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Discusiones Filosóficas

Print version ISSN 0124-6127

discus.filos vol.12 no.18 Manizales Jan./June 2011

 

Repensar a técnica e a subjetividade: entre Hannah Arendt e Hans Jonas

Rethinking technica and subjectivity: between Hannah Arendt and Hans Jonas

Osvaldino Marra Rodrigues
Universidade Federal do Piauí, Brasil. E-mail: dinomarra@gmail.com

Recibido el 11 de febrero de 2011 y aprobado el 31 de mayo de 2011



Resumo

Na Condição Humana, publicado em 1958, Hannah Arendt estabeleceu uma distinção importante entre a "condição humana" e a "natureza humana". A partir deste analise fenomenológico, Arendt tentou circunscrever os limites da "natureza humana", e responder aos teóricos positivistas que consideravam possível conhecer o quid da natureza biológica humana. Para Arendt, a ação humana, a diferença dos eventos ocorre na natureza, consiste numa característica muito especifica a liberdade. Como resultado dele; uma correta compreensão do fenômeno da condição humana, não pode ser esgotada por apelar só à dimensão biológica, devido a que, a ação humana não pode ser exatamente explicada pelas forças que atuam no exterior, o analise do naturismo é insuficiente. E não pode esgotar o problema do fenômeno da liberdade humana.
Por sua parte, porém Hans Jonas, não desenvolveu amplamente este tema, inclui em O Principio de Responsabilidade, nos capítulos cinco e seis, uma dura critica ao projeto marxista que apela ao conceito desenvolvido por Arendt, de homo laborens, o qual é uma das manifestações da "condição humana".

Palavras chave

Condição humana, marxismo, natureza humana; liberdade, subjetiva, técnica.

Abstract

In The Human Condition, published in 1958, Hannah Arendt makes an important distinction between the "human condition" and the "human nature". Out of this phenomenological analysis, Arendt tried to circumscribe the limits of the "human nature" and to respond to positivist theoreticians who considered possible to know the essence of the biological human nature. For Arendt, human action, unlike the events that occur in nature, consists of a characteristic very specific of freedom. As a result, a correct understanding of the phenomenon of human condition is not possible through the biological dimension, since human action cannot be properly explained by the forces that act in the external world. This shows that the naturalistic analysis is insufficient and cannot deal properly with the phenomenon of human freedom.
On the other hand, though Hans Jonas did not treat completely this problem in his The Principle of Responsibility, he offers a hard criticism of the Marxist project inspired in Arendt's notions (in chapters five and six), targeting the notion of homo laborens, as one of the manifestations of the "human condition".

Key words

Human condition, Marxism, Human nature, Freedom, Subjectivity, Technica.



1. RAÍZES COMUNS

Hannah Arendt (1906-1975) e Hans Jonas (1903-1993) foram amigos que partilharam o mesmo destino em função da ascendência judaica, motivo pelo qual tiveram de migrar, no início da década de 30, para conservarem suas vidas, deixando para trás o solo materno no qual viviam amigos e familiares, muitos dos quais não conseguiram escapar à política anti-semita alemã1.

Leitores de Kant, compartilharam de um ambiente cultural comum e foram iniciados na 'vida do espírito' pelas mãos de Edmund Husserl, Martin Heidegger e Rudolf Bultmann (cf. Adler 2006 71). Em específico, foram forjados na escola fenomenológica da temporalidade de Martin Heidegger, do qual puderam acompanhar o desenvolvimento inicial da crítica à metafísica, embora posteriormente tenham compartilhado um desconforto em relação ao habitante da Floresta Negra: acusado de participar da política totalitária e anti-semita, não se dispôs a um diálogo aberto sobre sua participação na política nazista2.

2. PERÍODO DE TEMPOS SOMBRIOS

Pessimismo, medo, desilusão e niilismo, eis alguns conceitos que compuseram o vocabulário das reflexões ao longo do século XX, descrito por Arendt como um "período de tempo sombrio" (Arendt 1987 20), que parece contrastar com os avanços técnicos do período que espelha a autoridade da razão em detrimento da autoridade de Deus, período no qual 'culto da razão' entrou em colapso e o projeto Iluminista parecia estar fadado ao fracasso. Max Horkheimer, por exemplo, fala da "autodissolução da razão" (Horkheimer 2002 40) e da "obscura perspectiva de futuro da realidade"(Id. 43). Enfim, por distintas que fossem as tendências teóricas, quase3 todas as reflexões4 confluíram para um pessimismo de fundo escatológico em suas análises.

O século da técnica foi, igualmente, aquele no qual melhor se observou o perigo oculto da razão instrumental que, deixando de lado a reflexão sobre as finalidades da ação humana, passou a se ocupar apenas com os meios para a consecução de objetivos, de modo que é plausível afirmar que a indeterminação e a falta de critérios extrínsecos caracterizaram a razão instrumental no século XX, deixando entrever uma perigosa falha no projeto Iluminista, pois "No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal" (Horkheimer e Adorno 1985 19).

Como em nenhum século precedente, a razão e a racionalidade foram duramente criticadas, fato que não poderia ser diferente para aqueles que presenciaram duas grandes guerras sustentadas por um desenvolvimento técnico sem precedentes. As armas de destruição em massa, as conquistas do biopoder, as transformações no consumo e a primazia da violência sobre o poder compuseram a mais vívida expressão do desenvolvimento da técnica, e expuseram ao sol do meio dia os perigos intrínsecos à razão instrumental, período no qual "a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça ou esta se associou àquela de forma indissolúvel"(Jonas 2006 21). Ainda de acordo com Jonas, "Tudo aí é novo, sem comparação com o que o precedeu, tanto no aspecto da modalidade quanto no da magnitude"(Ibíd.).

O mesmo pessimismo é compartilhado por Hannah Arendt, que caracterizou com precisão cirúrgica a utopia da crença ilimitada no progresso da ciência numa visão decididamente escatológica: "o futuro geral da humanidade nada tem a oferecer à vida individual, cuja certeza única é a morte"(Arendt 1970 27). Argumentou ainda que o progresso "é um dos itens mais sérios e complexos encontrados no mercado de superstições do nosso tempo" (Id. 29), e que a

...crença irracional do século XIX no progresso ilimitado encontrou aceitação universal, principalmente devido ao espantoso desenvolvimento das ciências naturais, que, desde o surgimento da idade moderna, na verdade têm sido ciências "universais" e, portanto, podia-se olhar para frente como uma tarefa sem fim no explorar a imensidão do universo (Ibíd.).
Enfim, o diagnóstico de Hannah Arendt não poderia ser mais sombrio quanto à 'superstição do progresso':
Não somente o progresso da ciência deixou de coincidir com o progresso da humanidade (seja lá o que isto signifique), como poderia disseminar a destruição da humanidade, tanto quanto o ulterior progresso da especialização pode encaminhar à destruição tudo o que a tornara antes válida. O progresso, em outras palavras, não serve mais como o padrão pelo qual avaliamos os desastrosamente rápidos processos de mudanças que desencadeamos. (30)

Como observaram Max Horkheimer e Theodor Adorno, "o progresso converte-se em regressão" (Horkheimer e Adorno 1985 15), e a natureza, dessacralizada, tornou-se um meio para a desmedida felicidade humana constituída pela indústria cultural. Com a perda do horizonte teológico, não há mais limites para a técnica. Doravante, o "que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa" (Id. 20).

É nesse espaço de desolação e desesperança no qual as reflexões de Hannah Arendt e de Hans Jonas estão, histórica e filosoficamente, situadas, o período no qual o "Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis e a economia o impulso infatigável" (Jonas 2006 21).

Como a técnica moderna não possui nenhum limite extrínseco, dado que emerge da subjetividade desvinculada de um ethos natural, ela passa a circunscrever o horizonte metafísico Ocidental. Por esse motivo, tornou-se um imperativo buscar meios de controle voluntário sobre a técnica, aquilo que Jonas denomina a "busca de um 'poder sobre o poder'"(237), do contrário, o ser humano, objeto da razão instrumental, estaria subscrevendo sua própria extinção, juntamente com a de toda a vida sobre a terra. Por esses motivos a responsabilidade assume a centralidade da reflexão de Jonas: "Trata-se de assumir a responsabilidade pelo futuro do homem"(Id. 353). A esta perspectiva de acentuado teor antropocêntrico, podemos acrescentar: não a do humano apenas, uma vez que o ser humano é apenas uma parcela de um todo; é igualmente necessário que o meio do qual emerge e depende a Vida seja preservado, não apenas em função da vida humana, do contrário, os próprios meios para a manutenção da vida humana tendem à extinção5.

A iminência da catástrofe era maior quando se pensa que apenas uma parte do projeto do Iluminismo se efetivou: o conhecimento e manipulação da natureza dissociado da emancipação política e do aperfeiçoamento da moral. Logo, o domínio sobre a natureza resultou numa aporia na qual a vida na terra estava sob risco iminente. Como observou Juan Sanches, nesse horizonte o Iluminismo se auto-destrói,

... porque em sua origem se configura como tal sob o signo do domínio sobre a natureza. E se auto-destrói porque este, o domínio sobre a natureza, segue, como a Ilustração mesma, uma lógica implacável que termina voltando-se contra o sujeito dominante, reduzindo sua própria natureza interior e, finalmente, a si mesmo, a mero substrato de domínio. O processo de sua emancipação frente à natureza externa se revela, desse modo, ao mesmo tempo como processo de submissão da própria natureza interna e, finalmente, como processo de regressão à antiga servidão sob a natureza. O domínio do homem sobre a natureza leva consigo, paradoxalmente, o domínio da natureza sobre os homens. (Sánchez 2005 30)
3. A HUMANA CONDIÇÃO OU O SEM-FUNDO HUMANO

Em The human condition, publicado em 1958, Hannah Arendt estabeleceu uma importante distinção do fenômeno humano entre 'human condition' e 'human nature': "a humana condição não é o mesmo que natureza humana, e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem à humana condição não constitui qualquer coisa como a natureza humana" (Arendt 1998 9-10).

Sob essa análise fenomenológica, Arendt procurou circunscrever os limites da 'human nature' e responder aos teóricos positivistas que consideravam possível conhecer o quid humano através da natureza biológica. Contra essa tese, a pensadora de Hannover aponta para o indeterminado constitutivo do humano, a 'human condition', outro nome para designar subjetividade, compartilhando a perspectiva da insuficiência da explicação naturalista com pensadores e pensadoras que não admitiam a redução do ser humano à dimensão meramente biológica6 (cf. Moore 1999 87-90, 123-147; Jonas 2006 149-164) e apontando para o fenômeno peculiar da responsabilidade humana. Para Arendt, a ação humana, diferente dos fatos que ocorrem na natureza, é constituída por uma característica muito específica, a liberdade. Em conseqüência, uma correta compreensão do fenômeno da humana condição não pode ser esgotada recorrendo-se somente à dimensão biológica, pois a ação humana não pode ser corretamente explicada por forças que atuam exteriormente, mas, sobretudo, a partir de uma vontade livremente exercida e sobre a qual recai a responsabilidade, a subjetividade. Sob esse prisma, a análise do naturalismo é insuficiente e não consegue esgotar o problema do fenômeno da liberdade humana. Como apontou Heidegger, o "fato de a fisiologia e a química fisiológica poderem, pela ciência da natureza, investigar o homem como um organismo não serve para demonstrar que a essência do homem repousa neste elemento orgânico" (Heidegger 2008 337). Por conseguinte, a 'human condition' aponta para o sem-fundo humano7 que, ao contrário da 'human nature',

... se desliza como algo indeterminado e indeterminável; o abismo humano mana como força criadora inexplicável; o humano emerge como produção imaginaria de sentido e como práxis criadora de mundo. O sem-fundo humano é uma força criadora que ao interagir com o mundo o faz produzindo em sentido e tipo de mundo como seu mundo. Ao criar imaginativamente o mundo, se cria a si mesmo enquanto sujeito histórico. (Ruiz 2006 69)

Logo, diferente de outras espécies animais, a compreensão do ethos humano não pode ser esgotada apenas em função de uma 'human nature', mas igualmente pela 'human condition'. Logo, o ser humano é um cidadão de dois mundos que não podem ser separados, a não ser como análise do fenômeno, pois, em que pese a diferença oriunda da subjetividade, o 'sem fundo humano', o ser humano está igualmente enraizado no mundo natural e depende, tal qual os outros seres vivos, das condições necessárias para a manutenção biológica. Nesse sentido, o ser humano está enraizado na 'human conditon' tanto quanto na natureza pelo labor, enquanto 'human nature': "O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo espontâneo crescimento, o metabolismo, e eventual decadência têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A humana condição do labor é a vida mesma" (Arendt 1998 7).

Mas porque o ser humano também está inserido na 'human condition' certamente emergem problemas adicionais. O desejo humano, que na tradição é denominado apetitus, por exemplo, diferencia-se do desejo animal na medida em que ultrapassa a medida (Mass) da esfera biológica. Em outro prisma, o ser humano parece ser a única espécie animal8 cujos desejos não estão restritos à esfera da manutenção biológica, mas cria desejos que superam as necessidades da condição do animal laboran.

Em que pese a 'human condition', em última instância o animal humano compartilha fraternalmente com os outros animais não humanos a dimensão laborans: "O animal laborans é, na melhor das hipóteses, a mais desenvolvida espécie de animal que vive sobre a terra, mas apenas uma espécie" (Ruiz 2006 84). Portanto, o labor é o destino comunalmente partilhado por todos os seres vivos que possuem metabolismo, pois relaciona o ser humano à manutenção da vida biológica, um trabalho que não tem durabilidade nem publicidade. Portanto, embora negativa numa dada perspectiva, a análise de Arendt tornou-se exemplar noutra: o ser humano está radicado na natureza e não consegue suprimir sua 'human natur'. Esse fato, por si mesmo, gera um dever em relação ao meio do qual o ser humano haure os elementos que o mantém vivo.

Uma vez que a vida é uma "confrontação explícita do Ser com o não-Ser" (Jonas 2006 152), a constatação dessa isonomia vital do humano com outros seres vivos traz à tona o princípio responsabilidade por esse elemento comum do qual emerge e depende a vida biológica.

Entretanto, em que pese essa dimensão ontológica constitutiva da vida, o ser humano age de forma como se não partilhasse desse destino comum, pois é capaz de agir contra o meio do qual depende sua vida na dimensão biológica. Como profeticamente previu Arendt, "the spare time of the animal laborans is never spent in anything but consumption, and the more time left to him, the greedier and more appetites" (Arendt 1998 133).

4. A PREVALÊNCIA DO HOMO LABORENS

Dentre os elementos que contribuem a destruição dos meios de subsistência do ser humano e da Vida, encontra-se a prevalência do homo laborens sobre o homo sapiens e o homo faber, fenômeno magistralmente analisado por Hannah Arendt em The human condition. Como pano de fundo, podemos afirmar que a sociedade de consumo contribuiu decisivamente para o esgarçamento da natureza, e o fenômeno tem conseqüências (im)previsíveis, dado que o consumo dos bens de consumo foi elevado ao mesmo patamar do consumo para suprimir a necessidade vital: consome-se bens de consumo como se consome alimento para a manutenção do metabolismo biológico, embora este tenha um limite, enquanto a outra forma de consumo, não.

A preponderância do homo laborens resulta numa pesada moratória para as gerações futuras, pois a natureza não é destruída sem que, junto, sejam destruídos os meios do quais o ser humano depende – a mesma imprudência de alguém que serra o galho sobre o qual está assentado. Por esse motivo, a técnica e o consumo constituem material de reflexão necessário para a ética hodierna, dado que a lógica do consumo incontrolável passou a ser um efetivo risco à manutenção da própria Vida9.

Eis, pois, no fundo, a aporia apontada por Hannah Arendt e Hans Jonas: a desmedida da técnica que surgiu para liberar o ser humano do domínio da natureza, para liberá-lo da maldição adâmica10 e entronizá-lo como senhor absoluto e inconteste sobre a natureza, aponta para um sombrio horizonte quanto à permanência da própria Vida, pois ao contrário dos animais que estão presos às necessidades vitais, o ser humano cria necessidades completamente distintas daquelas intrínsecas à manutenção da vida biológica e ao criar novas necessidades que não correspondem às vitais, a dimensão humana coloca para si mesma o problema dos limites da subjetividade relacionada à técnica. Para tanto seria necessário tomar consciência de que as necessidades metabiológicas pertencem à esfera da condição humana, a esfera da liberdade por excelência.

5. O PONTO CEGO NO PROJETO MARXISTA

Embora Hans Jonas não tenha uma obra especificamente dedicada à crítica da economia ou da política, o tema compõe as reflexões dos capítulos cinco e seis de O princípio de responsabilidade, nos quais sua crítica é dirigida à tradição marxista que sustenta a utopia no bem-estar ilimitado que pode conduzir a vida à ruína.

Para melhor compreender o problema, nada melhor que buscar, na fonte, a forma como Karl Marx defendeu a utopia do bem-estar ilimitado através da superação da necessidade do âmbito biológico:

... o reino da liberdade começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta; por natureza, situa-se além da esfera da produção material propriamente dita. O selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer as necessidades, para manter e reproduzir a vida, e o mesmo tem de fazer o civilizado, sejam quais forem a forma de sociedade e o modo de produção. Acresce, desenvolvendo-se, o reino do imprescindível. É que aumentam as necessidades, mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forcas produtivas para satisfazê-los. A liberdade nesse domínio só pode consistir nisso: o homem social, os produtores associados regulam racionalmente o intercâmbio material com a natureza, controlam-no coletivamente, sem deixar que ele seja a força cega que as domina; efetuam-no com o menor dispêndio de energias e nas condições mais adequadas e mais condignas com a natureza humana. Mas, esse esforço situar-se-á sempre no reino das necessidades. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade (Marx 1989 942).
A reflexão de Marx é exemplar na medida em que aponta e corrobora algumas importantes distinções para a prevalência utópica da razão instrumental:
(a) a distinção entre o reino da liberdade e o da necessidade;
(b) a natureza é o inimigo a ser submetido pelo trabalho e pelo engenho humano;
(c) a ampliação das necessidades é acompanhada pelo desenvolvimento das forças produtivas.

Karl Marx ainda podia manter uma crença ingênua porque num contexto em que a natureza ainda se mostrava inclemente à humana condição e no qual a técnica ainda não tinha se convertido num problema para a manutenção da vida, numa conciliação entre o reino da necessidade e o reino da liberdade (que, em última instância também pode se tornar um reino da necessidade), e que as duas forças poderiam conviver pacificamente.

Talvez o que Marx não previu foi que o reino da liberdade está assentado sobre areia: a subjetividade, o sem fundo constitutivo da condição humana11.

Com a crescente demanda do reino da liberdade sobre o da necessidade, e uma paulatina equiparação entre eles, foi sendo paulatinamente instalado um desequilíbrio entre as duas esferas. A demanda crescente do consumo aumentou consideravelmente o desequilíbrio da natureza. Como resultado, a manutenção do reino da liberdade está colocado em risco, uma vez que a permanência das condições necessárias para a vida, ontologicamente anterior e o espaço imprescindível da subsistência do reino da liberdade, está em jogo. Corroborando essa hipótese, Jonas comenta que "o que realmente excede a visão liberal burguesa é a crença quase religiosa na onipotência da técnica em nos trazer o bem" (Jonas 2006 255). Por conseguinte, se a esfera da subjetividade não sofrer uma limitação quanto ao apetitus oriundo da subjetividade, a fonte da vida pode ser minada.

Tendo em vista esse quadro desolador, Hans Jonas prescreve a necessidade de um rompimento com o antroponcetrismo como forma de manutenção das condições necessárias à vida. Do contrário, como observou Jonas,

... a inteira biosfera do planeta, com toda sua pletora de espécies, em sua recém-revelada vulnerabilidade perante os ataques excessivos do homem, exige sua parte de respeito, devido a tudo aquilo que traz em si mesmo o seu fim, isto é, todo o vivente. O direito exclusivo do homem à humana consideração e à observância ética foi rompido precisamente com a conquista de um poder quase monopolístico sobre toda outra vida. (Jonas 1999 407-420)

Jonas argumenta ainda que a "vida extra-humana empobrecida e natureza empobrecida significam também uma vida humana empobrecida (413). A técnica a serviço do apetite desmesurado do sem fundo humano representa um jogo suicida: "precisamente as bênçãos da técnica, quanto mais somos dependentes delas, contêm a ameaça de ser transformar em maldição (415).

Ainda quanto ao presente, a reflexão joniana aponta a aporia que deve ser o elemento a partir do qual decidiremos sobre nossas ações de hoje em relação ao amanhã, uma vez que o "sacrifico do futuro em prol do presente não é logicamente mais refutável do que o sacrifício do presente a favor do futuro. A diferença está apenas em que, em um caso, a série segue adiante e, no outro, não (Jonas 2006 47). A manutenção e permanência da vida humana dependem, pois, de uma decisão ética.

Para tal, duas condições básicas impõem-se ao ser humano:
(a) a restrição do sem fundo humano, a subjetividade que cria demandas inconseqüentes;
(b) com a restrição das demandas da subjetividade, a restrição sobre a técnica.

Tendo em vista a responsabilidade em relação à permanência do horizonte da vida, Jonas estabelece um novo imperativo: "Aja de tal modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra"(47). Quando a terra se torna mercadoria, a responsabilidade está acima da fruição incondicionada. Se uma das estruturas fundamentais do ser humano é a carência (Mangel) e esta for alimentada pelos impulsos provindos da subjetividade, o horizonte da existência pode estar irremediavelmente comprometido.

Portanto, é plausível sustentar: é nesse horizonte hermenêutico que devemos compreender que a emancipação da subjetividade humana ante a natureza implicou a sujeição desta à insaciabilidade da subjetividade, pois é precisamente para que esta seja alimentada dioturnamente que a técnica frui desmedida. Por outro lado, a técnica também influi para a manutenção da ilimitada carência da subjetividade, pois o que esta estabelece como horizonte de vontade, a técnica supre. É nessa confluência entre a subjetividade e a técnica que está encravada a aporia enquanto reflexão para ética, pois a transcendência é o próprio do ser humano, o fundamento "sobre o qual ele tem de se sustentar" (344). Por esse motivo, a subjetividade não "pode ser ultrapassada na direção de uma claridade sem sombras, mas também não pode regredir até a característica não-problemática da natureza animal" (Ibíd.). É no interior dessa problemática confluência entre subjetividade e técnica que "devem se movimentar as esperanças e os temores, as expectativas para os indivíduos singulares e para a humanidade" (Ibíd.). Em última instância, o que está em jogo nessa aporia entre o sem-fundo da subjetividade da condição humana, e a técnica, é a pergunta pela possibilidade da permanência da vida – incluindo aí a do ser humano. O próprio fenômeno da natalidade está radicado na possibilidade, "no fato de que os seres humanos, novos homens, aparecem sempre de novo no mundo em virtude do nascimento" (Arendt 2000 348).

Contudo, se na economia interna do fenômeno humano o animal laborans prevalecer sobre o homo sapiens e o homo faber, a possibilidade do recomeço e da permanência da vida, seja ela humana ou não humana, poderá ser extinta, desaparecer definitivamente, pois quando a atividade humana se resume no labor, nada mais resta senão um eterno ciclo de produção e consumo. Se levarmos em consideração que estes foram intensamente intensificados pela técnica, a regeneração da natureza não consegue mais se impor ante o esgotamento. A regeneração foi possível outrora, quando o engenho humano não implicava um desequilíbrio permanente da possibilidade da vida. Era por meio desta, dos ciclos da natureza respeitados, que o ser humano agia.

Com a intensificação desmedida da técnica o ser humano começa a perceber a "crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela técnica do homem" (Jonas 2006 39). É por esse motivo que o "direito exclusivo do homem à humana consideração e à observância ética foi rompido precisamente com a conquista de um poder quase monopolístico sobre toda outra vida"(Jonas 1999 412). Hans Jonas afirma ainda que a "vida extra-humana empobrecida e natureza empobrecida significam também uma vida humana empobrecida" (413). Por tudo isso a responsabilidade cósmica12 do ser humano excede os estreitos limites dentro dos quais a ação humana se desenvolvia. A responsabilidade, pois, deve incidir sobre o sem-fundo humano tanto quanto na técnica, pois os limites impostos à insaciabilidade da subjetividade também repercutiriam nos limites da técnica. Somente assim haveria uma possibilidade para a vida, incluindo a do ser humano, poder continuar subsistindo.



Notas de Rodapé

1 A mãe de Jonas morreu em Auschiwtz e Walter Benjamin, dileto amigo de Arendt, matou-se antes de cair nas mãos da Gestapo.
2 Há, sobre o período, três importantes documentos, dois dos quais vieram à luz depois da morte de Heidegger: "Die Selbstbehauptung der deutschen Universität, discurso pronunciado em 27 de maio de 1933, quando Heidegger tomou posse do reitorado da Universidade de Friburgo de Brisgovia, publicada no mesmo ano e reeditada em 1934; "Das Rektorat", escrito em 1945 para defender-se ante a comissão da Universidade de Friburgo; e a entrevista concedida à Der Spiegel, "Tatsachen und Gedanken", ocorrida em setembro de 1966 mas que, sob expressa vontade de Heidegger, somente foi publicada a 31 de maio de 1976, cinco dias após a morte do filósofo.
3 O advérbio aqui tem uma razão precisa: a filosofia de cunho analítico não refletiu as inquietações que pesavam sobre o ser humano. Nesse sentido, com raras exceções, como Bertrand Russell, a filosofia não-continental esteve à margem das discussões ético-políticas que eclodiram no século XX.
4 Como o marxismo, fenomenologia, freudismo, existencialismo, desconstrucionismo, pragmatismo etc. Além do âmbito da filosofia, a teologia, a história, a sociologia e a literatura também compartilharam do pessimismo comum e compuseram uma orquestra muito afinada quanto ao conteúdo de suas reflexões comuns.
5 Aqui poder-se-ia dizer que há um acentuado antropocentrismo, dado que a manutenção do meio depende a vida humana. Essa leitura não está errada, mas destaco que a vida não é uma prioridade do humano, pois este compartilha da vida comum na natureza. Assumo, como também é o caso de Hans Jonas, um antropocentrismo negativo que somente pode existir no meio a outras existências.
6 Parece que o argumento corrobora a 'falácia naturalista'. G. E. Moore afirmou que o bem não pode ser deduzido a partir de bases naturais. Contudo, Jonas parece pressupor a 'falácia naturalista', pois o bem ontológico é 'natural'
7 Ainda sobre o conceito, cf. Ruiz 2003 81-91.
8 Obviamente até onde nós, humanos, sabemos. Temos uma tendência ao antropocentrismo e tudo o que vemos e interpretamos confluem para uma perspectiva antropomórfica. A própria interpretação está circunscrita na condição humana.
9 Vida, aqui, adquire um sentido geral, ontológico, dado que não apenas o ser humano vive. O humano é tão somente mais um vivente entre viventes e, por isso mesmo, não tem primazia sobre a vida, nem tem o direito de extinguir as condições da vida.
10 Disse o Eterno ao homem: "Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste da árvore de cujo fruto te proibi comer, a terra será amaldiçoada por tua causa. Com fadiga tirarás dela o alimento durante toda a tua vida. Ela produzirá para ti espinhos e ervas daninhas, e tu comerás das ervas do campo. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até voltares à terra donde foste tirado. Pois tu és pó e ao pó hás de voltar". (Gn 3 17-19).
11 Obviamente que essa afirmação pode receber duras críticas dos marxistas. Estes poderiam argumentar que o homem numa sociedade capitalista está alienado e que somente numa sociedade comunista o 'verdadeiro ser humano' poderia se manifestar. Mas aqui há um problema mais que uma resposta: uma certa crença numa condição adâmica original que foi pervertida pelo desenvolvimento da estrutura capitalista. Nossa subjetividade estaria apenas pervertida pelo fetichismo oriundo da divisão social do trabalho. Mas esse modelo não me parece muito correto, pois pressupõe uma verdadeira subjetividade, uma 'coisa' que poderia ser atingida com as devidas correções oriundas das transformações sociais. Outro ponto: Marx não criticou os meios de produção, a técnica que permitiria ao ser humano livrar-se e se impor como senhor da natureza. Ainda mais, a distribuição da riqueza pressupõe as necessidades individuais, mas quais seriam estas se estão assentadas no 'reino da liberdade'? Eis, também, uma pergunta que, parece, não encontramos resposta na obra de Marx e na tradição marxiana.



Referências

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