador Queiroz estabelece uma relação pertinente no que diz respeito aos desdobramentos dos saberes "afro-inscriturais" das relações tangiversas, entre corpo e oralidade/escrita implicadas como expressão performática nas Américas, ao longo de seus processos de formação e reinvenções das tradições culturais, nas maneiras como foram assimiladas pela dinâmica da cultura urbana. Ressalta, para isso, o processo criativo de manifestações afrodescendentes originárias das Antilhas: a poesia dub, a poesia-son e o rap, como demonstrações cabais das relações tanto inventivas quanto (res)significativas envolvendo a performance concêntrica da oralidade. O dub se formata a partir do reprocessamento rítmico do reggae por meio de reinterpretações condicionadas a efeitos e mixagens de estúdio que imprimiriam movimento sonoro genuíno sujeito aos tempos e expressividades da conformidade das ênfases e mensagens da palavra, como voz e performance de acordo com as circunstâncias da declamação - o que poderia incluir gritos, ruídos, silêncios e investidas percussivas pela voz:

A realização de efeitos percussivos com a voz é também um velho costume caribenho, conhecido nas Antilhas Francesas por boulagyel e, em Cuba, por descarga. Sua origem estaria na proibição e confisco dos tambores por parte dos antigos senhores coloniais, a fim de evitar as danças e cultos religiosos dos escravos. Estes hábitos culturais, no entanto, jamais deixariam de existir, substituídos que foram por uma cada vez mais sofisticada técnica de percussão vocal. Tal habilidade serviria também, de suporte criativo durante o recital dub. (Queiroz 125)

Outro exemplo destacado diz respeito àpoesía-son, do jornalista e poeta afro-cubano Nicolás Guillén, que fundiu a oralidade e temas da poesia popular e a música tradicional, son, cubanos. O crítico literário peruano Jose Miguel de Oviedo (citado em Queiroz 125), sobre a construção poética son, no livro referencial Motivos de Son e Songoro Cosongo, do poeta Nicolás Guillén, diz que sua poesia se define, a priori, a partir de estruturas reconhecíveis da performance oral, de origem afro-hispana, em esquemas rítmicos, e não necessariamente metrificados, divididos em partes distintas e complementares: recitativos, quando se expõe o tema central seguido de um comentário ou conclusão, "montuno", que se repetiria numa espécie de refrão de intencionalidade irónica, crítica ou sonora sobre a relação de pessoas comuns e situações ou comportamentos do cotidiano cubano.

Surgido em Cuba em meados do século xvn, o son é uma espécie de célula ou matriz cultural caracterizada pela combinação entre música, dança e poesia de tradição oral que se desdobrou em diversas outras manifestações da cultura nas Américas, influenciando diretamente a lírica de autores como Guillén. (Queiroz 126).

Por fim, ao contrário do que muitos possam pensar, o rap possui relação com a América Latina em sua formatação, pois surge associado ao movimento hip-hop, que, pela aproximação da dissidência hispânica e caribenha nos Estados Unidos, torna-se prática comum entre os jovens afros, hispano-estadunidenses e brancos marginalizados, companheiros de periferia. O grafite, inclusive, relê os códices e os muralismo mexicanos, reprocessados nas ruas; o break assimila os movimentos corpóreos de celebração africana pela relação afrodiaspórica, ressignificando a violência urbana e o trauma da Guerra do Vietnã e, por essa razão, Queiroz (126) exemplifica a substancialidade do corpo das dinâmicas das ressignificações culturais pela oralidade e apresenta o rap como relevante manifestação e legado da inscritura e expressividade como letramento afrodescendente. O rhythm and poetry toma forma nos Estados Unidos na década de setenta a partir da experiência toaster jamaicana, recitativos rítmicos de voz que imprimiam sonoridade e significados, críticos e espirituosos, em cima de bases produzidas pelos DJ. Pode-se dizer que a prática dos rappers possui influência direta do modo como operavam os griots. Isso porque os rappers não se limitam à enunciação crítico-discursiva, já que também se vinculam a outras modalidades expressivas como a dança e o grafite, integrados à cultura hip-hop e, dessa forma, configuram ou atualizam a ideia de "teatro total" ou "Inscritura" proposta pelo próprio Queiroz (2007), que, ao mesmo tempo, marca o perfil da expressividade genuína e movente, ancestral, africana.

Queiroz demonstra, com isso, que a compreensão das manifestações ancestrais africanas não se configura estanque e apresenta-se dinâmica na medida que dialoga com outras culturas sem deixar, com isso, de preservar essencialidades e funções expressivas que se naturalizam com as marcas e os marcos do Tempo. Mais: apresenta uma das vias da dimensão artístico--intelectual, possível, da cimarronaje como "ginga"', pedagogia, "rebeldia" e crítica que aferem diretrizes que configuram a pertinência do que poderia apresentar-se e compreender-se como o genuíno perfil do intelectual afrodescendente ou a versão mais contemporânea de um cimarrón, agora, ciente, crítico e letrado.

Queiroz mostra que as relações entre voz e escritura; tradição e contemporaneidade, em suas dimensões e marcas temporais e circunstanciais, não são apenas convergentes, mas resultado de uma complexa e inevitável relação multicultural que, ao mesmo tempo que mescla e define o património cultural da América Latina, mantém suas idiossincrasias genéticas. Um processo que encontra paralelo no que Ángel Rama, no seu livro Transculturación narrativa en América Latina, mais especificamente nos capítulos que integram a primeira parte do livro intitulada "Independencia, originalidad, representatividad" e "Transculturación y género narrativo" chama de transculturação narrativa, ainda que não trate das contribuições culturais africanas no processo de formação e desenvolvimento cultural e literário no continente, embora as admita relevantes no processo. Rama considera que a América Latina, como narrativa, resulta da convergência de múltiplas instâncias culturais. No entanto, sua concepção instaura-se a partir do plano retórico e político alinhavado pelas diversas representações de projetos literários em detrimento de uma autonomia comprometida pelas marcas civilizatórias do processo de colonização na América Latina, que, inclusive, apara-se, tão-somente, na ideia que concebe como literatura relacionada à escrita, ignorando outras performances originárias como comunicação ou "inscritura". O domínio colonial ibérico fez com que a autonomia cultural e literária só pudesse ser retomada após o período da independência, entre 1910 e 1940, na retomada e revisionismo de um modelo "pós-romântico" interessado na representatividade "de cor local" na compreensão tardia de projetos nacionais sob a tutela das diretrizes políticas e valores estéticos criollos. Por essa razão, segundo Rama (15), o nativismo, regionalismo, negrismo, vanguardismo e o experimentalismo ganharam força como manifestações capazes de dar sustentação e originalidade a uma representatividade cultural que não foi considerada, o que justifica as preocupações de Segato.

Os exemplos das dinâmicas das expressões transculturalizadas de origem africana na América Latina descritas e analisadas pelo pesquisador Queiroz são importantes para pensar-se o absoluto reconhecimento e dependência em relação ao logocentrismo ocidental no que se referem à expressividade das linguagens artísticas. Principalmente porque obstruem a fluência e a legitimação da estrutura de letramentos africanos baseados na legitimidade das tradições orais. Em outras palavras: as cosmogonias e cosmovisões ocidentais, por razões históricas e políticas, constituem pedagogias universalistas que obstruem o reconhecimento da diversidade, o que acaba por comprometer outras cosmovisões e cosmogonias culturais como expressividade no planeta. O perspectivismo híbrido do conceito de "inscritura" (Queiroz, 2007), pautado no reconhecimento e disposições concêntricas da tradição clássica e popular da oralidade africana tal como o fora usado pelos griots (oratura), e o auxílio das possibilidades expressivas e performáticas do corpo (oralitura) não podem ser desconsiderados por possuírem postura extralinguística que está além do alcance das disposições limítrofes do logocentrismo ocidental como expressão. Principalmente por pautarem-se acréscimos, auxílio e não exclusão, a outras possibilidades expressivas, como a escrita, de acordo com o próprio Queiroz (112), ao considerar a "inscritura" performance da palavra cuja dizibilidade se suplementa na performance do corpo convertendo-o em suporte sígnico para a celebração do texto. Queiroz ainda chama a atenção para a distinção e pertinência dos conceitos como o que poderia ser interpretado instrumento de sobrevivência cimarrona ao destacar as ideias como legado, contribuição de cosmogonias e cosmovisões africanas nas Américas. A interpretação aqui destaca-se por razões distintas e complementares, ao afirmar a importância de critérios mais sensíveis para entender e avaliar, de maneira mais responsável, as especificidades de outras naturezas e dinâmicas de expressividades culturais, tal como a africana e a afrodescendente, na fortuna crítica da historiografia e crítica literária e cultural que ainda se utilizam de parâmetros universalistas que operam parciais e excludentes, utilizando-se de pragmatismos e referencialidades pouco democráticas. Ao levar-se em consideração o contexto multicultural da América Latina, tal postura se apresenta omissa e distante de uma realidade efetiva, por não reconhecer outras contribuições que se justificam pelo aporte histórico e antropológico como fundamento irrefutável de seu patrimônio cultural. De acordo com Queiroz, a noção de oralitura adotada por Leda Maria Martins, contudo, não nos remetiria:

[U]nivocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais de tradição lingüística, mas especificamente ao que em sua performance indica a presença de um traço cultural estilístico, mnemónico, significante e constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade. Como um estilete, esse traço inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilos. Se a oratura nos remete a um corpus verbal, indiretamente evocando a sua transmissão, a oralitura é do âmbito da performance, sua âncora; uma grafia, uma linguagem, seja ela desenhada na letra performática da palavra ou nos volejos do corpo. (84)

Conclusão

De maneira natural, observou-se que o processo de formação das sociedades latino-americanas modernas, instaurado pela relação Colonialidade/ Modernidade, e os valores que sistematizaram uma ordem civilizacional latino-americana tiveram como eixo de referência a disseminação de experiências e letramentos ocidentais. Os desdobramentos não favoreceram culturas participativas outras, resultando em relativizações e discriminações que se manifestaram como racismo e subalternizações. Esses desdobramentos proporcionaram, historicamente, o protagonismo dos africanos e afrodescen-dentes, e também dos povos originários, como menores ou inferiores, ante a evidência da construção de uma história parcial que privilegiou o consenso arbitrário de uma única via de projeto e estruturação de humanidade.

Dentro das relações burocráticas que se estabeleceram dorsais no empreendimento das sociedades ibero-americanas, ocidentais, o estatuto intelectual afirmou-se tão irrepreensível quanto intransigente e absoluto, inviabilizando relação dialética e crítica - cosmogonias e cosmovisões ocidentais, em suas linguagens e letramentos, mediados por seus intelectuais, responsáveis pela manutenção de um projeto de poder em dinâmica e posterioridade. O panorama, dentro do que a historiadora e crítica literária mexicana Jean Franco chamou de "Colonização do Imaginário", tornou possível a imobilidade do quadro histórico, fazendo prevalecer uma hegemonia que não poderia ser questionada porque não havia a instrumentalidade e espaços antagonistas contestatórios.

A permanência das circunstâncias dos valores civilizacionais absolutos que contrariavam a natureza antropológica diversa latino-americana, ao longo de um pouco mais de quatrocentos anos, arregimentou intransponível estrutura mística, burocrática, administrativa, intelectual e artística, de tal forma que não foi possível observar isonomias e participações mais efetivas e relevantes no reconhecimento de saberes e linguagens de ancestralidades outras. Não teriam, por exemplo, as cosmogonias e cosmovisões africanas e afrodescendentes sensibilidades substanciais, em seus letramentos e linguagens, contribuições e legados importantes a serem reconhecidos e incorporados em sociedades incontestável e culturalmente híbridas?

É inegável que o quadro histórico que se descreve apresentou desdobramentos que se perfizeram na percepção adversa do que se pretende e apresenta como sociedades democraticamente viáveis. Não reconhecer patrimônios culturais diversos, como o da afrodescendência, contribuiu, através dos planejamentos e das políticas educacionais, para a permanência, disseminação e continuidade de heranças e lógicas culturais que privilegiam hierarquizações culturais e manutenção de privilégios de posições sociais sustentadas pela prevalência de razões e valores históricos questionáveis e arbitrariamente impetrados. Do ponto de vista de como se constrói a percepção e validação das expressividades e valores culturais e literários, é possível também observar como se manifestam as posições formais da oficialidade desses valores. Basta observar, no contexto das hispanidades, nos manuais de historiografia e crítica literárias, dentro da perspectiva das bases que valoram as periodizações estilísticas, a maneira como se operam e situam as contribuições culturais das poéticas africanas, afrodescendentes e originárias. A invisibilidade, que muitas vezes se perfaz como desconhecimento, denuncia, também, um lugar de relevância histórica, antropológica e social.

Observa-se, contudo, nos dias atuais, ímpetos e esforços para a inclusão e valorização das cosmogonias africanas, afrodescendentes e originárias na galeria de saberes institucionalizados. No entanto, observa-se, também, a dificuldade de reconhecê-los como compatíveis com as disposições isonô-micas dos saberes formais instaurados. O ímpeto e esforço para a inclusão e valorização das cosmogonias africanas, afrodescendentes e originárias na galeria de saberes institucionalizados, quase sempre mobilizados por suas vozes de representação, ou de fala, e também pelos que não ocupam este espaço, mas se mostram sensíveis e críticos no que tange à questão, passaram a ocupar espaço privilegiado de letramento para de maneira criteriosa e responsável demonstrarem outras possibilidades de racionalidades que não poderiam operar como mera reprodutibilidade de valores de vigência cultural hegemônica. É curioso também indagar, de maneira propositiva, que, assim como se propõem esforços para assimilar a importância de valores socialmente hegemônicos e operantes que respaldam o que aqui se apresenta em desequilíbrio social de valores, por que não empreender também esforços para assimilar a natureza e consubstancialidade de valores que não se apresentam socialmente hegemônicos, como os afrodescendentes e indígenas Não funcionaria dessa maneira uma sociedade democrática viável e possível em sua operacionalidade intelectualmente produtiva? Hoje, os afrodescendentes e originários que empreendem, com ímpeto e esforço, as razões que os legitimam como origem e realidade adentraram as escolas e universidades para apreenderem saberes e linguagens a fim de também empreenderem suas próprias linguagens e saberes de modo a serem livres não apenas em corpo, mas também para afirmarem as razões que fundamentam suas intelectualidades. Adentraram, finalmente, a Cidade Letrada para assumirem posições socialmente visíveis e reconhecíveis, para refletir sobre o que se apresenta injusto ou, pelo menos, questionável. São cimarrones que em seus processos particulares transculturativos, afrorrealistas, inscriturais e ajiacos, por exemplo, afirmam-se tão pertinentes quanto existentes ao investirem em suas próprias epistemologias e pedagogias como afirmação cidadã. Não seria para isso que se apresentam como importantes, de maneira indistinta, a liberdade, educação, criticidade e literatura?

Refêrencias

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1 Pedagogias da Cimarronaje é um conceito que desenvolvo além deste artigo e título de livro que estou lançando. Por isso permito-me lançar maiúsculas.

2As seguintes traduções são minhas. No original disse: "La ciencia y los embajadores de la Ilustración instituyen criterios de distinción de otros modos de vida y otros modos de conocer para controlar, integrar y modernizar lo que se distingue"

3No original disse: "Sus ideas y sus modas, sus hombres y novela, son hoy el modelo y la pauta de todas las otras naciones; y empiezo a creer que esto que nos seduce por todas las partes, esto que creemos imitación, no es sino aquella aspiración de la índole humana a acercarse a un tipo de perfección, que está en ella misma y se desenvuelve más o menos, según las circunstancias de cada pueblo".

4No original disse: "Ante esa toma de consciencia se habían dado dos actitudes: tratar de establecer los criterios básicos de una cultura latinoamericana que, sin renegar lo que Europa podría ofrecer, se alejara de la imitación, o aplicar criterios europeos para atacar y juzgar el atraso y la barbarie enseñoreada en el medio local. El Romanticismo procuró integrar ambos criterios, pues, partiendo de una crítica de la realidad sociopolítica existente, procuró elevarse a la definición de un estado de ser original"

5No original disse: "De la fusión de estas tres familias [española, africana e india] ha resultado un todo homogéneo, que se distingue por su amor a la ociosidad e incapacidad industrial, cuando la educación y las exigencias de una posición social no vienen a ponerle espuela y sacarla de su paso habitual. Mucho debe haber contribuido [...] incorporación de indígenas que hizo la colonización. Las razas americanas viven en ociosidad [...]. Esto sugirió la idea de introducir negros en América, que tan fatales resultados ha producido. Pero no se ha mostrado mejor dotada de acción la raza española, cuando se ha visto en los desiertos americanos abandonadas a sus propios instintos. [...] Decir que no serán ni son capaces para regirse y gobernarse por sí mismos es un despropósito; lo han hecho por muchos años y esto basta: es verdad que en su estado actual y hasta que no hayan sufrido cambios considerables no podrán llegar nunca al grado de ilustración, civilización y cultura de los Europeos, ni sostenerse bajo el pie de igualdad con ellos en una sociedad de que unos y otros hagan parte"

6No original disse: "La palabra indio es la materialización más burda del darwinismo sociopolítico y cultural que intencionalmente se aplicó en la colonia y en las repúblicas bicentenarias sobre nosotros los originarios/as, con la finalidad de deshumanizarnos. Es decir, asumirnos como no humanos, complemento (laboral) para las nuevas tierras usurpadas. Por tanto, si tan ni siquiera contamos como humanos, tampoco podemos tener derechos, ni propiedades. Mucho menos podemos ser ciudadanos plenos (sólo votantes, jamás gobernantes). [...] El indio es una construcción sociopolítica y cultural de la colonia, y afianzada por las repúblicas. Los invasores no encontraron en Abya Yala habitantes vagos, brutos, resignados, ignorantes. No encontraron indios. Encontraron nativos del lugar a las que en los primeros documentos los llaman 'naturales'. La categoría indio fue una construcción colonial para deshumanizarnos filosóficamente a los nativos, negarnos derechos, apropiarse de nuestras tierras y bienes, y explotarnos sin eliminarnos".

7No original disse: "Ahora, Ud. dirá que las montañas y valles de México, Guatemala, Ecuador, Perú, Bolivia y otros, actualmente están habitados por seres sumisos, resignados, desconfiados, sucios, analfabetos, brutos, etc. En parte sí. Pero no somos indios. Somos seres humanos que hemos llegado a corporizar la dominación y las estigmatizaciones impuestas por varios siglos sobre nosotros. Si acaso algunos aún somos 'indios' (colonizados), no hemos nacido indios. Nos hicieron indios. Por tanto, no somos una realidad 'natural, innata, ni definitiva. Somos una realidad políticamente configurada, y estamos en proceso de emancipación de esa configuración. [...] Producto de las nefastas historias irredentas, y de nuestras circunstancias adversas, fuimos asumiendo (corporizando), en muchos casos, actitudes, roles, sentimientos e incluso una falsa conciencia de ser indios para siempre. El sistema colonial y republicano nos ha repetido (inoculado) tanto, por activa y por pasiva, nuestra situación de 'ignorantes', 'brutos', 'salvajes, 'resignados, hasta el límite que nos habita el complejo de inferioridad. Pero sólo es eso: un complejo. Y así como fue construido también podemos y debemos deconstruir y liberarnos".

8 No original disse: "La noción ch'ixi, como muchas otras (allpa, ayni) obedece a la idea aymara de algo que es y no es a la vez, es decir, a la lógica del tercero incluido. Un color gris ch'ixi es blanco y no es blanco a la vez, es blanco y también negro, su contrario. [...] La potencia de lo indiferenciado es que conjuga los opuestos. Así como allqamari conjuga el blanco con el negro en simétrica perfección, lo Ch'ixi conjuga el mundo indio con su opuesto, sin mezclarse nunca con él".

9No original disse: "En La Creación de la pedagogía nacional, Tamayo aborda autocríticamente el mestizaje boliviano como síndrome psicológico de encrucijada, que él nombra con el término bovarysmo, inspirado en las lecturas que se hiciera de la novela Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Esta noción me servirá como metáfora para comprender el bloqueo que nos impide ser memoriosos con nuestra propia herencia intelectual. Pues resulta paradójico y lamentable que tengamos que legitimar nuestras ideas recurriendo a autores que han puesto de moda los asuntos del colonialismo, desconociendo o ninguneando trabajos teóricos anteriores, que aunque no usaran las mismas palabras — e incluso si las usaron — pudieron interpretar e interpelar la experiencia colonial, y particularmente la colonización intelectual de las élites (hoy rebautizada como 'colonialidad del saber') con atrevimiento y veracidad".

10No original disse: "Estos motivos configuran un mundo vivencial, y en él un panorama imagístico y psicológico femenino, donde halla su ámbito la creatividad aherrojada o simplemente no solicitada o estimulada por otras motivaciones extrínsecas. Un mundo de imágenes familiares e inmediatas que dan la medida acariciada secretamente de sus experiencias, de sus nostalgias, de sus cotidianos".

11No original disse: "¿Dónde puede ser encontrada África en la nación? ¿Cuál es su lugar en la formación nacional? ¿Cómo fue procesado el elemento africano en la construcción de cada sociedad nacional al largo del tiempo? ¿Cómo penetraron y construyeron las tradiciones africanas su camino en la historia?"

12No original disse: Soy Ngafúa, hijo de Kissi-Kama / Dame, padre, tu voz creadora de imágenes, / Tu voz tantas veces escuchada a la sombra del baobab. / \Kissi-Kama, padre, despierta! / Aquí te invoco esta noche, junta a mi voz tus sabias historias. / jMi dolor es grande!".

13No original disse: "El lenguaje del tambor es también palabra, y hasta palabra privilegiada, pues son los muertos los que hablan a través de dicho instrumento, regulando las pulsaciones de la vida. Entre el ritmo de la palabra y de los tambores se da un contrapunto, un diálogo [pero] el tambor parlante no es un alfabeto morse, sino una escritura perfectamente descifrable, dirigida al oído y no a la vista. Escritura para comunicar noticias con rapidez, y también para contar y cantar, o sea, literatura narrativa y lírica. Muchas epopeyas sobrevivieron siglos en la piel de los tambores, que eran tocados por profesionales que tardaban varios años en formarse. El ritmo de los toques constituía un puro efecto musical, sino un auxiliar imprescindible de la memoria, tarea que en la poesía europea cumplieron la rima, la aliteración y el ritmo de la palabra".

14No original disse: "la experiencia tiene el sabor del saber orgánico que revela, tanto el valor de lo logrado en el intento, como lo que encierra el no haberlo logrado. De allí que, en la experiencia, no hay fracaso. Si somos parte de un Orden Superior, si en nuestra esencia existe — aún cuando tengamos plena consciencia de ello — un aspecto de ese orden; lo que precisa hacerse es recuperar la rítmica tensión de la unión. Al continuar ahondando — a lo largo de mi vida — en las formidables bases rítmicas heredadas, éstas me revelaron, con la claridad de lo orgánico, que, no obstantes africanas, son cósmicas".

Cómo citar este artículo (MLA): Mendes, Rogerio. "Saberes ausentes da 'Cidade Letrada. Por um Iluminismo mestiço". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 23, mim. 1, 2021, págs. 121-159.

Sobre el autor Es profesor adjunto de literatura en lengua española en la Universidad Federal de Rio Grande do Norte, Brasil (desde 2009) y doctor en Teoria de la Literatura por la Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Actualmente desarrolla investigaciones sobre literatura en lengua española en África y Asia; contribuciones culturales indígenas y africanas al proceso de formación de la literatura latinoamericana y manifestaciones literarias migratorias y fronterizas (nuyorican, spanglish, etc.).

Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 12 de Agosto de 2020

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