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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

Print version ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.23 no.1 Bogotá Jan./June 2021  Epub Apr 06, 2021

https://doi.org/10.15446/lthc.v23n1.90598 

Artículos

O "lugar de fala" e as "falas do lugar" na enunciação literária: o dilema pós-colonial

El "lugar de habla" y los "discursos desde el lugar" en la enunciación literaria: el dilema poscolonial

The "Place of Speak" and "Speaking from the Place" in Literary Enunciation: the Post-Colonial Dilema

Marcelo Brandão Mattos1 

1 Universidade Federal Fluminense, Fluminense, Brasil marcelobmattos@globo.com


Resumo

A aproximação académica entre a literatura comparada e os estudos culturais, importante vertente das pesquisas pós-coloniais, produziu desafiadoras hipóteses científicas. Neste artigo discutimos as implicações académico-científicas na utilização do conceito sociológico de "lugar de fala" para a análise da enunciação literária. Para tanto, estão aqui referidas teorias do discurso ficcional e da narrativa, teorias pós-coloniais e conceitos sociológicos acerca da representatividade de grupos sociais minoritários. Como ilustração das ideias propostas, ao final, alguns escritores literários africanos representantes do mundo pós-colonial estão referidos.

Palavras-chave: estudos culturais; literaturas pós-coloniais; lugar de fala; pós-colonialismo

Resumen

El enfoque académico entre la literatura comparada y los estudios culturales, un aspecto importante de la investigación poscolonial, ha producido hipótesis científicas desafiantes. En este artículo discutimos las implicaciones académico-científicas del uso del concepto sociológico de "lugar de habla" para el análisis de la enunciación literaria. Para este propósito, se hace referencia a las teorías del discurso ficticio y la narrativa, las teorías poscoloniales y los conceptos sociológicos sobre la representatividad de los grupos sociales minoritarios. Como ilustración de las ideas propuestas, al final se mencionan algunos escritores literarios africanos, representantes del mundo poscolonial.

Palabras clave: estudios culturales; literatura poscolonial; lugar de habla; poscolonialismo

Abstract

The academic approach between comparative literature and cultural studies, a relevant aspect of post-colonial research, has produced challenging scientific hypotheses. In this article, we discuss the academic-scientific implications of using the sociological concept of "place of speech" for the analysis of literary enunciation. For this purpose, we refer to theories of fictional discourse and narrative, post-colonial theories, and sociological concepts about the representativeness of minority social groups. As an illustration of the proposed ideas, in the end, we mention African literary writers, representatives of the post-colonial world.

Keywords: cultural studies; post-colonial literature; place of speech; post-colonialism

Notas introdutórias

OVÍNCULO ACADÉMICO ENTRE LITERATURA E estudos culturais se intensificou com o desenvolvimento das pesquisas pós-coloniais, sobretudo aquelas dedicadas às culturas latino-americanas e africanas, em meados do século XX. No ensaio "Estudos literários e estudos culturais: territórios dos caminhos que convergem", publicado como o capítulo introdutório do livro Literatura e Estudos Culturais, a pesquisadora Else Vieira aponta para o que denomina "uma mudança paradigmática: o deslocamento dos Estudos Literários para o âmbito dos Estudos Culturais" (9). O "deslocamento paradigmático" proposto pela professora nada mais é do que uma (re)condução das literaturas a um espaço de diálogo com a sociologia, a antropologia, a história e a geografia. A "literatura em-si-mesma" - um importante viés analítico proposto pelos críticos estruturalistas, sobre os quais pensaremos adiante, já não contempla(va) plenamente aquilo que muitos autores, pesquisadores e até leitores-comuns passaram a debater a partir da leitura de textos literários.

A busca por uma representatividade social nos textos ficcionais não era apenas da ordem do desejo, mas da necessidade histórica. Teóricos como Homi Bhabha e Edward Said, dentre tantos outros, dissertam acerca do silenciamento histórico-cultural que se deu nos povos colonizados em virtude da imposição de tradições euro-ocidentais, uma estratégia política de dominação. O "apagamento de registros", contudo, sempre foi (e será) meramente protocolar, uma vez que não se apaga a memória coletiva. Aos ficcionistas, à sombra dos discursos oficiais, é possível documentar o indizível (no sentido censor da palavra), fazer história pela literatura, obviamente sem a pretensão de substituí-la. Esse é o principal ponto de encontro entre os leitores que buscam registros reais na literatura: rasgada a historiografia, é legítimo recorrer à narrativa ficcional em busca dos "sinais de vida" histórico-culturais.

O viés histórico de leitura, no entanto, não deve implicar à ficção a obrigatoriedade da função documental, pondo em prejuízo sua liberdade artística. Há que se preservar, no que tange à criação literária, o espaço "diegético" - tão caro aos Estudos Literários, conforme define Gérard Genette, em "Discurso da Narrativa" -, sendo este o "ambiente" que, desligado da realidade, passa a representá-la. A representação artística é a garantia de que toda obra possa transpor o autor e suas vinculações espaciotemporais. A teoria estruturalista, conforme é referida antes, (res) salvou a obra artística-literária de sua matriz de produção, de modo a permitir-lhe seguir o próprio curso com considerável autonomia (alguns dirão: autonomia demais).

A tensão conceptual proposta nestes parágrafos introdutórios é o ponto crucial de nossas pretensões argumentativas neste artigo: quanto o texto literário tem ou não tem vínculos com o seu autor e as amarras históricas que lhe são próprias. Entretanto, nem mesmo aqueles que defendem a vinculação histórico-cultural dos textos literários podem negar: a libertação da "identidade ficcional" (um termo aqui proposto) é uma garantia da arte literária da qual não se pode prescindir. Houve um tempo em que os leitores, dos iniciantes aos críticos, buscavam nas obras uma "aura" do seu criador, tornando a leitura uma pesquisa da persona-autora. Esse fenómeno é descrito por Roland Barthes no emblemático texto em que propõe para a análise literária o consagrado conceito da "morte do autor":

O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos literatos, preocupados em juntar, graças ao seu diário íntimo, a sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; a crítica consiste ainda, a maior parte das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire, que a de Van Gogh é a sua loucura, a de Tchaikovsky o seu vício: a explicação da obra é sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entregasse a sua "confidência". (50)

No "reinado tirânico do autor", conforme assinala o teórico francés, não se admite a libertação do enunciador, na medida em que o viés de leitura é o "da confidência". No entanto, sabem os escritores e os leitores maduros:1 o texto literário é sempre uma encenação. Aquilo que Fernando Pessoa reproduziu ludicamente com seus heterónimos é a síntese da criação literária: a identidade do enunciador é um jogo-de-cena, mesmo quando ele se pretende imprimir. Pessoanamente, isso quer dizer que até o eu--lírico "Fernando Pessoa: Ele-mesmo", como se convencionou chamar por diferenciação aos seus heterónimos, não pode ser confundido com o autor que de maneira homónima se reconhece no registro civil com a patente da obra. Dirá Barthes a respeito:

Não será jamais possível saber [a verdadeira "identidade" do autor], pela simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve. (57)

A neutralidade proposta pela teoria barthesiana se tornou um fundamento dos estudos literários que, na visão de muitos pesquisadores afetados pela linha estruturalista, impedia qualquer identificação de um rastro autoral nas obras literárias. Lido à risca, Barthes se tornou o algoz dos autores, condenando-os a uma sepultura de onde já não poderiam enunciar. É possível, no entanto, advertir para o fato de o teórico não ter necessariamente preconizado o desaparecimento integral de qualquer sintoma autoral, em especial naquilo que corresponde à mente criadora, inexoravelmente perpassada por valores que se traduzem nas escolhas de produção artística. Seu intuito foi o de dissipar a enunciação para além do que seria uma autoria "monocórdia", centrada na ilusão de um sujeito integral (que não considera a desconstrução subjetiva, tão difundida na pós-modernidade). Isso se deduz no trecho em que Roland Barthes afirma:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a "mensagem" do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura.(Barthes 68-69)

Para advogar em defesa do teórico, injustamente acusado por um crime que não cometeu,2 registre-se o fato de que, nas entrelinhas do seu texto, pode-se entender a figura do autor como depositário das "dimensões múltiplas", o instrumento por onde se alinhavam as "citações" e os "mil focos de cultura". Nesse sentido, a "sentença de morte" da teoria barthesiana, que impediria aos adeptos qualquer discussão sobre autoria, pode ser entendida como efeito de uma deturpada interpretação textual, incapaz de modalizar e contextualizar o que fora escrito.

Em sincronia com o texto de Barthes, embora seja distinta sua orientação epistemológica, Mikhail Bakhtin propõe uma duplicação da autoria de modo que o enunciador do plano ficcional - que ele chama de autor secundário - se desprenda da entidade primária autoral (o "autor em si"), tornando-a oculta, sem contudo sentenciá-la à morte - efeito que Gyõrgy Lukács define como "ironia".3 Por esse viés teórico, passou a ser aceitável, aos estudiosos voltados às linhas de pesquisa que exploram os vínculos entre a literatura e os estudos culturais, "ressuscitar" o autor e sua voz, se não no plano diegético, ao menos nas entrelinhas textuais ou, pensando do ponto de vista linguístico, no nível do discurso.4

A voz do autor pós-colonial

Sem a identificação da entidade autoral, não seria possível forjar os estudos dedicados a compreender e, inclusive, definir as coletâneas literárias latino-americana e africana. É preciso considerar que a produção literária nesses espaços pós-coloniais se deu, de início, por intermédio (ou influência) da gestão colonial e se registra graficamente nas línguas herdadas dos colonizadores. Nesse sentido, a se considerarem "mortos os autores", as obras publicadas nas nações latino-americanas e africanas independentes se misturariam com facilidade aos produtos das antigas metrópoles - que, por força das circunstâncias políticas, à altura compunham (hoje, compõem) o que se passou a denominar internacionalmente como "literatura universal". É, contudo, na diferença ao "Ocidente" - pensado, nas palavras de Walter Mignolo, não para "referir à geografia por si só, mas à geopolítica do conhecimento" (290) - que se constituem esses grupamentos literários pós-coloniais.

Aos pesquisadores das Letras latino-americanas e africanas, passou a interessar um estudo de reconhecimento não apenas dos conteúdos locais (ou vinculados ao espaço local em oposição ao global), mas - e sobretudo - dos recursos formais que, na fratura léxico-sintática das línguas importadas, expunham marcas dialetais de pertencimento nacional ou continental. Evidentemente, tais estudos só se desenvolveram a partir do conhecimento da linguística como ciência - falamos, portanto, do trabalho de Fernand de Saussure em seu "Curso de Linguística Geral", publicado em 1916, a desenvolver a noção de variedade linguística geográfica - e, a partir daí, da consciência de que a literatura nacional não se devia curvar às exigências formais da comunidade artístico-intelectual eurocêntrica.

Do ponto de vista da produção literária - evidentemente, em conexão com essa cronologia científica -, observam-se no mesmo período (no início do século XX) a eclosão de movimentos artísticos libertadores, como o modernismo brasileiro, a propor uma espécie de novo grito de independência, sob a ótica linguístico-cultural, intermediado pelos ideais antropofágicos. O conceito de "antropofagia cultural", popularizado textualmente por Oswald de Andrade, se disseminou por toda a América Latina e atravessou o Atlântico, ecoando nas reuniões secretas dos intelectuais libertários africanos. Tendo por base (dentre outros) esse conceito, as jovens nações independentes de África decretaram a ruptura com as letras europeias (então, metropolitanas) e, ao mesmo tempo, o nascimento de novos corpus literários cunhados a partir da noção identitária: apenas o autor que obtivesse "certidão africana" poderia representar de maneira simbólica e artistica ao continente.5

A proposta de uma cisão cultural entre os espaços pós-coloniais e a Europa se perpetua até a contemporaneidade, em função do trabalho de muitos teóricos que ajudaram a definir o lugar de resistência das ex-colônias - hoje, nações independentes - em um contexto internacional que, por motivos históricos e geopolíticos, é ainda protagonizado de forma hegemónica pelo bloco europeu - sobretudo no que diz respeito à produção acadêmico--científica. Em outras palavras, os teóricos pós-coloniais defendem unânimes o que Mignolo denomina desobediência epistêmica (287-324), uma ruptura com o pensamento hegemônico, sem a qual a produção cultural da nação livre "permanecerá presa em jogos controlados pela teoria política e pela economia política eurocêntricas" (Mignolo 287).

O confronto com o eurocentrismo se dará a partir da consciência, por parte do indivíduo pós-colonial, acerca da importância de repensar sua identidade coletiva (o que poderíamos designar como "autodeterminação sócio-identitária"), tendo por base referências que não sejam forjadas - não todas elas, ao menos - pela epistemologia ocidental. Nesse sentido, é emblemático o trabalho de pesquisa de Edward Said, quando descreve o Orientalismo como "um sistema de conhecimento sobre o Oriente, uma rede aceita para filtrar o Oriente na consciência ocidental, assim como o mesmo investimento multiplicou - na verdade, tornou verdadeiramente produtivas - as afirmações que transitam do Orientalismo para a cultura em geral" (34).

Ao concluir que o entendimento global acerca do Oriente é uma "invenção do Ocidente" (este, inclusive, é o subtítulo do seu livro), o teórico palestino induz a uma ressignificação identitária das nações pós-coloniais: ou seja, a necessidade de reapresentar-se ou até reinventar-se para os seus e para o mundo, a partir de referências nas histórias e memórias locais. Seguindo a mesma linha, o pesquisador anglo-ganês Kwame Anthony Appiah, no livro Na casa do meu pai, em seu ensaio de abertura, dedica-se a discutir "A invenção da África", também - segundo o teórico - um constructo do Ocidente. E no mesmo "coro", o semiólogo argentino Walter Mignolo, a repensar identidades na América Latina que dirá terem sido "alocadas por discursos imperiais", afirma: "não havia índios nos continentes americanos até a chegada dos espanhóis; e não havia negros até o começo do comércio massivo de escravos no Atlântico"(289), em assertiva referência às forçosas generalizações fundadoras das identidades indígena e negra no continente, necessariamente a partir do estranhamento do colonizador.

O repensar das identidades pós-coloniais resvala para o universo ficcional, ao ser o texto literário um poderoso símbolo histórico-cultural. O autor literário pós-colonial, portanto, será lido - em parte - pela sua credencial identitária, expressa pela distinção ético-estética6 de sua obra, sendo ele um representante das vozes locais. Nesse âmbito, embora não se neguem as contribuições dos escritores latino-americanos e africanos para o cânone literário internacional, buscar-se-ão neles - a partir de uma consciência da pós-colonialidade - os traços de oralidade presentes na escrita, os neologismos e a neossintaxe popular, a temática autóctone, as referências simbólicas nas tradições tribais, enfim, sinais locais desafiadores da ordem epistemológica e linguística eurocêntrica.

A noção de uma "legitimidade representativa do autor" se torna ainda mais complexa (pensando o termo com Edgar Morin7), quando transborda da nacionalidade pós-colonial para os coletivos identitários,8 na medida em que esses não se localizam em espaços de produção cultural nos limites geográficos previstos pela antropologia social. A ideia passa a ser explorada pela sociologia contemporânea, em especial quando é vocacionada a entender as representações artístico-culturais dos grupos sociais minoritários. A "voz do autor primário" torna-se, então, uma espécie de estandarte de luta contra o silenciamento impingido às minorias. Nesse contexto, surgem as teorias acerca das literaturas expressivas de cada movimento oprimido: os grupos em defesa das mulheres vão se fixar na "literatura feminina"; os movimentos antirracistas vão delimitar a "literatura negra"; e, mais recentemente, pesquisadores ligados aos grupos lgbt tentam circunscrever coletâneas de uma "literatura homoafetiva". Todos eles, evidentemente, pensam o autor como um integrante do respectivo grupo minoritário. A grande discussão que se impõe a essas linhas de pesquisa - em uma espécie de uma encruzilhada conceptual - é o "ser ou não ser" daquilo que a sociologia contemporânea denomina lugar de fala quando na análise do autor ficcional.

O "lugar de fala" do autor ficcional

O termo lugar de fala tem sido amplamente utilizado pelos movimentos sociais como delimitação da experiência do sujeito da enunciação enquanto produtora de sentidos. O conceito foi recém descrito com muita propriedade pela filósofa contemporânea brasileira Djamila Ribeiro, no livro que tem como título o termo em questão, e há quem lhe atribua a autoria do conceito, embora não haja um consenso a esse respeito, considerando que as mídias digitais - importantes instrumentos de discussão sobre a defesa dos grupos sociais - tornaram ainda mais complicada a tarefa de identificar a origem de vocábulos e expressões. De toda forma, seja ou não seja uma denominação atribuída à pesquisadora, há precedentes teóricos que não podem ser desprezados em sua discussão conceptual proposta.

A expressão lugar de fala está matricialmente relacionada à teoria feminista da intelectual indiana Gayatri Spivak, referida com relevância no livro Pode o subalterno falar? Na obra, a teórica discute - dentre outros temas - a subalternidade feminina, sobretudo nos países do terceiro mundo, refletida no não-dizer da sua experiência, sempre enunciada por vozes masculinas do pensamento ocidental pós-colonial. A essas ideias, soma-se a contribuição da filósofa panamenha Linda Alcoff, em The Problem of Speakingfor Others [O problema de falar pelos outros], quando reflete acerca da hierarquização social nos atos da "tomada de palavra". Diz a teórica:

[C]ertas localizações privilegiadas são discursivamente perigosas. Em particular, a prática de certos indivíduos privilegiados de falar em nome de indivíduos menos privilegiados tem resultado (em muitos casos) em aumento ou reforço na opressão do grupo do qual se fala por. (Alcoff 7)

Acrescentem-se a esse corpo teórico as discussões propostas pela professora Avtar Brah, doutora em sociologia da Universidade de Birkbeck, a respeito da "teorização das diferenças" e das categorias sociais enquanto "sujeitos políticos" (Brah 332), no artigo científico "Diferença, diversidade, diferenciação", publicado originalmente em 1996 no Cartographies of Diaspora: Contesting Indentities. A pesquisadora discute, em resumo, a inconsistência de termos definidores de raça e gênero para abarcar a diversidade das vozes e experiências afrodescendentes e femininas, respectivamente. Com esse pressuposto, adverte para o risco da substituição da autorreferência pela teorização por outrem, sendo o teórico um representante do centro hegemônico. A ideia de que a formação discursiva é um "lugar de poder" deriva, evidentemente, do pensamento bakhtiniano a respeito do caráter ideológico de todo discurso. Sendo a língua um instrumento de poder, o reconhecimento da voz é um ato de resistência.

Sobre todo esse manancial teórico se apoia o conceito de "lugar de fala", que - conforme já o dissemos - tem, no Brasil, a filósofa Djamila Ribeiro como porta-voz eminente. Em seu livro O que é lugar de fala?, a autora questiona o "locus social" dos sujeitos marginalizados "numa matriz de dominação e opressão" (68) a partir das oportunidades que têm (ou não têm) de se pronunciarem enquanto sujeitos da experiência social. Essa demarcação sócio-espacial, alerta a autora, não refuta a adesão de indivíduos não-marginalizados aos movimentos sociais - de homens, na defesa dos direitos femininos; de brancos, na campanha antirracista; de heterossexuais, na legitimação das pautas LGBT -, mas é importante compreender que "por mais que pessoas pertencentes a grupos privilegiados sejam conscientes e combatam arduamente as opressões, elas não deixarão de ser beneficiadas, estruturalmente falando, pelas opressões que infligem a outros grupos" (Ribeiro 68).

No que tange à produção intelectual e cultural associada aos grupos sociais marginalizados, deve-se considerar - com apoio ainda no texto de Djamila Ribeiro - o silenciamento imposto por desmerecimento ou burocratização nos processos de produção e/ou divulgação. Nas palavras da pesquisadora:

As experiências desses grupos localizados socialmente de forma hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais, saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que essas condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções. (Ribeiro 63)

O "lugar de fala", portanto, tem alcance não apenas em depoimentos e relatos, propriamente ditos, mas em toda criação discursiva, inclusive académica e artística. Por esse viés é que se iniciam os debates que buscam a vinculação do conceito à produção cultural, em especial a literária. Uma vez conscientes do quanto o "falar pelo outro" pode ser em si um gesto opressor, muitos representantes dos movimentos sociais passam a requerer o "lugar de fala" como pré-requisito da produção cultural e académica, quando esta diga respeito àquela. O conceito, então, assume a sua vocação política e sobre ele não haveria incómodo algum, não fosse a determinação dos pesquisadores com relação à precisão científica dos seus trabalhos. É a obstinação pela ciéncia - acima, inclusive, do desejo pela luta - que levanta dúvida acerca da validade desse fator para a análise literária.

Por detrás dessa "briga" científica, há uma ancoragem nos princípios estruturalistas - com os devidos descontos aos radicalismos já aqui discutidos - como atributos da criação literária. Neste ponto, deve-se evocar a contribuição de Michel Foucault em O que é um autor acerca da ideia de arte como representação e, por este viés, de um autor literário que é menos sujeito (em si) e mais função discursiva. Para o filósofo, tal função

[N] ão se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização, não se define pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de oposições específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo dar lugar a vários "eus" em simultâneo, a várias posições-sujeito que classes diferentes de indivíduos podem ocupar. (56)

As posições-sujeito a que se refere o autor questionam a discussão acerca de um "lugar de fala" autoral, na medida em que se admite a multiplicidade subjetiva como recurso da enunciação. Pode-se fazer neste ponto, inclusive, uma conexão da ideia de Foucault com a emblemática noção bakhtiniana do plurivocalismo componente do discurso ficcional - em consequência, um recurso autoral. É como se, juntos, os teóricos propusessem um deslocamento do que seria a ideia de um "lugar de fala" autoral para aquilo que preferimos chamar de as falas do lugar em que escreve o autor. A partir de um ponto de observação a ser ocupado pelo indivíduo da enunciação, há uma gama de "posições de fala", os "vários eus" do conceito foucaultiano perpassados pelo sujeito que se predispõe ao discurso. Em primeiro lugar, a unidade subjetiva é uma ilusão, um constructo (necessário, muitas vezes, à causa política), levando-se em conta o entendimento pós-moderno sobre a fragmentação subjetiva.9 Se a esse conceito for acrescida a noção de que a produção artística, mais do que outra atividade textual, revela o oculto na mente humana - o que Freud chamou de subconsciente - , será dedutível a multiplicidade subjetiva como um caráter da formulação das vozes literárias.

A aceitação da ideia de um múltiplo da autoria ficcional compromete uma suposta unidade subjetiva à qual se poderia atribuir, na literatura, um "lugar de fala" - se não para negá-la, ao menos para questionar sua validade científica. Ora, reflitamos com base em situações específicas: afinal, a ficção representa a negritude na materialidade do texto ou na revelação da identidade de seu autor? Haverá "alma feminina" no texto escrito ou na certidão de quem escreve? Não se pensem as questões como provocações às causas minoritárias, todas elas fundamentais do ponto de vista político. Mas a quem interessar o estudo literário, em nome da ciência, não se deve furtar à luta de enfrentar o conflito dos conceitos.

Vejamos alguns casos ilustrativos dessa tensão conceptual. Em 2016, uma situação ocorrida na Itália serviu para aquecer esse debate. A escritora best seller Elena Ferrante10 - pseudónimo de um(a) autor(a) anônimo(a) - passou a ser investigada por jornalistas curiosos a respeito de sua verdadeira identidade e, em função da análise de transações financeiras da editora correspondentes à venda dos livros, suspeitou-se de que "ela" talvez fosse "ele": o escritor Domenico Starnone. A suposta revelação (até hoje a pessoa por trás de Ferrante é um mistério) levou o público leitor a uma comoção negativa, na medida em que a escritora até então fora recebida como uma potente voz representativa da intimidade e das angústias femininas. O frisson só acalmou quando se levantou a hipótese de que, na verdade, Elena seria a esposa de Starnone, a tradutora Anita Raja, e não o próprio. Como ainda não há confirmação a respeito, a questão ainda gera discussões não apenas sobre a identidade da autora, mas sobre a sua "legitimidade enquanto mulher".

Outro caso exemplar da discussão sobre o suposto "lugar de fala" na literatura foi descrito pelo escritor angolano Pepetela (pseudónimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos). Em 2008, na livraria Travessa do Leblon, no Rio de Janeiro, em entrevista coletiva11 para o lançamento do seu romance Predadores, o escritor revelou um fato curioso ocorrido nos meses anteriores ao evento. Ele havia sido contactado por um grupo de estudos de mulheres negras norte-americanas que revelavam seu encantamento com livro Lueji. O romance de Pepetela, lançado em 1989, narra em primeira pessoa a vida de duas mulheres: Lueji, uma jovem que se torna rainha do reino Lunda, depois da morte de Kondi, seu pai; e a jovem Lu, que, 400 anos depois, busca recriar a história de Lueji. No evento da Travessa, o escritor revelou que as tais leitoras-pesquisadoras manifestaram em carta o desejo por um contato pessoal com a (imaginada) "autora negra de Lueji", relatando a percepção de uma negritude feminina na forma de narrar que lhes parecia tão íntima (o nome Pepetela terminado em "a" e a certidão africana do autor levaram-nas à equivocada suposição). O escritor descreve com humor a carta-resposta que enviou, na qual agradeceu muito o contato, relevando, contudo, que se tratava de um homem branco, o que foi suficiente para que as pesquisadoras nunca mais entrassem em contato.

Os casos supracitados, embora não tenham a pretensão da certificação científica, são reveladores do ponto de vista empírico. São situações em que a percepção de uma obra literária, na qual o autor se revela posteriormente como alguém que não corresponde ao sujeito da enunciação (em especial em termos de raça e género), é alterada em função de uma expectativa dos leitores quanto à identificação da autoria. Experiências como essas contribuem para a inferência de que talvez o que se poderia julgar como um "lugar de fala" ficcional esteja mais na ordem do desejo (do leitor) do que propriamente na escritura do texto. Em outras palavras, a hipótese de um "lugar de fala" do autor literário inviabiliza o distanciamento entre a obra literária e o seu criador, ainda que o mínimo necessário para que se dê o jogo de simulação da arte: o cachimbo de Magritte. No entanto, as "falas do lugar" impõem um limite inexorável às vinculações possíveis entre autor e obra. Evidentemente, admitindo-se a multiplicidade subjetiva do ficcionista (conforme mencionado acima), não se estará aceitando a livre vinculação. Recorrendo de novo à teoria de Foucault, é imperioso afirmar que os "vários eus" ou as "várias posições-sujeito" que se podem manifestar na autoria estão circunscritos à vivência do sujeito-autor, porque os seus potenciais "eus" são constituídos na vida, não inerentes.

Neste ponto, apoiamo-nos nas ideias de Giorgio Agamben a respeito do sujeito-autor, em uma leitura crítica das teorias de Foucault e Barthes. Diz o teórico:

O sujeito - assim como o autor, como a vida dos homens infames - não é algo que possa ser alcançado diretamente como uma realidade substancial presente em algum lugar; pelo contrário, ele é o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto - se pôs - em jogo. Isso porque também a escritura - toda escritura, e não só a dos chanceleres do arquivo da infâmia - é um dispositivo, e a história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo-a-corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram - antes de qualquer outro, a linguagem. E assim como o autor deve continuar inexpresso na obra e, no entanto, precisamente desse modo testemunha a própria presença irredutível, também a subjetividade se mostra e resiste com mais força no ponto em que os dispositivos a capturam e põem em jogo. (63)

O autor, portanto, é um jogo de presença-ausência, pondo-se entre a condição inexpressa na obra (a deslocar-se para fora dela) e a posição de testemunha de sua irredutível presença, sob forma de linguagem (e do agente da sua formulação). Tudo o que se expressa na composição da obra é resultado de sua existência e das suas conexões possíveis com a realidade que ajudou a constituir sua subjetividade (em seu caráter múltiplo).

As falas do lugar pós-colonial

Se a multiplicidade é uma condição inerente a toda identidade, mais intenso será o caráter múltiplo da identidade pós-colonial, por razões justificadas pelos mais expressivos pensadores dos estudos culturais. O professor Silviano Santiago, no artigo "O entre-lugar do discurso latino americano" (11-28), publicado em 1978, disserta acerca do componente fronteiriço do discurso latino-americano, expressão de identidades entre o "pré-" e o "pós-" colonial, entre o estrangeiro e o autóctone, entre o global e o local. Desenvolvendo esse conceito, Homi Bhabha, no célebre livro O lugar da cultura, publicado em 1994, afirma:

O afastamento das singularidades de "classe" ou "gênero" como categorias conceituais e organizacionais básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito - raça, gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual - que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno. O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses "entrelugares" fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva-que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade. (19-20)

Há, portanto, um entrecruzamento de posições identitárias formador das subjetividades em jogo na definição do que seja uma sociedade. O pluralismo das nações pós-coloniais, inerente ao processo de formação social nesses espaços nacionais, tensiona o trânsito das fronteiras identitárias, ampliando-as a ponto de se tornarem propriamente espaços de pertença, batizados por ambos os teóricos supracitados - ainda que por perspectivas diferentes - como entrelugares. Uma noção similar se encontra em Boaventura de Souza Santos, quando o teórico diz, no livro Pela mão de Alice: "Sabemos hoje [na pós-modernidade dos tempos pós-coloniais] que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação" (135).

O autor pós-colonial, dentro dessa perspectiva, é um sujeito constituído em um espaço de intensos trânsitos de identificação que, em função da juventude de suas sociedades, são mais evidentes e contrastantes do que se nota nas nações europeias, um tanto mais homogeneizadas pelo tempo. Embora haja também na Europa diferenças entre os componentes da nação (sobretudo com a recente chegada em massa dos imigrantes), existe ainda - ao menos imaginariamente - uma convergência em direção a um totem identitário no centro da praça. Os espaços pós-coloniais, ao contrário, sabem de sua pluralidade e fazem dela o seu emblema. Nesses locais, as sociedades são comunidades "imaginadas"12 em sua multirracialidade e pluralidade cultural. Por isso, a tela Operários, de Tarsila de Amaral, é tão simbólica para representar a brasilidade, na medida em que um rosto apenas não seria capaz de representar a identidade brasileira.

O pluralismo rácico-cultural do mundo pós-colonial compõe, em alguma medida, cada homem nele constituído. Este é o ponto defendido por Serge Gruzinski, em O pensamento mestiço. O indivíduo pós-colonial é formado no (e pelo) conceito de mestiçagem, o que torna sua autoimagem plural, como efeito da pluralidade nacional. E essa pluralidade componente da criação artístico-literária se converte em acentuado plurivocalismo, decorrência do multi-identitarismo que caracteriza o sujeito-autor. Neste ponto, propõe-se (aqui) o termo "falas do lugar" em concorrência ao pressuposto problematizado de um "lugar de fala" ficcional. Por este viés é que pretendemos enlaçar as literaturas latino-americanas e africanas, entendê-las por um caminho em que as representações socioeconómicas, raciais, genéricas e regionalistas se espraiam nas subjetividades locais. Isso talvez explique o eco dos neologismos e da neossintaxe de Guimarães Rosa ou do realismo mágico de Gabriel García Márquez em todo o mundo pós-colonial, não com o exotismo da recepção europeia, mas com um sentido de identificação. As múltiplas vozes e possibilidades de entendimento da própria realidade pairam por sobre o ambiente pós-colonial, estão no ar que se respira e que inspira os seus criadores.

Disso fala muito bem Mia Couto, ficcionista moçambicano, em entrevista à repórter Mirella Nascimento. Integrante branco de uma nação maciçamente negra, o escritor africano é questionado sobre a presença predominante negra de personagens e narradores em sua obra. Em resposta, Mia Couto afirma:

[Q]uando eu escrevo uma história, os personagens que surgem são negros. Quando eu tenho que perceber que alguém não é negro, eu tenho que pensar e colocar isso como uma espécie de marca de extensão no texto. Mas a minha imaginação é toda construída nesse outro universo. (Couto §15)

Na sequência, interrogado sobre um suposto "lugar de fala" do negro na literatura moçambicana, responde: "a escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala, ela morre. Eu só escrevo porque eu viajo para outros" (§19).

Em sua obra, Mia Couto de fato escreve primariamente sob a perspectiva negra - aliás, um efeito que se reproduz em quase todos os escritores africanos, independentemente da sua cor. Isso porque a negritude é um estado africano, um "ser/estar no mundo". A cor branca, na África, ainda está simbolicamente associada aos colonizadores, cujo rastro ainda se percebe nas relações de poder de-fora-para-dentro, em função das recentes independências. Embora sejam receptivos à mestiçagem que hoje compõe as nações em África, os africanos carregam em si o emblema negro como a semente da diversidade racial no mundo, portanto assim se veem em um espelho geopolítico - condição bastante assimilável a um brasileiro ou um cubano, por exemplo (também, de certa forma, no leste da Colômbia), países cuja demografia tem predominância negra.

Outro escritor africano, de pele branca, cuja obra reproduz a experiência negro-africana de forma profunda é Luandino Vieira, um dos maiores autores vivos em África. Desde Luuanda, livro que o projetou para o mundo, o autor - por meio dos seus narradores - enuncia a condição negra, de modo a exibir seus dramas e conflitos, a exploração do homem da terra, o sofrimento em ser subalternizado na própria casa, a rejeição estética em meio a uma realidade de privilégios brancos. Da mesma forma, vocifera os questionamentos mais recentes a respeito de uma fraternidade entre os negros e os brancos que integram Angola independente, sempre sob a perspectiva do negro, ícone da experiência africana. Por isso o romance O livros dos rios, o primeiro exemplar de uma trilogia ainda inacabada, inicia com a seguinte declaração do narrador-personagem Kapapa:

Conheci rios

Primevos, primitivos rios, entes passados do mundo, lodosas torrentes de desumano sangue nas veias dos homens.

Minha alma escorre funda como a água desses rios.

Só que, na guerra civil da minha vida, eu, negro, dei de pensar: são rios demais - vi uns, ouvi outros, em todas mesmas águas me banhei é duas vezes. (15)

Os "rios demais" são as veias que compõem o sangue africano, um "caldo" que - percebe o personagem - também se nutre de alguns afluentes brancos incorporados à terra. Em fluxos de memória, Kapapa reviverá a sua relação paternal com três figuras influentes na sua história (parte da História africana): o avô pescador, símbolo da tradição ancestral; o pai assimilado, mas consciente da sua condição subalterna; e Lopo Gavinho, branco português que, embora representante dos colonizadores, tornou--se um mestre afetuoso e dedicado, também importante em sua formação identitária. O livro propõe um paradoxal caminho autorreflexivo: o sujeito negro-africano contemporâneo resgata as tradições autóctones e a consciência a respeito da imposição social contra toda forma de dominação, mas também se prepara para uma aproximação gradual com alguns vínculos europeus, de modo a desfazer o muro simbólico que divide os dois mundos, erguido para se vencer a guerra, mas incongruente mediante uma realidade de fluxos socioeconômicos e culturais.

Também a obra de Pepetela - o escritor angolano branco, referido neste artigo - é significativa para se pensar a enunciação negro-africana. Os seus narradores estão de tal forma imbuídos da "alma negra", que dispensam a apresentação de sua condição racial. Ao contrário disso, os brancos que acessam a narrativa se destacam pela alteridade. Há na narração de Pepetela (algo comum entre os escritores africanos) uma inversão em relação às discussões sociológicas acerca do destaque à diferença negra. Um dos pontos centrais de argumentação do movimento negro é o quanto o indivíduo de pele preta é sempre racialmente apontado ("discriminado", no duplo sentido): o "ator negro", uma "negra linda" etc. De fato, a diferença apontada no discurso é excludente. Em Pepetela, o que se aponta é sempre o branco e, então, na ausência de apresentações, seus personagens são sempre pretos.

Esse efeito é evidenciado, por exemplo, no livro O quase fim do mundo, um romance futurista que narra a sobrevivência de alguns habitantes da África, em função de o continente ter sido esquecido num plano terrorista de acabar com o planeta. O romance é narrado no início por Simba Ukolo, médico africano que desperta em meio ao vazio da sua vizinhança. Essas são suas as primeiras impressões de um mundo acabado, mas não serão as únicas. Nas suas andanças (e no avançar das páginas do livro), passa a encontrar um a um outros sobreviventes: Geny, mulher de meia-idade (16); Kiari, um andarilho louco (26), Jude, uma menina tímida (31); um pescador (55); Kiboro, um ladrão (62); e o menino Nkunda (103). Até então não há na narrativa qualquer referência à condição racial dos personagens apresentados, mas notar-se-ão negros no desenrolar da trama. Adiante, o personagem-narrador diz: "Neste momento, havia outro pólo de atração e bastante inesperado: um casal de brancos. Tive cá um destes choques! Senti necessidade de esfregar os olhos para me convencer de que era verdade" (107). Na forma como "Janet e Jan" são introduzidos na narrativa é que se confirma, por oposição, a condição étnico-racial dos demais integrantes do elenco de personagens. Na ontologia e epistemologia africana, o que se destaca (em diferença) é a condição branca.

Considerações finais

A aproximação entre as pesquisas literárias e os Estudos Culturais permitiu o reconhecimento de um autor enganosamente sepultado, mas criou sobre ele expectativas por vezes incongruentes à sua condição artística. Há, portanto, nessa relação, um paradoxo vibrante que não deve ser ignorado: a obra literária pode ser encarada como o produto de um espaço sociocultural (e suas implicações políticas e económicas), embora não se possa fixar a uma experiência individual, tendo em vista ser o sujeito-autor alguém dotado de uma multiplicidade subjetiva, tanto do ponto de vista psíquico, quanto social. Daí se depreende a substituição da procura por um "lugar de fala" ficcional pela admissibilidade de haver "falas do lugar" possíveis a um criador formado em determinados contextos, sobretudo quando se trata de espaços pós-coloniais, pluralizados pelos fluxos e tensões decorrentes de uma história de negociações socioculturais ainda em curso.

A questão, no entanto, se limita ao plano diegético das obras literárias - e, evidentemente, não se pode desprezar as realidades sócio-históricas, económicas e político-culturais dentre as quais os objetos literários se inserem. Em outras palavras, o fato de se questionar a validade científica do "lugar de fala", como atributo autoral na ficção, não impede (nem faz resistência a) o desenvolvimento de políticas de produção editorial com base em critérios identitários. Do ponto de vista sociológico, são válidas e importantes as políticas editoriais que incentivam a escrita de mulheres ou as coletâneas de autores negros, por exemplo, por ser necessária a afirmação de ações compensatórias ao fato de, durante muitos anos (e, em parte, até hoje), as mulheres e os negros terem sido privados de ascenderem aos cânones literários.

Existem ainda, proporcionalmente, no mercado editorial, menos autores negros (Damasceno) do que brancos. Além disso, as mulheres (Pécora) escritoras são menos lidas do que homens. Pesquisas recentes comprovam o disparate:

Após analisar 258 romances publicados por três grandes editoras entre 1990 e 2004, o estudo Literatura Brasileira Contemporânea - Um Território Contestado (Editora Horizonte/uERj) revelou que 93,9 % dos autores publicados eram brancos, 72 % do sexo masculino e 68 % residiam em São Paulo ou no Rio de Janeiro. (Damasceno §5)

O fenómeno aferido no mercado brasileiro de livros se reproduz mundo afora e pode ser comprovado no desproporcional prestígio que os escritores recebem da grande mídia. Em relação, por exemplo, às diferenças entre autores e autoras, observa-se no relatório anual norte-americano, conhecido como "vida Count", o seguinte dado:

No "London Review of Books", por exemplo, foram publicadas resenhas de 245 livros de autores masculinos e 72 de escritoras mulheres; no "New York Review of Books" foram 307 contra 80; na revista "The New Yorker", 436 contra 136; na "Paris Review", uma rara exceção: por um livro, as mulheres foram maioria. (Pécora §11)

Há, portanto, a urgência por uma política compensatória quanto à participação de mulheres e negros no mercado de produção editorial, como extensão da luta pela presença feminina e negra em todos os segmentos sociais. A grande questão é que isso não se deve confundir com a expectativa de uma projeção identitária ficcional, nem tanto pela impossibilidade de se pensar o depoimento da experiência pessoal pela via ficcional, mas definitivamente pela precariedade de aferição científica a respeito desse critério de avaliação da obra literária. Os autores seguem livres e multifacetados, produzindo uma arte que reproduz a incontinência de um sujeito criador em si mesmo, porque afinal - parafraseando Mia Couto - escrever é viajar para outros.

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1 O termo leitor maduro é de uso corrente entre os teóricos que avaliam a habilidade leitora. Segundo Marisa Lajolo, "leitor maduro é aquele para quem cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o que ele já leu, tornando mais profunda sua compreensão dos livros, das gentes e da vida" (53).

2A fonte em itálico foi utilizada para apontar um jogo: a linguagem criminal faz referência à utilização do termo morte, aqui repensado.

3O termo não se confunde com a figura de linguagem que permite a elíptica negação da mensagem, na forma pela qual o "dito" é o "não dito". Nas palavras de Lukács, a ironia está em "dizer por outro", preservando as intenções primárias a um universo oculto, que alguns poderão depreender nos subtextos, acessíveis apenas no aprofundado plano da exegese.

4"O discurso é socialmente construído [...], constituindo os sujeitos sociais, as relações sociais e os sistemas de conhecimento e crença, e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideológicos construtivos" (Fairclough 58).

5A questão da certificação identitária, evidentemente, não é simples, nem banal - seja na África ou em qualquer território pós-colonial. A complexa noção importa, inclusive, à discussão proposta neste artigo, mas será postergada para o trecho, adiante, em que se propõe discutir o identitarismo como um "pressuposto ficcional".

6Tem-se por base, neste ponto, a ideia de "paradigma estético", tão cara à obra de Félix Guattari.

7O teórico define, no livro O pensamento complexo, a árdua tarefa de lidar com conceitos ligados a grupamentos humanos, na medida em que "a totalidade é simultaneamente verdade e não verdade" (97).

8É notória a proximidade e inter-relação, nos centros acadêmicos, entre as pesquisas dedicadas aos estudos pós-coloniais e aos estudos de gênero e de raça. Tal fato justifica a menção ao "transbordamento" na abordagem referida.

9Sobre isso, destaca-se o "descentramento do sujeito" na teoria de Stuart Hall.

10Ver Pron.

11Fonte: notas pessoais durante o evento.

12As aspas apontam o termo referido por Benedict Anderson, em sua obra homónima, na qual o teórico afirma que há entre os membros de uma nação um ideário a respeito daquilo que se imagina como afinidade que os identifique.

Cómo citar este artículo (MLA): Brandão Mattos, Marcelo. "O 'lugar de fala' e as 'falas do lugar' na enunciação literária: o dilema pós-colonial". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 23, mim. 1, 2021, págs. 161-184.

Sobre el autor Doctor en Letras, con énfasis en Estudios Culturales, de la Universidade Federal Fluminense (UFF), donde también obtuvo la maestría en Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugués. Es profesor y coordinador de proyectos en el Curso de Perfeccionamiento del Lenguaje PALAVRA MÁGICA, donde desarrolla desde 1998 actividades pedagógicas orientadas al desarrollo de la producción escrita y habilitación de la lectura. Es autor de los libros Um banho de rio nos escritos e sobrescritos de Luandino Vieira (2012, publicado por EDUFF, seleccionado en un aviso público) y la novela Testamento-O livro de Ninguém (2016), de Ed. Chiado (Lisboa). Su tesis doctoral A geração da distopia: Representações da angolanidade na ficção contemporânea fue contemplada por FAPERJ (APQ3-2014) para su publicación. En 2019, fue aprobado en el concurso de la Universidad Estatal de Río de Janeiro (UERJ) para profesor asistente de Literatura Portuguesa y Literatura Africana en Portugués.

Recebido: 20 de Maio de 2020; Aceito: 04 de Setembro de 2020

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