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Discusiones Filosóficas

Print version ISSN 0124-6127

discus.filos vol.11 no.17 Manizales July/Dec. 2010

 

John rawls: a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos - pressupostos da justificação coerentista

John Rawls: the liberty of ancients and the liberty of moderns - presuppositions of coherentist justification

Elnora Gondim
Universidade Federale do Piauí, Brasil. elnoragondim@yahoo.com.br

Recibido el 14 de agosto de 2010 y aprobado el 30 de septiembre de 2010



Resumo

A ênfase na liberdade individual e na igualdade de todos os cidadãos vista nos dois princípios de justiça rawlsianos faz com que a justiça como eqüidade efetue uma articulação entre a liberdade individual e a coletiva explicitamente vista nas duas faculdades morais contidas na concepção de pessoa da teoria rawlsiana, isto é, na idéia de racionalidade e na concepção de razoabilidade. Portanto, desta maneira, Rawls elabora uma articulação entre o público e o privado inserindo, assim, na justiça como eqüidade tanto a tradição antiga de liberdade quanto a moderna. Na justiça como eqüidade, a utilização do método do equilíbrio reflexivo, a autonomia, a liberdade, o conceito normativo de pessoa, o procedimentalismo puro, a ordem lexicográfica atribuída ao primeiro princípio, à concepção política de justiça e a base pública de justificação, isto tudo mostra que Rawls considera tanto a liberdade dos antigos quanto à dos modernos e, com base neste argumento, constata-se um forte suporte conceitual que aponta para o modelo rawlsiano de justificação: o coerentista.

Palavras chave

liberdade, antigos, modernos, coerentismo.

Abstract

The emphasis in the individual freedom and the equality of all citizens as it appears in the two Rawlsian principles of justice causes that justice as fairness be part of an articulation between the individual freedom and the collective one as explicitly seen in the two moral faculties contained in the conception of person of the Rawlsian theory, that is, in the idea of rationality and in the conception of reasonableness. Therefore, Rawls elaborates an articulation between the public and the private inserting justice as fairness in such a way that he is able to integrate the old tradition of freedom as well as the modern one. In justice as fairness, the use of the method of reflective equilibrium, autonomy, freedom, the normative concept of person, pure procedimentalism, the lexicographical order attributed to the first principle, the political conception of justice and the public base of justification, show that Rawls considers the freedom of the ancients in the view of the freedom of the moderns and, on the basis of this argument, provides strong conceptual support for his model of justification: a coherentist one.

Key words

freedom, ancients, moderns, coherentism.



INTRODUÇÃO

Edmund Gettier, em 1963, publicou seu famoso artigo É o Conhecimento Crença Verdadeira Justificada? É consenso que este pequeno texto modificou os rumos tomados pela epistemologia, porquanto analisou a afirmação em relação à verdade justificada do conhecimento proposicional, aquele que é considerado como o saber acerca dos fatos. Gettier constatou que havia uma falha na definição tradicional de conhecimento como crença verdadeira justificada: possuir uma crença verdadeira justificada pode não ser conhecimento; para ele, é possível não possuir qualquer conhecimento mesmo que se tenha uma crença verdadeira justificada. Portanto, após o artigo É o Conhecimento Crença Verdadeira Justificada? tem-se a necessidade do surgimento de teorias que exploram as causas ou produções das crenças tanto ao nível de epistemologia quanto ao nível da moral. Depois do texto de Gettier é inconcebível que não se coloque como problema à questão de justificabilidade das crenças. Em decorrência disto foi desencadeada a necessidade da justificativa epistêmica, também, no âmbito da moralidade. As justificações mais comuns referentes à teoria moral são: o fundacionismo e o coerentismo. Têm-se como tipos mais freqüentes de fundacionismo moral: o intuicionismo e o utilitarismo. Contrapondo-se a estas correntes, Rawls utilizou, na sua teoria da justiça, do procedimento coerentista para justificar princípios e juízos morais.

Saber a importância de se mostrar o tipo de justificabilidade para a ação moral é algo já aqui enfatizado: o escrito de Gettier exigiu tal ênfase. Mas, por que a teoria rawlsiana tem uma importância ao ponto de se discutir qual o tipo de justificação que nela é utilizada? Por conseguinte, por que se deve saber qual a forma de Rawls lidar com a ação moral?

Em se tratando de Rawls, com ele ocorreu algo semelhante a Gettier. Uma Teoria da Justiça, obra publicada em 1971, inova o contexto da teoria moral e política contemporânea fazendo emergir, a partir dela, muitas polêmicas e críticas tais como, por exemplo, a dos comunitaristas. Estas podem ser sintetizadas em cinco teses: 1) uma concepção abstrata de pessoa que é conseqüência da posição original sob o véu da ignorância; 2) princípios universais (deontológicos) com a pretensão de aplicação em todas as sociedades, criando uma supremacia dos direitos individuais em relação aos direitos coletivos; 3) não possui uma teoria da sociedade em função de seu contratualismo, trazendo como conseqüência uma atomização do social, em que a pessoa é considerada enquanto átomo isolado; 4) utiliza a idéia de um Estado neutro em relação aos valores morais, garantindo apenas a autonomia privada (liberdade dos modernos) e não a autonomia pública (liberdade dos antigos), estando circunscrita a um subjetivismo ético liberal; 5) é uma teoria deontológica e procedimental, estabelecendo uma prioridade absoluta do justo em relação ao bem1; além destas críticas, apontam, também, a teoria rawlsiana como um intuicionismo (fundacionismo) disfarçado2. Portanto, em virtude das polêmicas e críticas, John Rawls passa a ser considerado, após a publicação do texto de 1971, um reabilitador das questões morais e políticas. Para se compreender em que medida Rawls reabilita tais questões é necessário constatar a relevância que a concepção de liberdade assumiu no curso da suas obras. Tal concepção permeia todo o conjunto das obras rawlsianas corroborando com: (i) as respostas dadas por Rawls aos seus inúmeros críticos; (ii) a tendência rawlsiana à justificação do tipo coerentista para a ação moral.

1. LIBERDADE DOS ANTIGOS E LIBERDADE DOS MODERNOS

A distinção entre aquilo que é designado como liberdade dos antigos e dos modernos remonta a conferência escrita por Benjamin Constant em 1819. Na teoria rawlsiana isto toma a forma de um sólido suporte conceitual. Embora Rawls afirme que a oposição efetuada por Constant entre a liberdade dos antigos em relação aos modernos seja algo vago e inexato, a justiça como eqüidade considera tanto a liberdade negativa quanto à positiva3. Tendo em vista tal aspecto, constata-se a presença contínua, concomitante, nas obras rawlsianas das noções de liberdade antiga e moderna, isto é, da menção: (i) à igualdade; (ii) à liberdade juntamente com o procedimentalismo puro e com a elaboração dos princípios de justiça como algo histórico e analítico; (iii) à crença na liberdade individual enfatizada no primeiro princípio de justiça; (iv) à crença na igualdade de todos os cidadãos em uma sociedade enfatizada no segundo princípio de justiça.

Quanto aos princípios de justiça, estes são: (i) denominado princípio da igual liberdade; assegura certas liberdades básicas iguais a todos os cidadãos. (ii) denominado princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades e da diferença; requer o Estado como regulador ao nível de distribuição de riquezas levando em conta e priorizando os menos favorecidos. Portanto, a ênfase na liberdade individual e na igualdade de todos os cidadão vista nos dois princípios de justiça rawlsianos faz com que a justiça como eqüidade efetue uma articulação entre a liberdade individual e a coletiva explicitamente vista nas duas faculdades morais contidas na concepção de pessoa da teoria rawlsiana, isto é,na idéia de racionalidade( aquela que é relativa ao bem, tem uma forma de privado) e na concepção de razoabilidade (aquela que é relativa ao justo, tem uma forma de público). Assim sendo, através do razoável os indivíduos são iguais no mundo público dos outros e podem propor, aceitar e dispor termos eqüitativos de cooperação entre eles, em contrapartida em virtude do racional nenhum indivíduo é levado a desistir de suas concepções do bem. Portanto, desta maneira Rawls elabora uma articulação entre o público e o privado inserindo, assim, na justiça como eqüidade tanto a tradição antiga de liberdade quanto a moderna.

1.1 A liberdade dos antigos

Com a ênfase dada pela justiça como eqüidade à liberdade antiga, cumpre aqui se tentar sintetizá-la. Na Pólis o homem não era visto como indivíduo, mas como membro da comunidade; ele tinha direitos políticos e isto constituía a vontade coletiva, onde todas as virtudes e aptidões eram realizadas no e para o Estado. Aqui é interessante lembrar que o substrato da democracia grega era a noção de comunidade. Com isso, havia uma negação para o indivíduo de toda uma idéia de autonomia subjetiva e de direitos individuais perante a comunidade. Assim, na liberdade dos antigos, ao cidadão era dado participar da elaboração e da direção do poder estatal tendo ele a mesma igualdade no exercício da vida pública sem reflexos imediatos no plano das garantias da vida privada. Desta forma, essa liberdade acontecia em sua plenitude quando o cidadão afirmava a sua vontade dentro dos limites da Pólis.

Aqui cumpre salientar que a liberdade dos antigos, na visão de Constant, está relacionada à perspectiva teórica de Rousseau e, neste caso, designa as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública. Para a filosofia rousseauniana, o Estado é aquele que cria, a partir do homem natural, um ser novo a quem deverá ensinar tudo; o homem, em sua origem, é apenas um animal. Sendo assim, é preciso fazer dele um cidadão e, com isto, o Estado, então, encontra-se em um nível de superioridade em relação ao indivíduo e o papel dele é educar e emancipar tal indivíduo fazendo-o livre. Desta maneira, para Rousseau, o homem nem sempre vê o seu próprio bem e a prioridade dada aqui é para a igualdade das liberdades políticas e para os valores da vida pública, subordinando, assim, as liberdades civis.

De Rousseau, Rawls tem influências quanto ao tema da liberdade e da autonomia; defendendo uma concepção de justiça como imparcialidade e não um Estado do bem-estar que parte de paradigmas fundacionais pertinentes ao bem. Neste contexto, é sob a influência de Rousseau, que Rawls utiliza a idéia de intenção manifesta, isto é, aquela que pode ser definida como: os cidadãos se dispõem de boa vontade a fazer sua parte nos arranjos desde que tenham uma garantia suficiente de que os outros também farão a sua. Rawls afirma que Rousseau tratou a desigualdade de maneira significativa. A solução que é vista na filosofia rousseauniana para isto é análoga na justiça como eqüidade, porém com modificações, pois: "o status fundamental na sociedade política é a cidadania igual para todos, um status que todos tem como pessoas livres e iguais (...) É do ponto de vista de cidadãos iguais que a justificação de outras desigualdades deve ser entendida"4.

Nestas circunstâncias, Rawls afirma que todos os cidadãos são iguais e isto favorece o relacionamento igualitário entre os mesmos de forma que todos devem ser favorecidos por suas políticas públicas. Isto é visto na teoria rawlsiana no aspecto em que esta afirma que a liberdade é agir de acordo com a lei que estabelecemos para nós mesmos. Assim sendo, Rawls afirma: "Não importa qual seja a posição de uma pessoa no tempo, cada uma é forçada a escolher por todos"5. Sendo desta forma, o pensamento rawlsiano segue o de Rousseau, mais precisamente quando este afirma:

Deve-se compreender, neste sentido, que, menos do que o número de votos, aquilo que generaliza a vontade é o interesse comum que os une, pois nessa instituição cada um necessariamente se submete às condições que impõe aos outros: admirável acordo entre o interesse e a justiça, que dá às deliberações comuns um caráter de equidade que vimos desaparecer na discussão de qualquer negócio particular, pela falta de interesse comum que uma e identifique a regra do juiz à parte (...) o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade que eles se comprometem todos nas mesmas condições e devem gozar dos mesmos direitos6.

Desta forma, o neocontratualismo de Rawls "reside sobretudo em seu (...) liberalismo constitucional ( reapropriação dos ideais (...) , de igualdade e vontade de Jean Jacques Rousseau)"7. Neste sentido, o liberalismo político de Rawls tem como tema central o igualitarismo de inspiração rousseauniana, decorrendo dele o principio de eqüidade, da igual liberdade, articulando, desta forma, Vontade Geral e igualdade política, promovendo a liberdade igual para todos e a eqüidade de oportunidades, tendo uma concepção de justiça como imparcialidade e não defendendo um Estado do bem-estar nem um modelo comunitário deste, embora: "(...) a concepção da prioridade do direito de Rawls é mais exigente que a abordagem (...) de Rousseau, no sentido de que ele defendeu não apenas a igualdade, mas igualdade máxima de direitos, assumindo assim que o direito tem uma métrica (...)"8. E para isto, Rawls parte de teoria do contrato social como a de Rousseau para chegar a um modo de representação relacionada com a idéia de que os princípios de justiça são objetos de um acordo racional deliberados através de um procedimento neutro e imparcial tal qual o recurso rousseauniano do caráter impessoal da lei e "(...) Daí para o véu de ignorância de Rawls não há mais do que um passo. A desigualdade é inevitável, só se trata de regulá-la, de transformá-la num mecanismo impessoal que não marque desde o início o destino de cada sujeito(...)"9.

1.2 A liberdade dos modernos

Quanto à liberdade dos modernos: aquela que resguarda o indivíduo do poder estatal, ela é ligada ao direito; este tem como objetivo intervir no Estado a favor dos interesses individuais. Assim sendo, na liberdade moderna há uma valorização consciente e deliberada do indivíduo perante a sociedade estatal. Desta forma, os modernos se perguntavam sobre aquilo que consideravam prescrições impositivas da justa razão sobre seus direitos, seus deveres e às suas obrigações às quais suas prescrições davam origem. Somente depois disso, é que eles voltavam sua atenção aos bens que estas prescrições permitiam buscar e apreciar.

A liberdade dos modernos, segundo Constant, é oriunda de Locke e tem como significado aquela de pensamento, de consciência; certos direitos básicos de pessoa, de propriedade e o primado da lei. Para Locke, o estado de natureza é uma situação de liberdade e igualdade; sendo a liberdade entendida como: "(...) a liberdade consiste em não se estar sujeito à restrição e à violência por parte de outras pessoas (...)"10. Quanto à igualdade, segundo Locke, esta é jurídica e : "(...) consiste, para cada homem, em ser igualmente o senhor de sua liberdade natural, sem depender da vontade nem da autoridade de outro homem (...)"11. Contudo, no estado de natureza, como o homem faz a sua própria justiça, isto pode gerar conflitos e um estado de guerra. Logo, no estado de natureza há a inconveniência da ausência de um juiz imparcial. Desta forma, falta uma instituição capaz de julgar as controvérsias que aparecem. Neste sentido, o estado civil aparece para sanar as inconveniências do estado de natureza e o Estado é uma instituição com o objetivo de possibilitar à convivência natural entre os homens, fazendo serem respeitadas as leis naturais.

Em Locke, antes do contrato, os homens no estado de natureza já são dotados de todas as suas faculdades. Neste sentido, o papel do Estado é limitado; a ele só cabe garantir a segurança individual sem intrometer-se em sua esfera privada. No entanto, o homem deve obedecer ao governo como, também, ao primeiro principio da lei natural que é aquele da liberdade, onde as instituições coercitivas se justificam quando as mesmas promovem a liberdade. Assim sendo, a proteção dos direitos fundamentais como o direito à vida, à liberdade e à propriedade não é renunciado; o que o indivíduo renuncia é o direito de fazer justiça por si mesmo. Em conseqüência disto, para Locke, a liberdade é relacionada com os direitos naturais e para ela ser efetivamente realizada é preciso um consenso onde todos consintam em se submeter às determinadas leis. Assim, a liberdade natural, para Locke, deveria vir antes do que à ordem, isto é, a ordem, nesse caso, seria um meio para fazer prevalecer à liberdade e quando a ordem é opressora, a liberdade tem prioridade. Para que ocorra a paz, os homens têm que ter liberdade religiosa, onde isto envolve a questão da tolerância. Quanto a esta, Locke argumenta que tem de haver uma separação entre a sociedade política e a igreja, embora a origem de ambas seja a mesma.

Quanto a Rawls, este retoma de Locke a idéia da desobediência civil, da liberdade e da tolerância (provavelmente, aquilo que possibilita a racionalidade, estrutura a razoabilidade, unindo-as, tornando-as inseparáveis enquanto idéias complementares, fazendo com que o método coerentista rawlsiano, equilíbrio reflexivo wide, não priorize os fundamentos de nenhuma doutrina compreensiva). Porém, quando Rawls afirma que a posição original generaliza a idéia do contrato social e o faz constituindo em objeto do acordo os princípios de justiça para a estrutura básica, isto ele não o faz como Locke, isto é, para uma determinada forma de governo. Para Rawls, a filosofia de Locke submete indevidamente as relações sociais entre as pessoas morais às contingências históricas e sociais estranhas à sua liberdade e à sua igualdade e isto a enfraquece.

Contrariamente a Locke, Rawls elabora uma teoria da justiça como eqüidade que tem a estrutura básica como objeto primeiro de justiça, desenvolvendo uma idéia de acordo particular dado o caráter e o papel único da estrutura básica da sociedade. Neste sentido, Rawls, em dissonância com Locke, diz que "a posição original generaliza a idéia familiar do contrato social. E o faz constituindo em objeto do acordo com os primeiros princípios da justiça para a estrutura básica e não para uma determinada forma, como em Locke12. Rawls é, também, contrário à filosofia de Locke porque este, em seu contrato hipotético de caráter histórico, sacrifica a liberdade do ser humano uma vez que, como o homem é afetado diretamente pelas contingências e pelos acidentes, nada leva a garantir para ele a justiça do contexto social, pois, em conseqüência do pacto social, os membros da sociedade não obtêm todos os direitos políticos iguais, porque estes são diretamente relativos à propriedade. Com isto, a doutrina de Locke submete as relações sociais a estranhamentos em relação à liberdade e à igualdade.

No entanto, Locke prioriza a liberdade de pensamento e de consciência, a propriedade, a associação e a determinados direitos básicos do indivíduo. Deste modo, Rawls, assim como Locke: (i) em relação à teoria da desobediência civil como forma de liberdade, enfatiza a função do contrato e da justiça procedural pura; (ii) quanto à questão da tolerância, vê no contrato um acordo entre pessoas razoáveis e racionais que, embora divergentes em muitos assuntos, podem conviver pacificamente. Nesta perspectiva, em consonância com a filosofia de Locke, Rawls enfatiza os direitos individuais e, para isto, reabilita o conceito de justiça que é inerente ao contratualismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Pode-se afirmar que dentro das circunstâncias acima mencionadas, para Rawls:

é o que existe entre a tradição de Locke, que dá mais importância ao que Benjamin Constant chama de "liberdade dos modernos", isto é, liberdade de pensamento e consciência, certos direitos básicos da pessoa e da propriedade, e a tradição de Rousseau, que põe a ênfase na "liberdade dos antigos", ou seja, a igualdade das liberdades políticas e os valores da vida pública. Esse contraste é vago e historicamente inexato, mas pode servir para fixar as idéias13.

Assim, a concepção de liberdade moderna comparada à antiga tendo como referência, respectivamente, Locke e Rousseau, traz conflitos. Estas concepções revelam uma tensão que decorre dos interesses sociais, econômicos, onde o funcionamento das instituições significa: (i) diferenças entre teorias políticas econômicas e sociais gerais; (ii) concepções diferentes sobre as conseqüências de políticas públicas. Desta maneira, o conflito é em virtude de como as diferentes doutrinas filosóficas e morais entendem as exigências entre a liberdade e a igualdade, a prioridade entre elas, a sua ordenação e como se deve justificar uma maneira de ordenar tais exigências. Pode-se, então, sintetizar o porquê disto tudo ocorrer; isto ocorre pelo fato do antagonismo constatado nas duas concepções em relação à igualdade e à liberdade; há um debate e não há um acordo público sobre como as instituições básicas devem ser organizadas para melhor se adequarem à liberdade e à igualdade da cidadania democrática.

Para Rawls, seria pouco satisfatória somente a acomodação das concepções de liberdade antiga e moderna. Sendo assim, a teoria da justiça como eqüidade tenta arbitrar entre essas duas concepções propondo dois princípios de justiça para serem guias na efetivação dos valores da liberdade e da igualdade, definindo um argumento que mostre o motivo desses princípios aparecem mais apropriados do que os outros para a natureza dos cidadãos de uma democracia. Rawls, para isto, presumirá que a liberdade pode ser explicada mediante aos seguintes aspectos: agentes que são livres às restrições que apontam para a liberdade deles e aquilo que eles estão livres para fazer ou não. Somente isto é relevante para explicar o que é liberdade. Para isto, a filosofia rawlsiana considera, também, a cultura política pública. Nessa perspectiva, para uma concepção política da justiça ser aceita, esta deve estar de acordo com convicções bem ponderadas depois de uma reflexão ponderada.

Com base no exposto, Rawls afirma que a justiça como eqüidade considera que a liberdade dos antigos tem menos valor intrínseco que a liberdade dos modernos. Então, em uma sociedade moderna, a política não é o centro de tudo e as liberdades políticas são consideradas básicas sendo meios institucionais essenciais para proteger outras liberdades. Rawls, então, assegura que vai tentar ignorar as discussões sobre o significado da liberdade como, também, dos conflitos entre os proponentes da liberdade negativa e os da positiva, pois, para ele, a liberdade de pensamento e a liberdade de consciência, a liberdade individual e as liberdades civis não deveriam ser sacrificadas em nome da liberdade política. Desta forma, embora seja de real importância o engajamento dos cidadãos na vida política, isto deve ser feito mediante uma escolha deles próprios. Porém, as reivindicações dos indivíduos não podem ter prioridade em relação aos princípios de justiça nem da liberdade que eles garantem.

Com isto, o que Rawls afirma é uma conjugação entre liberdade e igualdade, pois a justiça como eqüidade não aceita nenhum acordo que viole as liberdades básicas, assegurando, então, que há um direito natural à liberdade. Em Rawls, há uma igualdade democrática na diferença e o que deve ser igual é a realização de um projeto de vida racional considerando, para isto, a liberdade. Neste sentido, os princípios de justiça seguem uma ordem lexicográfica, onde as liberdades básicas têm prioridades sobre o princípio da diferença. Assim sendo, Rawls protege a autonomia individual e a defesa das liberdades deve ser à base de toda justiça.

Em consonância com o acima exposto, Rawls não admite que entre a concepção de liberdade dos antigos e dos modernos exista uma oposição fundamental, pois o que se deve levar em consideração é o grau de engajamento que os cidadãos devem ter na política para garantir suas liberdades básicas e qual a melhor maneira para consegui-las. Para tanto, a teoria rawlsiana leva em consideração tanto a natureza social do cidadão como, também, a sua autonomia. Então, o que ele propõe é que os cidadãos compartilhem de uma cidadania igual, que a liberdade igual seja pública e consensualmente estabelecida através de julgamentos bem ponderados tendo como método o equilíbrio reflexivo para que, desta maneira, ocorra uma limitação na discordância pública tendo como base a tolerância.

Desta forma, para a teoria rawlsiana a concepção política deve combinar idéias e princípios bem conhecidos, mas conectados de maneira nova, levando em consideração que a sociedade é um sistema de cooperação eqüitativa entre pessoas livres, iguais e garantindo, assim, um consenso, onde o objetivo da justiça como eqüidade: "(...) não é nem metafísico nem epistemológico, mas prático (...) é um acordo político informado e totalmente voluntário entre cidadãos que são considerados como pessoas livres e iguais (...)"14. Assim, para Rawls, tanto a liberdade dos antigos como a dos modernos deve ser levada em consideração, não como uma forma de, simplesmente, sintetizá-las, uni-las, mas, acima de tudo, como uma maneira de fornecer uma base aceitável para as instituições democráticas. Neste sentido, ele afirma que: "As liberdades políticas iguais e a liberdade de pensamento devem assegurar a aplicação livre e bem-informada dos princípios de justiça, por meio do exercício pleno e efetivo do senso de justiça dos cidadãos, à estrutura básica da sociedade"15.

Aqui convém ressaltar que, para Rawls, as concepções de pessoa e sociedade são levadas em consideração especificando os direitos e deveres básicos que devem ser garantidos pelas instituições políticas e sociais referentes à estrutura básica da sociedade; tudo isto efetivado mediante um processo de construtivismo político que é gerado pelo dispositivo da posição original, véu de ignorância e, sobretudo, pelo método do equilíbrio reflexivo. Neste sentido, é conveniente lembrar que a concepção de pessoa é normativa como, também, política e, por ser assim, ela tem como caracteres constitutivos os dois poderes morais. Desta forma, as pessoas são livres e autônomas, não se pautando em nenhum princípio previamente dado e os princípios de justiça são formulados a partir de um levantamento feito em relação a regimes bem-sucedidos, partindo de um exame para se saber quais são os direitos fundamentais. Esta ênfase na concepção de pessoa baseada em seres que examinam e constroem os princípios de justiça, faz com que Rawls não participe das disputas em relação aos valores políticos que caracterizam as controvérsias entre a liberdade dos antigos e dos modernos.

Contudo, embora Rawls não participe das controvérsias em torno dos dois modelos de liberdade, isto não significa que ele não as leve em consideração: quanto à liberdade negativa, a teoria rawlsiana a contempla quando afirma que as liberdades não são absolutas, que elas devem ser avaliadas como um todo, com um princípio único, onde, através deste, pode-se ponderar se há uma melhoria no total das liberdades; aqui cumpre ressaltar que uma liberdade só é restrita em função de outra. Com isto, há uma ausência de restrições externas, uma ausência de impedimentos e o Estado não deve se interpor na esfera da liberdade.

Quanto à liberdade positiva, Rawls, também, a considera. Embora ele afirme que a liberdade não é absoluta, ele parte do pressuposto da necessidade de uma ordem léxica16 não só quanto aos princípios de justiça, mas, também, no interior do primeiro princípio. Assim, o argumento da liberdade negativa é revertido àquele da liberdade positiva onde as liberdades políticas têm prioridade e são incluídas entre as liberdades básicas. Desta forma, Rawls trata dos direitos básicos, das liberdades essenciais e a justiça como eqüidade é caracterizada como uma concepção política que tem como objetivo administrar conflitos entre liberdades fundamentais, levando em consideração a autonomia das pessoas como seres livres, iguais que podem rever, construir e avaliar os seus princípios de justiça. Com base nisto, Rawls afirma uma prioridade do razoável em relação ao racional; os cidadãos agindo assim exprimem a sua autonomia completa e ele afirma que:

a meta inicial da teoria da justiça como eqüidade (...) é mostrar que os dois princípios de justiça permitem compreender melhor as reivindicações da liberdade e da igualdade numa sociedade democrática do que o fazem os primeiros princípios associados às doutrinas fundamentais do utilitarismo, ao do perfeccionismo e do intuicionismo17.

Portanto, a característica de uma justiça procedimental pura é a especificação do que é justo pelo resultado do procedimento e, sendo assim, tanto o resultado quanto o procedimento formam um sistema consistente, justo e coerente. Então, segundo Rawls:

a justiça como eqüidade almeja pôr de lado antigas controvérsias religiosas e filosóficas e não se apóia em qualquer visão abrangente específica. Faz uso de uma idéia diferente, a de justificação pública, e procura moderar conflitos políticos irreconciliáveis e determinar as condições para uma cooperação eqüitativa entre cidadãos. Para realizar esse objetivo tentamos elaborar, a partir de idéias fundamentais implícitas na cultura política, uma base pública de justificação que todos os cidadãos, considerados razoáveis e racionais, possam endossar a partir de doutrinas abrangentes. Caso isto se concretize, temos um consenso sobreposto de doutrinas razoáveis18.

Logo, na justiça como eqüidade, a utilização do método do equilíbrio reflexivo, a autonomia, a liberdade, o conceito normativo de pessoa, o procedimentalismo puro, a ordem lexicográfica atribuída ao primeiro princípio, à concepção política de justiça e a base pública de justificação, isto tudo mostra que Rawls considera tanto a liberdade dos antigos quanto à dos modernos e, com base neste argumento, constata-se um forte suporte conceitual que aponta para o modelo rawlsiano de justificação: o coerentista.

Neste sentido, vê-se, corroborado com o acima exposto, que a teoria rawlsiana tem uma justificação coerentista uma vez que, além de não se ater á crenças básicas quanto à elaboração dos princípios de justiça, pois os mesmos são construídos em posição original através do equilíbrio reflexivo, o recurso ao procedimento puro não tem um pressuposto a priori e as crenças contidas nele mutuamente se apóiam no sentido de que os critérios e os procedimentos são inseparáveis; eles formam um sistema justo e coerente, onde a decorrência justa que um traz é em conseqüência do aspecto de justiça do outro.

Assim, o coerentismo rawlsiano está relacionado à problemática da liberdade negativa e positiva: as partes, no momento da elegibilidade dos princípios de justiça, realçam as suas características da racionalidade (liberdade dos modernos; exemplo disto: cada cidadão pode determinar qual doutrina filosófica, religiosa ou metafísica considera verdadeira) e da razoabilidade (liberdade dos antigos, exemplo: ênfase ao político, ao justo). Estes aspectos indicam que, no construtivismo rawlsiano, o consenso sobreposto, realizado através do equilíbrio reflexivo e de convicções ponderadas, resgata aspectos relativos aos dois modelos de liberdade, gerando uma síntese, caracterizando, através deste procedimento, um recurso coerentista para a justificação rawlsiana: o do caráter holístico da mesma, ou seja, ao afirmar que a deliberação dos princípios de justiça é estabelecida através da concepção do justo e do bem, das liberdades políticas e de pensamento, por exemplo, Rawls fornece um status epistêmico para a crença nas convicções ponderadas em relação à eleição dos princípios de justiça.

No entanto, no processo da elegibilidade dos princípios de justiça, a concepção de pessoa, também, tem uma relevância teórica; isto, porém, não significa um a priori fundacionista, porquanto no construtivismo rawlsiano a idéia da concepção de pessoa é política; apenas um ideal razoável, onde este reflete ideais implícitos na cultura política pública das sociedades democráticas. Assim, a teoria rawlsiana limita o alcance do ideal da autonomia da pessoa. Neste sentido, as partes só elegem os princípios de justiça que já se encontravam presentes como forma de opção existente para eles; os princípios, por sua vez, só são considerados justos por causa das características pertinentes as partes que os escolheram.

Assim sendo, não só na elegibilidade dos princípios de justiça e, portanto na síntese efetuada por Rawls entre a liberdade dos antigos e dos modernos como, também, em todo o aparato teórico rawlsiano, por utilizar o método do equilíbrio reflexivo e, por consegüinte, ser eqüitativa, o que se constata é a presença do caráter holístico da justiça como eqüidade, corroborando com a tese de que a justificação do pensamento rawlsiano é coerentista.



Notas de Rodapé

1 SILVEIRA, Denis Coitinho. "Teoria da justiça de John Rawls: entre o liberalismo e o comunitarismo". In: Trans/Form/Ação, 2007. vol. 30, no. 1, p. 169.
2 E. BONELLA, Alcino. Justiça como imparcialidade e contratualismo.Campinas, IFCH- Unicamp. (Tese de Doutorado), 2000.
3 Liberdade positiva ou dos antigos é a participação coletiva no exercício da soberania. Liberdade negativa ou dos modernos é a liberdade privada ou o exercício pelo individuo do seu direito natural de gerir sua vida como bem entende.
4 Ibíd., Justiça como eqüidade; uma reformulação, p. 186.
5 Ibíd., TJ, p. 151.
6 ROUSSEAU. "Do contrato social". In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 30.
7 OLIVEIRA, Nythamar. Rawls. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 17.
8 O'NEILL, Onora. Em direção à justiça e à virtude: uma exposição construtiva do raciocínio prático. São Leopoldo: Unisinos, 2006. p. 192.
9 BORON, Atilio. A. Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. [on line] http://www.biblioteca.clacso.edu.ar/, p.93.
10 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil: e outros escritos. In: Clássicos do Pensamento Político. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 115.
11 Ibíd., p. 114.
12 RAWLS, John. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.23.
13 Ibíd., p.207.
14 RAWLS, John. Justiça e Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 210.
15 RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. p. 391.
16 A ordenação lexical confere a todos os constituintes um peso específico sem os tornar mutuamente substituíveis.
17 RAWLS. Justiça e democracia. Op. cit., p. 146.
18 RAWLS. Justiça como eqüidade: uma reformulação. Op. cit., p. 40.



Referências

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