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Discusiones Filosóficas

Print version ISSN 0124-6127

discus.filos vol.9 no.12 Manizales Jan./June 2008

 

FÍSICA E ONTOLOGIA

PHYSICS AND ONTOLOGY

Décio Krause*
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. deciokrause@gmail.com

* Grupo de Lógica e Fundamentos da Ciência, Departamento de Filosofía.

Recibido el 29 de febrero y aprobado el 1 de abril de 2008

Resumen

La pregunta de Quine, "¿Qué es lo que hay?" recibe una característica peculiar en la física actual, especialmente cuando otorgamos atención al concepto de "entidad física", u objeto físico, sobre lo que dicen algo, al menos idealmente, las teorías físicas. En la medida en que la física se ocupa de los constitutivos últimos de la materia, entra en escena la cuestión de los objetos físicos de modo esencial. A pesar de que la física actual no se ocupa propiamente de ontología, sino de explicar por qué el mundo es como es, las cuestiones ontológicas interesan al filósofo, y si éste no quiere limitarse a la mera especulación, se debe acercar a lo que pasa en la ciencia actual y no puede ignorar la teorías vigentes, en especial, las físicas.

Palabras clave
Quine, física, física de particulas, ontología.

Abstract

Quine's question: "what is there?" has a peculiar characteristic in current physics, specially when we give attention to the concept of "physical entity" or "physical object", about what physical theories say something, at least ideally. In so far as physics deals with the ultimate constituents of matter, the problem of physical objects get in the picture. Although current physics does not deal with ontology but of the explanation of how the world is the way it is, ontological questions are of interest for the philosopher, who should be familiarized with the situation of actual science and cannot ignore current theories unless hez wants to limit himself to speculation.

Key words
Quine, physics, quantum theory, ontology.


INTRODUÇÃO

A pergunta de Quine, "O que há?" ganha uma característica peculiar na física presente, especialmente quando damos atenção ao conceito de entidade física, ou objeto físico, como preferimos dizer, aos quais as teorias físicas ao menos idealmente dizem respeito. Na medida em que a física se ocupa dos constituintes últimos da matéria, a questão do objeto físico entra em cena de modo essencial. Ainda que a física de hoje não se ocupe de ontologia propriamente, mas em explicar a razão do mundo ser como é, questões ontológicas interessam ao filósofo, e se este não deseja ficar restrito à pura especulação, deve se acercar do que realmente ocorre com a ciência presente, e então não pode deixar de dar atenção às teorias vigentes, em especial da física.

Nas teorias quânticas e relativista de campos, que alicerçam a física presente, são descritas as chamadas partículas elementares, ainda que a palavra "partícula" nada tenha a ver com a idéia intuitiva de uma pequena coisa, o mesmo de uma concepção atomista no sentido dos antigos gregos (como Demócrito). A "física de partículas" de hoje, ainda que empregue este termo, descreve essas entidades matematicamente, que não nos são dadas como por exemplo nos e dado um objeto novo para que o conheçamos (digamos, um novo modelo de veículo, que descrevemos por suas características). As partículas elementares de hoje podem ser virtuais, no sentido de que sua existência ocorre em intervalos de tempo tão pequenos que não podem ser observadas, e há algumas delas que, apesar de serem essenciais para que as teorias físicas funcionem a contento, como o chamado bóson de Higgs, que em teoria serve para justificar a existência de massa em outras partículas, nunca foram observadas, e talvez nunca o sejam, como os táquions. Partículas são hoje quanta de campos, certas formas de excitação energética de entidades matemáticas chamadas campos, descritas em espaços matemáticos de várias dimensões e a variáveis complexas (ou seja, dependem de forma essencial dos chamados números complexos). Por exemplo, na física quântica de hoje, uma das características mais intuitivas de um objeto físico, e aceita pela física clássica, a identidade transtemporal (que Hans Reichenbach denominava de genidentität), não se mantém na maior parte das interpretações.

Em suma, a noção de objeto físico necessita ser revisada à luz da física presente, e como isso está na base de qualquer suposição ontológica sobre a ciência atual, o assunto torna-se relevante para a filosofia. A propósito, salientamos que a noção que assumiremos de objeto físico nets notas é suficientemente ampla para englobar processos ou eventos, constante da filosofia de alguns pensadores, que passam daqui para frente a ser tratados como objetos físicos, tout court. Ademais, para delimitarmos o nosso assunto e não nos estendermos em demasia, vamos restringir nossa atenção à questão da individualidade dos objetos físicos quânticos, que é de grande atualidade e nos trará a possibilidade de discutir interessantes questões ontológicas.

A física clássica assume pressupostos consoantes com uma visão do objeto físico como sendo um indivíduo, algo que pode (pelo menos em princípio) ser sempre identificável, receber um nome, ser distinguido de outros, mesmo que similares, etc. De acordo com a física clássica, mesmo dois elétrons podem sempre ser discernidos, por exemplo, por sua posição espaço-temporal, uma vez fixado um sistema de coordenadas. No entanto, na maior parte das interpretações do formalismo da mecânica quântica, esse não é o caso, e esse fato tem importantes implicações para qualquer discussão sobre ontologia. Com efeito, não há qualquer sentido em se discutir temas filosóficos como os relacionados à ontologia sem se levar em conta a ciência de hoje: como expressou o filósofo da ciência americano Arthur Fine (1937) , a filosofia da ciência deve estar sempre engajada com a ciência do momento (apud French 1998 ).

A LINGUAGEM E OS OBJETIVOS DO FÍSICO

A física de hoje lida com uma grande variedade de entidades que são denominadas de "partículas elementares". Apesar do nome, elas nada têm de "partículas", que nossa imagem intuitiva associa a uma pequena bolinha, ou a um corpo minúsculo (como pensavam os antigos atomistas gregos como Leucipo e Demócrito), e nem de "elementares", termo que originalmente visava designar as entidades mais básicas da matéria, que não podiam ser decompostas em outras ainda "mais elementares". Hoje, prótons, por exemplo, são "partículas elementares", apesar de serem formados por quarks (que não se sabe ainda se são ou não compostos). O físico trata dessas entidades na chamada física de partículas, elabora experimentos em que essas "partículas" colidem a grandes velocidades, descreve-as por meio de propriedades, lida com elas como se existissem de fato, apesar de que muitas vezes não há qualquer evidência experimental de sua real existência. Essas entidades básicas que as teorias físicas supõem não podem ser acessadas diretamente, senão por modos indiretos. Por uma série de motivos que têm tido cada vez mais comprovações experimentais, os "objetos quânticos" não podem ser concebidos mais como entidades que existam em perfeito isolamento. A natureza ontológica dessas entidades é um dos temas candentes na presente filosofia da física.

O que o físico quer dizer então quando assevera coisas como "Existe uma partícula elementar com esta ou aquela propriedade"? Será que ele está formulando uma questão de natureza ontológica, cuja resposta depende do seu conhecimento sobre a natureza da entidade elementar da qual indaga? Ou seja, será que o físico necessita conhecer os objetos físicos como entes enquanto entes para deles tratar? Claro que isso é o que nossa concepção informal da ciência parece indicar. A rigor, no entanto, tendo em vista a física de hoje, podemos sustentar que definitivamente este não é o caso. A física de hoje não se ocupa propriamente de ontologia, e não depende de que se conheça (no sentido tradicional) a verdadeira natureza das entidades com as quais lida. Aliás, a preocupação com a natureza última da realidade parece que foi deixada de lado pela ciência já a partir dos séculos XVI e XVII. Não que o físico não se ocupe em desvendar a natureza do mundo. O que ocorre é que isso vem como conseqüência de suas suposições teóricas, e não é o seu assunto fundamental. Como sustentou o laureado com o Nobel em Física (em 1979) Steven Weinberg, contrariando a preocupação ontológica clássica, o físico de hoje está mais ocupado em explicar porque o mundo funciona do modo como funciona, e não propriamente em desvendar a natureza das coisas (Weinberg, 1993). Dito de outro modo, enquanto o filósofo da ciência se preocupa se uma teoria se refere a algo no mundo, o cientista está preocupado em saber quão bem um determinado modelo teórico descreve, ou prediz, o comportamento do sistema ao qual se refere, sem fazer suposições sobre a sua existência (também cf. Falkenburg, 2007: 10).

Com efeito, uma grande revolução em ciência ocorreu quando os cientistas deixaram de se preocupar com a natureza das entidades, passando a se importar com o seu comportamento. Na antiguidade, e até época bem avançada na Idade Média, a ocupação do cientista (ou filósofo) era sobre as coisas propriamente. Veja-se por exemplo o título do célebre trabalho de Lucrécio (99-55 a.C.), De Rerum Natura ("Sobre a Natureza das Coisas") ―uma excelente exposição do assunto e de suas implicações na ciência atual é o livro de Toraldo di Francia 1986. Na época do grande matemático Joseph Fourier (1768-1830), havia uma preocupação enorme, já presente na antiguidade, com a natureza do calor: o que causava o calor, que em especial sustenta a vida humana? Recordemos que Hipócrates, em cerca de 460 a.C., conjeturou que "o calor, que serve para animar [os seres vivos], deriva de um fogo interno localizado no ventrículo esquerdo". Explicações como essa não eram incomuns. A importância de mencionar Fourier não é um acaso. Teorias como a do flogisto, segundo a qual os corpos continham uma substância (o flogisto) que era liberada quando queimavam, foram abandonadas e Fourier simplesmente desconsiderou a natureza do calor em prol de uma análise de seu comportamento. Ou seja, ele não se ocupou de explicar a natureza do calor mas, partindo da suposição de sua existência, tratou de considerar como ele se propaga.A teoria resultante constituiu uma das mais notáveis conquistas da matemática, dando origem ao que hoje se chama de Análise de Fourier, que além de uma grande beleza intrínseca (para quem gosta de matemática), é parte essencial da matemática aplicada.

Da mesma forma, Isaac Newton não se preocupou com o que fazia os corpos se movimentarem, ou seja, com a natureza do movimento. Simplesmente assumiu que os corpos se movimentam (sob a ação de forças) e ocupou-se com as taxas de variação da velocidade dos corpos, a sua aceleração. Como se sabe, uma das leis básicas da física de Newton é a equação F=ma, onde F é a força aplicada a um corpo de massa m, e a a sua aceleração (o negrito indica que ambas são grandezas vetoriais). Albert Einstein, na mesma linha, não questionou sobre porque a luz é de tal natureza que tem velocidade constante em todos os referenciais inerciais: simplesmente assumiu este fato como um dos princípios básicos da teoria da relatividade restrita. Em outras palavras, a natureza das entidades passou a ser algo para ser questionado em segundo plano, se é que há um plano que lhe caiba. Se acreditarmos em Weinberg, supostamente não há. Isto certamente não contenta o filósofo ocupado com ontologia, mas vamos adiante, mesmo porque não cremos que ele tenha razão.

Salientemos então que a física de hoje supõe a existência de entidades que não têm comprovação experimental. Em geral, essa suposição vem de necessidades matemáticas de coerência das teorias consideradas, e surpreendentemente a experiência tem comprovado (a posteriori) essas suposições (ainda que não possamos garantir que isso continuará assim no futuro). De fato, algumas das partículas elementares foram descobertas experimentalmente somente bem depois de haverem tido suas características previstas teoricamente, como a célebre partícula omega-menos. Mesmo hoje, a física atual requer a existência de uma partícula, chamada de bóson de Higgs, que seria responsável pela massa de outras partículas elementares, que não tem ainda comprovação experimental.

De acordo com o que aprendemos da filosofia de Quine e outros, as partículas elementares como os quarks existem se e somente se o mundo físico, que certamente existe, é formado também por quarks, ou seja, se a teoria que envolve quarks for verdadeira. Verdade, aqui, no entanto, pode não significar exatamente concordância, ou correspondência (direta) com as observações, como quando dizemos que "A sentença 'O carro que transporta o Presidente da República se desloca a 60 Km/h' é verdadeira", pois neste caso podemos simplesmente conferir a sua velocidade. Muitas vezes, a veracidade de uma suposição ou teoria advém de suas conseqüências que podem ser de alguma forma conferidas experimentalmente, ainda que a própria suposição ou teoria não possa. É assim com grande parte das teorias físicas de hoje. Parece que o procedimento em ciência se conforma à célebre frase de Charles Sanders Peirce, segundo quem a concepção de um objeto depende dos efeitos práticos que dele advêm1. A teoria das cordas (surgida nos anos 80 do século XX), se formos indagar sobre suas suposições ontológicas, admite que a ontologia básica do mundo é composta de "cordas" (strings) que podem ser abertas ou fechadas, e que têm um comprimento na chamada escala de Planck (cerca de 10-33cm). Não há ainda como verificar se há de fato entidades desse tamanho, ou se as cordas existem realmente, pois não alcançamos ainda condições experimentais para pesquisar entidades desse tamanho. Isso não importa. Como disse Weinberg, o que é relevante é que, com essa suposição, chega-se uma teoria (na verdade, a várias delas) que responde satisfatoriamente às indagações do físico (ainda que apresente vários problemas). Ergo, essas entidades existem para as finalidades da teoria considerada ou, pelo menos, tudo se passa como se elas existissem de fato.

Na verdade, as teorias físicas (e do mesmo modo as de outras áreas), são elaboradas como idealizações. Fazemos com as teorias o mesmo que fazemos quando lemos um livro, concentrando-nos em certos de seus aspectos e propositadamente (ou inconscientemente) fazemos vista grossa a muitos outros, como (no caso do livro) que ele é composto por células orgânicas mortas, com intrincadas estruturas vegetais, que essas células são formadas por moléculas, que são compostas por átomos, etc2. Da mesma forma, em nossas teorias, fazemos uma simplificação enorme de nosso contorno muitas vezes introduzindo elementos idealizados que não têm (pelo que se sabe) correspondente na realidade (como por exemplo, conjuntos infinitos e objetos isolados).

Quine diz que "uma teoria se compromete unicamente com aquelas entidades às quais as variáveis da teoria se referem a fim de que as sentenças da teoria sejam verdadeiras". No entanto, como a argumentação acima procura mostrar, muitas vezes não nos referimos, por meio de nossas teorias, àquilo que existe no mundo físico, mas às coisas que devemos admitir a fim de que as teorias sejam verdadeiras. Assim, pode não ser que sejam propriamente as sentenças que formulamos ou as entidades que supomos que devam existir, mas o que resulta dessas suposições (recorde a frase de Peirce vista acima). Deste modo, quando o físico diz que uma partícula elementar resulta de um particular modo de vibração de uma corda (como ocorre com as teorias de cordas), podemos tomar essa afirmação como acertada, mesmo que essas cordas não existam de fato. A sua existência fica delimitada ao âmbito da teoria, e tudo se passa como se elas de fato existissem. Em outras palavras, o comprometimento ontológico deixa de ser absoluto (da realidade como ela é, ou deve ser) para se tornar relativo (a uma teoria). No entanto, para que possamos continuar a usar a concepção de Quine, quando ele diz que "os valores pretendidos das variáveis de uma teoria são apenas aqueles que a teoria admite, e não aquilo que realmente há, a não ser que a teoria por acaso seja verdadeira", temos que flexibilizar o conceito de verdade, que já não pode mais ser correspondencial, pois isso implicaria que as cordas, por exemplo, teriam que existir de fato. O conceito de verdade que melhor de adapta às teorias físicas, porém, não será tratado neste texto, e é denominado de quase-verdade (o leitor interessado pode ver Da Costa 1999, capítulo 3).

Com efeito, em física, quando se faz asserções existenciais, dificilmente se utilizam termos singulares (como nomes ou descrições, em contraste com os termos gerais). Como realçam Dalla Chiara e Toraldo di Francia (1993: 118), quando o físico diz que "existe um elétron assim e assim", ele não está ocupado em especificar um particular elétron, mas sim um objeto de um certo tipo, pertencente a uma classe de entidades, no caso, elétrons. Na verdade, em termos de elétrons (e o mesmo se dá com as demais entidades básicas da física), tanto faz se é este ou aquele elétron que desempenha um certo papel, posto que qualquer elétron, de certo modo, serve para todos os propósitos físicos, o que não ocorre com os objetos usuais (como usualmente se supõe). Como dizem esses autores, "os físicos, salvo em casos excepcionais, (...) fazem naturalmente a operação de eliminação dos termos singulares proposta por Quine". No entanto, essa afirmativa deve ser olhada com cuidado. Suponha que um físico quântico está trabalhando com um átomo neutro, digamos de Lítio (1s22s22p63s1), que tem um elétron em sua camada de valência (a camada mais externa), e deseja ionizá-lo, para obter um ion negativo. O físico sabe perfeitamente bem até a quantidade de energia que deve utilizar para desprender aquele elétron que está na camada mais externa. Ele se refere, metalinguisticamente, àquele elétron, e não a outro qualquer, havendo uma forma de descrição (que chamamos de "descritor quântico" em Krause 2008b) do tipo "o (objeto quântico) assim e assim". Isso não é por suposto uma descrição definida no sentido de Russell, cuja definição pressupõe a noção de igualdade (identidade), e não é tampouco uma descrição indefinida, pois o físico não está se referindo a um elétron arbitrário, mas àquele elétron, o que está na camada mais externa do átomo. Na metalinguagem, ele pode até nomeá-lo, chamá-lo de Pedrinho, mas esse nome, como salientaram os filósofos italianos mencionados acima, não tem sentido na linguagem própria da física, pois uma vez que ela faz uso da lógica e da matemática clássicas, nos comprometeria com a individualidade desse elétron, e isso não é o que se supõe haver (na maioria das interpretações da física quântica). De fato, o físico faz a apregoada eliminação de termos singulares, mas ainda usa descrições de algum tipo, aquelas próprias de sua linguagem quântica.

Há uma distinção fundamental a ser feita aqui, que nos remete novamente à distinção apontada acima entre questões epistemológicas e questões ontológicas. Não custa insistir no assunto. Alguém pode tentar argumentar que essa propagada eliminação de termos singulares acontece também na matemática, por exemplo quando o matemático diz que existe um menor número primo da forma 2p-1 com mais de 1010 dígitos, ainda que não saibamos (até o momento) que número é esse (o maior primo da forma 2p-1, chamados de "primos de Mersenne", que se conhece é 232582657-1, que tem 9.808.358 dígitos, descoberto em 2006). No entanto, podemos nomeá-lo, chamando-o de "Pedro Primo", e este nome faz perfeitamente sentido, pois um dia poderemos distinguir Pedro Primo de qualquer outro por suas propriedades peculiares (como ser o menor primo, e único, com mais de 1010 dígitos). Isso não acontece com elétrons ou com outros constituintes básicos da matéria. Mesmo que você chame de "Priscilla" um certo pósitron aprisionado em um experimento envolvendo campos eletromagnéticos (há experimentos desse tipo, nos quais se trabalha com 'trapped quanta' ―ou seja, objetos quânticos como elétrons ou íons de bário aprisionados, como o Nobel em física Hans Dehmelt aprisionou o pósitron "Priscilla" por três meses), a identificação se perde após qualquer possível (ou imaginável) permutação, pois qualquer pósitron pode ser Priscilla, mas somente um número primo pode ser Pedro Primo. Isso ilustra bem o que dizem os dois autores considerados, mas merece uma explicação adicional, algo técnica. Não se preocupe com os detalhes (o bom seria se isso despertasse a sua curiosidade para estudos mais detalhados).

De fato, por meio do formalismo da física quântica (assumiremos aqui uma versão mais simples da mecânica quântica não relativística), podemos descrever um elétron que em um certo momento esteja na ponta do nariz do Presidente da República por um vetor ψ1 e um outro que esteja na ponta do nariz da Primeira Dama por ψ2, e chamá-las respectivamente de João e Maria. Eles são, portanto, identificáveis (têm até nomes!). No entanto, se consideramos o sistema conjunto, esse sistema duplo é representado por um vetor da forma ψ12 = ψ1ψ2 - ψ2ψ1 (exceto por alguns fatores constantes que não nos interessam aqui). O que interessa é achar a densidade de probabilidade relacionada ao sistema, que informalmente diria da probabilidade (que é tudo o que podemos conhecer, segundo a mecânica quântica) de uma partícula estar no nariz do Presidente e outra no nariz da Primeira Dama. Este é certamente um exemplo exagerado, mas mostra o principal argumento, que pode ser adaptado para situações físicas concretas. Se elas forem indiscerníveis (forem de mesma "espécie"), palavras como esta e aquela deixam de ter um sentido preciso, tendo meramente um uso metafórico. A densidade de probabilidade é dada pelo quadrado do módulo de ψ12, ou seja ||ψ12||2, que resultará em uma expressão contendo um "termo de interferência", não eliminável, que não permite que determinemos qual é a partícula que está no nariz do Presidente. Sabemos apenas que uma delas está lá, mas nunca qual é. Ou seja, os nomes dados antes, "João" e "Maria" não fazem mais sentido: qualquer elétron pode ser João e qualquer elétron pode ser Maria3. Como dizem Dalla Chiara e Toraldo di Francia, o mundo descrito pela mecânica quântica é o mundo do anonimato. Ademais, se tentarmos introduzir outras variáveis, que informalmente poderiam ser pensadas como capazes de fornecer a identificação (as chamadas "variáveis ocultas"), nos depararemos com sérias dificuldades, como mostram alguns resultados célebres sobre o assunto4.

OBJETOS QUÂNTICOS E OS QUANTIFICADORES

Recordemos que podemos supor que a teoria física que estamos considerando tenha sido axiomatizada. Isso, como já ressaltado, é sempre possível, ainda que presentemente haja dificuldades com a formulação dos postulados de certas teorias e com a unificação de algumas delas (isso ocorre com as teorias físicas mais recentes, como a eletrodinâmica quântica, a cromodinámica quântica e outras). Desconsideraremos essas dificuldades neste texto, e assumiremos que toda teoria física T que considerarmos admite os três níveis de postulados que mencionamos no capítulo anterior. Com efeito, podemos axiomatizar a mecânica quântica não relativista de vários modos, modos esses que diferem quanto à linguagem e quanto aos postulados específicos, porém admitindo (por hipótese) sempre os mesmos postulados lógicos (digamos, os da lógica clássica de primeira ordem com igualdade) e matemáticos (digamos, os da teoria Zermelo-Fraenkel).

Vimos ainda que com tal base lógica e matemática, quando afirmamos "Existe um objeto assim e assim", em símbolos, xF(x), e assumimos que esta sentença é verdadeira, isso significa que no domínio do discurso existe um subconjunto, a extensão de F, com pelo menos um indivíduo. No caso de nosso exemplo, isso implica que, se aceitamos que é verdade que se existe uma partícula elementar assim e assim, essa partícula terá que ser um indivíduo, algo com uma identidade bem definida (por exemplo, satisfazendo a teoria usual da identidade), fato este em franco contraste com o que dizem a maior parte das interpretações do formalismo da física quântica, e antecipado por vários dentre os grandes físicos do passado, como Werner Heisenberg (1901-1976), Erwin Schrödinger (1887-1961), Max Born (1882-1970) e Hermann Weyl (1885-1955), dente outros. Como a extensão de F na semântica clássica é um conjunto (objeto de ZF), esse objeto que supomos existir pode ser identificado por um nome, ou seja, tem as propriedades dos indivíduos clássicos. No entanto, como vimos acima, na física quântica (na maioria das interpretações), quando o físico diz que "Existe um elétron assim e assim", e vamos simbolizar isso também por xF(x), não é bem isso o que pretende, ou melhor, não é isso que consegue expressar (ou seja, que existe uma entidade individualizável, identificável, um indivíduo). Como se pode aceitar que as entidades quânticas mais elementares não podem ser individualizadas de forma não ambígua, a elas não podemos associar nomes próprios do modo usual. O que xF(x) significa então é que existe uma certa entidade de um certo tipo satisfazendo uma determinada condição, como "é um elétron assim e assim" ou "é um quark assim e assim", mas nunca que seja uma entidade que se comporte como tendo individualidade no sentido usual. (A bem da verdade, a física quântica pode ser formulada com as entidades básicas se comportando como indivíduos, mas há restrições a serem feitas nesse caso nas suas propriedades e nos estados a que podem ter acesso. A visão tradicional é que seriam entidades destituídas de individualidade. O leitor interessado em aprofundar este tema pode ver French & Krause, 2006). Insistimos que esse quantificador existencial também não pode ser pensado como um tipo de descrição indefinida (um tal e tal); na maioria dos casos, não se trata (por exemplo) de que qualquer partícula de um certo tipo importe, mas que há uma certa partícula assim e assim que não pode ser tratada como um indivíduo (lembre do exemplo acima da ionização do átomo de lítio). Aparentemente, estamos diante de uma entidade de características distintas dos objetos de nossa concepção usual. A física parece nos impor novas categorias de estruturação da realidade, para as quais quem sabe uma nova matemática (e uma nova lógica) esteja se impondo. A propósito, um dos grande físico-matemáticos da atualidade, o russo Yuri Manin (1937-), diz que devemos "olhar o mundo novamente" , como faziam os matemáticos do passado, como o já mencionado Joseph Fourier, para buscar novas inspirações para teorias matemáticas, em particular para tratar de objetos indiscerníveis (veja French & Krause (2006) para uma discussão detalhada do assunto).

De pronto essas considerações nos trazem um problema de natureza filosófica. Se como Quine estamos dispostos a aceitar que "existem os quarks" significa que existem (em algum domínio) objetos x que têm a propriedade de serem quarks, ou que "quarkizam", qual é o domínio do discurso ao qual x se refere?

A física de hoje, no que concerne à semântica de suas teorias, apesar de aparentemente estarmos vivendo o paradigma da chamada "abordagem semântica", com ênfase nos modelos das teorias, parece proceder como no antigo positivismo lógico, estabelecendo os vínculos entre certos termos teóricos e a experiência de modo meramente informal, por assim dizer descrito na metalinguagem correspondente. No entanto, para a necessária precisão filosófica, para esses vínculos não basta que se assuma um domínio informal, como uma experiência de laboratório, ao que nos reportamos quando nos perguntam por exemplo o que reflete uma particular função de onda que estamos considerando e respondemos: "trata-se da função de onda de uma partícula movendo-se em uma certa direção, como no experimento que estou realizando". Parece que as teorias físicas, em especial a física quântica, carece de uma semântica rigorosa sensata, e isso somente pode ser realizado em uma matemática que seja compatível com suas pressuposições mais básicas, nas quais os objetos que vão ser descritos pelas nossas teorias possam "existir" e serem de acordo com o que nos conta nossas teorias. Sem uma tal semântica, o significado (Bedeutung) dos termos utilizados pode ser descrito somente de modo informal, e em boa medida filosoficamente insatisfatório (a saber, na medida em que sejamos instigados filosoficamente a providenciar semântica rigorosa para nossas linguagens).

Como dito acima, parece ficar claro que se a física quântica nos sugere que entidades como quarks não podem ser individualizadas (na verdade, devido a certas forças que os mantém unidos, os quarks -segundo a teoria, não podem ser 'separados', logo, individualizados, pois a energia necessária para isso seria tãp grande que novos pares de quarks seriam criados sem que houvesse a separação)5, logo, o uso de uma teoria como ZF na metamatemática parece ser algo bastante artificial. Se os objetos quânticos não devem (como uma das possíveis alternativas) ser considerados como indivíduos, como usar ZF na metamatemática?
Mesmo quando ocorre uma suposta individuação, como quando um objeto quântico é aprisionado em certos tipos de "armadilhas", por meio de campos potenciais, qualquer identificação em sentido tradicional, como por exemplo atribuindo um nome para a partícula em questão, que foi o que fez o Prêmio Nobel Hans Dehmelt com um pósitron (a anti-partícula do elétron), aprisionado por ele durante alguns meses e chamado de "Priscilla", essa individuação é meramente aparente. De fato, se o cientista vai para casa dormir depois de feita a sua experiência, quando retorna ao laboratório pela manhã jamais poderá afirmar que o pósitron aprisionado é aquele pósitron que ele deixou na noite anterior. Ele pode continuar a realizar seus experimentos sem qualquer conseqüência física perceptível, mesmo se a partícula tenha sido "trocada" por outra similar. Com efeito, alguém que esteja fazendo a faxina do laboratório durante a noite pode ter desconectado a eletricidade por engano, desfazendo o experimento. No entanto, sendo observador e bastante esperto, o faxineiro refez a experimentação de forma que o professor nada suspeitasse na manhã seguinte. O cientista entra pela manhã em seu laboratório e jamais poderá perceber que houve uma troca. A propósito, David Hume falava exatamente isso dos objetos comuns com os quais nos deparamos (isso fica como uma provocação para você pensar a respeito —veja Krause & Becker (2007 ) para um primeiro ensaio a respeito. Mas, se os objetos forem "clássicos", isso não ocorre; se trocarmos um gêmeo idêntico por outro, com o tempo provavelmente suspeitaremos da mudança de comportamento de nosso amigo —há uma diferença essencial, portanto, para o caso das partículas elementares), o que nunca poderá ser percebido com relação aos objetos quânticos. Em resumo, para que uma afirmativa como "existem quarks" faça sentido, devemos ser capazes de definir, em nossa metateoria, ao domínio das partículas elementares da forma como supomos serem os quarks ou, se aceitarmos a solução quineana, dos objetos físicos sobre o qual percorrerão as nossas variáveis (alguns dos quais representarão quarks).

DOIS NÍVEIS DE EMPENHO ONTOLÓGICO

Dalla Chiara e Toraldo di Francia falam do empenho ontológico do físico como se dando em dois níveis. O primeiro é relativo a uma teoria T, independentemente de T ser verdadeira ou falsa com respeito à experiência. A teoria não se refere necessariamente àquilo que existe no mundo físico, mas às coisas que deveriam existir a fim de que as sentenças de T sejam verdadeiras. O segundo nível é relativo a uma teoria que seja empiricamente verdadeira. É bom assinalar que a discussão que levam a cabo é bastante sofisticada e os termos acima, aqui tomados de modo informal, são tratados com adequada precisão. O exemplo que dão é o seguinte: quando dizemos "Um táquion não pode ser desacelerado a uma velocidade menor do que a da luz", estamos nos comprometendo com um nível ontológico do primeiro tipo, posto que até o momento ninguém sabe se os táquions existem de fato. (Um táquion é uma partícula que viaja a uma velocidade superior à da luz, e a teoria da relatividade apregoa que nada pode ser acelerado acima dessa velocidade; de certo modo, os táquions "já nasceram" viajando a uma tal velocidade.) Temos então um comprometimento ontológico do primeiro tipo porque o físico pode asseverar que a sentença anterior é correta, ainda que os táquions possam não existir (não têm comprovação experimental de sua existência).

Por outro lado, continuam eles, se dizemos "elétrons têm spin ½" (o spin é uma propriedade das partículas elementares, e para os elétrons, assume sempre um dos valores: ½ ou −½), estamos diante de um nível de empenho ontológico do segundo tipo, pois admite-se não somente que os elétrons existam com respeito à teoria (comprometimento de primeiro nível), mas também que a teoria seja verdadeira com respeito à experiência, como é o caso com elétrons, pois tudo leva a crer que eles existam de fato. Cabe observar, no entanto, que apesar de ilustrativa, a distinção proporcionada pelos autores italianos nos parece um tanto arbitrária, uma vez que os mencionados níveis de empenho ontológico podem converter-se um no outro por questões experimentais, digamos quando se descobrir que os táquions de fato existem ou que elétrons, afinal, não passam de ficções. No entanto, uma discussão mais pormenorizada deste tema foge aos objetivos desta disciplina, e nos reporta, dentre outras coisas, a perceber uma vez mais a importância de se discutir o conceito de verdade em física.

COMPROMETIMENTO ONTOLÓGICO
COM NÃO-INDIVÍDUOS

Vamos agora cumprir a nossa promessa de mostrar de que forma, mudando a teoria de fundo (metamatemática), podemos nos comprometer ontologicamente com objetos físicos que não tenham identidade, ou seja, que não sejam indivíduos. Antes, uma breve discussão sobre o assunto.

Já vimos acima que há muitas maneiras de se interpretar os quantificadores, e salientamos duas, a objetual e a substitucional. Ambas apresentam problemas se supusermos que o domínio das variáveis é formado por objetos indiscerníveis. Com efeito, se adotamos a visão objetual e aceitando a veracidade de xA(x), deve haver no domínio um objeto que verifique a fórmula A; ainda que a semântica usual não exija que identifiquemos esse objeto, ele deve ser caracterizado pelo menos por uma descrição definida, senão por um nome próprio (lembre o caso do número primo com mais de dez milhões de dígitos). Se vale ∀xA(x), então todo objeto do domínio verifica A. Se a interpretação é substitucional, no caso de xA(x) ser verdadeira, deve haver um nome de um objeto que possa ser colocado no lugar de x em A e, se vale ∀xA(x), todo nome verifica A. A visão substitucional encontra dificuldades com a teoria quântica na hipótese de que os objetos quânticos não podem ser nomeados (na medida em que o domínio quântico é a "terra do anonimato"). A interpretação objetual também não é imune a dificuldades, já que, quando formos descrever o que sejam as entidades que podem ser valores das variáveis (de uma adequada linguagem para a teoria quântica, que leve em conta a indiscernibilidade), teremos que escolher uma metamatemática compatível com esta hipótese, e nem ZF nem as demais teorias conhecidas de conjuntos, nem as teorias de tipos e nem a teoria de categorias, dá conta da idéia de que os objetos quânticos devem ser tomado ab ovo como indiscerníveis; recorde: eles são feitos indiscerníveis pela introdução de princípios e simetria impostos sobre as funções que descrevem os estados físicos e sobre os observáveis.

Isso é resultado dos postulados de ZF (coisas similares acontecem com as demais teorias de conjuntos mais conhecidas): todo objeto (conjunto ou átomo, se a teoria os admitir) é um indivíduo, pois dado um objeto qualquer a, podemos formar o conjunto unitário {a} a partir do axioma do par (ver o capítulo precedente) e definir a propriedade P(x) = D x Î{a}, que é verificada unicamente por a. Assim, todo objeto possui uma propriedade distintiva, possuída unicamente por ele mesmo, e que o diferencia de qualquer outro objeto. Partículas elementares indiscerníveis, no entanto (que os físicos chamam de "idênticas") podem, em certas situações, terem todas as propriedades em comum. No exemplo já citado dos condensados de Bose-Einstein (BEC), podemos ter centenas de átomos ou de partículas em um mesmo estado quântico. Essas entidades são absolutamente indiscerníveis.

Um problema por certo é o significado do quantificador universal "todas as propriedades". Qualquer hipótese que diga que devam ser consideradas apenas algumas delas, ou que admita que há outras características dessas entidades não descritas pelo formalismo, ou seja, se há propriedades "escondidas", em particular as que possam estabelecer alguma diferença, conduz a dificuldades, já que as chamadas "teorias de variáveis ocultas" não recebem aceitação unânime por parte dos filósofos da física de hoje, como já comentamos anteriormente. Como então se lida com essa situação? A física, meio que sem se importar com a coerência lógica de seu assunto, faz exatamente a suposição de que apenas algumas propriedades (na linguagem dos físicos, "variáveis dinâmicas") são importantes. A rigor, a classificação das partículas elementares em categorias é feita por meio da teoria matemática de grupos, mais precisamente pelo modo como se encontram certos invariantes (novamente, princípios de simetria) pela ação dos grupos relevantes6. Em outras palavras, um objeto físico é caracterizado através das propriedades invariantes que as simetrias da teoria (dadas por certos grupos) permitem identificar. Deste modo, os objetos físicos são aquelas entidades que possuem certas propriedades invariantes que a teoria prescreve. O fato é que essa solução, proposta em 1939 pelo grande físico e laureado com o Nobel em 1963 Eugene Wigner (1902-1995), consegue classificar as partículas somente em espécies (elétrons, prótons, etc.), mas nunca individualmente (Castellani, 1998).

Com efeito, os físicos admitem a indiscernibilidade como fato essencial na descrição física do mundo, mas como trabalham pressupondo a lógica clássica e a matemática tradicionais como alicerces (como constituindo os postulados lógicos e matemáticos de suas teorias), a alternativa é trabalhar restritos a alguma forma de estrutura, na qual unicamente as propriedades desejadas são consideradas. Então, indiscernibilidade torna-se algo que existe unicamente em relação às propriedades e relações dessa estrutura; mais tecnicamente, isso significa invariança pelos automorfismos da estrutura. Mas na teoria de fundo (e.g., em ZF), os objetos considerados são indivíduos, como já sabemos.

Para que se possa admitir que as variáveis de nossa teoria possam admitir valores que sejam objetos legitimamente indiscerníveis (e não feitos indiscerníveis pela consideração de um número restrito de propriedades, como procede Quine), uma solução é mudar a teoria de fundo, ou seja, a metateoria, para uma matemática que permita a existência de coleções de objetos indiscerníveis tomados como tais desde o princípio. Essa teoria existe, e chama-se de teoria de quase-conjuntos. Não entraremos nos detalhes dessa teoria aqui (para mais detalhes, ver French & Krause (2006), e para uma exposição mais detalhada do comprometimento ontológico com não indivíduos, veja Krause (2008a)), mas desejamos apenas registrar que, com o seu uso, podemos admitir que, em sentenças quantificadas, as variáveis ligadas podem ter objetos indiscerníveis como valores. Uma vez que, na teoria de quase-conjuntos, o conceito de identidade não se aplica a todos os objetos, há sentido preciso na afirmação de que há entidades sem identidade. Para mais detalhes, veja Krause (2008a, 2008b).

VOLTANDO À DISCUSSÃO ONTOLÓGICA

A última observação do parágrafo anterior nos remete novamente à lógica (e à matemática: recorde que para nós aqui, "lógica" significa "grande lógica"). Mediante adequada mudança na lógica subjacente, o comprometimento ontológico de uma teoria se altera. A lógica clássica está enormemente comprometida com certos pressupostos ontológicos já evidenciados pelo atomismo lógico de Russell e Wittgenstein, e nossa digressão anterior aponta para um outro compromisso ontológico importante: aquele para com indivíduos. Assim, a lógica clássica não é neutra ontologicamente como querem alguns como Mario Bunge (1977), mas fortemente compromissada. Portanto, na medida em que as teorias físicas que nela se assentam pretendem tratar de entidades que destoam dos objetos físicos usuais, a própria validade dessa lógica é posta em xeque.


NOTAS AL PIE

1 A frase de Peirce, que é considerada uma maxima do pragmatismo, é a seguinte: "Consider what effects which might conceivably have practical bearings we conceive the object of our conception to have. Then our conception of these effects is the whole of our conception of the object".

2 Este exemplo é explorado por Mario Castagnino, em Castagnino y Sanguineti (2006: 193).

3 Como curiosidade, o leitor que conhece algo de álgebra linear sabe que ||ψ12||2 = ||ψ1||2 + ||ψ2||2 ± 2Re(||ψ1||.||ψ2||), este último termo sendo o termo de interferência.

4 Por exemplo, o teorema de Kochen e Specker e os teoremas de Bell.

5 Isso ocorre em muitas situações. Nos condensados de Bose-Einstein, que são agrupamentos de centenas de átomos ou de partículas resfriados quase ao zero absoluto, essas entidades passam a "agir em uníssono", como se fossem uma coisa só. Apesar disso são várias entidades, mas todas em um mesmo estado quântico, absolutamente indiscerníveis. Uma boa exposição introdutória sobre os BEC (Bose-Einstein Condensates) pode ser vista em http://www.colorado.edu/physics/2000/bec/.

6 Informalmente, um grupo é um conjunto não vazio dotado de uma operação binária (que permite compor dois objetos desse conjunto, resultando ainda em um objeto do conjunto) que é associativa, admite um elemento neutro e cada elemento do conjunto tem um inverso para essa operação ainda pertencente ao conjunto. Por exemplo, o conjunto dos números inteiros dotado da operação de adição de inteiros é um grupo; o elemento neutro é o zero e o inverso de um elemento é o seu oposto.


REFERÊNCIAS

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