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Literatura: Teoría, Historia, Crítica

versão impressa ISSN 0123-5931

Lit. teor. hist. crit. vol.23 no.1 Bogotá jan./jun. 2021  Epub 06-Abr-2021

https://doi.org/10.15446/lthc.v23n1.87671 

Artículos

O autor como autoridade: anonimato e mutações na ordem dos livros

El autor como autoridad: anonimato y cambios en el orden de los libros

The Author as Authority: Anonymity and Changes in the Order of Books

Marco Antônio Sousa Alves1 

1 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil marcofilosofia@ufmg.br


Resumo

Este artigo tem por objeto de investigação a produção do autor como autoridade nos séculos XIV e XV a partir das propostas de Foucault sobre a emergência da autoria moderna. Com base nos estudos de Roger Chartier, pretendemos retomar o projeto de uma genealogia do autor literário por meio de um recuo à cultura manuscrita do final da Idade Média e de uma ênfase na questão da materialidade discursiva. Abordaremos as transformações ocorridas na forma-livro e nas práticas medievais, amplamente marcadas pelo anonimato, em direção a novas formas propriamente modernas de criação, circulação, ordenação, apropriação e recepção dos discursos, centradas na função-autor.

Palavras-chave: anonimato; autoria; autoridade; Chartier; forma-livro; função-autor

Resumen

Este artículo investiga la producción del autor como una autoridad en los siglos XIV y XV basados en las propuestas de Foucault sobre el surgimiento de la autoría moderna. Con base en los estudios de Roger Chartier, retomamos el proyecto de una genealogía del autor literario a través de un retorno a la cultura manuscrita de la Baja Edad Media con énfasis en la materialidad discursiva. Nos ocuparemos de las transformaciones que ocurrieron en la forma-libro y en las prácticas medievales. Estando estas últimas en gran medida marcadas por el anonimato, seguiremos sus transformaciones hacia nuevas formas de creación, circulación, ordenación, apropiación y recepción de los discursos, centradas en la función-autor.

Palabras clave: anonimato; autoría; autoridad; Chartier; forma-libro; función-autor

Abstract

Starting from Foucault's proposals on the emergence of modern authorship, this article investigates the production of the author as an authority in the 14th and 15th centuries. Based on Roger Chartier, we intend to resume the project of a genealogy of the literary author through a return to the manuscript culture of the late Middle Ages making emphasis on discursive materiality. We will deal with the transformations that took place in the book form and in medieval practices, widely marked by anonymity towards new modern forms of creation, circulation, ordering, appropriation, and reception of discourse, centered on author function.

Keywords: anonymity; authorship; authority; Chartier; book form; author function

Introdução

AFIGURA DO AUTOR É OBJETO de intenso questionamento no seio da crítica e da teoria literária. Uma importante contribuição para essa questão foi dada por Michel Foucault na famosa conferência proferida em 1969 com o título "O que é um autor?" ["Qu'est-ce qu'un auteur?"]. O filósofo francês sustentou que a autoria tem lugar apenas em certas configurações discursivas de determinadas épocas e culturas. A literatura moderna, em sua expressão canónica ocidental, por exemplo, poderia ser considerada um universo discursivo desse tipo. Assim, "a função-autor é característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de determinados discursos no interior de uma sociedade" (Foucault, "Qu'est-ce" 826).1

Tornar-se autor ou assumir essa posição nem sempre é possível. Mesmo os textos que hoje chamamos de literários foram no passado colocados em circulação e valorizados sem qualquer associação ao nome de um autor (Foucault, "Qu'est-ce" 827). A figura autoral, portanto, emerge quando o discurso passa a ser organizado e controlado de determinada maneira, especificando o sujeito de certa forma. Além disso, ser autor ou funcionar como autor não é algo fixo e bem delimitado. Os infindáveis domínios e as constantes mudanças nas práticas de produção, inscrição, circulação e apropriação discursivas fazem com que a posição-autor esteja em constante mutação.

O processo de emergência da figura moderna de autor é algo extremamente complexo e envolve diferentes domínios e temporalidades. Podemos dizer que o autor aparece no século XVIII como proprietário, detentor de direitos patrimoniais e morais sobre sua obra. Antes disso, ao longo dos séculos XVI e XVII, o autor desponta como um possível transgressor, um indivíduo potencialmente herético ou sedicioso que precisava ser identificado e controlado, inserido em um sistema regulatório punitivista baseado na censura prévia e nos monopólios corporativos. E desde os séculos XIV e XV, antes mesmo da introdução da impressão na Europa, vemos o autor emergir como uma autoridade no seio de uma nova cultura, marcada por significativas mudanças nas práticas literárias e na materialidade discursiva. Podemos então afirmar que, desde o final do medievo, observamos uma tendência a conferir autoridade ao livro (codex) organizado em função de um autor. Em linhas gerais, a autoria, quando vista do ponto de vista das práticas discursivas, está ligada a formas de autoridade: ela ordena e confere valor ao que é dito ou escrito, destacando um fragmento de discurso ("a obra") do falatório do dia a dia.

Neste artigo, nosso olhar será direcionado para esse último acontecimento, qual seja, a emergência do autor como autoridade. Nosso foco será a figura do autor literário. Partimos aqui de uma tese sustentada pelo historiador Roger Chartier, de que a trajetória do autor nos primórdios da modernidade pode ser pensada como a progressiva atribuição aos textos em língua vulgar de um princípio de designação e de seleção que caracterizou, por muito tempo, apenas obras associadas a uma auctoritas antiga, que constituía um corpus incansavelmente citado, glosado e comentado (L'ordre des livres 66). Esse processo, contudo, não deve ser pensado como uma simples transferência, mas sim como uma radical refundação da relação de autoridade e do estatuto do autor.

Chartier retoma criticamente o projeto foucaultiano de uma genealogia do autor literário, indicando a necessidade de uma revisão e de uma ampliação da análise ("Table ronde" 581). Ele propõe que voltemos nosso olhar não apenas para a "ordem do discurso", mas também para a "ordem dos livros". Em suma, a aposta de Chartier é que uma nova forma do livro está ligada à emergência de novas posições-sujeito, de modo que a construção do autor é uma função não apenas do discurso, mas também de uma mudança no nível da materialidade. Somente o estudo da história do livro e das práticas editoriais permitiria ver como alterações no formato contribuíram para conferir uma nova visibilidade e valorização da figura do autor, que teria assumido, por sua vez, novos papeis e uma crescente importância e autoridade. Para levar adiante essa investigação, Chartier propõe também um recuo temporal da análise, para a Baixa Idade Média, ainda no seio da cultura manuscrita ("Qu'est-ce" 22-23). Em sua leitura, diferentes elementos convergiram para a construção bibliográfica, editorial e crítica do autor como autoridade, em um processo que encontra suas raízes ao menos desde o século XIV.

Seguindo as sugestões de Roger Chartier, pretendemos neste artigo analisar como a construção da autoria moderna está ligada a certas transformações ocorridas na forma-livro e na cultura escrita. Nesse sentido, primeiro trataremos da nova ordem dos livros emergente nos séculos XIV e XV, com destaque para o aparecimento dos livros unitários. Segundo, nosso foco será direcionado para as mudanças nas práticas literárias no que diz respeito ao anonimato, ressaltando também os novos procedimentos bibliográficos, as classificações e os catálogos centrados cada vez mais na figura do autor.

A nova ordem dos livros

Propomos iniciar nossa análise com base em alguns estudos em história do livro e sociologia dos textos. O campo de estudo de história do livro foi aberto na década de 1950 por Lucien Febvre e Henri-Jean Martin com a publicação de LApparition du livre. Esse estudo, assentado em tratamentos quantitativos de grandes séries e na atenção conferida à sociologia dos leitores, traça o caminho de uma história cultural e social, incluindo aspectos político-económicos e práticas culturais, de recepção, circulação e apropriação dos textos. Já a sociologia dos textos ou bibliografia histórica (historical bibliography) tem sua origem associada ao trabalho de D. F. McKenzie, que tinha por objetivo reconstruir a historicidade do processo de construção do sentido. Enquanto a bibliografia tradicional se limitava a comparar os manuscritos com as versões impressas, tomando um texto por autêntico, ou seja, por uma "obra original", segundo teria desejado o autor, a bibliografia proposta por McKenzie abandona a ideia de estabelecer uma "verdade do texto" baseada na intenção do autor, procurando, pelo contrário, considerar suas versões sucessivas e o modo como suas novas formas levaram a novos usos e significações (29).

A forma-livro, ou seja, o livro em cadernos ou códice (codex), tem, sem dúvida, uma longa história. A generalização do codex em substituição ao rolo (volumen) em papiro é um fenómeno dos séculos iii e iv e está intimamente ligado à cultura cristã (Cassagnes-Brouquet 49). Dentre os manuscritos mais antigos em codex que se tem conhecimento, temos, por exemplo, A cidade de Deus de Agostinho e o Codex Vaticanus, que traz o texto grego da Bíblia, ambos do século iv (Barbier 37-38).

É interessante observar como a cultura escrita manuscrita antiga ou medieval não concedia ao indivíduo que escrevia um papel determinante na organização dos escritos. Embora existissem livros unitários, de um único autor, eles eram a exceção, reservada a alguns clássicos da Antiguidade ou a poucos grandes pensadores cristãos. A regra geral de produção e circulação textual era marcada pela miscelânea, pela composição manuscrita determinada pelo interesse do leitor/copista, que tinha ampla liberdade para misturar, interpolar, comentar e alterar todo o texto, sem que nenhum "respeito aos autores" fosse devido. É essa cultura, marcada pela criação anónima, coletiva e aberta, que faz do livro um tecido instável de citações diversas, que passa por importantes transformações nos séculos XIV e XV.

A constatação que serve de base para as análises da materialidade discursiva é a de que não existe um discurso pairando fora de uma estrutura material específica, seja ela oral, manuscrita em rolos, impressa em livros ou digitalizada e exibida na tela de um computador ou de um smartphone. Chartier sustenta que é um equívoco a crença em uma obra que transcenda a todas as suas encarnações materiais, posto que nenhum texto existe fora das materialidades que o dão a ler ou ouvir. Cada forma de organização possui uma estrutura própria, que desempenha um papel importante na produção do sentido. Como dizia McKenzie, as formas materiais delimitam as compreensões desejadas ou possíveis: "as formas afetam o sentido" (forms effect meaning) (15). É inútil, portanto, tentar distinguir a "substância essencial da obra" (essentials), que permanece em qualquer materialidade, das "variações acidentais do texto" (accidentals), consideradas irrelevantes para sua significação (Chartier, Inscrever e apagar 13). Não existe, em suma, um "texto primeiro ou puro" (ideal copy text), que se situa antes ou além de suas múltiplas materialidades (Chartier, Inscrever e apagar 98).

O termo "ordem dos livros" (lordre des livres), cunhado por Chartier, visa apontar justamente para a importância desse elemento, complementando, de forma indissociável, aquilo que Foucault chamou de "ordem do discurso" (lordre du discours) (Chartier, Culture écrite 15; "Qu'est-ce" 23). Em parte, é preciso admitir que Foucault já havia percebido a importância da materialidade discursiva, chegando a dedicar alguns textos e uma parte de A arqueologia do saber ao tema. Em suma, Foucault já sustentava que a literatura estava ligada ao objeto-livro e à biblioteca, o que aponta para o fato de uma materialidade específica tornar perceptível a obra e o autor (ilarchéologie 131-138; "Le langage à l'infini" 282-289; "Le langage de l'espace" 439-440; "Littérature et langage" 102).

Apesar disso, Chartier considera que é preciso ir além e aprofundar essa dimensão. Nesse sentido, a "ordem dos livros" designa as operações múltiplas que tornam possível uma determinada "ordenação" (mise en ordre) do mundo do escrito: o inventário de títulos, a classificação das obras, a atribuição dos textos, entre outros elementos. Além disso, a ordem dos livros designa a disciplina que o texto pretende impor ao leitor. A forma-livro comanda, em razão de sua materialidade mesma, a possível apropriação dos discursos, ainda que ao leitor caiba sempre certa liberdade ou possibilidade de inventar e transgredir o que está imposto. Todo escrito impõe uma ordem, uma postura, uma atitude de leitura, que pode ser inscrita em seus dispositivos ou mesmo explicitamente afirmada, como vemos, muitas vezes, nos prefácios das obras modernas. Ler um rolo, por exemplo, é bem diferente de ler um livro ou um e-book, em termos de identificação da obra e de práticas intelectuais possíveis.

E é preciso reconhecer que a história do livro está imbricada com a história das práticas de leitura. Ler, aliás, é algo extremamente complexo e variável. Como ressalta o historiador norte-americano Robert Darnton, "a história da leitura pode ser tão complexa quanto a história do pensamento"2 (216-217). Tradicionalmente, na Antiguidade e no Medievo, a leitura era oral e pública. No foro privado, prevalecia a leitura intensiva, laboriosa, comunal e respeitosa de poucos textos, o que convidava a uma relação distinta com o que era lido, envolvendo certas práticas de memorização, apropriação e anotações. Os livros manuscritos medievais, por exemplo, são em geral obras raras, de luxo, em pergaminho fino e com iluminuras douradas extraordinariamente bem trabalhadas, guardadas com cuidado e tomadas no mesmo nível das pratarias ou porcelanas preciosas.

A partir do século xiii, a leitura silenciosa difundiu-se no mundo universitário e, no século xiv, essa prática se alastrou para as aristocracias laicas (Chartier, "Do livro à leitura" 82). O modelo monástico é substituído aos poucos pelo escolástico, que fez do livro um instrumento diário de trabalho intelectual. O livro no seio das Universidades é já um objeto diferente por completo, expressão de outra civilização, o que fica visível nos novos formatos.

Passa-se do in folio para formatos menores e mais facilmente manuseáveis. Vemos também uma nova caligrafia, preferencialmente o gótico minúsculo, de redação mais rápida. Os ornamentos perdem espaço e as miniaturas passam a ser produzidas em série. Ao invés de bens de luxo, os livros se tornam instrumentos, objetos pré-industriais e comerciais (Le Goff 95-97).

Salta aos olhos a diferença entre um livro medieval, com suas iluminuras luxuosas e grandes formatos, e os livros renascentistas dos novos humanistas dos séculos XIV e XV. As mudanças na forma são ilustrativas de algumas importantes transformações em curso no seio da cultura escrita. O caractere romano, e posteriormente o itálico, por exemplo, encarna bem o novo "espírito humanista". Seu uso começa com os italianos que desejavam conferir aos textos antigos uma apresentação material mais próxima do "original", como vemos em Petrarca. A escrita gótica medieval passa então a ser vista como uma traição ao espírito clássico (Febvre e Martin 116; Barbier 106).

Esse uso ilustra materialmente uma diferença em termos de recepção e valorização na cultura renascentista, que tendia ainda a conceder apenas aos Antigos a condição de verdadeiros Auctores. A partir do século XV e XVI, muitos textos em língua vulgar, até então escritos em gótico, passam a utilizar o romano ou itálico, o que parece ilustrar, mais uma vez, esse processo de transferência da auctoritas dos antigos para os "novos autores" (Febvre e Martin 120-121). Nesse sentido, é interessante observar que os papeleiros/livreiros renascentistas (cartolai) retiravam padrões de moedas ou medalhas da Antiguidade para conferir aos ornamentos dos livros um ar clássico, sendo também frequente a presença de desenhos classicizantes.

Na modernidade, a leitura já possui uma nova significação, passando a ser eminentemente extensiva, especializada, em geral em silêncio e solitária, capaz de lidar com as complexas relações estabelecidas na página do manuscrito entre o discurso e suas interpretações, referências, comentários e índices (Chartier, "As revoluções da leitura" 23-24). A isso, a impressão acrescentou o acesso a um grande número de livros. A prática tradicional de ler e reler, memorizar e recitar, foi substituída por uma leitura rápida e ávida. Essa mudança marca uma dessacralização da palavra escrita e uma nova relação com o discurso, com a emergência de uma função-autor propriamente moderna (Réach-Ngô 333-334).

A manifestação mais imediata e material de atribuição de um discurso a um autor reside na identidade entre uma unidade textual, a obra, e uma unidade codiológica, o livro. Segundo Chartier, isso estava longe de ser a regra nas produções em língua vulgar até o século XIV (L'ordre des livres 63). Não havia, de certa maneira, uma materialidade que tornasse o exercício da função-autor perceptível ou mesmo possível. Se havia alguma função exercida, por exemplo, nos livros de miscelâneas, tratava-se da função-leitor ou da função-copista (Chartier, "Qu'est-ce" 22).

Os livros manuscritos renascentistas de lugares-comuns poéticos, por exemplo, eram compostos de poemas de diversas fontes, sem atribuição de autoria, em geral passíveis de serem complementados ou alterados pelos próprios leitores. Nomes próprios por vezes apareciam, mas com outras funções: indicar o compilador, copista ou interpolador, nomear aquele a quem determinado poema se dirigia, entre outras funções. Ou seja, a indicação dos nomes não tinha o objetivo de se referir às fontes ou à autoria dos textos, mas a diferentes finalidades no seio de outras estratégias de escrita e leitura. Com certeza, um leitor daquela época tinha uma postura muito diferente diante desses textos, sem buscar o autor por trás deles (Thomas 401-402). Compor, no seio dessa cultura escrita, significava, sobretudo, juntar textos diversos, produzir algo por meio de um novo arranjo. Mais do que um autor em sentido moderno, temos um compositor de textos, que se apresenta comumente como um leitor e comentador que flana por diversos escritos (Knight 3-11).

Algo dessa ordem ocorre no libro-zibaldone, que era a forma dominante do livro manuscrito renascentista italiano: em letra cursiva, sem ornamentos, copiados pelos próprios leitores, sem ordem aparente e misturando textos de naturezas muito diversas, em prosa e em verso, de devoção ou técnicos. Nessa prática, a ausência do exercício da função-autor moderna fica evidente. Em seu lugar, outras figuras assumem uma posição central, como o produtor ou destinatário. A constituição de coleções ocorria geralmente sem nenhuma atribuição individual das obras, como, por exemplo, nas sententiae, nos provérbios, nos exempla, nas fábulas e nas novelas. São como álbuns abertos, uma coleção de extratos em forma de antologia, que tem no anonimato uma de suas características (Chartier, L'ordre des livres 63-4).

É apenas aos poucos, em determinados domínios e contextos, que os livros unitários ganham mais espaço, fazendo com que alguns indivíduos que escreviam, ainda no seio da cultura manuscrita dos séculos XIV e xv, passassem a gozar da mesma dignidade codiológica antes concedida apenas às antigas auctoritates. Cada vez mais se estabelece uma unidade entre o objeto-livro e a obra, no sentido de um conjunto de textos produzidos por uma mesma pessoa. Apesar das oscilações presentes nesse movimento, o crescimento em importância do autor como princípio organizador na cultura escrita do final da Idade Média é indiscutível, dando início a um processo que, em pouco tempo, dará origem à publicação das "obras completas" (opera omnia) e ao culto à forma original. Resumindo, cito Chartier:

A partir desse momento, uma forte unidade estabelece-se entre a materialidade do livro e a singularidade da obra, que aponta para uma mesma identidade, a do autor. Creio que há um enraizamento profundo do autor nessa revolução da concepção e da prática do livro nos dois últimos séculos do manuscrito. Temos aqui uma matriz, um suporte para que a função-autor seja perceptível, manejável e mobilizável enquanto princípio de percepção, de identificação e de atribuição das obras.3 ("Qu'est-ce" 22)

Uma maneira de verificar essa transformação é através da análise das capas ou das páginas de título dos livros. A página de título tipicamente moderna, apresentando o "estado civil" da obra, com o nome do autor, do editor, o título e a data, torna-se comum somente a partir do século xvi, quando outro elemento também aparece: o frontispício, com ilustrações e, frequentemente, o retrato do autor. Na cultura manuscrita medieval, ao invés de uma página de título, o mais comum era a simples indicação de que "aqui começa" (incipit). Nos primeiros livros impressos também não havia uma página de título ou de rosto e, como era comum na cultura manuscrita, o texto começava normalmente após uma breve fórmula que apresentava o assunto da obra e, por vezes, o nome de seu autor, que geralmente vinha apenas ao final, no colofão, junto com outras informações. Ou seja, no século xv, embora o nome do autor já passasse a ser muitas vezes indicado, isso não significa que tivesse grande visibilidade e importância (Febvre e Martin 122; Barbier 199-200).

As transformações na percepção da função-autor encontram nas expressões imagéticas, em particular nos retratos, uma clara manifestação. Cada vez mais o indivíduo que escreve deixa de ser representado como um mero escrevente possuído por uma espécie de inspiração sobrenatural, no seio de uma estratégia de fundo mítico ou religioso para se conferir autoridade ao texto. Encontramos, a partir do século XIV, principalmente os seguintes padrões de representação do autor: como professor ou pregador, diante de seus alunos ou ouvintes, como leitor e escrevente, ou como protegido de algum grande homem, oferecendo seu livro ajoelhado ao seu protetor. Algumas importantes figuras dos séculos XIV e XV, como Dante, Petrarca, Boccacio, Cristina de Pisano ou Jean Froissart, são com frequência representadas em miniaturas, no interior dos manuscritos, dotadas de atributos que até então eram reservados apenas aos auctores clássicos (Chartier, A aventura do livro 31-32).

O anonimato nas práticas literárias

Nesta segunda parte do artigo, pretendemos realizar um pequeno excurso pela experiência medieval de escrita e criação intelectual para melhor compreender as transformações que marcaram os séculos xiv e xv. Nossa intenção, nas observações a seguir, consiste em tentar apresentar um quadro geral, eliminando alguns equívocos e apontando para certas experiências.

Em primeiro lugar, não devemos ver o medievo como uma época longa e indiferenciada. A Baixa Idade Média, por exemplo, apresenta uma cultura escrita ampla e sofisticada, muito diversa do velho feudalismo. Essas complexas mudanças fazem com que o advento da modernidade deva ser também pensado de forma múltipla e gradual. O mesmo vale, no interior desse processo, para a emergência do autor moderno.

É importante, assim, ter em mente que as posições-sujeito medievais não eram homogéneas ou monolíticas (Zumthor 130; Bombart 123). Pelo contrário, elas são abundantes em tipos, graus, propriedades e aspectos, ao relacionar diferentes sistemas de classificação, variáveis no tempo e em função de práticas diversas, como, por exemplo, a esfera universitária, o comentário bíblico, aristotélico e jurídico ou o domínio literário, que será nosso foco aqui. Apesar dessa complexidade, é preciso abandonar a ideia de que a noção de "autor" na Idade Média era mais vaga que hoje. Ao contrário, tínhamos noções bastante precisas, com diferentes tarefas, funções próprias e denominações específicas.

Também é preciso eliminar a confusão entre anonimato e falta de originalidade, como se apenas na modernidade o indivíduo original e a criatividade humana tivessem tido condições de aflorar e romper com as amarras da tradição e com as fórmulas retóricas (Chartier, "Table ronde" 569-87). Os historiadores julgaram, por muito tempo, a criação medieval, envolvendo os fenómenos recorrentes da glosa, da continuidade, dos empréstimos e do anonimato, segundo critérios modernos anacrónicos e reducionistas. Assim, os escritores medievais eram vistos como "menores", denunciados como plagiários ou falsários, estigmatizados como populares e sem originalidade. Buscava-se, ainda, a todo custo, encontrar os "verdadeiros autores", os criadores originais que estariam escondidos em algum lugar no meio da confusão medieval. A contragosto, historiadores viam-se, muitas vezes, obrigados a atribuir determinada "obra" a uma escola ou ateliê, como se alguma informação importante tivesse escapado e ainda restasse por ser encontrada: a descoberta do autor. O anonimato era, em suma, um problema a ser resolvido, algo embaraçoso para os novos estudos. Em linhas gerais, os olhos modernos tenderam a ver nas "trevas medievais" um período no qual o homem não conseguiu desenvolver adequadamente sua individualidade e força criativa.

Essa "atitude moderna" obstruiu, em grande medida, a análise das criações medievais e obscureceu sua recepção, sem que se atentasse para as condições históricas de sua elaboração. É preciso reconsiderar os julgamentos modernos, rever os conceitos empregados, como a autoria, e jogar uma nova luz sobre práticas que foram normalmente negligenciadas ou desvalorizadas. Curiosamente, essa percepção de que o medievo era caracterizado por uma cultura escrita distinta fica ainda mais nítida hoje em dia, quando a cultura impressa moderna passa por uma significava reformulação. A internet e o meio digital fazem renascer práticas que marcaram, de certa forma, a ordem medieval, como o anonimato, a fragmentação e as colagens e apropriações, em um novo contexto, em outra escala, como novos instrumentos e com significados e funções muito distintos.

Para compreender a natureza distinta das práticas literárias medievais, vejamos o caso do plágio. O empréstimo característico da cultura escrita medieval deve ser visto como herança assumida. O fenómeno medieval da reescrita, que foi pejorativamente tomado como plágio, aproxima-se da técnica alusiva antiga dos poetas latinos, como vemos na Eneida de Virgílio ou nas Metamorfoses de Horácio, que consistia em reproduzir, alterando ligeiramente e sem qualquer citação, os versos ou fragmentos de obras de alguém que se admirava (Mora 223). O recurso constante às autoridades clássicas e cristãs, além da lógica da proteção eclesiástica ou nobre, não deve ser visto como uma submissão medrosa e oportunista, mas sim como uma cultura diferente, com um sistema distinto de criação e atribuição de autoridade. A "obra" medieval, percebida como uma criação em geral contínua, coletiva, aberta e anónima, faz intervir outras entidades. Ao invés do autor, temos como fonte o ateliê, a escola, o scriptorium ou a chancellerie, responsáveis por realizações como enciclopédias, florilégios, coleções, ciclos romanescos e todo tipo de montagens e colagens.

Um elemento comumente acentuado quando se fala na cultura manuscrita medieval é a instabilidade textual. Na reprodução oral ou manuscrita, há, simultaneamente, concorrência e continuidade entre a produção (criação), a transmissão (cópia, recitação ou canto) e o consumo (leitura ou audição). De acordo com o linguista e medievalista suíço Paul Zumthor, é possível considerar que, no limite, na cultura manuscrita, todo exemplar é uma versão, toda edição uma variação e toda reprodução uma produção (91-92). Diante dessa instabilidade quanto à origem, o trabalho anónimo da reprodução tende a prevalecer culturalmente sobre o evento que poderia ser a criação, onde poderia se situar a autoria. Em razão disso, é comum se associar o advento do autor moderno à "invenção" de Gutenberg da prensa tipográfica. A impressão, de fato, tende a reduzir as variantes textuais, estabilizando o texto e favorecendo, assim, a constituição de um produto padrão, uma obra fixada. Apesar disso, é preciso reconhecer que, ainda no seio da cultura manuscrita do final da Idade Média, já encontramos uma clara preocupação com a estabilização textual e o desenvolvimento de diferentes dispositivos voltados para esse fim.

Uma prática que ilustra bem a instabilidade textual medieval é a escrita continuada, segundo a "técnica do empilhamento" (technique de lemboitement). Um texto literário medieval é geralmente um simples episódio imerso em uma grande narrativa, uma estória anónima que forma um ciclo, com frequência identificado pelo nome do herói principal, como Tristão e Isolda, Lancelot e Perceval, ou pelo fio condutor da intriga, como A busca do Cálice Sagrado. As narrativas não possuem um início determinado nem um verdadeiro fim, de modo que os limites da narrativa não correspondem aos contornos de uma "obra". E também não temos propriamente um "autor", mas antes um "continuador".

Como nos mostra Roger Dragonetti, em La vie de la lettre au Moyen Âge, livro dedicado ao estudo do ciclo de estórias do Santo Graal, podemos encontrar nessa massa textual vários continuadores, geralmente anónimos, em meio a alguns nomes identificáveis, como Chrétien de Troyes, Wauchier, Manessier, Gebert de Montreuil, Robert de Boron e Wolfram d'Eschenbach. Eles partem de versões diferentes e dão origem a um complexo emaranhado de narrativas. Ao invés de obras, seria mais adequado dizer que temos diversos "conjuntos textuais" (ensembles textuels). Em suma, prevalece, nos ciclos medievais, a "autarquia da Narrativa" (l'autarcie du Récit): para além das assinaturas múltiplas e incertas, é o romance que tece ele mesmo sua trama nunca acabada de aventuras, para além dos autores/transmissores/ continuadores (Dragonetti 29-30). Mais do que o senhor ou o pai de uma criação, o narrador das estórias está a serviço do herói e de suas aventuras, de modo que as estórias, de certa forma, aparentam transcender aos seus "autores" (Leclerc 212-222).

Outro exemplo nesse sentido é Le roman de la rose, uma das narrativas alegóricas mais célebres da França medieval, que teria sido iniciada por Guillaume de Lorris e finalizada por Jean de Meung por volta de 1270, mais de quarenta anos depois. Sobre a vida desses indivíduos, praticamente nada sabemos (Pomel 106). Já Lancelot, romance "sem autor conhecido", escrito entre 1220 e 1225, faz parte do mesmo ciclo de estórias do Graal, do rei Artur, de Perceval e de Merlin. A própria constituição desse romance como uma "obra" é fruto de muito esforço das edições críticas modernas, na tentativa de se conferir alguma unidade estilística e temática entre os diversos manuscritos e fragmentos que chegaram até nós (Micha 9-27).

Nessa prática de escrita, nenhum continuador da estória reivindica qualquer originalidade propriamente dita. Ao invés de uma associação direta entre autor e obra, é como se a criação estivesse sempre aquém ou além do criador. Como se a estória preexistisse à obra, fosse maior que ela, e como se o autor fosse, assim, uma simples testemunha de uma parte ou fragmento do todo. Assim, ao invés de uma obra autoral, temos uma unidade complexa, em especial movente, mas facilmente reconhecível, que constitui a coletividade das versões, a síntese de sucessivas colaborações. A "obra", assim concebida, é por definição dinâmica: ela cresce, transforma-se e declina (Zumthor 93-94). Essa característica é visível na ausência de título em grande parte das "obras" medievais, tendo sido os títulos que hoje conhecemos em geral atribuídos posteriormente, pelos editores modernos.

Um caso que ilustra bem isso envolve aquele que é considerado o maior escritor medieval francês: Chrétien de Troyes ou Crestiens de Troies. Não dispomos de nenhuma informação biográfica a seu respeito, mas se acredita que sua produção se situa entre 1160 e 1190, sendo a ele atribuídas "obras" como Érec et Énide (1170), Lancelot ou le Chevalier de la Charrette (1174) e Perceval ou le Conte du Graal (1181-1190). Logo de início, é importante observar que nenhuma linha escrita pela mão de Chrétien chegou até nós. Ao invés de uma origem autográfica, temos uma tradição manuscrita de cópias, quase totalmente anónimas, o que formou um conjunto de manuscritos que pertencem a épocas e lugares diferentes e foram agrupadas em torno de um nome. Mais do que um indivíduo, esse nome serve para se referir a uma tradição narrativa, no seio da qual os indivíduos escreventes tendem a desaparecer no trabalho indiferenciado, misturado e disparate dos copistas, todos mais ou menos "autores".

Ao se mostrar nominalmente no interior das estórias narradas, Chrétien não se apresenta como um autor, segundo a retórica moderna da criação, mas sim como um "fazedor" (faiseõr) de textos, alguém que realiza alguns "remanejamentos" (remaniements) a partir daquilo que lhe foi legado (Dragonetti 50-51). De maneira geral, suas narrativas não têm um início claro e nem um final. Ele diz apenas que leu ou escutou falar, sem propriamente "inventar" nada, como vemos na seguinte advertência ao final de Ivain, o cavaleiro do Leão: "Chrétien termina aqui o romance Cavaleiro do Leão, pois ele mais nada escutou contar. Não se quer acrescentar mentiras. Sobre isso, mais nada direi" (Troies 280). Essa advertência deixa entrever que a pura invenção era malvista nesse contexto cultural, assimilada à mentira, à negação da Tradição.

É interessante perceber que, quando dois indivíduos narravam uma mesma estória, a crítica, que por vezes um fazia ao outro, não era de plágio ou de apropriação da criação de outrem, mas sim de desrespeito à tradição. De acordo com o sociólogo da cultura francês Gérard Leclerc, ao invés do plágio, era o apócrifo, ou o desvio em relação à tradição, que era tomado como uma prática condenável (115). Enquanto o plágio é uma inflação de enunciadores visando a autoria, o apócrifo é uma inflação dos enunciados em uma massa institucionalmente restrita e estável de auctoritates. Se no plágio temos uma reivindicação ilegítima de autoria e de autoridade, no apócrifo temos uma desindividualização ilegítima do texto, na tentativa de inseri-lo em uma respeitosa tradição anónima. No primeiro caso, temos um mero copista que se apresenta como o verdadeiro autor. No segundo caso, temos um "autor" que se passa por mero copista. Em suma, o apócrifo é uma prática enunciativa comum a uma cultura centrada na tradição, como a medieval, na qual os falsários, ao invés de colocarem seus nomes nos discursos alheios, procuram apagar seus nomes e alargar o campo enunciativo da tradição indevidamente, ou seja, sem ter autoridade para tal. O que está em jogo são dois regimes de enunciação ou culturas do escrito distintas, com suas formas de atribuição de autoridade e seus respectivos desvios.

Foi assim que, por exemplo, por volta de 1210, Wolfram von Eschenbach agiu ao acusar Chrétien de Troyes de ter transmitido uma versão apócrifa, falsa e inautêntica da história dos filhos de Perceval. Em sua defesa, Wolfram ressaltou o respeito à tradição, dizendo estar baseado em uma versão manuscrita abandonada, em árabe, encontrada em Toledo, afirmando também nada ter inventado ou acrescentado à verdadeira história (Eschenbach 89). Esse debate deixa claro que, embora os nomes dos indivíduos que narram as estórias sejam mencionados (Chrétien de Troyes ou Wolfram von Eschenbach), eles não reivindicam qualquer originalidade ou criatividade, o que era inclusive visto como mentira. Em suma, não se trata aqui de uma afirmação autoral em sentido moderno, mas sim do exercício de outras funções, como testemunha ou transmissor da tradição. Podemos, sem dúvida, dizer que já havia a assinatura de um "autor", mas desde que tomemos o sentido dessa "autoria" de forma bem diferente daquilo que ela virá a significar na modernidade (Leclerc 214; Zumthor 88-9).

Para entender como se deu a transição do anonimato medieval para a autoria moderna, é de grande importância olhar para as formas de classificação e ordenação dos discursos. A instabilidade textual e as diferentes práticas de produção intelectual encontram nelas uma clara repercussão. A atribuição de um autor a uma massa discursiva específica permite agrupar, juntar certos escritos, delimitar e distinguir alguns textos de outros, conformando aquilo que chamamos de uma "obra", de modo a fazer a autoria exercer uma função classificatória, que envolve seleção, delimitação e exclusão. O nome do autor funciona, a partir da modernidade, como um mecanismo que permite unificar um feixe de discursos, conferindo-lhes um lugar e uma forma de existência. É nesse sentido que Foucault afirma que o autor funciona como um procedimento de rarefação que visa dominar a inquietante proliferação dos discursos (L'ordre du discours 31).

Embora nomes de autores sejam atribuídos a textos desde há muito tempo, é preciso analisar qual a função exercida por eles. Nem sempre a mera presença de um nome ou de uma assinatura em um texto possui o mesmo significado. A criação autoral moderna implica, em suma, uma forma de enunciação historicamente situada e que não se confunde com outras enunciações ordinárias. A assinatura do autor funciona, portanto, como uma espécie de conversor (shifter), algo que, quando inserido, muda a posição e o estatuto da enunciação. Em certo sentido, todo indivíduo é "autor" de suas falas e todo escritor é o "autor" de seus textos. Mas, em sentido próprio, a cultura moderna reserva um estatuto próprio ao autor. O nome do autor moderno, na capa de um livro, implica a assinatura de uma obra (uma massa textual específica) e não simplesmente a assunção de um ato ou de uma palavra (uma marca que identifica um feito), como a assinatura de uma carta, que confere autenticidade, ou de um contrato, que implica em assumir responsabilidades jurídicas específicas. A assinatura da obra ou o "selo ou marca autoral" (le sceau de l'auteur), é algo característico da cultura escrita moderna (Leclerc 37-8). E, nesse sentido, a literatura moderna, em grande medida, é uma coleção de opera omnia, muito distante do corpus medieval de textos incircunscritos e anónimos.

A obra autoral é dotada de um estatuto mais nobre, distinto da fala ordinária, algo que merece ser preservado em bibliotecas e respeitado em sua integridade. A autoria confere um valor ao texto, que varia em função da natureza ou do suporte. Mas, de maneira geral, a identificação autoral confere um ar de nobreza ao texto, um estatuto mais digno de confiança e de respeito, que exige, por exemplo, uma leitura mais detida e um trabalho hermenêutico específico. Em suma, o autor funciona como um mecanismo de enobrecimento do discurso, atribuindo certo valor e impondo uma forma de recepção. Podemos chamar essa característica do funcionamento moderno da autoria de função nobilitante, que se insere no seio de uma função mais geral de classificação do discurso a partir da referência ao nome do autor.

A associação de um nome de um indivíduo a um texto funciona como a atribuição de uma autoria quando ela desempenha determinadas funções, como a classificatória. Na cultura manuscrita medieval, nomes de autores por vezes apareciam, sobretudo no interior da narrativa ou no colofão ao final, mas a elaboração de catálogos e bibliografias, relacionando autores e obras, era algo demasiado raro. De maneira geral, apenas a partir do século xiv começam a aparecer listas de "obras" contemporâneas com os "autores" identificados (Febvre e Martin 368; Hobbins 25).

Embora a elaboração de listas e de catálogos biobibliográficos seja algo muito antigo, associado à cultura do escrito desde a construção das coleções dos faraós ou das Bibliotecas de Alexandria e de Pérgamo, a função e a importância conferida ao nome do autor sofreram grandes transformações (Jacob, "Ler para escrever" 51). Por exemplo, Ateneu de Náucratis escreveu no século ii o Banquete dos sábios (Deipnosofistas), no qual identificou os escritos pela origem geográfica, pelo gênero literário, pelo campo do saber e pelo pertencimento a uma escola filosófica (eventualmente indicando seu mestre), estabelecendo o paradigma da literatura erudita e compilatória da época imperial (Jacob, "La construction de l'auteur" 130-134). Esses casos antigos, contudo, não devem ser vistos como antecedentes das "mesmas" práticas de classificação e ordenação bibliográficas tipicamente modernas. Ainda que o nome do "autor" apareça e que não reste dúvida de como os Antigos reverenciavam os grandes mestres, fundadores de escolas de pensamento ou de tradições literárias, é preciso deixar claro que essa presença do nome não tem a mesma função que vemos na indexação autoral típica da bibliografia moderna.

Com certeza, o critério bibliográfico autoral não é algo absolutamente novo, que só veio a existir na modernidade. O que é novo, contudo, é a importância que esse critério passará a ter e a maneira como ele será articulado com os demais critérios, como o cronológico, temático, geográfico ou material. O que antes era, na maior parte das vezes, apenas mais um dado, em geral, menos importante que a organização temática, torna-se algo central nas práticas modernas, cuja ausência chega a provocar certo embaraço e a estabelecer um grande obstáculo para o estudo crítico, científico ou filosófico.

Essa ênfase moderna fica visível na bibliografia moderna e em seus critérios sistemáticos de ordenação do impresso, que conferem um lugar central ao autor (Estivals 75). Os fichários modernos, diferentemente das ordenações antigas ou medievais (bibliotheca, index, inventarium, repertorium ou catalogus), não refletem de maneira idiossincrática o gosto ou as práticas de determinado intelectual ou bibliotecário (Eisenstein 81). Por exemplo, a Bibliotheca universalis, de Conrad Gesner, publicada em Zurich em 1545, faz um recenseamento da produção intelectual até então, incluindo cerca de doze mil títulos e mais de três mil autores classificados. Nela, o nome do autor aparece como um operador de indexação (no início o prenome, e geralmente classificados por categorias) (Barbier 127). Na França, temos a Bibliothèque du sieur La Croix du Maine, de 1584, e La bibliothèque d'Antoine Verdier, de 1585, que são catálogos em língua vulgar, organizados pelos primeiros nomes dos autores, listados em ordem alfabética (Chartier, Lordre des livres 50-51). Cerca de um século depois, em 1674, um erudito alemão chamado Vincentius Placcius levou adiante em Hamburgo um projeto intitulado De scriptis et scriptoribus anonymis etpseudonymis syntagma, que ilustra bem a nova imposição do critério autoral de ordenação: trata-se de uma obra bibliográfica que pretende "desvelar" o nome dos autores de obras publicadas anonimamente ou sob pseudónimo.

Com a constituição desse novo saber bibliográfico, pretensamente objetivo, os critérios que organizavam a cultura escrita passaram a ser controlados "cientificamente". E nossas práticas intelectuais, em grande medida, passaram a refletir essa nova ordenação, reproduzindo suas noções e fazendo, por exemplo, com que a função-autor moderna passasse a ser exercida de maneira quase hegemónica. Mais do que catálogos organizados em função do nome do autor, as bibliotecas passam a realizar, sobretudo no século XVIII, uma verdadeira pesquisa do estado civil das obras, levantando uma série de informações sobre a pessoa do autor e sua vida: datas biográficas, nacionalidade, língua, títulos, profissão, vínculos institucionais, entre outros dados (Bermann 196).

Considerações finais

Sem dúvida não é correto afirmar que a relação entre autoria e autoridade é algo apenas moderno. A própria proximidade etimológica entre esses vocábulos, presente em vários idiomas (autoria/autoridade, auctor/auctoritas, authorshiplauthority, auctorialité/autorité), indica uma raiz histórica mais profunda. O escrevente medieval, por exemplo, responsável pela cópia manuscrita de textos em geral sagrados ou antigos, também gozava de alguma autoridade. Mas, ao contrário dos novos autores modernos, tratava-se de uma autoridade apenas veicular, como um tradutor, uma espécie de medium das auctoritates (Ross 232-233). A autoridade dos grandes espíritos do passado era, na cultura medieval, tomada como a própria expressão da verdade: ipse dixit, ergo vero (Minnis 10). O que vemos a partir do final da Idade Média é uma nova articulação que confere uma inédita autoridade ao autor.

Neste artigo, procuramos analisar esse processo seguindo a via aberta por Roger Chartier, explorando as transformações na forma-livro e nas práticas literárias ainda na cultura manuscrita europeia dos séculos XIV e XV. Nosso foco se dirigiu em especial para o domínio da literatura, com destaque, primeiro, para os novos livros unitários de escritores renascentistas com inspiração classicizante e, em seguida, para o processo de transição das práticas literárias medievais, amplamente marcadas pelo anonimato, em direção às formas propriamente modernas de criação, circulação, ordenação, classificação, apropriação e recepção dos discursos, centradas na função-autor.

Entender a emergência do autor moderno como uma autoridade com traços próprios é um desafio que ganha um novo sentido atualmente, marcados por uma intensa transformação na cultura escrita, nos suportes físicos e na organização e circulação textual. Mudanças dessa natureza são frequentemente acompanhadas por um sentimento de temor, pelo medo da perda, do esquecimento e do caos. Talvez o ponto central dessa apreensão seja a questão da autoridade. Sem dúvida, a desordem discursiva e a perda dos critérios estabelecidos de autoridade possuem uma dimensão assustadora. A internet, de certa forma, suscita o medo de vermos nossas palavras soltas ao vento, sem origem reconhecível, perdendo-se em um ambiente aleatório no qual nossos critérios de diferenciação, valorização e atribuição de autoridade não mais funcionam, assim como se mostram inaplicáveis nossos mecanismos de controle, de apropriação civil e de uso comercial. Ou seja, o discurso parece perder seu valor, seja como bem cultural ou saber produzido com alguma garantia, seja como bem económico. Nesse sentido, ao refletir sobre a emergência do autor como autoridade, este artigo não nasce de um desejo vazio de erudição, mas sim de uma inquietação contemporânea. Pretendemos realizar aqui um estudo de natureza genealógica, uma "história do presente" como disse Foucault, ou seja, uma história do passado nos termos do presente, a partir das questões urgentes de nosso tempo (Surveiller et punir 39-40).

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1Todas as citações dos textos consultados em outros idiomas são traduções do autor. No original: "La fonction auteur est donc caractéristique du mode d'existence, de circulation et de fonctionnement de certains discours à l'intérieur d'une société".

2 Na versão francesa consultada: "l'histoire de la lecture peut être aussi complexe que l'histoire de la pensée".

3No original: "À partir de ce moment-là, une unité forte s'établit entre la matérialité du livre et la singularité de l'œuvre rapporté à une même identité, celle de l'auteur. Je crois qu'il y a un enracinement profond de l'auteur dans cette révolution de la conception et de la pratique du livre dans les deux derniers siècles du manuscrit. Il y a là comme une matrice, un support, pour que soit perceptible, maniable, mobilisable, la fonction auteur en tant que principe de perception, d'identification et d'assignation des œuvres".

Cómo citar este artículo (MLA): Sousa Alves, Marco Antônio. "O autor como autoridade: anonimato e mutações na ordem dos livros". Literatura: teoría, historia, crítica, vol. 23, mim. 1, 2021, págs. 185-208.

Sobre o autor Profesor adjunto de Filosofía del Derecho de la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG). Miembro titular del Programa de Posgrado en Derecho (PPGD / UFMG). Doctor en Filosofía por la UFMG en 2014, con prácticas de investigación en la École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS / París). Fue investigador postdoctoral (PNPD / CAPES) en el Programa de Posgrado en Filosofía de la UFMG de 2014 a 2017.

Recebido: 27 de Maio de 2020; Aceito: 04 de Setembro de 2020

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