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Revista de Estudios Sociales

Print version ISSN 0123-885X

rev.estud.soc.  no.74 Bogotá Oct./Dec. 2020

https://doi.org/10.7440/res74.2020.06 

Dossier

As mídias digitais como ferramentas de manipulação de processos eleitorais democráticos: uma análise do caso Brexit*

Los medios digitales como herramientas de manipulación de procesos electorales democráticos: un análisis del caso Brexit

Digital Media as a Tool of Manipulation in Democratic Electoral Processes: An Analysis of the Brexit Case

Danielle Jacon Ayres Pinto** 

Isabela Moraes*** 

**Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Professora adjunta da graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (Geppic, www.geppic.ufsc.br). Últimas publicações: “Russia, BRICS and Cyber Power: Evoking Synergies under Conjectures of Deviation” (coautora). Journal of China and International Relations (Special Edition): 83-97, 2020; “Debates contemporâneos sobre autonomia privada decisória: transgêneros, identidade genética e eutanásia” (coautora). Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais 4: 1-22, 2018. djap2222@yahoo.com ou danielleayres@gmail.com

*** Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Pesquisadora associada do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (Geppic, www.geppic.ufsc.br). isabermoraes@gmail.com


RESUMO

O ano de 2016 é entendido como um marco na política internacional. As vitórias do Brexit e de Donald Trump marcam a ascensão da direita radical no Ocidente e a institucionalização do que se costumou denominar como era da pós-verdade. Em ambos os acontecimentos, observou-se o descaso com valores democráticos e a adoção de um discurso excludente para atingir objetivos de um grupo político específico. Nesse contexto, emerge uma ampla literatura que busca compreender como chegamos a esse cenário de descrença nas instituições e na veracidade dos fatos. Este artigo busca encaixar-se entre essas contribuições, uma vez que oferece uma interpretação acerca do atual contexto de enfraquecimento dos valores e dos processos democráticos por meio de uma estratégia digital de manipulação da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE Brexit; democracia; direita radical; marketing político digital; mídias digitais

RESUMEN

El 2016 se entiende como un hito en la política internacional. Las victorias del Brexit y de Donald Trump marcaron el ascenso de la extrema derecha en Occidente y la institucionalización de lo que se empezó a denominar “era de la posverdad”. En ambos sucesos, se observó un descuido de los valores democráticos y la adopción de un discurso excluyente para alcanzar los objetivos de un grupo político específico. En ese contexto, empieza a surgir una amplia literatura que busca comprender cómo llegamos a este escenario de desconfianza en las instituciones y en la veracidad de los hechos. Este artículo busca enmarcarse dentro de estos aportes, pues brinda una interpretación acerca del actual contexto de debilitamiento de los valores y los procesos democráticos por medio de una estrategia digital de manipulación de la sociedad.

PALABRAS CLAVE Brexit; democracia; extrema derecha; marketing político digital; medios digitales

ABSTRACT

The year 2016 is considered a milestone in international politics. The victories by Brexit and Donald Trump marked the rise of the extreme right in the West and the institutionalization of what became known as the “post-truth era”. In both instances, there was a disregard for democratic values and the adoption of an exclusionary discourse to pursue the objectives of a specific political group. It is against this background that a vast body of literature is beginning to emerge on how we came to mistrust institutions and the veracity of facts. This article is intended to be part of these contributions, as it provides an interpretation of the current context of the weakening of democratic values and processes through a digital strategy of societal manipulation.

KEYWORDS Brexit; democracy; far right; digital media; digital political marketing

Introdução

Nos últimos anos, diversos países ocidentais vivenciaram a ascensão do radicalismo de direita, que conquistou vitórias eleitorais e programáticas significativas. As vitórias do Brexit, no Reino Unido, e de Donald Trump, nos Estados Unidos, despertaram preocupação com as instituições e os valores democráticos sob ataque em ambas as campanhas. Esses avanços da direita radical aconteceram em um contexto de crescente digitalização das campanhas políticas, que passaram a ocorrer majoritariamente no ambiente digital. A Vote Leave, campanha oficial pelo Brexit, investiu metade de seu orçamento em uma empresa de marketing político com base em análise de dados. De forma semelhante, Donald Trump dedicou 44% de seu orçamento de propaganda às mídias digitais. Portanto, este artigo coloca como problema central a ideia de que no cerne desse fenômeno internacional de erosão da democracia está uma estratégia digital, empregada especialmente pela direita radical, a fim de manipular processos democráticos. Argumenta-se, também, que a própria estrutura do ambiente digital faz deste um espaço propício para discursos excludentes e autoritários. Por essa razão, o artigo aborda os mecanismos que operam nas mídias digitais, bem como as possibilidades de exploração desse espaço para manipulação da opinião pública, com o intuito de compreender de que forma as mídias digitais influenciam processos democráticos. O referencial teórico utilizado centra-se no debate sobre a participação democrática do cidadão nos processos consultivos do Estado e nas análises de marketing digital como ferramenta política. No artigo, conclui-se que a manipulação das mídias digitais em estratégias de marketing político representa uma ameaça à democracia, pois deturpa a noção de agência do cidadão. Como estudo de caso, é analisada a estratégia digital desenvolvida nas campanhas pela saída do Reino Unido da União Europeia, posteriormente replicada por Donald Trump em sua campanha eleitoral para presidência dos Estados Unidos.

Mídias digitais: instrumento de poder ou contrapoder?

A difusão da internet, na década de 1990, transformou a sociedade industrial no que Castells (2007) chama de “sociedade em rede”, caracterizada por redes horizontais de comunicação que conectam o mundo em tempo real. Trata-se de um sistema autodirecionado de comunicação em massa, no qual os indivíduos exercem um papel ativo, independentes dos canais da mídia tradicional, e têm possibilidade de alcance mundial (Castells e Cardoso 2005). Essa variedade de canais de comunicação on-line, que contempla redes sociais, sites e fóruns de notícia, constitui o que se denomina mídias digitais. A rápida popularização dessas mídias em poucos anos as tornou um elemento central na configuração social, política e cultural da sociedade contemporânea (D’Ancona 2018; Gibson et al. 2003).

O potencial dessa nova rede de comunicação fez-se evidente logo de início, e em especial com a crescente adesão da população aos dispositivos móveis. Em 2006, a internet já conectava dois bilhões de pessoas por meio desses dispositivos (Castells 2007). Essa disseminação da banda larga de alta velocidade “transformou a internet do meio mais barato e mais rápido de publicação já inventado em algo que teria um impacto cultural, comportamental e filosófico muito mais profundo” (D’Ancona 2018, 50). Formou-se, com ela, um novo espaço de manifestação da opinião pública, com possibilidades de alcance e agilidade na comunicação inéditas.

Essas possibilidades suscitaram uma grande expectativa na literatura de comunicação, bem como da ciência política, que passou a argumentar que se inaugurava a era da democracia digital (Negroponte 1995). A expectativa com o surgimento das redes sociais no início dos anos 2000 era de que essa nova forma de comunicação aumentaria a participação popular e daria voz aos oprimidos, permitindo iniciativas bottom up.1 Assim, a internet atuaria como uma ferramenta democratizante (Farkas 2018), dando ao indivíduo não só um papel passivo, de escolher seus líderes no pleito democrático, mas também de ser efetivamente ativo, participando de alguma forma nas decisões que seriam tomadas no espectro do Estado.

A emergência de levantes sociais organizados on-line2 ao fim da primeira década dos anos 2000 reforçou a corrente de literatura caracterizada pelo otimismo com relação ao ambiente digital. As insurreições da Primavera Árabe em 2010 e o Occupy Wall Street em 2011, convocadas pela internet e divulgadas ao vivo para todo o mundo em redes sociais, serviram para reafirmar o entendimento da internet como uma ferramenta de contrapoder.

Embora predominante, o otimismo digital não foi hegemônico na literatura sobre os impactos políticos da internet. Bimber (1998) alertou para o potencial das mídias digitais de favorecer o populismo em razão da possibilidade de comunicação não mediada entre cidadãos e governo. Cass Sunstein (2009) e Markus Prior (2007) demonstraram preocupação de que a possibilidade de indivíduos selecionarem o que gostariam de ler pudesse comprometer a diversidade de ideias.

Morozov (2010) enfatiza que a disseminação das mídias digitais, ao contrário do que os autores da “utopia digital” previam, parece não ter fortalecido as instituições democráticas ao redor do mundo ou ter criado uma nova cultura de participação política. Em vez disso, o autor argumenta que, ao longo das últimas duas décadas, essa rede de comunicação e informação ampliou as forças políticas já existentes e tornou a política ainda mais inflamável, de forma que “cada vez mais a internet parece uma versão sobrecarregada do mundo real” (Morozov 2010, [s. p.]).

De forma semelhante, Kakutani (2018, 151) argumenta que, nos últimos anos, a internet demonstrou ser uma ferramenta que “agentes mal-intencionados podem explorar facilmente para espalhar informações errôneas e desinformação, crueldade e preconceito”. Hindman (2009), Schiffrin (2017) e Farkas (2018) também argumentam que a crença no efeito democratizador das mídias digitais é equivocada. Essa percepção é uma tendência geral da literatura recente sobre internet, o que Morozov chama de uma “era de sobriedade digital” (Morozov 2018, 7).

Manuel Castells argumentou, já em 2007, que o sistema comunicacional e informacional é historicamente uma fonte de contrapoder e também de poder; um instrumento de transformação social mas também de domínio, demonstrando claramente o perigo que a democracia e as sociedades estão expostas diante dessa nova dimensão da interação humana. Isso porque o poder, enquanto capacidade de influenciar as decisões em seu favor, só pode ser exercido por meio do controle das ideias. Portanto, a comunicação é essencial à medida que permite influenciar os valores e as normas (Castells 2007). Assim, é fato que as ferramentas disponíveis na internet não foram utilizadas apenas pela população. Essa nova esfera da vida pública logo passou a ser explorada também pelo marketing político, que precisou redefinir suas estratégias para desenvolver campanhas eleitorais adaptadas ao ambiente digital (Gibson et al. 2003).

A digitalização do processo democrático

O primeiro uso da internet em campanhas eleitorais ocorreu ainda no início dos anos 1990, nos Estados Unidos, com o emprego de computadores para envio de correspondências a distância (Gomes et al. 2009). Na segunda metade dos anos 1990, o marketing político passou a desenvolver websites para compilar as informações sobre candidatos. Desde então, surgiram literaturas dedicadas ao uso da internet para fins políticos. Ao fim da primeira década dos anos 2000 foram desenvolvidas as primeiras campanhas pós-web, nas quais se fez uso da internet para além da criação de websites. Essas campanhas caracterizam-se pela participação ativa do público na produção e propagação de conteúdo (Gomes et al. 2009).

A eleição presidencial dos Estados Unidos em 2008 é entendida como um marco no uso de mídias digitais em eleições, por ter sido a primeira vez em que as redes sociais foram utilizadas como um elemento central em uma campanha política. A equipe de Barack Obama, na época senador, contratou Chris Hughes, um dos fundadores do Facebook, para desenvolver sua campanha on-line. Somente nessa rede social a campanha de Obama investiu 643 mil dólares (Gomes et al. 2009).

Desde então, a priorização das mídias digitais consiste em uma tendência crescente no marketing político. Karpf (2017) enfatiza o novo patamar ao qual o ambiente digital foi elevado na campanha de Donald Trump, que dedicou 44% de seu orçamento de propaganda às mídias digitais, ao passo que seus concorrentes investiram aproximadamente 8%. O autor também destaca como Trump utilizou redes sociais em seu favor para conseguir cobertura midiática gratuita. Assim, pode-se considerar que a eleição de Donald Trump representa um novo momento nas campanhas políticas, nas quais o caráter digital passar a ser o elemento principal (Karpf 2017).

Atualmente, o marketing político emprega uma combinação entre análise de dados e campanha política personalizada, estratégia denominada microtargeting político. Nela, os rastros do comportamento on-line de cada indivíduo - posts que curte, páginas que segue e pesquisas que faz nos sites de busca, bem como os testes de personalidade aos quais responde - são coletados pelos mais diversos sites e vendidos a empresas de marketing político (Borgesius et al. 2018). Cada uma dessas informações consiste em um data point,3 e a quantidade sem precedentes de data points acumulada pelas empresas de tecnologia é denominada big data. Juntas, essas grandes empresas, popularmente chamadas de big five - Google, Microsoft, Facebook, Apple e Amazon - superam facilmente todos os bancos de dados e sistemas de arquivos que existiram na história humana (D’Ancona 2018, 51).

Por meio das informações coletadas digitalmente, é possível traçar um perfil do usuário, desde seu posicionamento político até os traços de sua personalidade. A partir disso, determina-se uma estratégia política para conversão do indivíduo em eleitor. O perfil do usuário é utilizado para observar com quais temáticas ele demonstra maior preocupação e, assim, determinar a quais mensagens ele é mais suscetível. Portanto, pessoas com diferentes características serão alvos de campanhas diferenciadas, cada qual de acordo com o seu perfil (Gorton 2016).

Nesse sentido, tais táticas do marketing político na esfera digital aparentam uma ação democrática, mas na verdade estão relegando o indivíduo ao espaço mais limitador da sua agência em uma democracia, ou seja, a somente eleger um candidato ou decidir sobre algum tema de forma coletiva. Como afirma O’Donnell (2010), apesar de ser um preceito democrático e desejado a participação do cidadão no pleito para escolher seus governantes ou para decidir questões de grande porte em referendos e plebiscitos, sua agência é limitada se só essa for sua função. Isso porque as principais pressões e tomadas de decisão se dão efetivamente quando os eleitos passam a agir politicamente como parte do Estado em seus cargos eletivos. Se o cidadão não tiver como influenciar esse processo, ele corre o risco de, democraticamente, ser uma marionete nas mãos de grandes grupos que, com grandes recursos financeiros e com marketing político digital, deturpam a visão dos temas para o cidadão e o moldam a decidir muitas vezes contrariamente às próprias demandas e necessidades. O caso do Brexit, abordado neste artigo, é o mais emblemático nesse sentido.

Para reforçar essa percepção sobre a democracia e a participação do cidadão nesse processo, podemos também citar a ideia de Robert Dahl (1989) quando ele fala de poliarquia. Para Guillermo O’Donnell (2010), tal ideia de Dahl pode ser considerada uma efetiva conceituação das ações que uma democracia deve privilegiar. Vejamos:

1. Funcionários eleitos. O controle das decisões governamentais sobre as políticas públicas é concedido pela constituição aos funcionários eleitos. 2. Eleições livres e limpas. 3. Os funcionários são eleitos e removidos de seus cargos por meios pacíficos em eleições periódicas e limpas, em que a coação é comparativamente pouco comum. 4. Praticamente todos os adultos têm o direito de se apresentar para ocupar cargos públicos. 5. Liberdade de expressão. 6. Informação alternativa, fontes alternativas de informação que sejam protegidas por lei. 7. Autonomia de associação. (Dahl 1989, 120)

No caso do Brexit e da utilização de mídias digitais para convencer o cidadão sobre uma determinada visão da realidade, percebemos que os pontos 5 e 6 da definição de Dahl, respectivamente liberdade de expressão e informação alternativa, foram utilizados de forma deturpada, visto que, em vez de promoverem mais democracia, fizeram exatamente o contrário. Esses recursos foram utilizados para produzir uma falsa sensação de participação quando privilegiaram não um debate político, mas sim um convencimento do cidadão por meio de uma retórica psicológica, como veremos adiante. Assim, tais grupos utilizaram a democracia contra ela mesma, construindo uma realidade que podemos chamar de pós-verdade e que se alastrou mundo afora pelos grupos de direita radical.

A lógica das mídias digitais

Farrell (2012) aponta que, para compreender a relação entre internet e política, faz-se necessário conhecer os mecanismos do espaço político, o qual é influenciado pela internet. A partir desse entendimento, esta seção dedica-se a analisar os mecanismos que operam no ambiente on-line e suas possibilidades.

O efeito homogeneizador da internet é um atributo de frequente destaque na literatura, a partir do qual surgem diversas implicações. McPherson, Smith-Lovin e Cook (2001) e Farrell (2012) argumentam que a expectativa inicial de que pessoas das mais diversas culturas e ideologias poderiam se unir por meio das mídias digitais não é compatível com a estrutura do ambiente on-line. Isso porque operam, nesse espaço, mecanismos de seleção homogênea, que favorecem a criação de grupos com indivíduos de ideias semelhantes, fenômeno denominado homofilia da internet (Farrell 2012; McNamee 2018; McPherson, Smith-Lovin e Cook 2001).

Pariser (2011) enfatiza um importante mecanismo de homogeneização no ambiente on-line, o qual denominou filtros-bolha. Trata-se de ferramentas pelas quais as mídias digitais filtram o comportamento dos indivíduos para fazer previsões dos conteúdos compatíveis com cada usuário. Dessa forma, o conteúdo oferecido para cada pessoa é personalizado de acordo com os rastros de suas atividades on-line. Cliques, curtidas e visualizações são captados por algoritmos das mídias digitais, que traçam um perfil com base nessas informações, determinando o conteúdo a ser oferecido. Assim, os resultados de uma pesquisa em um buscador ou os anúncios apresentados no feed de uma rede social serão determinados pelo histórico de cada indivíduo (McNamee 2018). Dessa forma, os filtros-bolha alteram fundamentalmente a maneira como encontramos as informações na internet (Pariser 2011).

As mídias digitais proporcionam, ainda, a capacidade de cada indivíduo pré-selecionar os conteúdos que deseja receber por meio das páginas que curte, das pessoas que segue, dos amigos que decide adicionar ou excluir. O usuário pode selecionar o viés das notícias que receberá e deixar de seguir pessoas com quem não concorda (Bossetta, Dutceac Segesten e Trenz 2017). Assim, as mídias digitais, e especialmente as redes sociais, funcionam como câmaras de eco - elas refletem, em grande parte, as opiniões do usuário, e limitam sua exposição a pontos de vista diferentes (D’Ancona 2018; Keen 2009; Pariser 2011; Sunstein 2009)

O ambiente on-line caracteriza-se também por sua capacidade de dar voz a qualquer pessoa. Essa possibilidade, inicialmente entendida como algo positivo, é, por outro lado, alarmante. Nesse espaço não se faz necessário qualquer conhecimento ou autoridade para ter acesso a uma audiência, de forma que a qualidade das informações propagadas tende a ser menos confiável. Keen (2009) argumenta que, por meio das mídias digitais, a sabedoria das multidões tomou o espaço do conhecimento legítimo e dificultou o discernimento entre conhecimento e opinião. Para o autor e antigo empreendedor do Vale do Silício, “o que a revolução da internet realmente está entregando são observações superficiais sobre o mundo ao nosso redor, ao invés de análises profundas; opiniões rasas ao invés de julgamentos cuidadosos” (Keen 2009, 16), mas que para os seus propagadores são as verdades que moldam a sociedade.

Essa enorme quantidade de pessoas ativas na criação de conteúdo também dificulta a averiguação de sua veracidade, favorecendo a desinformação. Por desinformação, entende-se notícias qualificadas como falsas, parcialmente falsas ou formadas por conceitos distorcidos (Instituto Tecnologia e Equidade 2018, 16). Assim, a transformação de todos os indivíduos em fontes de conteúdo é uma primeira característica do ambiente digital que favorece a disseminação de notícias falsas, popularmente denominadas fake news. Soma-se a isso os filtros-bolha e a capacidade de controle seletivo, mencionados anteriormente, e tem-se uma ampla variedade de fontes com audiências específicas. Dessa maneira, o controle de veracidade das informações compartilhadas no ambiente digital torna-se ainda mais difícil. Para Hannah Arendt “A presença de outros que veem o que nós vemos e escutam o que nós escutamos é o que nos garante a realidade do mundo” (Arendt 1958, 50). A personalização da internet, no entanto, torna quase impossível a verificação dos conteúdos que chegam aos usuários.

Kakutani (2018), Keen (2009) e McNamee (2018) apontam ainda outra importante lógica de funcionamento do ambiente digital: o déficit de atenção. A ampla variedade de conteúdos disponíveis na internet resulta em uma dificuldade em captar a atenção do usuário. Por isso, algumas redes sociais adotam o que McNamee (2018) chama de algoritmos de maximização de atenção. Trata-se de algoritmos que favorecem mensagens simplistas e provocativas, por entender que essas possuem maior probabilidade de gerar engajamento. Além de simples, também possuem vantagens os conteúdos negativos por chamarem mais atenção do que as mensagens positivas. Por essa razão, aqueles que desejam captar a atenção no espaço digital optam por conteúdos viralizantes, com mensagens sensacionalistas “que apelam diretamente para a parte mais rudimentar de nossos cérebros - para emoções primitivas como medo, ódio e raiva” (Kakutani 2018, 151).

As consequências da utilização das mídias sociais para o processo democrático

Observa-se, portanto, que os mecanismos que operam no ambiente digital e caracterizam sua estrutura tornam-no mais ou menos propício a determinados atores e ações, de forma que esse ambiente não consiste em uma esfera pública neutra para o debate democrático, muito pelo contrário. As possibilidades criadas por esse espaço favorecem discursos radicais e, em especial, o radicalismo de direita. Nesta seção são analisadas as consequências políticas dos elementos caracterizantes das mídias digitais previamente abordados.

A possibilidade de desenvolver campanhas personalizadas, proporcionada pelo ambiente digital, transformou as campanhas políticas de públicas em individuais. As implicações dessa mudança sobre o processo democrático de voto são diversas. Enquanto na televisão e no rádio as propagandas eleitorais eram frequentes e plurais, a internet possibilita ao eleitor acompanhar apenas a campanha daquele candidato com o qual possui afinidade prévia, sendo possível privar-se inteiramente das propostas dos partidos dos quais discorda (Gorton 2016). Assim, é possível que essa ampla possibilidade de controle seletivo proporcionado pelo ambiente digital resulte em uma redução da esfera pública e da participação do cidadão nesse espaço, ao contrário do que esperavam os otimistas da internet (Gorton 2016; Kakutani 2018).

Por sua vez, a homofilia da internet - provocada por filtros-bolha e câmaras de eco - contribui para o reforço das convicções dos usuários, de forma que esses passem a adotar posicionamentos mais extremos. Sunstein (2009) demonstra que a separação física ou psicológica de indivíduos em grupos favorece um sentimento de suspeita com relação aos não membros, de modo que as informações e opiniões daqueles que são de fora do grupo passam a ser desacreditadas. O debate entre pessoas que pensam parecido muitas vezes é terreno fértil para movimentos extremos; por essa razão a estratégia de isolamento e reforço de opiniões é comum em grupos terroristas (Sunstein 2009). Esse caráter homogeneizador do ambiente digital também preocupou o filósofo estadunidense Hilary Putnam, que apontou o risco de um cyberapartheid (Hindman 2009). Portanto, a lógica de funcionamento das mídias digitais contribui para uma radicalização das ideias, favorecendo autoritarismos em detrimento de valores democráticos.

O acesso restrito aos anúncios de um candidato impõe ainda um empecilho à fiscalização das informações por ele disseminadas, o que aumenta a propensão à desinformação e compromete a transparência do processo democrático de voto (Gorton 2016). Há ainda a possibilidade de o eleitor ter uma percepção deturpada a respeito das prioridades do partido, uma vez que a campanha passa a ser adaptada aos interesses de cada pessoa. A falta de transparência das prioridades do partido gera um problema de accountability - enfraquece o compromisso do candidato com o eleitor e dificulta a avaliação das ações do governo (Borgesius et al. 2018) -, mas legitima-se quando a ideia é de que, ao votar, o cidadão já está exercendo a democracia em sua plenitude.

O déficit de atenção, caracterizado pela abundância de conteúdos disponíveis na internet, faz com que se destaquem aqueles que contêm mensagens diretas e chamativas, capazes de despertar emoções (Keen 2009; Kakutani 2018; Klinger e Svensson 2014). Nesse ambiente favorável a conteúdos sensacionalistas, a racionalidade, a busca pela verdade e pela formação de um consenso, essenciais para o processo democrático, são dificultadas (Deibert 2019). O risco de extremada polarização política, evidente nas mídias digitais, também preocupa Diamond:

Truth and civility, two of the most precious requisites for sustainable democracy, quickly become victims of this escalating information warfare, and the culture of democracy-of mutual tolerance, respect, and restraint-is severely degraded. It is hard to imagine that social media are not playing a significant role in the pervasive trend of deepening political polarization and increasingly strident, abusive politics in democracies around the world. (Diamond 2019, 22)

Outra importante implicação política do déficit de atenção consiste no favorecimento de retóricas populistas. No discurso populista, os problemas complexos da sociedade são reduzidos a um antagonismo entre o povo e a elite, e as soluções apresentadas para resolvê-los são fáceis e generalistas. Além de propostas simplistas, o líder populista adota uma linguagem fácil, com o intuito de se parecer com as massas (Bartlett 2014). O uso de humor e do politicamente incorreto também são traços frequentes dessas lideranças, assim como o apelo às emoções (Laclau 2005; Mudde 2004). Portanto, o estilo populista de discurso adapta-se bem ao ambiente digital, marcado pelo déficit de atenção.

A oposição ao statu quo, que inclui o establishment político e as mídias tradicionais, é outro elemento central no populismo. Sua retórica enfatiza o distanciamento da classe política, apontada como traidora da população. A mídia tradicional e quaisquer formas de intermediação também são atacadas, acusadas de representarem apenas os interesses da elite governante. Dessa maneira, o líder carismático apresenta-se como o único verdadeiro representante do povo, um indivíduo de fora do establishment (Betz 2004; Hainsworth 2008; Mudde 2004). As mídias digitais, por sua vez, são entendidas como um espaço essencialmente popular, em que qualquer cidadão possui poder de voz e não se faz necessária a intermediação das instituições políticas ou da imprensa. Esse ambiente possibilita ainda uma comunicação direta entre o líder populista e seus seguidores, o que fortalece a visão desse líder como um integrante das massas. Assim, o ambiente digital é adotado pela liderança populista e seus apoiadores como um espaço de subversão do que entendem ser a política tradicional (Engesser, Fawzi e Larsson 2017).

Há, ainda, outra importante consequência da digitalização das campanhas políticas. Os mecanismos que operam no ambiente digital fazem deste um espaço favorável à ascensão do radicalismo de direita. Isso ocorre por haver diversas intersecções entre a lógica de funcionamento das mídias digitais e as características dessa família de partidos, conforme demonstra a Tabela 1.

Tabela 1 Intersecções entre o populismo radical de direita e o ambiente digital 

Fonte: elaborada pelas autoras, com base em Engesser, Fawzi e Larsson (2017).

A direita radical tem como elementos centrais a defesa de uma sociedade homogênea e uma noção restrita de cidadania (Betz 2004), promovida por meio de uma retórica populista que enfatiza uma distinção entre o “povo” e “o outro” (Laclau 2005). Enquanto esses partidos buscam construir uma fronteira interna, que divide o espaço social em dois campos (Laclau 2005), as mídias digitais operam por meio de mecanismos que agrupam semelhantes, traçando uma fronteira virtual (Bartlett 2014; Engesser, Fawzi e Larsson 2017).

Por sua vez, o déficit de atenção, característico das mídias digitais, favorece mensagens simples e emotivas, especialmente aquelas que despertam emoções negativas. Dessa forma, o discurso inerentemente provocativo da direita radical, pautado na construção da fronteira interna que demanda a mobilização de emoções contrárias a um determinado grupo, possui as características necessárias para viralizar no ambiente digital (McNamee 2018). A incitação do medo, central no discurso da direita radical, é realizada com frequência por meio da propagação de informações falsas (Bartlett 2014; Kakutani 2018). Dessa maneira, o ambiente digital mais uma vez responde positivamente às necessidades da direita radical, visto que oferece um espaço propício à desinformação.

O ano de 2016 evidenciou que os partidos de direita radical estão conscientes das oportunidades disponíveis na internet. A manipulação desse espaço por essa família de partidos resultou em significativos avanços do radicalismo de direita em todo o Ocidente. As campanhas pelo Brexit desenvolveram uma estratégia digital bem-sucedida, posteriormente replicada por Donald Trump na eleição estadunidense de 2016. Por essa razão, a seção seguinte se dedica a analisar essa estratégia.

Brexit: um modelo de campanha digital

Convocado pelo então primeiro-ministro David Cameron, o referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia foi realizado em 23 de junho de 2016. O resultado de 51,89% de votos favoráveis à saída representa o sucesso das campanhas Vote Leave e Leave EU, elaboradas respectivamente pela ala mais radical do Partido Conservador e pelo Partido pela Independência, um partido de direita radical em ascensão nos anos que precederam a consulta pública. Desde o resultado, ambos os parlamentos, inglês e europeu, têm questionado as práticas empregadas na campanha pela saída, mais especificamente suas práticas antidemocráticas no ambiente digital (Cadwalladr 2017).

Os grupos pró-Brexit priorizaram estratégias focadas em mídias digitais. A Vote Leave dedicou 3.9 milhões de libras (mais da metade do orçamento de campanha, cujo limite é 7 milhões de libras) à empresa canadense AggregateIQ (AIQ) (Cadwalladr 2017). Trata-se de uma empresa de análise de dados para fins políticos, contratada para prestar serviços de microtargeting. Por sua vez, a Leave EU foi beneficiária de serviços da Cambridge Analytica (CA)4 que, de forma semelhante, realiza comunicação estratégica para campanhas políticas por meio de big data.

A contratação de empresas de comunicação estratégica com base em análise de dados para coordenar as campanhas em prol da saída demonstra a importância concedida por esses grupos ao ambiente digital, o que coloca o Brexit como um marco do novo momento das campanhas políticas, apontado por Karpf (2017), no qual o caráter digital passa a ser o principal elemento.

Alexander Nix, CEO da CA, afirma que o diferencial da empresa consiste em substituir perfis demográficos, tradicionalmente utilizados como base para a formulação de campanhas políticas, por perfis psicológicos. Essa estratégia, denominada psychometric profiling, consiste em desenvolver perfis do eleitorado com base em seus traços de personalidade, por entender que há mais determinantes ao comportamento de um indivíduo do que suas características demográficas, como gênero, idade, naturalidade, renda e raça (Concordia 2016). Essa estratégia origina-se na teoria Five Factor Model, da literatura de psicologia, também conhecida como modelo Ocean:5

The most widespread and generally accepted model of personality is the five-factor model of personality (FFM). FFM was shown to subsume most known personality traits, and it is claimed to represent the basic structure underlying the variations in human behavior and preferences, providing a nomenclature and a conceptual framework that unifies much of the research findings in the psychology of individual differences. (Lambiotte e Kosinski 2014, 1)

A Tabela 2 apresenta cada um dos cinco traços de personalidade existentes, de acordo com o modelo.

Tabela 2 Modelo de cinco fatores (Ocean) 

Fonte: elaborada pelas autoras, com base em Lambiotte e Kosinski (2014).

Michael Kosinski, especialista em psychometrics da Universidade de Cambridge, desenvolveu um método no qual se busca inferir o perfil de personalidade de indivíduos (de acordo com o modelo Ocean) com base em informações sobre seu comportamento on-line (big data) (Lambiotte e Kosinski 2014). Esse estudo serviu de base para a criação da CA e da AIQ, que operacionalizaram o método (Cadwalladr 2017). Dessa maneira, a estratégia de campanha digital formulada pela CA divide-se em três etapas: coleta de dados, análise dos dados (psychometrics profiling) e disparo de mensagens personalizadas (microtargeting) (Concordia 2016).

Primeiramente, realiza-se a coleta de dados por meio de múltiplas fontes. Entre elas, destaca-se o Facebook, que oferece diversas possibilidades de coleta. Nessa rede social foram aplicados testes de personalidade, que concederam acesso aos dados do usuário que respondesse ao quiz, bem como de todos seus amigos adicionados (Cadwalladr 2017). De acordo com o Facebook, dados de até 87 milhões de pessoas podem ter sido indevidamente compartilhados com a CA (Kakutani 2018).

Outra estratégia empregada para coleta de dados por meio das redes sociais foi anúncios de apostas ou petições on-line, que concedem acesso aos dados do usuário que os abre. Por fim, a CA também adquire dados de corretoras de big data, como a Acxiom e a Experian (Concordia 2016). A Figura 1 contém exemplos de anúncios aplicados pela campanha Vote Leave na primeira etapa, a fim de coletar dados de indivíduos no Reino Unido.

Fonte: site do Parlamento do Reino Unido.6

Figura 1 Anúncios de apostas e petições aplicados pela Vote Leave 

A figura apresenta anúncios veiculados no Facebook durante o referendo, posteriormente entregues ao Parlamento do Reino Unido durante as investigações sobre a campanha. No total foram entregues 50 milhões de anúncios diferentes, aplicados pela campanha Vote Leave nessa rede social.7 Essa base de dados permite observar a variedade dos temas abordados nos anúncios, com intuito de despertar o interesse de diferentes públicos. O primeiro anúncio, que oferece uma recompensa em dinheiro para adivinhar o resultado do campeonato europeu de futebol, seria atrativo para indivíduos interessados em esportes. Anúncios relacionados com os direitos animais também foram recorrentes, a fim de aproximar um público específico. Dessa maneira, indivíduos desinteressados pelo referendo, ou por política de maneira geral, poderiam ser atraídos com temáticas mais pontuais. Destaca-se também o formato utilizado, de apostas e petições, que, em alguns casos, incluem a possibilidade de uma recompensa financeira, o que favorece a capacidade persuasiva das propagandas. Por fim, ressalta-se que os anúncios não fazem menção à campanha Vote Leave ou ao Brexit, o que impede que os indivíduos reconheçam esses materiais como parte de uma campanha política, deturpando a transparência essencial para o exercício da democracia.

Em seguida, os dados coletados são interpretados por algoritmos que geram um perfil dos indivíduos a partir do modelo Ocean, com base no método desenvolvido por Michael Kosinski (Lambiotte e Kosinski 2014). Essa prática, portanto, permite adaptar anúncios aos comportamentos, às crenças e às motivações de cada indivíduo. Nessa etapa são estabelecidas segmentações dos indivíduos em grupos, de forma que, na etapa seguinte, cada mensagem seja direcionada apenas ao grupo desejado. Ao explorar os traços de personalidade que mais afetam cada pessoa, o potencial persuasivo da campanha é intensificado. Alexander Nix (Concordia 2016) declara que, nos Estados Unidos, a CA elaborou um perfil de personalidade para cada adulto do país - 220 milhões de pessoas.

Na terceira etapa, o mapeamento psicológico produzido é utilizado para aplicação de microtargeting, prática que consiste em disparar mensagens personalizadas para diferentes segmentos do eleitorado. O Facebook oferece aos anunciantes da plataforma a possibilidade de filtrar os usuários que desejam alcançar com cada anúncio (Kakutani 2018). Para além de selecionar os indivíduos que devem receber as mensagens, é possível excluir aqueles que não devem ter acesso a elas - prática denominada voter suppression. Outra estratégia consiste na utilização de dark posts, publicações que não aparecem na timeline de quem as postou e só são visíveis para o público desejado (Kakutani 2018). Dessa maneira, é possível não apenas direcionar precisamente a propaganda que contém a mensagem condizente com o perfil psicológico de cada eleitor, como também evitar que ele tenha contato com anúncios que poderiam desmotivá-lo a votar.

Ressalta-se ainda que, por se tratar de uma campanha personalizada, é possível que o eleitor tenha uma impressão equivocada quanto às prioridades do partido (Borgesius et al. 2018; Gorton 2016). Um indivíduo que recebe anúncios semelhantes ao apresentado na imagem de abuso contra animais da figura apresentada poderia ter a percepção de que os direitos dos animais seriam priorizados caso o Reino Unido deixasse a União Europeia, enquanto um eleitor que recebe anúncios sobre outra temática teria um entendimento distinto.

Brad Parscale, diretor da campanha digital de Donald Trump, revelou que a CA desenvolveu para a campanha do candidato aproximadamente 60 mil anúncios por dia, testando diferentes cores e linguagens, e aprimorando-os em tempo real de acordo com a resposta do público (Kakutani 2018). Assim, as campanhas são personalizadas não apenas de acordo com os perfis psicológicos desenvolvidos previamente, mas também quase simultaneamente com base no engajamento do público com os anúncios. O banco de dados disponibilizado pelo Parlamento do Reino Unido permite observar as variações elaboradas em um mesmo anúncio, com pequenas alterações em cor, tamanho da fonte e linguagem, com o intuito de obter o melhor resultado com o público. A Figura 2 demonstra duas versões testadas para o mesmo anúncio:

Fonte: site do Parlamento do Reino Unido.8

Figura 2 Duas versões de anúncio aplicado pela Vote Leave sobre Macedônia, Sérvia, Albânia, Montenegro e Turquia 

Embora não seja possível verificar a quais eleitores cada anúncio foi direcionado, o modelo de psychometrics e microtargeting empregado pelas empresas CA e AIQ indicam que os anúncios foram destinados a públicos diferentes. As propagandas de tom mais alarmante são mais condizentes com eleitores que possuem altos graus de neuroticismo. Em função do emprego de microtargeting e de práticas como voter supression e dark posts, uma parcela da população não teve acesso aos anúncios de tom mais radical durante o referendo, uma vez que esses só vieram a conhecimento público quando entregues pelo Facebook ao Parlamento do Reino Unido. Portanto, a seletividade de audiência favoreceu a disseminação de conteúdos agressivos e notícias falsas ao longo de toda a campanha, as quais só viriam a ser reveladas e refutadas posteriormente ao referendo.

Assim, observa-se que os partidários do Brexit souberam explorar as intersecções entre as possibilidades do ambiente digital e seu caráter populista radical de direita, dando às suas ações uma retórica democrática com base em interpretações radicais da política e da maneira como a sociedade deve interagir. O discurso pautado na criação de uma fronteira interna em torno da figura de um inimigo e a defesa de uma sociedade homogênea foram viabilizados pela homofilia da internet, caracterizada por filtros-bolha e câmaras de eco, e entendidos, na maioria das vezes, como processos de liberdade de expressão, e não de propagação de discursos de ódio. Por sua vez, o apelo emocional e o aspecto reducionista das mensagens veiculadas pelo Vote Leave e Leave EU torna-as mais competitivas no contexto de déficit de atenção característico do ambiente digital. De outro lado, a campanha pela permanência utilizou uma argumentação pautada em análises econômicas, com apelo para dados e estatísticas. Como resultado, a campanha pela saída predominou nas mídias digitais. Roger McNamee, investidor inicial do Facebook, relata que o Brexit o fez enxergar os perigos dessa rede social:

Foi necessário o Brexit para que eu começasse a enxergar os perigos dessa dinâmica. Não sou especialista em política britânica, mas me pareceu que o Facebook teve um grande impacto no voto, porque a mensagem de um dos lados era perfeita para os algoritmos, e a do outro não era. A campanha pela saída fez uma promessa absurda - de que as economias com a saída da União Europeia seriam convertidas em uma grande melhoria no sistema nacional de saúde pública - ao mesmo tempo em que exploraram xenofobia ao apontar o Brexit como a melhor forma de proteger a cultura e empregos ingleses de imigrantes. Era o bom demais para ser verdade misturado com a cultura do medo. Do outro lado, a campanha do Remain estava apelando para a razão. A mensagem crua e emocional do Leave seria turbinada por compartilhamentos muito mais do que a do Remain. (McNamee 2018)

Essa estratégia digital desenvolvida pelas empresas CA e AIQ para a campanha pela saída da União Europeia foi posteriormente reproduzida por líderes da direita radical em demais países ocidentais, sendo o caso mais emblemático a eleição presidencial nos Estados Unidos. Assim como Nigel Farage e Boris Johnson, Donald Trump se aproveitou do ambiente digital como forma de esquivar-se da mídia tradicional e estabelecer uma comunicação não intermediada com o público, característica de lideranças populistas (Mudde 2004). O ataque aos canais midiáticos dominantes, aos especialistas e às instituições vigentes, explorado por Farage, também foi frequente nas declarações de Trump. A construção de uma fronteira interna com base em uma cadeia de equivalências, apontada na teoria de Laclau (2005), é outra semelhança entre as retóricas de Trump e Farage. Para propagação dessa retórica populista radical de direita, a campanha do candidato republicano também priorizou o ambiente on-line.

Poucos meses após o referendo inglês, a CA passou a trabalhar com Donald Trump. O então vice-presidente da empresa, Steve Bannon, tornou-se estrategista chefe da campanha. Por sua vez, o proprietário das empresas envolvidas no Brexit, Robert Mercer, foi o principal financiador do candidato republicano. Além do envolvimento de atores comuns às duas campanhas e de uma evidente articulação entre elas, adotou-se o mesmo modelo de estratégia digital, dividida em coleta de dados, psychometric profiling e microtargeting (Concordia 2016). O diretor da campanha digital, Brad Parscale, revelou ainda que a campanha do candidato republicano implementou 5.9 milhões de anúncios visuais no Facebook, aproximadamente 50 mil anúncios testados diariamente, em contraste com os quase 66.000 da campanha de Hillary Clinton durante todo o período eleitoral (Stahl 2018).

Assim como nas campanhas Vote Leave e Leave EU, a desinformação também foi amplamente utilizada como ferramenta na campanha de Trump. Nos últimos três meses do pleito presidencial dos Estados Unidos, as notícias falsas mais propagadas no Facebook obtiveram maior engajamento do que as principais matérias dos grandes veículos jornalísticos do país - The New York Times, The Washington Post, NBC News e The Huffington Post. “Das vinte matérias falsas, todas, com exceção de três, eram a favor de Trump ou contra Hillary Clinton” (Kakutani 2018, 154). Uma pesquisa de opinião do Instituto Ipsos, de 2016, verificou que 75% dos entrevistados que viram manchetes falsas as julgaram como verdadeiras - os partidários de Clinton consideraram 58% das notícias falsas como verdade, e os eleitores de Trump acreditaram em 86% (D’Ancona 2018, 55).

O referendo britânico e a eleição presidencial estadunidense, portanto, demonstram como o ambiente digital é instrumentalizado pelo marketing político para manipulação da opinião pública. As vitórias dessas campanhas evidenciam que as mídias digitais são uma eficiente ferramenta para incitar radicalismos por meio da separação em grupos, da propagação de uma retórica populista e da disseminação de desinformação. Ao praticarem tais ações, esses grupos que se utilizam do marketing digital de forma manipuladora deturpam a democracia utilizando de sua máxima da liberdade de expressão para construir uma retórica sobre a realidade, que tem por único objetivo manipular a opinião dos cidadãos.

Nesse contexto de uma eleição presidencial marcada por desinformação e radicalismos, Barack Obama alertou, em seu discurso de despedida em janeiro de 2017, para os impactos negativos das mídias digitais - com seus filtros-bolha e câmaras de eco - sobre a política: “Nos tornamos tão seguros em nossas bolhas que começamos a aceitar apenas informações, verdadeiras ou não, que correspondem às nossas opiniões, em vez de basearmos nossas opiniões nas evidências” (NBC News 2017). A verdade produzida de acordo com as percepções ideológicas das bolhas de convivência digital construiu uma distopia na qual a realidade passou a ser imprecisa, em que todos passaram a ter uma capacidade, efetivamente falsa, de produzir análises e compartilhá-las com as demais pessoas. A liberdade de expressão, preceito central da democracia, passa a jogar contra a própria democracia e conduz a sociedade a uma era da pós-verdade, em que é extremamente difícil ter discernimento sobre a realidade factual, mas é efetivamente fácil manipular uma grande massa que está à espera de que seus problemas sejam resolvidos de forma rápida por políticos que se apresentam como salvadores.

Conclusão

Este artigo buscou enfatizar a relevância do marketing político digital no atual cenário de erosão democrática observado internacionalmente. Argumentou-se, ao longo do texto, que, especialmente a partir de 2016, ocorre uma manipulação dos processos democráticos por meio de estratégias digitais objetivando a persuasão do voto. Conforme demonstrado, a vitória do Brexit, no Reino Unido, confirma o potencial de manipulação da opinião pública proporcionado pelos mecanismos que operam no ambiente digital. A estratégia desenvolvida pelas campanhas Vote Leave e Leave EU obtiveram sucesso em promover uma radicalização das ideias por meio do isolamento digital e da propagação de desinformação, dando agência ao cidadão, mas deturpando seu real significado. Dessa maneira, observa-se que a internet - inicialmente entendida como uma ferramenta democratizante, que intensificaria a participação popular e a liberdade de expressão - é manuseada por grupos políticos contra as próprias instituições e os valores democráticos. Enfatizou-se também que as características estruturantes do ambiente digital não são neutras, pelo contrário, elas favorecem grupos de direita radical cujas características são inerentemente semelhantes àquelas das mídias digitais. Portanto, a importância concedida às mídias digitais por parte das campanhas pelo Brexit foi bem-sucedida em função das intersecções entre o radicalismo de direita e as propriedades do ambiente digital, que fazem esse espaço favorável aos discursos populistas desse espectro político e, por consequência, promovem uma total desconsideração dos preceitos democráticos que regem a sociedade. Não por coincidência, a estratégia desenvolvida pelos grupos Leave EU e Vote Leave no referendo inglês serviu como um modelo de campanha posteriormente aplicado por outros partidos de direita radical em diversos países ocidentais.

Assim, fica evidente, como conclusão central deste estudo, que a democracia se tornou frágil com o advento das mídias digitais porque suas bases de liberdade e participação popular foram deturpadas por estratégias de marketing que não visavam a concorrer modelos políticos distintos num pleito eleitoral, mas sim vender uma ideia a qualquer custo para beneficiar um específico grupo político que pagou por tal serviço. Esse marketing político não se preocupou com a verdade dos fatos, mas com a capacidade de manipular e vender um produto importando-se muito pouco com as consequências. Como a política e a democracia não são produtos, tal expediente é nefasto para a consolidação dos direitos dos indivíduos e dos preceitos democráticos edificantes de uma nação. Por fim, há muito que entender sobre as mídias digitais e seu papel no universo político, mas já está claro que suas características de meio de informação em massa são elementos essenciais para estratégias eleitoreiras que desconsideram efetivamente o respeito pela democracia e pelos direitos dos cidadãos.

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*Este artigo faz parte da pesquisa realizada no Geppic intitulada “Novas tecnologias e ciberpoder: o Estado e a construção de sua capacidade no século XXI”. A pesquisa está registrada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob o número 201807858. O artigo é fruto do processo de pesquisa realizado pelas autoras durante o ano de 2019, referente ao debate sobre as mídias sociais e sua influência na construção do Estado. A proposta era entender como as mídias sociais seriam uma nova ferramenta de poder do Estado. Na esteira dessa pesquisa, entendemos que a desconstrução ou o desmantelamento da democracia é uma nova maneira dos governantes utilizarem o aparelho estatal para exercer um poder personalizado, que em nada tem a ver com o Estado, mas que está, de modo figurativo, sendo apresentado como elemento de poder estatal. Como produto final, essa pesquisa deu origem ao trabalho de conclusão do curso da pesquisadora Moraes.

1O termo bottom up é um conceito da língua inglesa utilizado para indicar iniciativas que partam da sociedade em direção às esferas decisórias do poder estatal. O contrário a essa ideia seria o conceito de top down, quando as iniciativas partem do poder estatal, normalmente em forma de imposição à sociedade.

2Em que medida a internet foi relevante para a organização desses movimentos é um debate em aberto na literatura. Enquanto alguns autores entendem esses levantes como produto da internet (Howard e Hussain 2011), outros entendem que essas ferramentas foram mais relevantes na divulgação internacional desses eventos do que em sua organização doméstica (Aday et al. 2012).

3Uma unidade de informação.

4Uma investigação realizada pelo jornal The Guardian revelou uma articulação entre as empresas. De acordo com o whistleblower Christopher Wylie, ex-funcionário da CA, a AIQ era um braço da CA. “Os Canadenses (AIQ) eram nosso escritório dos fundos. Eles construíram nosso software para nós e guardavam nossa base de dados. Se a Aggregate IQ está envolvida, então a Cambridge Analytica está envolvida.” (Cadwalladr 2017). Portanto, entende-se que a estratégia digital aplicada nas campanhas Vote Leave e Leave EU foi essencialmente a mesma.

5A sigla Ocean refere-se às iniciais de cada um dos fatores, em inglês: oppeness, conscientiousness, extroversion, agreeableness e neuroticism.

7Os anúncios estão disponíveis para consulta no site do Parlamento do Reino Unido: https://www.parliament.uk/documents/commons-committees/culture-media-and-sport/Fake_news_evidence/Vote-Leave-50-Million-Ads.pdf

Citando: Ayres Pinto, Danielle Jacon e Isabela Moraes. 2020. “As mídias digitais como ferramentas de manipulação de processos eleitorais democráticos: uma análise do caso Brexit”. Revista de Estudios Sociales 74: 71-82. https://doi.org/10.7440/res74.2020.06

Recebido: 29 de Março de 2020; Aceito: 23 de Junho de 2020

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