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Revista de Estudios Sociales

versión impresa ISSN 0123-885X

rev.estud.soc.  n.22 Bogotá sep./dic. 2005

 

Tecnologia e arte contemporânea: como politizar o debate

Arlindo Machado*

* Doctor en Comunicación y Semiótica de la PUC, Sao Paulo. Profesor del Departamento de Cine, Rádio e Televisión de la Universidad de São Paulo e del Programa de Pós-Graduación en Semiótica de la PUC-SP. Su campo de investigación va desde las imágenes técnicamente mediadas -fotografía, cine, vídeo y TV-, hasta las “poéticas técnicas”, que emergen en la compleja relación actual entre arte y técnica, habiendo sido curador pionero de exposiciones que exploran el desarrollo del arte eletrônica en Brasil y director de trabajos multimedia. Ha publicado libros claves en este campo, como: A Arte do Vídeo (São Paulo: Editora Brasiliense, 1988); Máquina e Imaginário: o Desafio das Poéticas Tecnológicas (São Paulo: EDUSP, 1993); A televisao levada a sério (Senac: Sao Pauolo, 2000). Traducidos al castellano se encuentran: El Imaginario Numérico (Valência: Eutopias), El Paisaje Mediático (Buenos Aires: Rojas).


Resumen

Antes de indagar las relaciones entre arte y tecnología, el autor plantea la necesidad de ubicar la actual mutación tecnológica en una “discusión seria”, que vaya más allá de los discursos celebratorioapologéticos y sitúe la tecnología en el desgarrado escenario de sus contradicciones socioculturales y políticas. Miradas desde ahí, las relaciones arte/técnica aparecen dando lugar hoy a dos tipos de práctica radicalmente distintas. De un lado, un montón de festivales dedicados a exaltar las posibilidades formales de la informática, en los que abunda la producción de un diseño novísimo pero meramente funcional, sin el menor asomo de conexión con los procesos y preguntas de lasociedad. Del otro, una minoría de poéticas tecnológicas que buscan empatar con las dimensiones más hondas del arte, como el desacomodamiento y la invención, la ampliación de la libertad y la lucha contra el conformismo.

Palabras clave: Merchandising estético, poéticas tecnológicas, festivales multimedia, conformismo formalista, invención socioartística.


Abstract

Before investigating the relationship between art and technology, the author states the necessity of locating the current technological transformation inside a “serious discussion” that goes beyond praising and apologetic speeches; instead, it should position technology inside the sprained scenario of its sociocultural and political contradictions. From that point on, relationships between art and technique allow the appearance of two radically different performances. The first one being a group of festivals dedicated to exalt the formal possibilities informatics has, where innovative but functional design proliferates without any apparent connection to the processes and questions society has. The second one being a minority of technological poetics that seeks to fit within the deepest dimensions of art, such as inadaptability and invention, freedom expansion and struggle against conformism.

Keywords: Aesthetic Merchandizing, Technological Poetics, Multimedia Festivals, Formalist Conformism, Socio-artistic Invention.


Em um livro recente – Politizar as Novas Tecnologias (2003) – o sociólogo brasileiro Laymert Garcia dos Santos procurou dar expressão a um sentimento cada vez mais generalizado de insatisfação para com os discursos apologéticos da tecnologia, discursos esses de glorificação das benesses do progresso científico, de promoção do consumismo, quando não de marketing direto de produtos industriais, que costumam tomar corpo em boa parte dos eventos internacionais dedicados às relações entre arte, ciência e tecnologia. Num país como o Brasil, deslocado geograficamente em relação aos países produtores de tecnologia e em que o acesso aos bens tecnológicos é ainda seletivo e discriminatório, uma discussão séria sobre o tema das novas tecnologias deve necessariamente refletir esse deslocamento e essa diferença, para que possa servir, ao mesmo tempo, de caixa de ressonância a experiências e pensamentos independentes, problematizadores e divergentes, que acontecem, ainda que marginalmente, em várias partes do mundo, sobretudo fora dos centros hegemônicos.

A onipresença dos computadores à nossa volta, a generalização da Internet, os avanços da biotecnologia, as promessas da nanotecnologia, as inovações tecnológicas de toda sorte já ultrapassaram infinitamente os limites dos laboratórios científicos e hoje fazem parte do cotidiano de uma porcentagem cada vez maior das populações urbanasde grande parte do planeta. À medida que o mundo natural, tal como o conheceram as gerações de outros séculos, vai sendo substituído pela tecnosfera – a natureza criada ou modificada pela ciência –, novas realidades se impõem: de um lado, aumento das expectativas de vida, incremento da produtividade, multiplicação das riquezas materiais e culturais, mudanças profundas nos modos de existir, circular, relacionar-se, perceber e representar o mundo, campo fértil para experiências artísticas inovadoras. De outro lado, generalização dos efeitos colaterais, dos riscos de acidentes de toda espécie, centralização da produção e do poder nas mãos de um número cada vez menor de nações e empresas transnacionais, ampliação da exclusão social, do apartheid econômico, do gap entre ricos e pobres, produtores e consumidores, hegemônicos e marginais.

A onipresença dos computadores à nossa volta, a generalização da Internet, os avanços da biotecnologia, as promessas da nanotecnologia, as inovações tecnológicas de toda sorte já ultrapassaram infinitamente os limites dos laboratórios científicos e hoje fazem parte do cotidiano de uma porcentagem cada vez maior das populações urbanasde grande parte do planeta. À medida que o mundo natural, tal como o conheceram as gerações de outros séculos, vai sendo substituído pela tecnosfera – a natureza criada ou modificada pela ciência –, novas realidades se impõem: de um lado, aumento das expectativas de vida, incremento da um lado, aumento das expectativas de vida, incremento da produtividade, multiplicação das riquezas materiais e culturais, mudanças profundas nos modos de existir, circular, relacionar-se, perceber e representar o mundo, campo fértil para experiências artísticas inovadoras. De outro lado, generalização dos efeitos colaterais, dos riscos de acidentes de toda espécie, centralização da produção e do poder nas mãos de um número cada vez menor de nações e empresas transnacionais, ampliação da exclusão social, do apartheid econômico, do gap entre ricos e pobres, produtores e consumidores, hegemônicos e marginais.

As novas tecnologias, associadas ao processo de globalização, penetraram todos os espaços do planeta e interferiram na vida de todos os povos, até mesmo das populações mais isoladas e refratárias à modernização, como é o caso dos povos indígenas. Uma notícia surpreendente, que circulou há pouco tempo apenas nos meios interessados em mídias mortas, informa que o último serviço de pomboscorreios que ainda existia no mundo fechou finalmente as suas portas em 2001 (Sterling, 2002, p. 82). Atuando naregião de Orissa, na Índia, uma das mais remotas e miseráveis do planeta, a pequena empresa que se dedicava à mais arcaica forma de comunicação à distância do mundo não pode resistir à chegada dos serviços de telecomunicações e telemática. Até mesmo a esquecida, longínqua e quase inacessível Orissa, último reduto do mundo em que as informações ainda viajavam atadas fisicamente às patas de uma ave, teve de dobrar-se à globalização implacável dos serviços de telefonia e à conexão universal via Internet. Hoje, quando os índios do Xingu (Brasil) usam a Internet para construir um sistema alternativo de comunicação entre as nações indígenas da região do Pará, quando os camponeses miseráveis da região de Chiapas vão à Web buscar adesão à rebelião zapatista contra o governo do México, quando os índios norteamericanos, praticantes da mais antiga forma de comunicação interativa em tempo real do mundo, trocam a skywriting (linguagem dos sinais de fumaça) pela netwriting, não há mais como ignorar o fato de que a conexão universal via Internet é um fato consolidado e sem retorno.

Mas as novas tecnologias não promoveram esse avanço democratizando o acesso, universalizando as riquezas produzidas, promovendo o crescimento material e cultural de todo o planeta atingido pela sua influência. Elas avançaram fortemente ancoradas em instrumentos políticos e jurídicos autoritários, como a propriedade privada, a patente e o copyright, a hegemonia do capital global, a divisão do planeta em estratos sociais, classes, raças, etnias e gêneros diferenciados, desigualmente beneficiados com o acesso aos bens produzidos. A divisão do formato DVD em seis diferentes regiões planetárias, para possibilitar a distribuição desigual dos bens culturais, sobreposta ainda à anterior divisão do planeta em sistemas de vídeo incompatíveis entre si (NTSC, SECAM, PAL-G, PAL-M, PAL-N etc.) é um bom exemplo da perspectiva segregacionista do pensamento tecnológico globalizado. A aceleração tecnológica modulou também o ritmo de nossas vidas, exigindo atualizações cada vez mais rápidas, premiando os que se adaptam mais facilmente e descartando os que não conseguem acompanhar a velocidade das mudanças – os “dromo-inaptos”, na feliz acepção de Eugênio Trivinho (2001, pgd. 217-9). As novas tecnologias colocaram ainda em risco o ambiente em que vivemos, promovendo os cenários catastróficos que diariamente perturbam as páginas dos jornais. Ao mesmo tempo, as novas descobertas científicas, com raras exceções, têm sido conduzidas por velhas instituições econômicas, na direção de uma apropriação legal (sob forma de patentes) de plantas e animais transgênicos, células e sementes geneticamente modificadas, genes sintéticos e genomas, e configuram, portanto, uma forma de enquadramento da vida como propriedade privada (Shiva, 2001).

No entanto, apesar de todo o impacto produzido sobre a vida cotidiana, sobre a política ambiental e sobre a geopolítica de dominação internacional de nações ricas sobre pobres, as novas tecnologias continuam sendo implantadas por decisões políticas exclusivas dos Estados ou por estratégias das empresas privadas, sem a participação da sociedade, que fica escamoteada da discussão por negligência, desconhecimento ou incapacidade crítica. A centralidade das novas tecnologias, sejam elas eletrônicas, digitais ou biogenéticas é também pouco problematizada nos eventos dedicados a elas, sobretudo no campo que aqui mais nos interessa: a arte contemporânea. Predomina ainda, no universo das artes eletrônicas ou das poéticas tecnológicas, um discurso legitimador, o seu tanto e quanto ingênuo, alheio aos riscos que a adoção de uma estratégia de aceleração tecnológica comporta. Se é verdade, como demonstra Martín-Barbero (2004, pgs. 22-37), que nos últimos cinqüenta anos assistimos a um processo de esvaziamento da política, vazio esse que foi sendo aos poucos preenchido pelo discurso hegemônico da tecnologia, também é verdade, por outro lado, que a tecnologia foi se convertendo em um novo campo de utopias, onde doutrinas as mais variadas vislumbraram nas máquinas e nos algoritmos perspectivas de emancipação, progresso e felicidade coletiva que antes estavam circunscritas ao discurso político.

Alguns analistas do ciberespaço têm sugerido, por exemplo, que os computadores conectados em rede, ao colocar também em conexão os seus usuários e permitir que cada um deles se distribua dentro dessa rede, estão afetando profundamente as relações de intersubjetividade e de sociabilidade dos homens, assim como a própria natureza do “eu” e da sua relação com o outro. O inglês Roy Ascott (2003, pgs. 257s), um dos líderes dessa corrente, vem mesmo a afirmar que a Internet está produzindo uma “consciência planetária”, resultante da síntese de todos sujeitos presentes no ciberespaço. O navegante da rede, integrado ao corpo das interfaces, não é mais um mero espectador passivo, incapaz de interferir no fluxo das energias e idéias; pelo contrário, ele se multiplica pelos nós da rede e se distribui por toda parte, interagindo com outros participantes e constituindo assim uma espécie de consciência coletiva. Com essas idéias, Ascott parece promover algo assim como uma hipertrofia do ciberespaço, transformando-o num “espaço” privilegiado, numa espécie de agora virtual em que, diferentemente do pobre e degradado espaço real, as promessas de uma verdadeira democracia finalmente encontrariam a sua expressão acabada. “Ou você está no interior da rede, ou você não está em parte alguma. E se você está no interior da rede, você está em todos os lugares” (Ascott, 2003, p. 258).

Na linha do pensamento de Ascott, vemos hoje multiplicar-se esses novos discursos utópicos que creditam aos dispositivos tecnológicos um potencial quase que “revolucionário”, potencializador dos ideais de democratização universal tão duramente perseguidos pela humanidade em sua história, e desencadeador também de mutações na própria natureza biológica do homem, a ponto de converter este último em alguma espécie de Übermensch (super-homem ou sobrehomem), na acepção nietzchiana, capaz de superar a fragilidade ou a perecibilidade do corpo através de próteses eletrônicas e engenharia genética. O canadense Derrick de Kerckhove, o alemão Peter Weibel, o francês Pierre Levy, o norte-americano Nicholas Negroponte,entre tantos outros, representam hoje a vanguarda intelectual dessas utopias tecnológicas que rapidamente se espalham e ganhamadeptos por todo o mundo. É curioso verificar também como essas doutrinas neopositivistas, que se generalizam na Europa, Japão e América do Norte, encontram eco em setores significativos da América Latina, mesmo quando a realidade ao nosso redor as questione permanentemente. No Brasil, particularmente, em que idéias como as Roy Ascott estão, além de tudo, mescladas com um misticismo de tipo folclorizado e de fundo colonizador (retorno ao xamanismo, ao tribalismo e aos efeitos terapêuticos de drogas indígenas como a aiuasca, supostamente formas “primitivas” de imersão e navegação, como aquelas que hoje experimentamos no ciberespaço e nos dispositivos de realidade virtual), a importação em larga escala de idéias e de modelos de ação de outras realidades sócio-econômicas tem impedido o desenvolvimento entre nós de uma consciência alternativa relacionada às novas tecnologias e, com isso, seguimos a reboque – e sem massa crítica – de um movimento hegemônico, arquitetado em escala planetária.

Por sua vez, a crítica ainda não foi capaz, entre nós, de discutir as novas tecnologias em toda a sua complexidade, limitada que está, muitas vezes, por uma tendência tecnófoba igualmente ingênua e igualmente importada de modelos apocalípticos europeus ou norte-americanos (Paul Virilio, Jean Baudrillard, Fredric Jameson, entre outros). Em primeiro lugar, o que se percebe é uma crescente dificuldade, à medida que os aplicativos de computador se tornam cada vez mais poderosos e “amigáveis”, de saber discriminar entre a contribuição original de um verdadeiro criador e a mera demonstração das virtudes de um programa. Nesse sentido, assistimos hoje a um certo degringolamento da noção de valor, sobretudo em arte: os juízos de valorização se tornam frouxos, ficamos cada vez mais condescendentes em relação a trabalhos realizados com mediação tecnológica, porque não temos critérios suficientemente maduros para avaliar a contribuição de um artista ou de uma equipe de realizadores. Como conseqüência, a sensibilidade começa a ficar embotada, perde-se o rigor do julgamento e qualquer bobagem nos excita, desde que pareça estar up to date com o estágio atual da corrida tecnológica. Para além das tendências mais confortáveis da tecnofilia e da tecnofobia, o que importa é politizar o debate sobre as tecnologias, sobre as relações entre a ciência e o capital, sobre o significado de se criar obras artísticas com pesada mediação tecnológica.

A contribuição de Flusser

Dentre os vários pensadores da tecnologia que despontaram no ocidente na segunda metade do século XX, Vilém Flusser talvez seja aquele cuja importância mais tem crescido ultimamente. O que chama a atenção, em primeiro lugar, na figura desse pensador, é a sua posição divergente com relação tanto à posição tecnófila quanto à corrente tecnófoba, ambas atualmente em vigor. Tcheco de nascimento (e criado no seio de uma família judaica), Flusser teve de abandonar seu país em 1939, para fugir dos nazistas, que já tinham liquidado toda sua família, inclusive o pai, então reitor da Universidade de Praga. Depois de viver algum tempo na Inglaterra e já cansado de ver a Europa submergir nas trevas, com seus mitos arcaicos de raça, poder, ideologia e nação, ele migra com sua mulher Edith Barth para o Brasil, acreditando encontrar aí uma civilização descompromissada com os valores do velho mundo. Não foi exatamente o que lá encontrou. Embora tenha conseguido tornar-se um pólo de atração entre os intelectuais mais independentes do país, ele foi hostilizado tanto pela ditadura militar, que dominou o país entre 1964 e 1984, quanto pela esquerda local, que, no dizer de Sérgio Paulo Rouanet (1997, p. 5), “não podia entender um pensamento tão anárquico, tão genuinamente subversivo, tão livre de todos os clichês”. Flusser viveu 31 anos no Brasil e foi possivelmente o principal mentor intelectual de várias gerações de artistas brasileiros que enfrentaram o desafio da tecnologia. Mesmo depois de seu retorno à Europa e até o seu falecimento em Praga em 1991, continuou freqüentando regularmente o ambiente intelectual brasileiro, país onde deixou não apenas dois filhos, mas também um largo círculo de discípulos. Os seus estudos sobre o impacto causado à civilização contemporânea pelas tecnologias eletrônicas e biogenéticas começaram a se desenvolver muito precocemente, já a partir dos anos 1960 e ainda no período brasileiro. Além dos seus primeiros escritos sobre as imagens técnicas e da sua polêmica com o grupo brasileiro da poesia concreta, Flusser aproximou-se bastante dos artistas brasileiros que estavam trabalhando com as novas tecnologias e essa aproximação produziu influências mútuas. Muitos desses artistas eramseus alunos ou colegas nas Faculdades Armando ÁlvaresPenteado (FAAP), de São Paulo. É possível, portanto, traçar uma relação entre o surgimento das idéias flusserianas sobre a sociedade tecnológica e o contexto das artes eletrônicas no Brasil a partir dos anos 1960.

Toda a notoriedade post mortem que Flusser vem recebendo em grande parte do mundo se explica, entre outras coisas, pelo fato de seu pensamento ser absolutamente certeiro na análise das mutações culturais, sociais e antropológicas que estão ocorrendo no mundo contemporâneo e também o mais convincente na advertência dos riscos que corremos.

Na verdade, o filósofo tcheco-brasileiro só reconhece uma época comparável com a nossa: aquela que ocorreu na Antigüidade, quando o homem passou de um estágio préhistórico e mítico para uma fase histórica, lógica e baseada na escrita alfanumérica. No atual estágio, chamado por Flusser de pós-histórico, a “escritura” é construída com ou por máquinas e ela consiste essencialmente numa articulação de imagens – no limite, imagens digitalizadas, multiplicáveis ao infinito, manipuláveis à vontade e passíveis de distribuição instantânea a todo o planeta. Caracteres se tornam bytes, seqüências de texto se convertem em seqüências de pixels, os fins e os meios são substituídos pelo acaso, as leis pelas probabilidades e a razão pelaprogramação (Flusser, 1978). É certo que muitos pensadores contemporâneos – de McLuhan a Kerckhove, de Debord a Baudrillard, de Ong a Lévy – buscaram ou continuam buscando exprimir algo semelhante por outras vias e com outros argumentos, mas Flusser o fez não apenas mais precocemente que os outros, mas também com uma clareza, com uma precisão e com uma radicalidade que torna todos os outros caminhos mais tortuosos, mais áridos, mais retóricos, mais comprometidos e estrategicamente menos eficazes. Falar de Flusser significa falar, em primeiro lugar, de Filosofia da Caixa Preta, sua obra mais densa e também a mais conhecida. Esse livro apresenta uma história bastante singular. Publicado pela primeira vez na Alemanha em 1983, a sua versão para o português não é simplesmente uma tradução, mas já uma revisão da versão alemã. A começar pelo título: enquanto a primeira versão recebeu o nome de Für eine Philosophie der Fotografie (“Por uma Filosofia da Fotografia”), título que foi mantido em todas as traduções para as outras línguas, a versão para o português teve o seu título modificado para Filosofia da Caixa Preta, permitindo perceber melhor o universo conceitual e o campo de abrangência do livro. As mudanças foram providenciadas pelo próprio autor, que aliás escreveu ele mesmo a versão em português, depois de reconsiderar alguns aspectos de sua argumentação.

Em 1984, data provável de redação da versão brasileira, Flusser estava envolvido com a concepção de Ins Universum der technischen Bilder, que era, na verdade, um desdobramento da Philosophie e uma resposta aos inúmeros comentários críticos que o filósofo recebeu com a edição desta última. Era impossível, portanto, que essa nova discussão não afetasse a “tradução” da Philosophie para o português. Eis a razão porque a versão em língua portuguesa dessa obra fundamental de Flusser é única e difere significativamente das outras traduções conhecidas (baseadas no original alemão). Uma simples comparação das versões para o alemão e para o português já deixa entrever as diferenças. O prefácio foi inteiramente refeito na versão brasileira, o glossário acrescentou novos termos, não considerados na versão alemã, e partes inteiras do texto principal do livro foram reescritas para dar maior precisão e consistência à argumentação. Nesse sentido, para ser realmente fiel ao pensamento de Flusser, a versão em língua portuguesa (e não a alemã) é que deveria ser tomada como o texto definitivo da Philosophie e, por conseqüência, ela é que deveria estar sendo utilizada como base para a tradução a outras línguas.

A mudança do título é fundamental. Malgrado a fotografia seja realmente o objeto principal da reflexão efetuada no livro, ela funciona mais propriamente como um pretexto para que, através dela, Flusser possa verificar o funcionamento de nossas sociedades “pós-históricas”, ou seja, de nossas sociedades marcadas pelo colapso dos textos e pela hegemonia das imagens. Na verdade, a fotografia ocupa, entre as mídias de nosso tempo, um lugar bastante estratégico, porque é com base na sua definição semiótica e tecnológica que se constroem hoje as máquinascontemporâneas de produção simbólica audiovisual. É com a fotografia que se inicia, portanto, um novo paradigma na cultura do homem, baseado na automatização da produção, distribuição e consumo da informação (de qualquer informação, não só da visual), com conseqüências gigantescas para os processos de percepção individual e para os sistemas de organização social. Mas é com as imagens eletrônicas (difundidas pela televisão) e com as imagens digitais (difundidas agora no chamado ciberespaço) que essas mudanças se tornaram melhor perceptíveis e suficientemente ostensivas para demandar respostas por parte do pensamento crítico-filosófico. Que ninguém espere, portanto, encontrar nessa obra de Flusser uma análise da fotografia de tipo clássico. A fotografia é nela abordada com base sobretudo em conceitos da informática e comparece aí apenas como um modelo básico para a análise do modo de funcionamento de todo e qualquer aparato tecnológico ou midiático. Daí porque Filosofia da Caixa Preta traduz melhor as ambições da obra do que um lacônico Filosofia da Fotografia.

Por que caixa preta? Sabemos que o termo vem originalmente da eletrônica, onde é utilizado para designar uma parte complexa de um circuito eletrônico que é omitida intencionalmente no desenho de um circuito maior (geralmente para fins de simplificação) e substituída por uma caixa (box) vazia, sobre a qual apenas se escreve o nome do circuito omitido. Atentemos ao fato bastante significativo de que Gregory Bateson (1972), em seu Steps to an Ecology of Mind, amplia ironicamente o significado de caixa preta, com o propósito de aplicá-lo a grande parte dos conceitos problemáticos da filosofia e da ciência. Como os engenheiros eletrônicos – explica Bateson – também os filósofos e cientistas utilizam rótulos, nomes, ou “caixas pretas” para designar certos fenômenos, mas diferentemente daqueles, estes últimos acreditam, muitas vezes, que tais expedientes implicam uma compreensão do fenômeno. Assim, por exemplo, damos a uma certa classe de fenômenos o nome de instinto e acreditamos que isso resolve o problema, mas o que chamamos de instinto pode ser apenas uma caixa preta que está ali para mascarar o que justamente não conseguimos compreender.

No caso específico de Flusser, o conceito de caixa preta deriva mais propriamente da cibernética. Nesse campo particular, dá-se o nome de caixa preta a um dispositivo fechado e lacrado, cujo interior é inacessível e só pode ser intuído através de experiências baseadas na introdução de sinais de onda (input) e na observação da resposta (output) do dispositivo. Em geral, caixa preta traduz um problema de engenharia: como deduzir acerca do que há dentro de uma caixa, sem necessariamente abri-la, mas apenas aplicando voltagens, choques ou outras interferências em suas paredes externas (Ashby, 1970, p. 100)? No entender de Flusser, o transporte desse conceito para a filosofia possibilita exprimir um problema novo, que a fotografia foi justamente o primeiro dispositivo a colocar: o surgimento de aparatos tecnológicos que se pode utilizar e deles tirar proveito, sem que o utilizador tenha a menor idéia do que se passa em suas entranhas. O fotógrafo, de fato, sabe que se apontar a sua câmera para um motivo e disparar o botão de acionamento, o aparelho lhe dará uma imagem normalmente interpretada como uma réplica bidimensional do motivo que posou para a câmera. Mas o fotógrafo, em geral, não conhece todas as equações utilizadas para o desenho das objetivas, nem as reações químicas que ocorrem nos componentes da emulsão fotográfica. A rigor, pode-se fotografar sem conhecer as leis de distribuição da luz no espaço, nem as propriedades fotoquímicas da película, nem ainda as regras da perspectiva monocular que permitem traduzir o mundo tridimensional em imagem bidimensional. As câmeras modernas estão automatizadas a ponto de até mesmo a fotometragem da luz e a determinação do ponto de foco serem realizadas pelo aparelho.

Nesse sentido, a caixa preta “cibernética” de Flusser se encontra com a caixa preta “eletrônica” de Bateson no ponto em que ambas exprimem um desconhecimento fundamental e, mais do que isso, um desconhecimento que se transforma em atividade, força motriz e razão estrutural, seja do pensamento (no caso de Bateson), seja da sociedade (no caso de Flusser). Somos, cada vez mais, operadores de rótulos, apertadores de botões, “funcionários” das máquinas, lidamos com situações programadas sem nos darmos conta delas. Pensamos que podemos escolher e, como decorrência disso, nos imaginamos criativos e livres, mas nossa liberdade e nossa capacidade de invenção estão restritas a um software, a um conjunto de possibilidades dadas a priori e que não podemos dominar inteiramente. Esse é o ponto em que a Filosofia de Flusser quer justamente intervir: ela quer produzir uma reflexão densa sobre as possibilidades de criação e liberdade numa sociedade cada vez mais programada e centralizada pela tecnologia.

Em termos bastante esquemáticos, podemos resumir mais ou menos assim o percurso do pensamento de Flusser na Filosofia: a imagem fotográfica não tem nenhuma “objetividade” preliminar, não corresponde a qualquer duplicação automática do mundo; ela é constituída de signos abstratos forjados pelo aparato (câmera, objetiva, película), pois a sua função fundamental é materializar conceitos científicos. Em outras palavras, o que vemos realmente ao contemplar as imagens produzidas por aparelhos não é o “mundo”, mas determinados conceitos relativos ao mundo, a despeito da aparente automaticidade da impressão do mundo na película. Talvez tenha sido necessário esperar até o surgimento do computador e das imagens digitais para que as imagens técnicas se revelassem mais abertamente como resultado de um processo de codificação icônica de determinados conceitos científicos. O computador permite hoje forjar imagens tão próximas da fotografia, que muita gente não é mais capaz de distinguir entre uma imagem sintetizada com recursos da informática e outra “registrada” por uma câmera. Só que, no computador, tanto a “câmera” que se utiliza para descrever complexas trajetórias no espaço, como as “objetivas” de que se lança mão para dispor diferentes campos focais, como ainda os focos de “luz” distribuídos na cena para iluminar a paisagem são todos eles operações matemáticas e algoritmos baseados em alguma lei da física. Eis porque as imagens técnicas, ou seja, as representações icônicas mediadas por aparelhos, não podem corresponder a qualquer duplicação inocente do mundo, porque entre elas e o mundo se interpõem os conceitos da formalização científica.

O aparelho fotográfico é, portanto, uma máquina programada para imprimir nas superfícies simbólicas modelos previamente inscritos. Nesse sentido, as fotografias são atualizações de algumas dessas potencialidades inscritas no aparelho. O fotógrafo “escolhe”, dentre as categorias disponíveis, as que lhe parecem mais convenientes, mas essa “escolha” é limitada pelo número de categorias programadas na construção do aparelho. O universo fotográfico inteiro é realização causal, por “funcionários da transmissão”, de algumas dessas virtualidades, mas não cabe em seu horizonte a instauração de novas categorias.

Num certo sentido, não é o fotógrafo quem fotografa, mas a câmera (ou o dispositivo fotográfico inteiro). “O fotógrafo só pode fotografar o fotografável”, sentencia Flusser (1985, p. 37). “Quem contemplar o álbum de um fotógrafo amador – continua ele mais à frente (1985, p. 60) –, estará vendo a memória de um aparelho, não a de um homem. Uma viagem para a Itália, documentada fotograficamente, não registra as vivências, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde o aparelho o seduziu para apertar o gatilho”. Não é por acaso que quase todas as fotografias da Torre Eiffel, do Big Ben, da Estátua da Liberdade ou do Pão de Açúcar são idênticas, independentemente dos valores de quem as fotografou. Para produzir novas categorias, não previstas na concepção do aparelho, seria necessário intervir no plano da própria engenharia do dispositivo, seria preciso reescrever o seu programa, o que quer dizer: penetrar no interior da caixa preta e desvelá-la.

Numa primeira aproximação, Flusser adverte, portanto, sobre os perigos da atuação puramente externa à caixa preta. Na era da automação, o artista, não sendo capaz ele próprio de inventar o equipamento de que necessita ou de (des)programá-lo, queda-se reduzido a um operador de aparelhos pré-fabricados, isto é, a um funcionário do sistema produtivo, que não faz outra coisa senão cumprir possibilidades já previstas no programa, sem poder, todavia, no limite desse jogo programado, instaurar novas categorias.

A repetição indiscriminada das mesmas possibilidades conduz inevitavelmente à estereotipia, ou seja, à homogeneidade e previsibilidade dos resultados. A multiplicação à nossa volta de modelos pré-fabricados, generalizados pelo software comercial, conduz a uma impressionante padronização das soluções, a uma uniformidade generalizada, quando não a uma absoluta impessoalidade, conforme se pode constatar em muitos encontros internacionais de artes eletrônicas, onde se tem a impressão de que tudo o que se exibe foi feito pelo mesmo designer ou pela mesma empresa de comunicação. Se é natural e até mesmo desejável que uma máquina de lavar roupas repita sempre e invariavelmente a mesma operação técnica, que é a de lavar roupas, não é todavia a mesma coisa que se espera de aparelhos destinados a intervir no imaginário, ou de máquinas semióticas cuja função básica é produzir bens simbólicos destinados à inteligência e à sensibilidade do homem. A estereotipia das máquinas e processos técnicos é, aliás, o principal desafio a ser vencido na área da informática, talvez até mesmo o seu dramático limite, que se busca superar de todas as formas.

O papel da arte

Aqui podemos agora introduzir o nosso problema principal: a relação entre a tecnologia e a arte contemporânea. Flusser não chega a tratar especificamente dessa questão na Filosofia da Caixa Preta, preocupado que está com a utilização mais banal da tecnologia na vida cotidiana por parte dos funcionários da produção, mas ele vai encará-la em escritos esparsos, publicados em revistas especializadas (parte deles compilados recentemente em: Flusser, 2002).

Embora seja até um lugar comum dizer que a arte (qualquer arte, de qualquer tempo) sempre foi produzida com os meios tecnológicos de seu tempo, a apropriação que ela faz do aparato tecnológico que lhe é contemporâneo difere significativamente daquela feita por outros setores da sociedade, como, no nosso caso, a indústria de bens de consumo. Em geral, aparelhos, instrumentos e máquinas semióticas não são projetados para a produção de arte, pelo menos não no sentido secular desse termo, tal como ele se constituiu no mundo moderno a partir mais ou menos do século XV. Máquinas semióticas são, na maioria dos casos, concebidas dentro de um princípio de produtividade industrial, de automatização dos procedimentos para a produção em larga escala, mas nunca para a produção de objetos singulares, singelos e “sublimes”.

A fotografia, o cinema, o vídeo e o computador foram concebidos e desenvolvidos segundo princípios de produtividade e racionalidade, no interior de ambientes industriais e dentro da mesma lógica de expansão capitalista (sobre a relação entre a invenção desses dispositivos técnicos e o contexto político-econômico ver, sobretudo, Winston, 1998, e Zielinski, 1999). Mesmo os aplicativos explicitamente destinados à criação artística (ou, pelo menos, àquilo que a indústria entende por criação), como os de autoria em computação gráfica, hipermídia e vídeo digital, apenas formalizam um conjunto de procedimentos conhecidos, herdados de uma história da arte já assimilada e consagrada. Neles, a parte “computável” dos elementos constitutivos de determinado sistema simbólico, bem como as suas regras de articulação e os seus modos de enunciação são inventariados, sistematizados e simplificados para serem colocados à disposição de um usuário genérico, preferencialmente leigo e descartável, de modo a permitir a produtividade em larga escala e atender a uma demanda de tipo industrial.

Os atuais algoritmos de compactação da imagem, utilizados em quase todos os formatos de vídeo digital, são a melhor demonstração da “filosofia” que ampara boa parte dos progressos no campo das tecnologias audiovisuais. Eles partem da premissa de que toda imagem contém uma taxa elevadíssima de redundância, entendidas como tal as áreas idênticas dentro de um único quadro e as que se repetem de um quadro a outro, no caso da imagem em movimento.

Eliminando-se essa redundância por meio de uma codificação específica, obtém-se uma significativa compactação dos arquivos de imagem, o que possibilita um armazenamento econômico (poucos Kbytes de memória) e uma rápida recuperação da imagem (visualização em tempo real). A premissa do vídeo digital é evidentemente discutivel, pois só aplicável à produção mais banal e cotidiana, de onde, aliás, ela foi extraída. Ela não pode aplicar-se a imagens limítrofes da arte contemporânea, como os quadros da action painting ou os flickering films (filmes “piscantes”, em que cada quadro individual é diferente dos demais) do cinema experimental norte-americano, razão porque obras dessa natureza resultam destruídas pela compactação digital.

Recentemente, tentei gravar em DVD uma coleção de filmes de Stan Brakhage pintados à mão diretamente na película cinematográfica e sem obedecer aos limites dos fotogramas: o gravador de DVD simplesmente entrou em pane e desligou automaticamente, uma vez que, como não havia nenhuma redundância nas imagens, a compactação ficava impossilitada. Experiências do tipo que citamos acima, que lidam com questões essenciais da arte contemporânea, como o estranhamento, a incerteza, a indeterminação, a histeria, o colapso, o desconforto existencial não estão obviamente no horizonte do mercado e da indústria, ambientes usualmente positivos, otimistas e banalizados. Algoritmos e aplicativos são concebidos industrialmente para uma produção mais rotineira e conservadora, que não perfura limites, nem perturba os padrões estabelecidos.

Existem diferentes maneiras de se lidar com as máquinas semióticas crescentemente disponíveis no mercado da eletrônica. A perspectiva artística é certamente a mais desviante de todas, uma vez que ela se afasta em tal intensidade do projeto tecnológico originalmente imprimido às máquinas e programas que equivale a uma completa reinvenção dos meios. Quando um artista como Nam June Paik, com a ajuda de imãs poderosos, desvia o fluxo dos elétrons no interior do tubo iconoscópico da televisão, para corroer a lógica figurativa de suas imagens, não se pode mais dizer que ele está operando dentro das possibilidades programadas e previsíveis dos meios invocados. Ele está, na verdade, atravessando os limites das máquinas semióticas e reinventando radicalmente o seus programas e as suas finalidades. O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se às determinações do aparato técnico, é subverter continuamente a função da máquina ou do programa de que ele se utiliza, é manejá-los no sentido contrário de sua produtividade programada.

Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Longe de deixar-se escravizar por uma norma, por um modo estandardizado de comunicar, obras artísticas realmente fundantes na verdade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia.

Arte e tecnologia: a experiência brasileira

O Brasil apresenta uma trajetória de cerca de cinqüenta anos de história no campo das poéticas tecnológicas. Desde que essa história começou, nos anos 1950, com as primeiras experiências com arte cinética por Abraham Palatinik, e nos anos 1960, com o surgimento da música eletroacústica, por iniciativa inicialmente de Jorge Antunes, e a introdução do computador na arte, por Waldemar Cordeiro, as poéticas tecnológicas se definiram muito rapidamente entre nós com pelo menos duas características mais marcantes: 1) sintonia e sincronia com o que estava sendo produzido fora do Brasil, o que dava aos brasileiros uma condição de atualidade, quando não até mesmo de precocidade em alguns casos específicos; 2) ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma certa diferença de abordagem, motivada principalmente pelo veio crítico de boa parte dos trabalhos, fruto do enfrentamento de uma trágica realidade social e de uma vida política massacrada por uma ditadura militar, o que tornava as obras brasileiras um tanto distintivas com relação ao que se fazia no exterior. As gerações seguintes, que enveredaram pelos terrenos da vídeo-arte, computer art, computer music, artecomunicação, holografia, poesia intersemiótica e intersecção arte-ciência (para citar apenas os campos que mais se desenvolveram no Brasil nos anos 1980 e 1990), um pouco mais aliviadas dos constrangimentos, pelo menos no campo político, deram continuidade aos princípios dos pioneiros e fizeram expandir o campo de experiências de modo a abarcar quase todo o universo das poéticas tecnológicas.

Seria o caso de se indagar um pouco sobre o significado dessa precocidade e expansão qualitativa das poéticas tecnológicas no Brasil, fenômenos surpreendentes se considerarmos que poucos outros países da América Latina (a não ser, talvez, Argentina e México) atingiram o mesmo patamar de experiências. O Brasil teve a sorte de contar desde cedo com um contexto favorável à inserção do computador na criação artística, graças primeiramente à discussão aberta ali pela poesia concreta, ambiente de onde saíram, já na década de 1970, um dos primeiros exemplos mundiais de poesia gerada em computador, tal como foram concebidos por Erthos Albino de Souza. Além disso, embora grande parte dos pioneiros da computer art, nos anos 1960/70, tenham sido europeus e norte-americanos, pela razão óbvia de que viviam em contextos científicos em que a pesquisa com informática estava mais desenvolvida, um brasileiro ocupou um lugar importante entre os inventores desse campo de criação artística. Trata-se de Waldemar Cordeiro, artista que, ao incorporar as imagens digitais ao seu trabalho, já era reconhecido nacional e internacionalmente sobretudo por seu trabalho no campo da arte concreta. Trabalhando em conjunto com o físico italiano Giorgio Moscati, Cordeiro foi importante também por ter dado uma dimensão crítica à computer art, acrescentando às imagens o comentário social que não havia na produção mundial. Comunista assumido e militante, Cordeiro não promove, com suas imagens digitais, o milagre da tecnologia, mas busca uma forma diferenciada de discutir, em pleno auge da ditadura militar, o desastre sócio-político do país. O desenvolvimento das artes computacionais no Brasil foi grandemente impulsionado pelo fato de Cordeiro ter organizado em São Paulo, em 1971, uma das primeiras conferências internacionais de computer art – a Arteônica – que reuniu os nomes mais importantes nessa área no plano mundial e colocou o país na rota internacional do uso criativo dos computadores em arte.

Durante um certo tempo, acreditamos aqui no Brasil que as tecnologias eletrônicas e digitais estavam introduzindo, no campo das práticas significantes, novos problemas de representação, abalando antigas certezas no plano epistemológico e, por conseqüência, exigindo a reformulação de conceitos estéticos. Supúnhamos, então, que as idéias que estavam brotando no campo das diversas engenharias e das ciências “puras” como a física e a matemática poderiam possibilitar à arte reinventar-se novamente e se manter em sintonia com o seu tempo. Nessa época, quando ainda éramos um grupo bastante reduzido de pessoas, quando a tecnologia e a ciência ainda eram consideradas intromissões mais ou menos estranhas e até certo ponto indesejáveis no universo estabelecido das artes oficiais, sentíamos que era preciso juntar forças para implantar no Brasil, tal como já vinha acontecendo em outros lugares do mundo, um novo campo de intervenção estética, e também para dar legitimidade a uma prática artística que era vista então com uma certa desconfiança pela ala hegemônica da cultura. Idéias como as da vídeo-arte, holographic art, computer art, Web art, telepresence art, ambientes interativos, instalações multimídias etc. foram sendo aos poucos introduzidas, desde os tempos heróicos de Abraham Palatinik e Waldemar Cordeiro, até serem reconhecidas como formas legítimas de expressão artística neste nosso período de generalização das tecnologias da eletrônica e da informática.

De lá para cá, muita coisa mudou. As poéticas tecnológicas foram perdendo seu caráter marginal e quase underground, para rapidamente se converterem nas novas formas hegemônicas da produção artística. Nos últimos anos, temos visto multiplicar-se em todo o mundo os festivais, encontros e mostras dedicados exclusivamente a experiências de intersecção da arte com a tecnologia e a ciência. Cada vez mais, artistas lançam mão do computador para construir suas imagens, suas músicas, seus textos, seus ambientes; o vídeo é agora uma presença quase inevitável em qualquer instalação; a incorporação interativa das respostas do público se transformou numa norma (quando não numa mania) em qualquer proposta artística que se pretenda atualizada e em sintonia com o estágio atual da cultura.

De repente, nos damos conta de uma multiplicação vertiginosa ao nosso redor de trabalhos realizados com pesada mediação tecnológica. Mas o que prometia aflorar como um período intensivo de descoberta e invenção, logo se revelou uma fase de banalização de rotinas já cristalizadas na história da arte, quando não um retorno do conformismo e da integração como valores dominantes. O grosso da nova produção parece hoje marcada por uma impressionante padronização, por uma uniformidade generalizada, como se o que estivesse em jogo fosse uma espécie de estética do merchandising, em que cada trabalho deve fazer nada mais que uma demonstração das qualidades do hardware ou das potencialidades do software. Por outro lado, percebemos também que nossos critérios de julgamento e crítica não se tornaram suficientemente maduros para possibilitar uma avaliação desses trabalhos em termos de sua real importância, ou de sua contribuição efetiva para uma redefinição dos conceitos de arte e de cultura.

O que parece estar ocorrendo, em grande parte dos casos, é uma perda sutil, mas implacável, da perspectiva mais radical da arte. Hoje, quando visitamos qualquer evento de arte eletrônica, de música digital ou de escritura interativa, ou quando folheamos qualquer revista dedicada a essas especialidades, não é preciso muito esforço para constatar que a discussão estética foi quase que inteiramente substituída pelo discurso técnico, e que questões relativas a algoritmos, hardware e software tomaram grandemente o lugar das idéias criativas, da subversão das normas e da reinvenção da vida. Com o boom das tecnologias eletrônicas, a arte parece ter-se reduzido – excetuadas, naturalmente, algumas poucas experiências poderosas e inquietantes – a uma espécie de perícia profissional, à medida que a habilidade técnica foi tomando o lugar das atitudes mais radicais. No âmbito dos relacionamentos entre arte e tecnologia, poucos eventos até agora lograram ultrapassar a mera consideração de algoritmos, linguagens de computador, programação, circuitos eletrônicos e o inevitável emolduramento industrial de tudo isso, buscando enfrentar, por outro lado, as interrogações mais profundas e mais dramáticas de nosso tempo. Tudo parece indicar que chegou a hora de traçar uma diferença mais nítida entre, de um lado, a mera produção industrial de desenhos agradáveis para a festa multimídia e, de outro, a busca de uma ética e uma estética para a era da informática e da engenharia genética.

O que precisamos, na verdade, é restabelecer, em primeiro lugar, o elo perdido entre a atual atividade de criação e a melhor tradição de incorformismo da arte contemporânea, elo este que foi artificialmente cortado por um certo número de teses obtusas sobre a pós-modernidade. Nada pode ser mais inconcebível do que toda uma geração de yuppies desinformados, que hoje produz trabalhos de autoria em multimídia, utiliza dispositivos de edição nãolinear, diagrama suas homepages na Internet, mas nunca viu um filme de Vertov, nunca leu Artaud, jamais ouviu falar de Beckett ou tocou num bicho de Lígia Clark. Em segundo lugar, temos de buscar critérios mais severos e mais rigorosos para separar o joio do trigo dentro desse terreno movediço das poéticas tecnológicas, de modo a diferenciar e privilegiar trabalhos feitos para marcar o seu tempo, trabalhos que tragam uma contribuição efetiva e duradoura, trabalhos enfim que apontem para perspectivas de invenção, de liberdade e de conhecimento.

No Brasil, alguns eventos dedicados às novas tecnologias vêm tentando, desde há algum tempo, reintroduzir no cenário artístico a produção e o debate que nos últimos anos têm sido escamoteados e, para isso, têm buscado reunir as inteligências e os talentos não-alinhados de várias partes do mundo, sobretudo daquelas partes que não participam das estratégias globais de inserção tecnológica. Dentre esses eventos, pode-se citar as duas edições de Emoção Art.ficial, evento bienal sediado em São Paulo e que tem explicitamente essa preocupação, a ponto do tema da última edição, em 2004, ter sido justamente Divergências Tecnológicas. Outro exemplo é o Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, também bienal, este ano em sua 15ª edição, que abre espaço para experiências também divergentes no campo tecnológico, sobretudo as que acontecem em regiões não-hegemônicasdo planeta, como a América Latina, a África, o Sudeste Asiático, a Europa do Leste, o Oriente Médio e a Oceania.

Um leque imenso de possibilidades está aberto para a intervenção problematizadora da arte: a crítica das novas formas de dominação baseadas em gênero, classe, raça ou nacionalidade (as guerras imperialistas, os genocídios, o terrorismo, a migração internacional, a intolerância com relação aos estrangeiros etc.), a crítica da vigilância universal, da globalização predatória, da espetacularização da vida, da degradação ambiental. Ao mesmo tempo, as novas formas de engajamento social direto baseadas nas redes telemáticas, as mídias táticas, a utilização de sistemas de distribuição multiusuários para a criação de obras colaborativas verdadeiramente coletivas, a busca de novas políticas do corpo, a expressão de identidades culturais diferenciadas etc. Trata-se agora de indagar onde a inserção de novas tecnologias nas artes está introduzindo uma diferença qualitativa ou produzindo acontecimentos verdadeiramente novos em termos de meios de expressão, conteúdos e formas de experiência. Enfim, trata-se de buscar as pequenas revoluções, as “revoluções moleculares” como dizia Felix Gattari, que hoje estão claramente identificadas com a criação digital e com os novos cenários biológicos.

As tecnologias, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderia substituir por quaisquer outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história, eles derivam de condições produtivas, econômicas e geopolíticas bem determinadas. As poéticas tecnológicas, como qualquer arte fortemente determinada pela mediação tecnológica, colocam o artista diante do desafio permanente de se contrapor ao determinismo tecnológico, de recusar o projeto industrial já embutido nas máquinas e aparelhos, evitando assim que sua obra resulte simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade e hegemonia global da sociedade tecnológica. Longe de se deixar escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos estandardizados de operar e de se relacionar com as máquinas, longe ainda de se deixar seduzir pela festa de efeitos e clichês que atualmente dominam o entretenimento de massa, o artista digno desse nome busca se reapropriar das tecnologias digitais e biognéticas numa perspectiva inovadora, fazendo-as trabalhar em benefício de idéias estéticas verdadeiramente contemporâneas.


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Fecha de recepción: Febrero de 2005 • Fecha de aceptación: Septiembre de 2005

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