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Revista de Estudios Sociales

versão impressa ISSN 0123-885X

rev.estud.soc.  no.59 Bogotá jan./mar. 2017

https://doi.org/10.7440/res59.2017.05 

Dossier

Memórias revisitadas: sobre os testemunhos das vítimas retroativas de bullying no contexto brasileiro*

Memorias revisitadas: sobre los testimonios de las víctimas retroactivas de bullying en el contexto brasileño

Memories Revisited: On the Retroactive Testimonies of Victims of Bullying in the Brazilian Context

Juliane - Bazzo **** 

** Doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Entre suas últimas publicações encontram-se: "Uma identidade municipal desafiada: análise do conflito em torno do comércio realizado por indígenas em uma cidade da Serra Gaúcha". Espaço Ameríndio 9 (1): 54-85, 2015 e "Bolsas de valores enquanto espaços etnográficos: três olhares". Ilha - Revista de Antropologia 17 (1): 83-115, 2015. bazzojuliane@gmail.com


RESUMO

Este artigo explora a centralidade dos testemunhos de vítimas no empreendimento moral do bullying como gênero de violência difusa no contexto brasileiro, a partir de um grupo específico de depoimentos: aqueles nos quais adultos reordenam o relato de memórias de agressão infanto-juvenil por meio desse conceito. Procura-se demonstrar o quanto tais testemunhos são emoldurados por saberes das psicociências, mas não de uma forma direta e, sim, mediada pela mídia que, atualmente, pulveriza depoimentos desse tipo. A adesão massiva a tal construto tem determinado uma série de repercussões ético-políticas, que o artigo busca discutir.

PALAVRAS-CHAVE Bullying; vítimas; testemunhos; empreendimento moral

RESUMEN

Este artículo explora la centralidad de los testimonios de las víctimas en la empresa moral del bullying, como un género de violencia difusa en el contexto brasileño, a partir de un grupo específico de historias: aquellas en que los adultos reordenan el informe de los recuerdos juveniles de agresión por medio de este concepto. El estudio demuestra cómo en tales testimonios se enmarca el conocimiento de psicociencias, pero no de una manera directa, sino que está mediada por los medios de comunicación que actualmente pulverizan declaraciones de este tipo. La adhesión masiva a esta construcción ha tenido una serie de repercusiones éticas y políticas, que el artículo discute.

PALABRAS CLAVE Bullying; víctimas; testimonios; empresa moral

ABSTRACT

This article explores the centrality of victims' testimonies in the moral enterprise or phenomenon of bullying as a form of diffuse violence in the Brazilian context, based on a specific group of histories: those in which adults reorder their reporting of juvenile memories of aggression through this concept. The study demonstrates how a knowledge of psycho-sciences is framed within such testimonies, not directly, but mediated by the mass communications media that currently pulverize declarations of this type. Massive adherence to this construct has produced a series of ethical and political repercussions that are discussed in the article.

KEYWORDS Bullying; moral development; victims; testimonials

Introdução

Este artigo insere-se na discussão delineada por antropólogos como Sarti (2011), que têm buscado pensar acerca do "alargamento do espaço social ocupado pela vítima" na contemporaneidade.1 Segundo a autora, se por um lado a delimitação desse espaço traz consigo as "melhores intenções", em conexão com a conquista de direitos civis, de outro não se pode prescindir do fato de que, como "categoria histórica", a percepção de vítima surge também permeada por relações intersubjetivas e de poder tecidas na sociedade ocidental.

Nesse âmbito, uma compreensão antropológica da "gramática moral" que alicerça o status vítima na atualidade vem demandando, no ofício etnográfico, um distanciamento crítico, tendo em vista existir hoje um posicionamento social fortemente enraizado de compaixão e solidariedade imediatas diante dessa figura (Sarti 2011). A esse esforço tenho me lançado na análise que venho desenvolvendo acerca da empresa moral do bullying no contexto urbano brasileiro contemporâneo, temática de minha tese de doutorado em andamento.

Nesse contexto, a pesquisa de campo tem revelado que o bullying vem sendo apreendido como um fenômeno social de violência por intermédio de uma vultosa dispersão de testemunhos de vitimizados, isso nas mais diversas instâncias sob investigação, tais como a escola, a academia, os órgãos públicos e a mídia. Tais testemunhos, a despeito de adquirirem feições variadas, guardam certos padrões, que permitem sistematização e exame sob um olhar antropológico.

No presente artigo, pretendo explorar uma classe específica desses depoimentos, extensamente recorrentes em minhas investidas de campo: narrativas de violência infanto-juvenil verbalizadas por indivíduos adultos que as recontam lançando mão do conceito de bullying. A proposta é problematizar, alicerçada no trabalho teórico-etnográfico, a estrutura discursiva desses relatos, as inspirações que mobilizam sua construção, os valores que corporificam, bem como as repercussões sociais que geram.

Ao tecer uma crítica aos excessos das políticas de "tolerância zero" que vêm sendo criadas nos Estados Unidos para combate do bullying, Porter (2013) identifica nesse país a existência desse tipo de relato, que classifica como de "vitimização retroativa".2 De acordo com ela, há um "turning point" no contexto norte-americano para a pulverização desse gênero de narrativa: o ataque armado de dois estudantes à Columbine High School (Colorado) em 1999, ocorrido, segundo o entendimento mediatizado, por sucessivas situações de humilhação e exclusão sofridas na escola3.

Esse acontecimento, que pode ser situado como um "evento crítico" (Das 1995), teve um homólogo no cenário brasileiro: o chamado "Massacre de Realengo", ocorrido em 2011, na Escola Municipal Tasso da Silveira, situada no citado bairro da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Nessa ocasião, um ex-aluno, sob a justificativa de dar uma palestra, adentrou a instituição e matou a tiros mais de uma dezena estudantes, motivado, conforme a opinião pública, pelo bullying sofrido em trajetória escolar ("Atirador de Realengo sofria bullying no colégio, diz ex-colega" 2011). À época, a leitura midiática desse incidente ocorreu basicamente subsidiada pelos elementos que cercaram o referido ataque armado ao colégio estadunidense.

Das (1995) postula que "eventos críticos" como os anteriormente mencionados, de teor extraordinário, não devem ser vistos como acontecimentos isolados ou sensacionais, mas, sim, enraizados na vida ordinária, antes, durante e depois de seu desenrolar. A materialização dos "eventos críticos" passa assim pela atuação simultânea e diacrônica de uma série de instituições e atores, indica a redefinição de categorias tradicionais e sinaliza a instituição de novos modos de ação. É a partir dessa ótica que serão aqui problematizadas as memórias de violência infanto-juvenil reorganizadas por adultos sob o lastro da noção de bullying. Antes, contudo, faz-se necessário uma breve apresentação da pesquisa maior na qual tais testemunhos se inserem.

Um apanhado da etnografia

Bullying designa em língua inglesa o ato decorrente do substantivo bully, que significa algo próximo a "brigão" ou "valentão" em português. Construto científico dos anos 70, cuja autoria é atribuída a Dan Olweus, professor de psicologia da Universidade de Bergen (Noruega), o bullying vem se alastrando mundialmente desde então, na função de nomear a agressão cotidiana intimidatória e repetitiva entre pares nos ambientes escolares. No Brasil, o termo experimenta enorme popularização a partir de meados dos anos 2000. A essa altura, já havia transcendido, aqui e internacionalmente, a aplicação ao universo educacional, bem como ganhado uma nova e moderna faceta, a de cyberbullying (Rolim 2008).4

Conforme explica Olweus (1993), o caminho para a popularização do conceito de bullying trilhou-se a partir de um "evento crítico" (Das 1995) sediado na Noruega em 1982: o suicídio de três adolescentes ocorrido, segundo apurado, por perseguições de colegas no ambiente escolar. Isso motivou o governo norueguês a criar uma campanha nacional antiviolência, subsidiada pelos estudos de Olweus acerca do chamado mobbing, palavra escandinava cujo contexto, adaptado ao idioma inglês, desembocou no termo bullying.

Em artigo recente sobre o estado da arte dos estudos científicos em torno do construto por ele criado, Olweus (2013) relata que a noção de bullying primeiro espalhou-se pela Escandinávia e depois, em fins dos anos 80, disseminou-se pela Europa e também alcançou a Austrália. Nos Estados Unidos, entretanto, o conceito tornou-se temática de grande notoriedade acadêmica apenas no início do século XXI. A despeito do referido intervalo temporal em relação ao boom da pesquisa europeia, a discussão estadunidense acerca do bullying recebeu impulso diferencial em virtude do impacto mundial da tragédia em Columbine High School no ano de 1999 (Oliveira-Menegotto, Pasini e Levandowski 2013). Essa repercussão, ainda que tardia, é perceptível no Brasil, na já mencionada interpretação do ataque armado à escola de Realengo, em 2011.

Considerado esse panorama, o estudo de doutorado que respalda este artigo objetiva contemplar a etnografia de múltiplas experiências -nos contextos científico, estatal, educacional, midiático e mercadológico- que têm definido o bullying como um gênero de violência difusa no contexto brasileiro. A imersão etnográfica nesses espaços almeja compreender e problematizar a atuação dos "empreendedores morais" (Becker 2008), que constituem indivíduos, instituições, iniciativas e documentos responsáveis hoje por delimitar a prevenção e o combate em torno de posturas condenatórias classificadas como bullying. Tal enfoque integra a "teoria interacionista do desvio", a qual posiciona a criação de regramentos como um "drama complexo", com desenvolvimento no tempo e implicação de uma rede cooperativa de atores, cujos interesses muitas vezes divergem.

Nesse contexto, o trabalho de campo, em estágio avançado, está sendo desenvolvido em duas frentes: in loco e documental. A etnografia in loco vem se dando em cidades de diferentes portes: na capital gaúcha, Porto Alegre, bem como nos municípios de Canela e Gramado, na região serrana do Estado do Rio Grande do Sul (Brasil), onde resido atualmente. Essa frente de pesquisa contempla entrevistas com cientistas, políticos e ativistas envolvidos com a temática do bullying, bem como o acompanhamento de eventos por eles encabeçados na capital do Estado. Em paralelo a isso, ocorrem observações e entrevistas com funcionários, professores e estudantes, de diferentes níveis de ensino, em duas instituições educacionais, uma pública e outra privada, voltadas para camadas médias da população dos citados municípios serranos.5

A frente documental, por sua vez, desenvolve-se em âmbitos nacional e internacional, abrangendo como materiais de análise etnográfica artigos e estudos científicos; proposições legais e programas de intervenção estatal; conteúdo midiático oriundo de fontes diversas, oficiais ou não, além de produtos e serviços gerados em torno da questão do bullying, como manuais informativos, obras de autoajuda, livros e jogos infantis, cartilhas educativas, cursos, palestras e consultorias especializadas, dentre outros.

Na esteira da interrogação efetuada por Foucault (1984) quando abraça a sexualidade e os processos de dominação em torno do corpo como temática de estudo, a pesquisa antropológica em questão inquire acerca das condições que levam práticas tipificadas como bullying, que indubitavelmente não são novas, a se tornar "objeto de preocupação moral" intensificada, sob uma nomenclatura específica, na contemporaneidade urbana brasileira. Conforme Foucault esclarece, o olhar analítico em busca de respostas deve se deslocar de uma tautologia de "interdições" para as "problematizações morais". Por conseguinte, o problema da pesquisa concentra-se no exame crítico de "campos de saber", "tipos de normatividade" e "formas de subjetividade" que cercam na atualidade o "dispositivo" denominado por bullying.

A exemplo do que efetuam Fassin e Rechtman (2009) diante da emergência mundial da noção de "trauma", também pautados pela obra de Foucault, quer-se demarcar com a investigação de doutoramento a "economia moral" em meio à qual o bullying desponta no cenário brasileiro contemporâneo. Nessa lógica, o bullying é mais que um construto científico a nomear um tipo específico de agressão; situa-se como uma categoria que comunica relações hoje diferenciadas diante da violência, do sofrimento, da memória e da reparação.

Sob esse status, o bullying fala do "espírito" do tempo presente: de suas preocupações, valores e expectativas, na mesma medida em que municia os indivíduos a verbalizar a violência do cotidiano. Logo, o bullying traz consigo um "novo vocabulário" que desencadeia "efeitos performativos" sobre a realidade. Esses impactos ultrapassam os propósitos científicos pensados para o termo e revelam a "inteligência social dos atores", que exploram no dia a dia sua "dimensão tática" (Fassin e Rechtman 2009).

Esses autores conclamam assim a uma "antropologia do senso comum", deveras oportuna para problematizar o bullying. Envolve uma prática etnográfica que não naturaliza categorias do dia a dia e, sim, traz à tona como são construídas e usadas; como não só descrevem, mas transformam a realidade; como direcionam holofotes a certos elementos ordinários em detrimento de outros.

O presente estudo, portanto, não objetiva retorquir a realidade, a gravidade ou a banalização de determinadas práticas que, atualmente, são chamadas de bullying. Preocupa-se, sim, em discutir, na esteira do que faz Hacking (2013) para o "abuso infantil", como a noção de bullying aparece moralmente "moldada" por diferentes atores, que conferem a ela maior ou menor importância, ou simplesmente nenhuma ênfase, a depender da sua "rede de interesses". O interesse neste artigo, portanto, está nos efeitos que o processo classificatório de comportamentos fomentado por esse conceito engendra nos modos de ver o mundo e nele estar, desde a perspectiva de adultos que se posicionam na atualidade como vítimas de bullying na infância.

Narrativas de vítimas de bullying

As memórias de violência infanto-juvenil apresentadas a seguir são introduzidas por nomes fictícios atribuídos aos indivíduos que as revisitaram sob apoio da noção de bullying. Algumas circunstâncias dos relatos precisaram ser alteradas para a exposição pública, de modo a preservar o anonimato e a intimidade dos personagens. Contudo, houve o cuidado para que tais modificações não impactassem o campo semântico coberto pelas narrativas, o que se mostra fundamental à análise aqui empreendida.

Bianca

Educadora na casa dos 40 anos, Bianca tinha por ofício realizar palestras motivacionais quando a conheci, como parte de um projeto de responsabilidade corporativa da instituição de ensino superior privada onde trabalhava. Gratuitas, as palestras aconteciam em escolas públicas de ensino fundamental e médio, onde se concentrava o público consumidor de interesse da instituição. Nesse contexto, embora se revestissem de propósitos sociais, essas falas tinham também objetivos propagandísticos.

Uma das exposições do repertório de Bianca versava a respeito da prevenção do bullying escolar. Essa espécie de intervenção pública tem sido por mim situada em um contexto que nomeio de "mercadológico", o qual comporta uma infinidade de produtos e serviços que vêm sendo comercializados sob o mote do bullying.

As apresentações da educadora sobre o tema do bullying abarcavam dois momentos fundamentais. Um situado no passado, referente à sua própria história de vitimização durante a idade escolar, pelo que hoje, segundo ela, chama-se por bullying. E outro momento posicionado no presente, relativo a seu status de profissional bem-sucedida, como resultado de uma trajetória de superação da violência a que foi submetida.

Bianca relatava à audiência ser perseguida pelos colegas por dois motivos prioritários. Pela condição de obesa, foi apelidada de "almôndega", termo pelo qual era chamada, muitas vezes, até pelos próprios funcionários de sua escola. Complicava esse quadro a situação socioeconômica precária da família de Bianca. Do trabalho operário, seus pais angariavam escassos recursos, investidos da melhor forma em materiais escolares e vestimentas para a ida da garota à escola, tendo em vista o grande apreço pela educação da filha. Segundo Bianca, devido a essa situação humilde, que não lhe rendia uma boa aparência, os colegas se aproveitavam para inferiorizá-la e excluí-la.

Esse cenário a conduziu ao que chamou de uma crise identitária: ao buscar ser aceita pela turma, por meio da imitação grosseira de roupas e do vocabulário dos alunos populares, perdeu o foco nos estudos e acabou obtendo uma reprovação. A despeito disso, graças ao carinho e à religiosidade de sua família, diz ter retomado os estudos com afinco. Seu primeiro emprego foi de zeladora em uma empresa, o que não lhe contentou, tendo em vista que, como estudante dedicada, aspirava a se tornar, nas suas palavras, uma pessoa de sucesso. Isso se materializou com sua formação universitária e se concretizou na atividade profissional que exerce hoje, no âmbito da qual diz empregar sua própria história para transformar a vida de outras pessoas.

Por meio da família, teve recentemente notícias acerca dos colegas que mais a intimidavam na escola. De acordo com ela, um deles possui hoje uma vida que classificou como estável, mas os outros não: um criava uma prole numerosa sozinho, devido ao envolvimento do cônjuge com o crime e o outro trabalhava como garçom. Diante disso, em uma de suas falas afirmou: "Eu vejo minha evolução, eu venci". Assim, a mensagem final ao público estudantil era: não basta cursar apenas o ensino médio, é preciso querer ir adiante. Constantemente em suas apresentações, Bianca enfatizava: quem sofre bullying pode renascer, ao contrário de quem o pratica.

Gisela

Professora na faixa etária de 50 anos, Gisela tinha quase 20 deles dedicados à educação no momento em que fomos apresentadas. O interesse por conhecê-la partiu de minha parte, devido à informação que obtive de colegas dela acerca de um projeto de educação para a cidadania que Gisela, voluntariamente, havia desenvolvido em escolas nas quais tinha atuado.

Em tal iniciativa, a educadora implementava entre os alunos atividades lúdicas que tangenciavam a prevenção da violência e a promoção da paz. Dessa forma, alguns informantes haviam me alertado que, a partir de uma conversa com Gisela, eu poderia acessar percepções estudantis sobre bullying. Então, assim que houve oportunidade, travei um extenso diálogo com essa professora, ao longo do qual ela relatou o projeto educativo de sua autoria com tamanha autonomia e entusiasmo, que praticamente pus à parte meu roteiro de questões. Contudo, nos poucos momentos em que consegui interpelá-la, acerca de intimidações narradas pelos alunos ou trabalhadas nas atividades do projeto, não obtive o rendimento a que aspirava inicialmente.

Entretanto, praticamente ao final da entrevista, Gisela surpreendeu-me ao afirmar ter sido vítima de bullying quando criança, sem qualquer interrogação de meu lado. Contou-me que, nos anos iniciais do ensino fundamental, sofria de gagueira. Esse quadro lhe dificultou não somente a relação cotidiana com os colegas de sala de aula, mas especialmente com uma professora, de quem singularmente se lembrava. "Ela me chamava de imundícia, porque tinham orelhas no meu caderno", disse-me Gisela, destacando o absurdo que considerava um educador dar mais valor a um material escolar que à pessoa de uma criança.

Gisela afirmou não se recordar quando exatamente se viu livre da gagueira, mas acredita que foi durante o curso de magistério, quando precisou enfrentar diretamente a dificuldade de fala para se expressar em público. "Eu me curei no processo de me tornar professora", declarou e complementou explicando que, talvez, resida nas suas dificultosas vivências infantis a motivação que lhe conduziu a realizar, de maneira autodidata, um projeto exitoso de educação para a cidadania.

Zélia

Depois de quase 30 anos afastada da escola, Zélia, hoje próxima dos 50, retomou seus estudos em uma das escolas em que desenvolvi meu trabalho de campo, onde a conheci e a convidei para uma conversa acerca de sua trajetória educacional. Minha intenção era investigar como uma adulta, inserida em um ambiente repleto de adolescentes, enxergava e lidava com a emergência da questão do bullying. Zélia situou-se como uma de minhas primeiras informantes nessa instituição de ensino, de forma que, no diálogo que estabelecemos, eu ainda testava o roteiro de entrevistas que havia construído para aplicar nesse universo.

Nesse roteiro, uma de minhas perguntas era: você se lembra da primeira vez em que ouviu falar do termo "bullying"? Zélia respondeu a essa questão afirmativamente e disse que isso ocorreu quando era criança. Essa réplica gerou-me estranhamento, pois no período da infância de minha entrevistada esse conceito sequer existia. Todavia, quando Zélia prosseguiu em sua fala, compreendi o que queria comunicar: ela contou ter sido vítima de bullying no interior de sua família. Ou seja, de seu ponto de vista, a entrevistada não estabelecia separação entre a conceituação e a experiência de bullying, algo que eu iria também verificar em várias das conversas subsequentes que estabeleci com outros informantes.

Parte de uma prole numerosa, Zélia descreveu-se com uma garota baixa, acima do peso e de cabelos crespos, em contraposição a uma de suas irmãs, de estatura média, magra e de madeixas lisas. "Ela era a linda da família", destacou. Na adolescência, bastava se dizer interessada em algum rapaz, que a irmã se atravessava no flerte e "dava em cima". Zélia enfatizou esse comportamento como proposital, pois, segundo ela, a irmã tinha clareza do potencial de sua beleza para conquistar namorados.

Tornava esse cenário mais intrincado o fato de a irmã possuir padrinhos batismais de considerável status socioeconômico, enquanto Zélia, ao contrário, vinculava-se como afilhada a uma família de condição financeira desfavorecida. Desse modo, a irmã sempre obtinha presentes que incrementavam ainda mais sua aparência. "Eu sempre me senti inferior. Meus pais não percebiam. E eu nunca falei nada, nem pra mãe, nem pra minha irmã", declarou Zélia.

Ela relatou que, atualmente, possui um bom relacionamento com a irmã. Enfatizou que, depois da chegada da fase adulta, as posições entre elas teriam sofrido uma espécie de inversão. Isso porque, hoje, a irmã possui uma vida reclusa, em virtude de seu marido encontrar-se gravemente enfermo, enquanto Zélia afirma estar aproveitando a liberdade de mulher recém-divorciada. "Agora, daria pra dizer que ela é quem tem inveja de mim, porque tudo eu posso fazer, sair, passear, enquanto ela não", assinalou.

Bullying como tecnologia da memória

Sustentadas por autores da hermenêutica contemporânea, Rocha e Eckert (2013, 39-40) advogam que as narrativas biográficas posicionam-se como elementos imprescindíveis a uma abordagem antropológica das memórias coletivas nos contextos urbanos da atualidade ocidental. Esses relatos possuem, segundo elas, uma "... qualidade de circulação de saberes, práticas, ideias, valores que tensionam indivíduos e grupos, micro e macroesferas". Ao mesmo tempo e desafiadoramente, constituem "fenômenos frágeis em sua continuidade", impactados de modo permanente e simultâneo por transformações sociotemporais, pela emergência de ideologias de poder e pela disponibilidade dos citadinos a novas narrativas, sempre com relação àquelas dos demais.

Logo, por intermédio dessas "elaborações subjetivas performatizadas", que permeiam as interlocuções sociais, o antropólogo aprofunda, a um só tempo, sua compreensão em torno da atuação dos narradores e acerca dos contextos sociológicos que os ultrapassam (Rocha e Eckert 2013). Nessa perspectiva, os relatos de Bianca, Gisela e Zélia, aqui apresentados, configuram testemunhos que permitem trabalhar, nos termos de Das (2007), conexões entre violência e subjetividade. São narrativas que desvelam opressões cotidianas, as quais, segundo essa autora, conferem as bases a partir das quais eventos mais extremos, "críticos", podem tomar forma.

Para Das (2007), a compreensão adequada desses testemunhos passa, inevitavelmente, pelo entendimento da relação entre violência, sofrimento e linguagem no interior da cultura que os gerou. Nesse sentido, é fundamental recordar que a edificação dos estados-nação ocidentais, com seus espaços metropolitanos, encontra-se fortemente vinculada à consolidação de um "monopólio intraestatal da força" (Elias 1997), materializado em instituições policiais, militares e tributárias.

De um lado, explica Elias (1997), o êxito desse arranjo expressa-se no estabelecimento de um "tabu" razoavelmente eficaz de controle do uso irrestrito da violência física, interdito inexistente no período da Idade Média, por exemplo. Por outro lado, "surtos descivilizadores" permaneceram sempre uma possibilidade e, não raro, manifestam-se com antigos ou novos contornos. Tais irrupções cristalizam, nos termos de Das e Poole (2008), "margens" estatais, tanto por demarcar contextos que impulsionam o poder público a legislar e impor ordenação, quanto por abrangerem práticas sociais que, de modo desafiador, expõem a incapacidade das determinações oficiais em abarcar por completo as contingências da vida cotidiana.

Em uma etnografia acerca da atuação rotineira da polícia francesa, Fassin (2013) aponta que, no cenário da pacificação das sociedades contemporâneas, enquanto as agressões físicas para além dos aparatos estatais mostraram-se objeto constantemente privilegiado de repressão e penalização, as investidas morais, cujos limites são menos palpáveis, não emergiram em mesma intensidade como alvos de controle e sanção. Desse modo, segundo o autor, a "violência moral" pôde constituir-se como uma espécie de "violência substituta".

É justamente o recente processo de reconhecimento dessa agressão de natureza moral que os testemunhos de Bianca, Gisela e Zélia enquanto vítimas abarcam. Mas não o fazem apenas por meio de uma narrativa específica e, sim, apropriando-se da noção de bullying, empregada como uma "tecnologia da memória", conforme acepção de Rose (2011, 82). O autor compreende como tecnologia todos aqueles mecanismos que "... organizam o ser, estabelecem seus limites, produzem-no, tornam-no pensável como um modo de existência que deve ser tratado de forma particular". Nesse sentido, o conceito de bullying aproxima-se de tecnologias memoriais tradicionais -como álbuns fotográficos, cartas, cartões, vídeos familiares, etc.-, porém, integra um grupo singular, chamado pelo autor de "artefatos psi".

Ao adquirir tal feição, o bullying tem permitido trazer à tona, como em um esforço psicoterápico, "memórias recuperadas" de violência moral infanto-juvenil, as quais, na inexistência do construto, teriam muito menor probabilidade de se tornar objeto de narratividade. Conforme Rose (2011), o vocábulo "psi" diz respeito aos "modos de pensar e agir" delimitados, a partir de meados do século XIX, pelas "psicociências" e suas disciplinas (psicologia, psicanálise, psiquiatria, etc.) no Ocidente. Para ele, os "saberes psi" foram centrais na "constituição do nosso atual regime do self", alicerçado nos princípios de individualidade, identidade, autonomia, liberdade e satisfação.

Calcado nos debates foucaultianos e deleuzianos, o autor sustenta que processos históricos de subjetivação, responsáveis por elaborar "certos tipos de ser humano" e por determinar as relações que o homem estabelece consigo mesmo, se dão por intermédio de um "agenciamento heterogêneo" de vocabulários, técnicas e práticas. Por conseguinte, nesse âmbito, a linguagem "disciplina o pensamento", mas só opera em conexão com "dispositivos", por meio dos quais uma certa visão de ser humano se cria e se estabiliza. Dessa forma, o indivíduo contemporâneo posiciona-se como "criatura psicológica" não em virtude de uma dada natureza interior, mas, sim, "... por causa das formas pelas quais, em tantos lugares e práticas, os vetores psi acabaram atravessando e ligando essas maquinações" (Rose 2011, 257).

Relatos de bullying e permeabilidade psi

Os esforços teórico-etnográficos de Velho (1998 e 2013) já deram conta outrora da presença solidificada do mencionado "indivíduo psicológico" em meio às camadas médias brasileiras mais "intelectualizadas e psicanalisadas", sendo fundamental à elaboração de "visões de mundo", "biografias", "projetos" pessoais e "trajetórias sociais" no interior desse segmento. No Brasil atual, a noção de camadas médias do autor demanda um novo olhar, tendo em vista nos últimos anos a evolução do consumo em meio a nichos populacionais menos favorecidos, graças a políticas públicas de inclusão socioeconômica (Souza 2012). Dessa forma, abre-se espaço ao incremento da adesão a uma moldura psicológica de indivíduo e às respectivas tecnologias do self, que se materializam em uma série de informações, produtos e serviços passíveis de aquisição.

Nesse panorama, é importante situar a emergência da noção bullying no contexto urbano brasileiro em um quadro de avanço, sem precedentes históricos, não só de políticas redistributivas de renda, mas também de reconhecimento à diversidade sociocultural no país, a partir do Governo Lula, iniciado em 2003. Uma amostra disso é obtida da comparação entre as edições II e III do Programa Nacional de Direitos Humanos, implementadas em 2002 e 2010. No primeiro documento, não há menção a estratégias de enfrentamento do bullying no contexto educacional; no segundo, tais estratégias não somente aparecem, como contemplam o cyberbullying (Ministério da Justiça 2002; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República 2010).

A elevação do bullying a objeto de políticas públicas conecta-se, certamente, à intensificação de abordagens em torno de tal conceito na produção científica brasileira, especialmente a partir de 2005, como recurso importado para refletir acerca do recrudescimento da violência escolar sob formas diversas (Oliveira-Menegotto, Pasini e Levandowski 2013). Soma-se a esse quadro a ocorrência do já mencionado "Massacre de Realengo" em 2011, um incidente extremo que faz avançar os trabalhos em torno do Programa Nacional de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying), que tramitava como proposição desde 2009 e se tornou lei federal em 2015 (Câmara dos Deputados 2015; Senado Federal 2015).

De um modo geral, a comunidade acadêmica brasileira, sobretudo a da disciplina da psicologia, apropriou-se do conceito de bullying já referido aqui, cunhado por Dan Olweus. Esse mesmo construto é o prioritariamente abraçado pelas políticas públicas elaboradas em torno do tema. Segundo essa noção, o bullying configura um fenômeno de intimidação sistemática entre pares, que gera discriminação, exclusão, humilhação e sofrimento às suas vítimas no ambiente escolar (Lisboa, Wendt e Pureza 2014). Entretanto, não é exatamente esse o conceito que tem sido agenciado no dia a dia por atores como Bianca, Gisela e Zélia, as protagonistas das narrativas deste artigo.

Um aspecto fundamental defendido pelos cientistas é que o bullying se dá sempre em uma relação entre pares escolares, ou seja, embora contemple um cenário de desigualdade de poder entre vítima e agressor, ambos não mantêm entre si uma relação de hierarquia. Além disso, os pesquisadores defendem que se fite tanto a vítima quanto o agressor com maior relativização. Isso porque o agressor oprime porque quase sempre está em sofrimento, ou seja, é também uma vítima. Esta, por sua vez, pode se tornar agressora, com vistas a se defender da violência sofrida (Lisboa, Wendt e Pureza 2014).

Com isso em mente, o relato de Bianca contemplaria o bullying escolar postulado pelos cientistas, porém, ela não vê seus agressores como vítimas, mas, sim, como indivíduos malsucedidos em virtude da violência que perpetraram. Gisela, por seu turno, enxerga o bullying na opressão que diz ter sofrido da parte de uma professora, ou seja, percebe a intimidação em uma relação hierárquica que não é abarcada pelo conceito acadêmico. Por fim, Zélia é talvez a que mais se distancia da noção científica de bullying: ela relata o sentimento de humilhação na infância gerado pela beleza e sofisticação de uma irmã, ou seja, uma situação que, a despeito de indicar paridade, ultrapassa os muros da escola e ingressa no terreno familiar.

Elementos alheios ao conceito original de bullying, como os presentes nos relatos aqui explorados, aparecem muito marginalmente na literatura científica a respeito do tema. Essa constatação ocorre a partir do esforço etnográfico que tenho empreendido a partir de entrevistas com pesquisadores, bem como da análise de artigos e publicações acadêmicos nessa direção.

Em uma postura crítica, advinda da psicologia social, Guareschi e Silva (2008) falam, por exemplo, de bullying nas relações entre professor e aluno. Sob inspiração freiriana, esses autores argumentam que o bullying nesses moldes se origina dos meios de ensino e aprendizagem tradicionalmente empregados nas sociedades ocidentais, pautados não no "diálogo e libertação", mas na "autoridade e domínio", atributos típicos de operação dos regimes capitalistas. Sob essa luz, em entrevista realizada para a tese que subsidia este artigo, Guareschi (2015) defende que o bullying se faz presente não só na escola, mas em outras instituições, como a família.

Todavia, indubitavelmente, não é dessa fonte que bebem os testemunhos de Bianca, Gisela e Zélia. O investimento etnográfico revela que as narrativas delas são, sim, delineadas tomando por modelo relatos de vítimas de bullying continuamente divulgados pela imprensa noticiosa brasileira. Esse molde midiático angaria, por seu turno, elementos da "expertise" psicológica que, segundo Rose (2011), possui hoje "autoridade social" não especialmente por sua fundamentação científica e técnica, mas, sim, "ética", na forma de um "guia" de aconselhamentos para o bem viver.

Para esse autor, embora todos os "experts" das humanidades tenham exercido alguma influência na formatação do "regime do self" contemporâneo, os especialistas psi alcançaram certa prerrogativa nesse meio, posto se voltarem à compreensão dos "determinantes da conduta humana". Em virtude disso, os conhecimentos advindos desse campo conseguiram expressiva permeabilidade nas práticas de outros profissionais, dentre eles, professores, jornalistas e legisladores. Assim, a mídia permanentemente veicula em seus conteúdos "psicologias da vida quotidiana" e "pedagogias de autorrealização", as quais desempenham hoje um papel muito mais subjetivador que as instâncias religiosas e políticas o faziam no passado.

Inseridos nesse contexto, os relatos de Bianca, Gisela e Zélia posicionam-se como "narrativas do self", as quais, de acordo com Rose e Novas (2002,14), "... pluralizam a verdade [acadêmica] [...], introduzindo dúvida e controvérsia e realocando a ciência nos domínios da experiência...".6

Testemunhos de bullying midiatizados

Do ponto de vista de uma antropologia da ciência, Rohden (2012a) argumenta que a mídia não pode mais ser considerada nesse âmbito tão somente como um canal de divulgação dos empreendimentos acadêmicos. Deve, sim, ser visualizada como um "agente produtor", totalmente integrado a uma "rede complexa" composta de conhecimentos e práticas científicas, conteúdos noticiosos e publicitários, políticas públicas de intervenção, bem como de indivíduos e instituições civis atuantes.

Por conseguinte, ainda segundo Rohden (2012b), tal rede abarca um "campo de discursos" que mescla ciência, jornalismo e autoajuda, em uma escala de operação que hoje, graças à evolução das tecnologias de informação e comunicação, não encontra anterioridade. Assim, para a autora, tal agregado discursivo necessita ser visto para além da tradicional ideia de divulgação científica e, sim, sob a ótica de uma "disseminação do conhecimento científico com fins de orientação pessoal", que define um mercado com propósitos lucrativos.

A evidência do bullying nos veículos de comunicação brasileiros, associada a uma infinidade de testemunhos de vitimizados, integra tal cenário. Nesse sentido, a mídia massifica conteúdo oriundo das disciplinas psi, para apoiar sua abordagem noticiosa do quadro de violência contemporâneo, agora abastecido por um componente de agressão moral que a noção de bullying cristaliza. Logo, afirma Misse (2006, 25), a imprensa "... não descreve apenas o que chama de violência, ela também participa da sua construção, é também um dos atores desse drama social".

No esforço de delimitar uma "estrutura básica" dos referidos conteúdos científicos com o fim de "orientação pessoal", cuja mídia é um dos canais de veiculação, Rohden (2012b) destaca que uma característica deles é a presença tanto de testemunhos de indivíduos "comuns", quanto de "casos clínicos" de referência. Tal atributo é perceptível nos depoimentos de vítimas de bullying apresentados por veículos de comunicação de massa atualmente e, desse modo, aparece refletido nos relatos de Bianca, Gisela e Zélia expostos neste artigo.

Na imprensa, de um lado, encontramos narrativas de sujeitos adultos anônimos que justificam, pela via de um autoempoderamento, a superação do bullying infanto-juvenil, gerado em virtude de um certo "estigma" (Goffman 1975), relacionado, por exemplo, à obesidade ou a alguma inaptidão corporal. O enfrentamento à agressão se dá assim pela trilha do êxito pessoal: no primeiro caso, pela adesão a dietas e a uma rotina de exercícios e, no segundo, pelo crescimento no mundo do trabalho e/ou pelo protagonismo em campanhas de não violência.7

De outro lado, os "casos clínicos" da imprensa são os testemunhos de celebridades vítimas de bullying na infância ou na adolescência, cujo sucesso público é assinalado como prova cabal de superação da violência8. Tais depoimentos são quase sempre apresentados como fontes de inspiração para que indivíduos "comuns" sintam-se estimulados a deixar a condição de vitimizados. Esse tipo de conteúdo midiático tem sido reproduzido por obras de autoajuda na temática do bullying, também amplamente publicitadas pela imprensa, como, por exemplo, Silva (2010).9

Tanto os depoimentos midiatizados de adultos anônimos ou célebres, quanto os testemunhos de Bianca, Gisela e Zélia, seguem, em geral, uma estrutura narrativa comum: expõem a agressão sofrida; indicam a presença de um apelido sintetizador do estigma portado; assinalam o caminho trilhado para superação por esforços pessoais e enquadram esse êxito como uma espécie de vingança com relação ao agressor.10 O agressor, por seu turno, não guarda com a vítima necessariamente uma relação de paridade, como preconiza o conceito científico: pratica bullying todo aquele que intimida, seja colega de escola ou de trabalho, professor, vizinho, parente ou até mesmo o internauta, que pode lançar mão do cyberbullying.11

Assim, vê-se que os indivíduos que se anunciam agredidos por bullying têm percorrido uma trajetória bastante peculiar se comparada àquela dos usuais movimentos contemporâneos de vitimizados, como os descritos por Fassin e Rechtman (2009). Percebe-se que essas mobilizações tradicionais experimentam, cada uma em seu contexto e com suas especificidades, processos de "politização" (Zenobi 2014). Este último autor explica que, embora antropologicamente não possa ser empregada como uma categoria de análise homogênea, a "politização" no cenário em questão refere-se a todos os meios relacionais voltados à obtenção da justiça, os quais podem ser considerados adequados ou inadequados pelos atores sociais.

Tal caráter relacional significa que a "politização" de um movimento se dá, imprescindivelmente, pela relação com outros, sejam eles políticos, legisladores, especialistas ou militantes (Zenobi 2014). Trata-se de uma marca não presente na atuação testemunhal das vítimas de bullying, visto que elas vêm denunciando a violência de modo individual e creditando a superação do sofrimento a esforços pessoalizados. E, em vez de falar em meios de reparação, os testemunhos de vitimados por bullying têm focalizado a vendeta como forma de justiça, ao situarem, no presente, o sucesso dos agredidos perante o fracasso dos agressores, na vida pessoal e/ou profissional.

Uma exceção isolada nesse panorama indica ser a Associação Anjos de Realengo, que reúne familiares dos alunos assassinados na escola desse bairro carioca, tragédia já tratada aqui.12 Embora não contemple vítimas diretas de bullying, a entidade tem promovido uma série de esforços de prevenção ao fenômeno, especialmente na semana de 7 de abril de cada ano, data do incidente em Realengo, em vias de se tornar Dia Nacional de Combate ao Bullying, pelo projeto de lei n. 3.015/2011, às vésperas de sanção legal.

Fora esse caso excepcional, percebe-se que as poucas ações de natureza coletiva em torno da vitimização por bullying possuem uma característica de fugacidade. As intervenções são muito mais um ativismo para que um ativismo de vítimas propriamente. São articulações que reverberam algo daquilo que Vecchioli (2006) observa em sua etnografia, entre o grupo de advogados que precede a emergência das associações de familiares de vítimas da repressão militar argentina: entre esses profissionais imperava um "culto ao desinteresse", na medida em que lutavam por um causa pautados pelo "compromisso moral" com outros. A militância, nesse panorama, se coloca como uma "religião cívica", uma "missão transcendente" em prol da humanidade.

Um exemplo nessa direção aconteceu no primeiro semestre de 2015, quando a imprensa repercutiu a mobilização virtual em escala planetária contra o bullying sofrido por um homem obeso.13 Uma foto dele foi tirada enquanto dançava em uma casa noturna inglesa e circulada pela internet, por um indivíduo anônimo, com propósito de ridicularização. Por meio de uma hashtag, internautas ativistas localizaram o homem -que ficou conhecido como "Dancing man"- e, via financiamento coletivo, promoveram uma festa em sua homenagem, apoiada pela presença de celebridades, na qual ele pudesse dançar como quisesse.

As narrativas e ações em torno de vitimados por bullying apontam, portanto, para mecanismos de autoajuda, autofortalecimento e autoestima, altamente dispersos nas sociedades modernas, como "remédios para a desigualdade" (Fonseca 2012). Sob uma ótica foucaultiana, essa autora argumenta que tais mecanismos integram a "racionalidade política" contemporânea, pautada pelo autogoverno dos sujeitos, sobre a qual se tratará a seguir, no fechamento do presente trabalho.

Considerações finais

Este artigo explorou a centralidade dos testemunhos de vítimas no empreendimento moral do bullying como gênero de violência difusa no contexto brasileiro, a partir de um grupo específico de depoimentos: aqueles nos quais adultos reordenam o relato de memórias de agressão infanto-juvenil por meio desse conceito. Procurou-se desvelar o quanto tais testemunhos são emoldurados por saberes das psicociências, mas não de uma forma direta e, sim, mediada pelos veículos de comunicação que, atualmente, pulverizam depoimentos desse tipo.

Porém, não se trata, conforme advertido por Rocha e Eckert (2002), de doutrinação midiática. Ocorre, sim, uma cocriação narrativa, no âmbito da qual todos os atores envolvidos vêm encontrando no rótulo de "vítima de bullying" um meio eficaz para verbalizar o caldo de violência, também de ordem moral, em que se veem imiscuídos na contemporaneidade. Essa agência ultrapassa os limites dos cânones científicos e imprime a eles usos inusitados, adaptados a um cotidiano vivencial e contingente. Conforme se viu, tal quadro, associado a eventos extremos como a tragédia na escola de Realengo, vem alavancando políticas públicas em torno do bullying no país.

Rose (2011, 26) argumenta que os governos democráticos modernos abraçaram por premissa o trato com indivíduos "... intimados a governar a si mesmos como sujeitos de liberdade e de responsabilidade...". Nesse sentido, as tecnologias psicocientíficas e o modelo de self determinado por elas elevaram-se como deveras favoráveis à administração de territórios e populações por uma via de subjetividade, dentro do propósito civilizatório de manejar alteridades, evitar conflitos e promover pacificação social nas democracias. Contemporaneamente, o bullying, no papel de artefato psi, opera com esse mesmo intuito.

Segundo Rose (2011), tal cenário tem feito recair sobremaneira aos profissionais das psicociências a "ingrata imposição" de serem responsáveis por receituários que controlem riscos, previnam condutas inadequadas, evitem eventos desastrosos e, desse modo, assegurem a "segurança da comunidade". Assim, o autor convoca a uma reflexão mais profunda sobre vantagens e malefícios desse modelo de sociabilidade. Diz ele: "... embora nossa cultura do self confira aos humanos [...] todos os tipos de direitos e privilégios, ela também [...] impõe fardos..." (Rose 2011, 14).

A empreitada antropológica está em instigar a seguinte interrogação: quais os custos e os benefícios da propagação do bullying como tecnologia psi na realidade brasileira? Não há como negar que tal conceito tem ofertado uma vitrine nova a uma série de discriminações nacionalmente cristalizadas, como o racismo, a homofobia, a misoginia, a lipofobia, a intolerância religiosa, o preconceito com a deficiência e o ódio de classe. As narrativas de Bianca, Gisela e Zélia, aqui apresentadas, tocam direta ou indiretamente esses temas.

Por um lado, tais "crônicas do sofrimento", no sentido atribuído por Fassin e Rechtman (2009), geram familiaridade perante a audiência quanto a um quadro de violência alastrada. Não obstante, por outro lado, o tom emocional e individualizado que adquirem, sobretudo quando potencializadas pela mídia, simplifica e obscurece contextos históricos, relações sociais e circunstâncias políticas que perpassam as desigualdades movimentadas por esses relatos. Tais desigualdades, que os autores denominam de "inequalities", podem assumir as mais variadas facetas, posto que dizem respeito a vidas corporificadas que valem menos perante outras que valem mais no presente status quo, sendo por isso objetos por excelência de violência.

Pode-se afirmar que, ao empregar a noção de bullying para relatar a intimidação moral que sofreram, as vítimas já adultas têm falado aquilo que uma sociedade orientada pela moldura do self está preparada para ouvir: que é possível superar uma condição de desigualdade pelo esforço e pelo sucesso individuais. Desse modo, a escala sociológica dos conflitos acaba ocultada, ao mesmo tempo que a importante dimensão dos sujeitos como seres eminentemente relacionais fica comprometida. Assim, certamente, a categorização de "vítima de bullying" conduz a novas formas de subjetivação em torno da agressividade, mas estas carecem de um componente sociopolítico robusto.

Uma vez na plataforma midiática, esses testemunhos contribuem para o tratamento da violência como um "sujeito difuso", para usar um termo de Misse (2006), ou seja, um "espectro" presente em toda parte, porém, não perceptível em sua complexidade. Para o autor, em vez de mitigar a violência, esse quadro incentiva um "crescente acusatorial" entre os cidadãos e a exigência de ampliação de Estados punitivos já falidos de longa data, o que se observa hoje no Brasil com os debates em torno da redução de maioridade penal.

Fassin e Rechtman (2009) alertam para o poder de categorias de cunho psicologizante na "economia moral" contemporânea e o quanto é dificultoso escapar a elas. A retórica tanto do "trauma" por eles analisada, quanto da vitimização e do bullying aqui abordadas, são prodigiosas em sua capacidade de fluidez e de sentido nos mais variados domínios sociais da atualidade: no científico, no midiático, no estatal, no educacional, no mercadológico, no subjetivo.

Nesse escopo, à abordagem antropológica, não cabe asseverar se as categorias são boas ou más em sua essência. Nem tampouco, conforme postula Rose (2011), é frutífero apoiar-se na ideia de que existe uma subjetividade a ser recapturada de uma "opressão social". A tarefa da disciplina reside, sim, em dar visibilidade, pela via do potencial etnográfico, àquilo que não é abrangido pelas "histórias oficiais", a saber, as implicações de "técnicas reguladoras" e de seus "sistemas éticos" sobre ideais democráticos tão caros hoje em dia, como a equidade e a liberdade.

Referências

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** Este artigo resulta de pesquisa de doutorado em andamento, sob auxílio de bolsa de estudos ofertada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Brasil.

1Uma versão preliminar deste texto foi discutida no grupo de trabalho intitulado "Antropología, Compromiso Militante y Participación Política. El activismo de las víctimas", realizado durante a XI Reunión de Antropología del Mercosur, em 2015. Agradeço às contribuições dos debatedores e dos participantes que permitiram concretizar o presente artigo.

2Na revisão de literatura nacional e internacional efetuada até o momento, Porter é uma das poucas autoras a assumir uma postura dissidente perante as mundialmente prestigiadas investidas estadunidenses de combate ao bullying. Segundo ela, as políticas de "tolerância zero" à violência nas escolas norte-americanas desconsideram as fases do desenvolvimento psíquico infanto-juvenil, as animosidades típicas entre pares para cada faixa etária e os universos sociais onde se inserem as crianças e jovens objetos das intervenções.

3Para uma análise crítica desse episódio, ver "Tiros em Columbine" (Moore 2002). Nesse documentário, o diretor Michael Moore posiciona o cenário de disponibilidade indiscriminada de armas nos Estados Unidos -e não um quadro de suposto bullying sofrido pelos assassinos- como pano de fundo causador do ataque armado à escola no Colorado.

4A imersão etnográfica no tema demonstra que, atualmente, fala-se, por exemplo, em bullying corporativo, bullying esportivo, bullying familiar e bullying político, especialmente na cobertura midiática, mas também em matérias do legislativo no Brasil.

5As entrevistas têm seguido um mesmo roteiro estruturado de condução, porém, adaptado aos diferentes perfis de interlocutores, que concedem respostas abertas aos questionamentos. As observações, por sua vez, vêm se dando tanto de modo participante quanto não. Todos os dados coletados são sistematicamente transcritos e analisados em diários de campo, que perfazem ferramenta por excelência de reflexão antropológica. Importa ainda esclarecer que a proposta da etnografia não foi submetida a comitê universitário de ética, instância em sua origem orientada por critérios avaliativos aplicáveis às ciências biomédicas. Nesse sentido, o estudo solidarizou-se à causa pelo estabelecimento de uma resolução específica sobre ética em pesquisa nas ciências humanas e sociais, acatada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) no Brasil somente após boa parte da execução do trabalho de campo (Resolução n. 510/2016). Essa decisão política da pesquisadora não significou, sob hipótese alguma, qualquer desatenção ética nos procedimentos de investigação. Dessa forma, tem sido protocolar, por exemplo, o registro do consentimento livre e esclarecido de todas as instituições e sujeitos de pesquisa.

6Tradução minha.

7Exemplos de manchetes nessa direção, do ano de 2015, levantadas a partir da ferramenta de alertas do Google: "Jovem disléxico que sofria bullying vira empreendedor e quer se tornar milionário aos 20 anos" (Época Negócios On-line); "'Mulher mais feia do mundo' lança documentário contra o bullying" (Diário de Pernambuco); "Jovem com doença rara abandona depilação e lança campanha contra o bullying" (Meionorte.com); "Contra o bullying sofrido em lojas, gordinhas criam bazar plus size" (Globo.com); "Vítima de bullying na infância, estudante superou ataques e se prepara para cursar medicina em Harvard" (Diário de Pernambuco); "Vítima de bullying por ser pobre, ex-vendedor de cocadas conclui 5 graduações" (Administradores.com); "Cansado de sofrer bullying, jovem do interior do RJ faz dieta e perde 50 kg" (Globo.com). Aqui se indica apenas uma fonte para cada notícia, mas importa ressaltar que muitas delas são replicadas, com poucas modificações, em vários outros veículos.

8Exemplos de celebridades nacionais e internacionais que declararam publicamente em 2015 terem sido vítimas de bullying na infância e/ou adolescência: Thaila Ayala (atriz); Victor (cantor); Dave Mustaine (cantor); Sam Smith (cantor); R.J. Mitte (ator); Rumer Willis (atriz/modelo); Fernanda Vasconcellos (atriz); Juliana Alves (atriz); Kylie Jenner (modelo); Marina Ruy Barbosa (atriz); Ralph Lauren (estilista); Maisa Silva (atriz); Alessandra Ambrósio (modelo/atriz); Kate Winslet (atriz); Uriah Hall (lutador/UFC); Ana Paula (ex-jogadora/vôlei); Henry Cavill (ator); Jessica Eye (lutadora/UFC); Johnny Deep (ator) e Sophia Abrahão (atriz/cantora).

9Um dos capítulos desse livro se intitula "Sucesso e reconhecimento dos que superaram o bullying" e reúne histórias, pinçadas da mídia, das seguintes personalidades: Michael Phelps (nadador); Kate Winslet (atriz); Tom Cruise (ator); Madonna (cantora); David Beckham (jogador/futebol); Steven Spielberg (cineasta) e Bill Clinton (político). Os cientistas, de seu lado, ao perceberem esse tipo de expediente em materiais sobre bullying, têm empreendido suas críticas; nesse sentido, ver Stelko-Pereira, Santini e Williams (2012) e Gibaldi (2014).

10Exemplos de manchetes nessa direção, do ano de 2014: "Isabeli Fontana diz ter sofrido bullying: 'O sucesso é a maior vingança'" (Globo.com); "Jovem vítima de bullying 'se vinga' e dá fora em colega 10 anos depois" (Correio 24 Horas); "Thaila Ayala diz que bullying sofrido no colégio ajudou a compor nova personagem" (Olhar Direto).

11Exemplos de manchetes nessa perspectiva de 2014 e de 2015: "Não é brincadeira: como o 'bullying corporativo' destrói profissionais e empresas" (Administradores.com); "Bullying de irmãos: quando a briga passa dos limites" (Revista Crescer); "Cresce número de professores vítimas de bullying por pais de alunos, diz estudo" (Agência O Globo); "Bullying é realidade e parte até de professor" (O Tempo); "Ginastas pedem desculpas por bullying racista com colega da seleção brasileira" (Portal R7); "Alienação parental e os prejuízos causados a criança ou adolescente: o chamado bullying familiar" (Diário da Manhã); "O persistente bullying midiático sobre o PT" (Jornal do Brasil); "Bullying' nas relações conjugais - palavras que machucam!" (JusBrasil); "A culpa na educação dos filhos vem do bullying materno" (Globo.com).

12 Mais informações sobre a associação estão disponíveis em: https://www.facebook.com/osanjos.derealengo?fref=ts

13Sobre esse fato, cf. fontes como Zero Hora http://migre.me/rLFmo e Brasil Post http://migre.me/rLFkz

Recebido: 16 de Abril de 2016; Aceito: 21 de Setembro de 2016

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