SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 issue6Obstacles to malaria elimination in Guapi-Cauca, ColombiaRurality as an analytic category: implications for public health author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • On index processCited by Google
  • Have no similar articlesSimilars in SciELO
  • On index processSimilars in Google

Share


Revista de Salud Pública

Print version ISSN 0124-0064

Rev. salud pública vol.22 no.6 Bogotá Nov./Dec. 2020  Epub Jan 03, 2022

https://doi.org/10.15446/rsap.v22n6.66285 

Artículos/Investigación

Comissão de Análise de Solicitações Especiais: uma iniciativa fundamental no contexto da judicialização da saúde

Special Requests Analysis Committee: a key initiative in the context of health judicialization

Comisión de Análisis de Solicitudes Especiales: una iniciativa fundamental en el contexto de judicialización de la salud

Anna Maria Meyer Maciel Rodríguez1 

Gustavo D'Andrea2 

Carla Aparecida Arena Ventura3 

Silvana Martins Mishima4 

1 AR: Enf. Ph.D. Ciências. Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto-SP, Brasil. nimeyer5@hotmail.com

2 GDA: AB. Ph.D. Ciências, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto-SP, Brasil. direito@gmail.com

3 CV: AB. livre-docente em Ciências, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto-SP, Brasil. caaventu@eerp.usp.br

4 SM: Enf. Livre-docente em Ciências, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto-SP, Brasil. smishima@eerp.usp.br


RESUMO

Objetivo

Descrever e analisar o trabalho de Comissão Especial que avalia tecnicamente demandas judiciais em município do interior paulista brasileiro.

Método

Estudo de natureza qualitativa no qual foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas, seguindo a técnica da bola de neve. Os dados discursivos foram interpretados tomando como referência alguns elementos da análise de conteúdo temática.

Resultados

Os entrevistados, integrantes da Comissão Especial, responderam perguntas referentes a quatro eixos temáticos pré-elaborados: a experiência de trabalho na judicialização, o processo saúde-doença, a responsabilidade do sistema de saúde no bem estar do usuário e o direito à saúde. No primeiro eixo, os entrevistados compartilharam sua rotina de trabalho, expuseram ferramentas utilizadas para emitir pareceres técnicos, reconheceram a relevância da Comissão para qualificar demandas, racionalizar gastos públicos e aproximar as áreas da Saúde e do Direito. No segundo eixo, destacaram a associação entre vários condicionantes e determinantes para ter saúde ou desenvolver doença. No terceiro, ressaltaram a importância da atenção integral para promover o bem-estar e diminuir agravos. No quarto, afirmaram que o direito à saúde não se refere somente ao acesso à assistência em saúde, a envolver também elementos individuais e coletivos que formam as pessoas, famílias e comunidades e que a efetivação do direito à saúde não é processo unilateral.

Conclusão

Segundo o material empírico, reconhecer as diversas questões, perspectivas, condições e opiniões relacionadas à judicialização pode auxiliar na sua compreensão global e oferecer possibilidades mais justas e racionais para a efetivação do direito à saúde pela via judicial.

Palavras-chave: Direito à saúde; assistência médica; advogados (fonte: DeCS, BIREME)

ABSTRACT

Objectives

To describe and analyze the work of a Special Commission, which technically evaluates litigations in a municipality in the regional area of São Paulo, in Brazil.

Method

Qualitative study, in which seven semi-structured interviews were carried out following the snowball technique. The discursive data was analyzed taking as reference some elements of the thematic analysis.

Results

The members of the Special Commission interviewed, answered questions related to four pre-established thematic axes: the work experience in the judicialization, the health-disease process, the responsibility of the health system regarding the user's well-being, and the right to health. In the first axis, they shared their work routine, exposed the tools they use to issue technical opinions, and recognized the relevance of the Commission to qualify the demands, rationalize public spending and approximate the areas of Health and Law. In the second axis, they highlighted the association between several constraints and determinants to be healthy or to develop a disease. In the third, they emphasized the relevance of integral care to promote well-being and reduce worsening. In the fourth, they affirmed that the right to health is not restricted to access to health care, but to the individual and collective elements that conform people, families and communities, and that the realization of the right to health is not a unilateral process.

Conclusion

According to the empirical material, recognizing the different issues, perspectives, conditions and opinions related to the judicialization can help in its global comprehension and offer more just and rational possibilities for the realization of the right to health through the judicial process.

Key Words: Right to health; medical assistance; lawyers (source: MeSH, NLM)

RESUMEN

Objetivo

Describir y analizar el trabajo de una Comisión Especial que evalúa técnicamente demandas judiciales en un municipio del interior paulista brasileño.

Método

Estudio de naturaleza cualitativa, en el cual se realizaron siete entrevistas semiestructuradas siguiendo la técnica de la bola de nieve. Los datos discursivos fueron interpretados tomando como referencia algunos elementos del análisis de contenido temático.

Resultados

Los entrevistados, integrantes de la Comisión Especial, respondieron preguntas relacionadas a los cuatro ejes temáticos preelaborados: la experiencia de trabajo en la judicialización, el proceso salud-enfermedad, la responsabilidad del sistema de salud en el bienestar del usuario y el derecho a la salud. En el primer eje, los entrevistados compartieron su rutina de trabajo, expusieron herramientas utilizadas para emitir dictámenes técnicos y reconocieron la relevancia de la Comisión para calificar demandas, racionalizar gastos públicos y acercar las áreas de Salud y del Derecho. En el segundo eje, destacaron la asociación entre varios condicionantes y determinantes para tener salud y desarrollar una enfermedad. En el tercero, resaltaron la importancia de la atención integral para promover el bienestar y disminuir agravamientos. En el cuarto, afirmaron que el derecho a la salud no se refiere solamente al acceso a la asistencia en salud, involucrando también elementos individuales y colectivos que forman a las personas, familias y comunidades y que la efectuación del derecho a la salud no es un proceso unilateral.

Conclusión

Según el material empírico, reconocer las diversas cuestiones, perspectivas, condiciones y opiniones relacionadas con la judicialización puede auxiliar en su comprensión global y ofrecer posibilidades más justas y racionales para la efectuación del derecho a la salud por la vía judicial.

Palabras Clave: Derecho a la salud; asistencia médica; abogado (fuente: DeCS, BIREME)

O termo judicialização deriva de judicial que se origina do latim judicialis e indica tudo aquilo que se faz na esfera judicial 1. A expressão é polissêmica e tem sido estudada pelas ciências políticas e sociais, apesar de ser mais empregada em seu sentido normativo. Em linhas gerais, representa o acesso à Justiça para a garantia de direitos 2.

O acesso individual à Justiça para requerer produtos, tratamentos e serviços de saúde no cenário internacional tem se mostrado tímido e apresenta distintas características alinhadas à conformação e valores dos sistemas de saúde e desenvolvimento socioeconómico de cada país. A perspectiva internacional do processo de judicialização no setor em países desenvolvidos envolve questões relacionadas às necessidades coletivas voltadas para a consolidação de políticas de saúde, aos determinantes do processo saúde-doença e à resolução de conflitos ético-morais de saúde, vida e morte .

A judicialização da saúde adquire voz expressiva na América Latina, especialmente na Argentina, Colômbia e Brasil, onde as demandas individuais formam a maior parte das ações judiciais reivindicando o direito à saúde. Na Argentina, as demandas tem como réus a seguridade social e os seguros privados de saúde 3. Na Colômbia 4, as empresas promotoras de saúde, instituições prestadoras de serviços de saúde e empresas sociais do Estado são os alvos das ações judiciais. No Brasil, tanto os entes privados quanto os públicos de saúde são acionados junto aos tribunais e a judicialização manifesta-se em um contexto paradoxal.

A via judicial pode ser, por um lado, um dos recursos para que portadores de algumas doenças raras se beneficiem de tratamento altamente específico 5,6. Por outro lado, muitos produtos farmacêuticos solicitados judicialmente são padronizados no sistema público do setor, o que pode demonstrar: falta de conhecimento a respeito do que é disponibilizado 7,8 bem como falhas no acesso ao sistema de saúde 8,9.

Há situações nas quais se evidenciam abuso de direito por parte de usuários e má postura de prescritores que cedem ao marketing comercial exercido pela indústria e comércio farmacêutico para incorporação de seus produtos 10, o que pode estimular o aumento de demandas judiciais desses itens 11. Ocorre também a solicitação de medicamentos proibidos no país que, não raro, integram a lista de demandas judiciais 7,12.

O acesso individual à Justiça pode ser fruto do exercício da cidadania 7,11,13 uma vez que a saúde é direito de todos e dever do Estado 14, mas também pode se configurar como produto de favores e relações de amizade que se opõem à consciência cidadã 15, o que pode favorecer segmentos sociais privilegiados e não necessariamente aqueles que mais precisam.

Nesse sentido, o atendimento de demandas individuais poderia provocar uma distribuição injusta e abusiva de bens providos com recursos públicos escassos que seriam destinados, em razão da política brasileira de financiamento do setor, para a organização de políticas públicas e oferta de ações e serviços de saúde para a sociedade de forma geral 6,16,17.

É importante mencionar também que a influência do Poder Judiciário nas ações do Executivo pode contribuir para a revisão, expansão e modernização de protocolos clínicos estatais para atender às novas demandas dos usuários do sistema de saúde 7,17. Entretanto, esses procedimentos deveriam acompanhar o progresso da ciência, independentemente de pressões jurídicas 13, ou seja, o recurso ao Judicário deveria ser excepecional e não regra para o acesso à saúde.

Frente a descrição dessas situações controversas que retratam a judicialização da saúde no Brasil, parece haver um distanciamento entre os poderes Judiciário e Executivo caracterizado por ações individuais nas quais se busca efetivar o direito à saúde. Portanto, é evidente a necessidade de se estreitar laços entre aqueles que atuam na garantia constitucional de acesso individual e coletivo à saúde e os que organizam a oferta das distintas tecnologias de saúde disponíveis.

Na tentativa de fortalecer os laços entre os Poderes, foi criada em 2002 em um município do interior paulista brasileiro, uma Comissão de Análise de Solicitações Especiais que tem examinado tecnicamente as demandas que chegam para apreciação da Promotoria de Justiça Civil do Ministério Público 18. A atuação dos integrantes dessa Comissão tem contribuído para diminuir o ajuizamento de ações por meio da emissão de pareceres técnicos que qualificam as demandas, semelhantemente a outras parcerias que aproximam o Poder Judiciário do Executivo na tomada de decisões jurídicas referentes ao direito à saúde no Brasil 19,20. Dada sua relevância prática, a presente pesquisa teve como objetivo descrever e analisar o trabalho da Comissão que avalia tecnicamente demandas judiciais em município do interior paulista brasileiro.

A Promotoria de Justiça Civil do Ministério Público do Brasil em foco

O Ministério Público é uma instituição estadual que defende interesses individuais e coletivos, servindo de intermediário entre os direitos e sua garantia determinada pelo Poder Judiciário. Está subordinado à Constituição Federal e às legislações vigentes, promovendo medidas necessárias para sua efetivação. No plano funcional, é integrado por membros (promotores e procuradores de justiça) e serviços auxiliares (servidores e estagiários) 14.

O Estado de São Paulo está dividido, pelo Ministério Público, em quinze regiões administrativas ou regionais. A regional do município cenário da pesquisa é composta por 61 municípios, dos quais 35 apresentam Promo-toria de Justiça com um ou mais promotores. Os 26 municípios sem Promotoria são atendidos pelos que a apresentam obedecendo a critérios internos de administração e organização. Em geral, ao receber um pleito, a Promotoria encaminha essa solicitação à Comarca especializada mais próxima. Cada Comarca é composta por Varas Judiciais onde trabalham os juízes e são subdivididas em diversas especialidades 21.

Com o estudo empírico realizado no Ministério Público do município em questão 21, foi possível descrever e entender o fluxo das demandas dos usuários, que têm nessa instituição uma das vias de acesso ao Poder Judiciário. O usuário vem à instituição buscar informações sobre a abertura de ação judicial em face da gestão do sistema público de saúde. O usuário é recepcionado por um funcionário que o orienta a trazer documentos pessoais, prescrição médica, história clínica, exames e outros relatórios que confirmem a necessidade de sua demanda (produto, tratamento ou serviço de saúde)1.

Quando o usuário retorna ao Ministério Público com todos esses documentos, o funcionário protocola a demanda e informa ao usuário que a Comissão fará uma análise técnica e emitirá um parecer. Se o parecer for favorável, o promotor público ajuíza a demanda que se transforma em ação judicial, sendo encaminhada às varas especializadas para eventual concessão de liminar e fornecimento do que foi demandado. Se o parecer for desfavorável, o funcionário comunica ao usuário para que este retire o parecer na instituição e encaminhe ao prescritor para a apresentação de nova justificativa para a demanda. Caso esse documento não retorne em 60 dias, a solicitação é arquivada1.

MÉTODO

Estudo de natureza qualitativa cuja descrição, apresentação, análise e discussão dos dados se nortearam em algumas das diretrizes estabelecidas pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research - COREQ 22. Para realização da investigação foi solicitada aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa de uma instituição de ensino superior pública do interior do estado de São Paulo-Brasil na qual o estudo se vinculou. Após a autorização expressa da entidade, sob número do parecer: 128.267, a coleta e análise de dados foi realizada entre os meses de junho e setembro de 2013.

A técnica de coleta de dados escolhida para captar a experiência empírica dos profissionais envolvidos na judicialização da saúde, bem como suas opiniões sobre diversos aspectos, foi a entrevista semiestruturada, realizada segundo a constituição de uma amostra intencional que obedeceu a critérios de representatividade 23 no fenômeno. Na seleção da amostra foram avaliados o perfil, a experiência e o conhecimento profissional dos indicados, seguindo a técnica da bola de neve, na qual interlocutores foram indicados para a entrevista, perfazendo a amostra 24.

Inicialmente foi realizada uma entrevista piloto com um profissional que se enquadrou nos critérios de representatividade, cuja experiência prática e conhecimento sobre o fenômeno permitiram testar e verificar a necessidade de ajustes no roteiro pré-construído e também, controlar o tempo da coleta dos dados empíricos.

Em seguida, selecionou-se um informante-chave, ou seja, uma pessoa que pudesse oferecer um panorama sobre os aspectos jurídicos e processuais das demandas de saúde. Esse informante-chave foi o ator jurídico que acolhe as solicitações individuais na Promotoria de Justiça Civil do município cenário da pesquisa e ambas as entrevistas produziram dados relevantes para compreensão e análise do fenômeno e do trabalho da Comissão e, por isso, foram incluídas na amostra intencional do estudo.

Aos dois primeiros entrevistados solicitou-se a indicação de dois nomes, telefone ou endereço eletrônico de dois profissionais que, segundo suas avaliações, atendessem aos critérios de inclusão para compor a amostra do estudo. Uma das pesquisadoras contatou os indicados, convidando-os a participar da pesquisa, explicando-lhes o objetivo e a forma de seleção para a entrevista, informando sobre os procedimentos éticos a serem cumpridos.

Mediante consentimento, as entrevistas foram conduzidas utilizando-se um roteiro com mais cinco profissionais, que fazem ou fizeram parte da Comissão, conforme a Figura 1, quando verificou-se a repetição das indicações e a homogeneidade das respostas fornecidas que se mostraram suficientes e em profundidade para responder ao objetivo do estudo 25.

Figura 1 Indicação dos entrevistados conforme a técnica da bola de neve, Ribeirão Preto-SP, Brasil, 2013 

O roteiro da entrevista baseou-se em literatura científica 6,7,9,12,13,15-17,26,27 e foi dividido em quatro eixos temáticos: a experiência de trabalho na judicialização da saúde, o processo saúde-doença, a responsabilidade do sistema público de saúde no bem estar do usuário e o direito à saúde.

O entrevistado na entrevista piloto e o informante-chave são profissionais que integram e/ou integraram a Comissão, por isso, suas experiências e opiniões foram analisadas e discutidas no conjunto dos discursos dos demais entrevistados.

Os dados discursivos foram gravados, transcritos integralmente e interpretados tomando como referência alguns elementos da análise de conteúdo temática que permitiu compreender os significados e opiniões dos entrevistados 24, ressaltar as principais ideias e dialogar com alguns estudos contemporâneos produzidos sobre os eixos temáticos.

RESULTADOS

Os resultados referem-se a análise temática do conteúdo de sete entrevistas, sendo uma da entrevista piloto, uma do informante-chave, e as outras cinco referentes a pessoas que exercem ou exerceram, em algum momento, função pública na Comissão Especial. Os sete entrevistados têm formações universitárias distintas (dois farmacêuticos, três médicos, uma enfermeira e um jurista) e de pós-graduação stricto sensu.

A experiência de trabalho no processo da judicialização

Neste primeiro eixo temático, os integrantes da Comissão referiram analisar as solicitações e emitir pareceres técnicos utilizando a medicina baseada em evidências, a visita domiciliar e a contribuição de especialistas de instituições de saúde renomadas como aparatos para qualificar as demandas contra a gestão pública de saúde.

Em geral, ao receberem as demandas, verificam se a solicitação consta na padronização dos produtos disponíveis no sistema público de saúde, para indicar o acesso. Se houver item similar na rede de atenção, sugerem sua utilização. Caso o produto pleiteado não seja padronizado e tampouco haja um equivalente, a Comissão recomenda ao Ministério Público que atue em benefício do usuário, judicializando a demanda pleiteada.

Um dos membros da Comissão pontuou que além de analisar a prescrição médica, também examina a origem da solicitação no sistema de saúde, documentos pessoais e se o demandante é atendido pelo Serviço de Atenção Domiciliar vinculado à rede municipal de saúde. Após essa análise, se for necessário, o profissional requisita visita domiciliar para esclarecimentos quanto à demanda e história pessoal do impetrante. O entrevistado referiu que muitos usuários do sistema privado e de saúde suplementar ingressam no sistema público ao aceitarem os produtos similares padronizados indicados pela Comissão.

Outro integrante também apontou a relevância da inclusão desses demandantes no sistema público de saúde, mas sob uma ótica racionalista, no sentido de oferecer o que já existe e está disponível, ao invés de utilizar o recurso escasso que financia o setor para providenciar a compra do bem pleiteado.

Os entrevistados referiram ter contato com diversos profissionais e que essa relação interpessoal é valiosa, não só para a análise da demanda, mas para eles mesmos, pois permite a integração e complementação de distintos saberes. Todos compartilharam sentimentos de satisfação, reconhecendo o valor de seu trabalho, pois suas atividades podem garantir o acesso à assistência mediante a qualificação das demandas e a racionalização dos recursos financeiros e promover o aprimoramento da gestão pública na medida em que novas tecnologias de saúde podem ser incorporadas ao rol de produtos e oferecidas aos seus usuários.

O processo saúde-doença

No segundo eixo temático, os participantes apontaram a relevância da associação entre distintos elementos da vida em sociedade como fundamentais para se ter saúde, abordando vários enfoques sobre saúde e doença. Foram trazidas questões ligadas ao equilíbrio de condicionantes para se ter saúde e a doença foi apontada como resultado do desequilíbrio desses fatores. Os motivadores do adoecimento se assemelham aos de ter saúde e se vinculam, segundo os entrevistados, ao estilo de vida/hábitos pessoais, à genética, à cultura, à inserção na sociedade, ao emprego, à violência e ao stress, ou seja aos determinantes sociais do processo saúde-doença.

A responsabilidade do sistema público de saúde no bem estar do usuário

No terceiro eixo temático, houve destaque para a relevância da atenção integral, ressaltando-se a necessidade de: ponderar o que já existe no sistema e ao mesmo tempo, criar possibilidades para fortalecer o princípio da integralidade. O sistema público de saúde tem responsabilidade no agravo do usuário, na medida em que deixa de oferecer ou tem dificuldades para encaminhá-lo aos pontos de atenção da rede necessários para cada caso.

O direito à saúde

No quarto eixo temático houve referência à Constituição Federal Brasileira de 1988, sendo destacado que o direito à saúde não se refere apenas ao consumo de bens e serviços no setor e sim, aos aspectos individuais e coletivos que permitem a sobrevivência das pessoas e o exercício de sua cidadania. O direito à saúde pode ser efetivado com a implementação de políticas públicas, por meio da prática responsável de profissionais de saúde e entes federativos. Toda a sociedade bem como o Estado têm responsabilidade na efetivação desse direito.

Entretanto, a falta de informação, de instrução e de organização dos indivíduos para buscar tal condição, incluindo a via judicial, podem interferir nesse processo. A participação e organização do usuário na sociedade e a luta pelos seus direitos são maneiras pelas quais o cidadão pode ter o seu direito à saúde efetivado. Ainda, as políticas públicas, com integração de vários setores e saberes profissionais também podem efetivar o direito à saúde.

DISCUSSÃO

Com relação ao trabalho dos integrantes da Comissão, os pareceres técnicos parecem contribuir para o uso racional de tecnologias de saúde e concorrer para uma adequada e justa gestão dos recursos públicos destinados à área da saúde 28. Os profissionais da Comissão reconheceram a relevância de seu trabalho no contexto da judicialização da saúde, corroborando com estudos 5,11,16,29 que apoiam o aprofundamento da discussão e entendimento dos aspectos relacionados a essa realidade para além da perspectiva jurídico-constitucional.

Ao se discutir o processo saúde-doença, verifica-se que a determinação do bem-estar e das enfermidades dependem da articulação e harmonia entre fatores econômicos, políticos, sociais, culturais, psicológicos, genéticos, biológicos, físicos e químicos 27. Ou seja, de um somatório das esferas que cercam o indivíduo e a coletividade (26), sendo consequência também, da garantia de acesso à assistência à saúde. A doença, por outro lado, é sinônimo de infortúnio individual e coletivo, resultado de um desequilíbrio entre indivíduo, sociedade e sistema 30.

Apesar da relevância do processo saúde-doença, da abrangente definição constitucional - de que saúde é direito de todos e dever do Estado 14 - e de toda discussão mediada por entidades internacionais, alguns atores jurídicos têm apresentado uma visão mais restrita do direito à saúde 31,32, limitando-o ao acesso a bens e serviços de saúde.

Há porém, um lado positivo nessa postura, pois com a judicialização, somada à atuação da Comissão, há um filtro e um caminho para entender melhor o que acontece na sociedade. Ou seja, as demandas podem expor os problemas da judicialização e auxiliar os atores jurídicos (com apoio interdisciplinar) a desenvolverem não apenas a atuação para "conseguir o que se pede", mas para informar, oferecer alternativas e incluir os demandantes no sistema público de saúde, na medida em que estes usufruirão de produtos e serviços já existentes, fortalecendo o acesso à informação como meio de empoderamento.

Sob outro ponto de vista, se a solicitação não estiver disponível e for comprovado o benefício do item, então a informação pode permitir que o Estado entenda suas falhas e lacunas e tente corrigi-las. Essa ideia converge com um dos caminhos da judicialização apresentados na introdução.

A atenção integral pode ser interpretada de diversas maneiras, por exemplo, como um princípio organizativo do sistema de saúde 14. A abordagem holística do indivíduo, de suas famílias e da comunidade na qual está inserido, o predomínio das ações de promoção de saúde e prevenção de doenças e a articulação entre elas, bem como a garantia de acesso aos diferentes níveis de complexidade do sistema são alguns dos caminhos apresentados para alcançar a integralidade da atenção 33.

Esse princípio também pode abranger o compromisso do Estado em atender as necessidades de determinados grupos populacionais 34 além de permitir uma escuta mais qualificada dos problemas dos usuários que buscam atenção no setor e assim direcionar a produção dos cuidados para promover resolutividade do sistema de saúde 35.

A efetivação do direito à saúde está relacionada ao exercício da cidadania, à atuação do poder público e à intersetorialidade das ações. Recentemente, o conceito de cidadania tem sido traduzido como algo além da revin-dicação dos direitos constitucionais. Essa nova proposta estimula a participação dos cidadãos no sistema de saúde, chamando atenção para a responsabilidade social da comunidade na elaboração, implementação, fiscalização e avaliação das ações e serviços. Nesse sentido, a formação de espaços coletivos para se discutir as diversas formas de produção de cuidados em saúde têm sido fundamental para fortalecer o empoderamento dos usuários 36-38.

A associação entre a falta de conhecimento e informação sobre o direito à saúde e as possibilidades de efetivá-lo por meio da via judicial também foram reveladas por outro estudo 20. Além da implementação de políticas públicas, as práticas em saúde podem ser compartilhadas entre diversas categorias profissionais, serviços e setores públicos. Essa integração e articulação pode concorrer para o alcance da integralidade da atenção e do cuidado em saúde ampliado 39 e consequentemente para a efetivação do direito à saúde 19.

O estudo permite concluir que para a compreensão da judicialização da saúde em sua plenitude é necessário desvelar os múltiplos aspectos concatenados a essa realidade, bem como conhecer e expor as diferentes visões de mundo dos atores envolvidos. Os integrantes da Comissão interligaram diversas condições e aspectos nos eixos temáticos de forma bastante incisiva trazendo questões relevantes sobre: a promoção da saúde e o desenvolvimento da doença, o papel do Estado/indivíduo na sociedade para a efetivação do direito à saúde e a valorização dos distintos saberes para lograr uma compreensão ampliada das demandas à luz do conhecimento técnico-científico que as qualificam e dos princípios constitucionais que as sustentam.

Considerando as principais ideias trazidas pelos entrevistados, tomar um único aspecto, fator, indivíduo, setor ou área como responsável pela efetivação do direito à saúde parece se contrapor à construção coletiva e garantia desse direito na perspectiva atual de cidadania. Claramente, algumas instâncias governamentais podem apresentar-se com uma função mais definida e específica nesse processo, como por exemplo, a organização de serviços primários de saúde de um município para oferecer acesso aos demais pontos de atenção na rede do sistema. Entretanto, a mobilização e participação social junto aos órgãos colegiados de gestão - os conselhos municipais e estaduais de saúde - podem auxiliar no acolhimento das demandas dos usuários, conforme prevê a Constituição Federal Brasileira.

Este estudo evidenciou a opinião profissional sobre a judicialização da saúde que pode ser distinta da visão dos integrantes de outras Comissões semelhantes, bem como da ótica dos impetrantes. Assim, outras vertentes subjetivas sobre o fenômeno podem ser produzidas para auxiliar na discussão e entendimento das demandas e necessidades dos usuários frente à assistência em saúde e à Justiça. No entanto, sem fazer juízos de valor sobre a Comissão em análise, sua própria existência é uma condição relevante para transformar a realidade que envolve a judicialização da saúde, pois representa uma visão interprofissional que pode contribuir para tomadas de decisão mais justas e efetivas e para o exercício mais consciente do direito à saúde ♦

Agradecimientos:

CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e aos profissionais entrevistados.

REFERÊNCIAS

1. Silva P. Vocabulário jurídico. 27a Edição. Rio de Janeiro: Forense; 2008. [ Links ]

2. Maciel DA, Koerner A. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Lua Nova. 2002; 57:113-134. https://bit.ly/3mcrEem. [ Links ]

3. Gotlieb V, Yavich N, Báscolo E. Litigio judicial y el derecho a la salud en Argentina. Cad Saúde Pública. 2016; 32:e00121114. [ Links ]

4. Vélez-Arango AL, Cecilia Realpe D, Gonzaga-Valencia J, Castro-Castro AP. Acción de tutela, Acceso y protección del derecho a la salud en Manizales, Colombia. Rev Salud Publica (Bogotá). 2007; 9:297-307. DOI:10.15446/rsap. [ Links ]

5. Macedo EI, Lopes LC, Barberato Filho S. Análise técnica para a tomada de decisão do fornecimento de medicamentos pela via judicial. Rev Saúde Pública [Internet]. 2011 [cited 2020 Jun 21]; 45:706-713. https://bit.ly/2ZqxQa4 . [ Links ]

6. Sant'Ana JMB, Pepe VLE, Osório-de-Castro CGS, Ventura M. Essencialidade e assistência farmacêutica: considerações sobre o acesso a medicamentos mediante ações judiciais no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2011; 29:138-144. https://bit.ly/3maBP3i. [ Links ]

7. Machado MAA, Acurcio FA, Brandão CMR, Faleiros DR, Guerra Junior AA, Cherchiglia ML, et al. Judicialização do acesso a medicamentos no estado de Minas Gerais, Brasil. Rev Saúde Pública. 2011; 45:590-598. https://bit.ly/3EjFLoF. [ Links ]

8. Figueiredo TA, Castro CGSO, Pepe VLE. Evidence-based process for decision-making in the analysis of legal demands for medicines in Brazil. Cad Saúde Pública . 2013; 29 Supl 1:5159-5166. DOI:10.1590/0102-311X00161812. [ Links ]

9. Bellato R, Araújo LFS, Nepomuceno MAS, Mufato LF, Corrêa GHLST. Mediação do direito à saúde pelo tribunal de Justiça: análise da demanda. Texto Contexto Enferm. 2012; 21:356-362. DOI:10.1590/S0104-07072012000200013. [ Links ]

10. Angell M. Drug companies and doctors: a story of corruption [Internet]. New York: The New York Review of Books; 2009 [cited 2020 May 24]. https://bit.ly/3GnvMAkLinks ]

11. Ventura M, Simas L, Pepe VLE, Schramm FR. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis. 2010; 20:77-100. DOI:10.1590/S0103-73312010000100006. [ Links ]

12. Sant'Ana JMB, Pepe VL, Figueiredo TA, Osório-de-Castro CGS, Ventura M. Racionalidade terapêutica: elementos médico-sanitários nas demandas judiciais de medicamentos. Rev Saúde Pública . 2011; 45:714-721. https://bit.ly/3CdPlsv. [ Links ]

13. Marques SB. Judicialização do direito à saúde. Rev Direito Sanit. 2008; 9:65-72. DOI:10.11606/issn.2316-9044.v9i2p65-72. [ Links ]

14. Código penal, código de processo penal, constituição federal, legislação penal e processual penal. 16a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais; 2014. [ Links ]

15. Leite SN, Mafra AC. Que direito? Trajetórias e percepções dos usuários no processo de acesso a medicamentos por mandados judiciais em Santa Catarina. Ciênc Saúde Coletiva. 2010; 15 Supl 1:166572. DOI:10.1590/S1413-81232010000700078. [ Links ]

16. Borges DCL, Ugá MAD. Conflitos e impasses da judicialização na obtenção de medicamentos: as decisões de primeira instância nas ações individuais contra o Estado do Rio de Janeiro, Brasil, em 2005. Cad Saúde Pública . 2010; 26:59-69. DOI:10.15446/rsap.v16n3.33795. [ Links ]

17. Machado FRS. Contribuições ao debate da judicialização no Brasil. Rev Direito Sanit . 2008; 9:73-91. DOI:10.11606/issn.2316-9044.v9i2p73-91. [ Links ]

18. Ministério Público do Estado de São Paulo. Prática da promotoria de Ribeirão Preto na área da saúde é premiada em concurso nacional [Internet]. 2012. https://bit.ly/2ZkXcq5. [ Links ]

19. Asensi F, Pinheiro R. Judicialização da saúde e diálogo institucional: a experiência de Lages (SC). Rev Direito Sanit . 2016; 17:48-65. DOI:10.11606/issn.2316-9044.v17i2p48-65. [ Links ]

20. Silva Junior GB, Dias ER. Avaliação da satisfação dos usuários de um serviço de saúde público-privado no nordeste do Brasil e a judicialização da saúde. Rev Direito Sanit 2016; 17:13-29. DOI:10.11606/issn.2316-9044.v17i2p13-29. [ Links ]

21. Ministério Público do Estado de São Paulo. Promotorias de Justiça [Internet]. 2017 [cited 2020 May 3]. https://bit.ly/3baLsZm . [ Links ]

22. Tong A, Sainsburgy P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007; 19:349-57. DOI:10.1093/intqhc/mzm042. [ Links ]

23. Thiollent M. Planejamento do projeto de pesquisa-ação. In: Thiollent M. Pesquisa-ação nas organizações. São Paulo: Atlas; 1997. p. 57-92. [ Links ]

24. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14a Edição. São Paulo: Hucitec; 2014. [ Links ]

25. O'Reilly M, Parker N. Unsatisfactory saturation: a critical exploration of the notion of saturated sample sizes in qualitative research. Qual Res. 2012; 13:190-7. DOI:10.1177/1468794112446106. [ Links ]

26. Santos L. Direito da saúde no Brasil. Campinas: Saberes; 2010. [ Links ]

27. Almeida Filho N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. [ Links ]

28. Lopes LC, Barberato-Filho S, Costa AC, Osorio-de-Castro CGS. Uso racional de anti-neoplasicos e ações judiciais no estado de São Paulo. Rev Saúde Pública . 2010; 44:620-628. DOI:10.1590/S003489102010000400005. [ Links ]

29. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação N° 31, de 30 de março de 2010. Recomendação aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde [Internet]. 2010. https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/877. [ Links ]

30. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 3a Edição. São Paulo: Hucitec ; 1994. [ Links ]

31. Ferraz OLM, Vieira FS. Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante. Dados. 2009; 52:223-251. https://bit.ly/3EcWwSj. [ Links ]

32. Machado FRS. O direito à saúde na interface entre sociedade civil e estado. Trab Educ. Saúde. 2009; 7:355-571. DOI:10.1590/S198177462009000200009. [ Links ]

33. Giovanella L, Lobato LVC, Carvalho AI, Conill EM, Cunha EM. Sistemas municipais de saúde e a diretriz da integralidade da atenção: critérios para avaliação. Saúde Debate. 2002; 26:37-61. [ Links ]

34. De Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser definidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, orgs. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 4ª Edição. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/ABRASCO. 2006. p.42-66. [ Links ]

35. Cecílio LCO. As Necessidades de Saúde como Conceito Estruturante na Luta pela Integralidade e Eqüidade na Atenção em Saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, orgs. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. 4a Edição. Rio de Janeiro: UERJ/IMS/ABRASCO . 2006. p.115-128. [ Links ]

36. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI. Políticas e sistemas de saúde no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz . 2008 [cited 2020 Apr 6]. p.1-42. https://bit.ly/2ZIsc2X . [ Links ]

37. Longhi JC, Canton GAM. Reflexões sobre cidadania e os entraves para a participação popular no SUS. Physis. 2011; 21:15-30. DOI:10.1590/S0103-73312011000100002. [ Links ]

38. Serapioni M. Os desafios da participação e da cidadania nos sistemas de saúde. Ciênc Saúde Coletiva . 2014; 19:4829-39. [ Links ]

39. Koerich MS, Backers DS, Sousa FGM, Erdmann AL. La emergencia de la integralidad e interdisciplinaridad en el sistema de cuidado en salud. Enferm Glob [Internet]. 2009 [cited 2019 May 3]; (17):1-11. https://bit.ly/3b7lrtR . [ Links ]

Conflito de interesses: Não.

Recebido: 13 de Julho de 2017; Revisado: 14 de Outubro de 2020; Aceito: 22 de Outubro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons