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Discusiones Filosóficas

Print version ISSN 0124-6127

discus.filos vol.12 no.18 Manizales Jan./June 2011

 

Nietzsche e Deleuze: sobre a arte de transfigurar

Nietzsche and deleuze: on the art of transfiguring

Jorge Luiz Viesenteiner
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil. E-mail: jvies@uol.com.br

Recibido el 16 de mayo de 2011 y aprobado el 3 de junio de 2011



Resumo

O objetivo do artigo é articular o conceito de transfiguração, através do confronto teórico entre as filosofias de Nietzsche e Deleuze, especialmente no tocante a ideia de uma filosofia do experimento. Partindo de uma seara teórica em comum entre ambos os filósofos, vale dizer, o distanciamento de uma compreensibilidade conceitual da existência, isto é, a tentativa de superar quaisquer anteparos morais, lógicos, metafísicos, etc. que se interponham entre o homem e a vida, nossa hipótese é que a noção de transfiguração se revela como o horizonte com o qual Nietzsche e Deleuze deslocam a exigência conceitual a todo custo, em detrimento da dialética e em proveito da experimentação com a vida.

Palavras chave

compreensibilidade conceitual, experimento, transfiguração

Abstract

This article aims at articulating the concept of transfiguration through the theoretical confrontation between the philosophies of Nietzsche and Deleuze, especially regarding the idea of an experimental philosophy. This is done from a theoretical common point between both philosophers, namely, the detachment of a conceptual understanding of existence, i. e., the attempt to overcome any moral, logical, metaphysical shields, etc. mechanism that stands as an interpreter between man and life. Our hypothesis is that the notion of transfiguration is the horizon with which Nietzsche and Deleuze shift the conceptual requirement at all costs, to the detriment of the dialectic and in favor of the experimentation with life.

Key words

conceptual understanding, experiment, transfiguration



INTRODUÇÃO

Apesar das distâncias que Nietzsche e Deleuze possuem entre si, intensos também são os ecos que se ouvem entre ambos os filósofos, por exemplo, na estreita semelhança em torno daquilo que poderíamos chamar de filosofia do experimento, principalmente em relação ao papel que o conceito de transfiguração ocupa em torno do tema para ambos os autores. Seja a "experimentação-vida"(Deleuze e Parnet 1998 61) de Deleuze ou ainda a "filosofia experimental"1 (Nietzsche KSA 1980 16(32)) de Nietzsche, trata-se de um conceito que, por um lado, leva às últimas consequências a tradição da filosofia da representação com todo seu cortejo de racionalidade que a acompanha e, por outro lado, lança as bases tanto para a superação dessa tradição como também a uma nova compreensão a propósito da via pela qual homem tem acesso à vida.

Nosso objetivo é analisar essa última questão trazida no bojo de uma filosofia do experimento, vale dizer, como é possível compreender o acesso que o homem realiza à vida, na medida em que um acesso pela via dialética, metafísica ou aparentados configura um empobrecimento da vida mesma. Em outros termos, para ambos os filósofos, trata-se do distanciamento da "compreensibilidade conceitual da existência" (Nietzsche GC §370 KSA 3 621), no rigoroso sentido de uma filosofia cujo veículo é a racionalidade estéril ou mesmo um conjunto de categorias com as quais o homem se consola diante da vida. Um experimento conceitual com vida, segundo Deleuze, corre o risco da rígida codificação, do excesso de interpretação que esquece que a vida precisa ser criada (Deleuze 2004 56; cf. Deleuze e Parnet 1998 63) e não apenas interpretada, ou ainda do risco de se tornar indigno daquilo que nos acontece (Deleuze 2003 151). Além disso, um acesso conceitual à vida, segundo Nietzsche, é sempre um empobrecimento da vida mesma, na medida em que se trata de mera instrumentalização de categorias previamente produzidas e, portanto, atravessar "vivências apenas medianas e vulgares" (Nietzsche Para além de bem e mal §268 KSA 1980 5/222). Em suma, sempre que se interpõem entre o homem e a vida quaisquer categorias conceituais ou mesmo moralizantes, tratar-se-á também de abreviação, empobrecimento ou resignação.

Mais que mera "efetuação" (Deleuze) ou a "trajetória do homem em direção ao semelhante" (Nietzsche), é preciso considerar que o experimento com a vida pressupõe colocar em xeque precisamente os limites do acesso conceitual. Nossa hipótese é que o conceito de transfiguração se mostra como a via mais adequada para uma experiência de genuína criação com a vida. Seja transfiguração como "contra-efetuação" ou "máscara", respectivamente como o "ator comediante dos próprios acontecimentos"(Deleuze 2003 153) ou "poetas de nossas vidas" (Nietzsche GC §299 KSA 1980 538), tanto em Deleuze quanto em Nietzsche a transfiguração é a via pela qual o homem foge das codificações, cria a si próprio, podendo então se falar de mais uma forma de dimensão estética da vida.

DO ACONTECIMENTO

A partir de Lógica do Sentido Deleuze discute de modo sistemático o conceito de Acontecimento. Remontando à "moral estóica", que por sua vez opera com uma dinâmica de "efeitos de superfície" e não mais com a profundidade –ou seja, faz o Ideal do subterrâneo subir ao devir da superfície (Deleuze 2003 8)2–, Deleuze confere ao acontecimento a prerrogativa da afirmação: "A moral estóica concerne ao acontecimento; ela consiste em querer o acontecimento como tal, isto é, em querer o que acontece enquanto acontece" (Id. 146).

Digamos inicialmente que a proposição querer o acontecimento revela duas dimensões: 1) não se trata de mecanismo conceitual ou do torvelinho das interpretações e ajuizamentos. Daí porque dizer sim ao Acontecimento se distancia de um procedimento pela via conceitual. Trata-se antes de considerá-lo como "Entidade", ou seja, um "infinitivo" que está além da identidade fixa do sujeito sempre operante, bem como da representação conceitual que se arroga a suposta pretensão de definir o que é o mundo: "As verdadeiras Entidades são acontecimentos, não conceitos" (Deleuze e Parnet 1998 80). Além disso, querer o acontecimento pressupõe também levar o próprio juízo ao seu limite, suspender o excesso da interpretação pela leveza da experimentação com a vida: "trata-se de querer o acontecimento, qualquer que ele seja sem nenhuma interpretação ..." (Deleuze 2003 147. O grifo é nosso). 2) Querer o acontecimento, por outro lado, revela também um Cânon por trás dele, vale dizer, "não ser indigno daquilo que nos acontece" (147)3. Trata-se da suprema fórmula do "Amor fati", a habilidade daquele "dionisíaco dizer sim ao mundo tal como ele é, sem desconto, exceção ou seleção"(Nietzsche KSA 1980 13, 16(32)). Muito mais "intuição volitiva ou transmutação" do que "resignação"(Deleuze 2003 152), ser digno do que nos acontece pressupõe querer reunir em si as dimensões mais antagônicas da vida, mesmo naquilo que elas têm de mais dolorosas. Aceitar as feridas que se encarnam advindas da potência do acaso –que, por mais que nos esforcemos para controlá-lo através da fixação do devir, ele sempre nos foge e nos intranquiliza– significa ultrapassar a perspectiva de ser mais uma vítima da vida, precisamente aquela do ressentido cujas chagas são insuportáveis e, simultânea e paradoxalmente, imprescindíveis para sua sobrevivência como vítima. A ferida ou a convalescença deve ser querida no rigoroso sentido do ensinamento de Zaratustra: "transformar todo 'Foi assim' em um 'Assim eu o quis!'" (Nietzsche Assim Falou Zaratustra. "Da redenção" KSA 1980 4/179).

Obviamente Nietzsche não formulou um conceito de acontecimento. Porém, a partir das duas dimensões que analisamos com a premissa afirmativa do acontecimento4 em Deleuze, há sim um eco muito estreito entre ambos. Dizer sim ao caráter global da existência é uma hipótese que percorre a filosofia de Nietzsche. O termo amor fati surge pela primeira vez n'A Gaia Ciência no aforismo intitulado "Para o ano novo", e cuja fórmula reza: "Quero cada vez mais aprender a ver o que é necessário nas coisas como o mais belo: –assim serei um daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati: ... quero ser algum dia apenas alguém que diz Sim!"5 (Nietzsche GC §276 KSA 1980 521). Afirmação muito mais volitiva, como em Deleuze, querer o acontecimento nesses termos é dizer: tudo "se revela imediatamente ou logo depois como algo que 'não se deveria faltar'" (Id. §277 522).

Mas ser digno daquilo que nos acontece, em Nietzsche, significa também ultrapassar a dimensão do comum e do vulgar. Mais ainda: só se é suficientemente digno do que acontece, na medida em que há um rigoroso distanciamento da seara daqueles que apenas experimentam a instrumentalização de condições de vida produzidas em espaços previamente sequestrados, e depois comunicam tais vivências como se fossem genuínas. Queremos dizer que também em Nietzsche querer o que nos acontece se distancia do procedimento pela via conceitual. O aforismo 268 de Para além de bem e mal conclui precisamente com a exigência desse distanciamento conceitual e linguístico. Na medida em que "palavras são signos sonoros para conceitos; mas conceitos são mais ou menos determinados signos-imagem ... para grupo de sensações", compreender-se entre si exige ao mesmo tempo não apenas a partilha de um instrumental conceitual-linguístico em comum, mas também "ter sua experiência em comum uns com os outros". É preciso, sobretudo, fazer-se compreensível e, para isso, "algo estranho deve ser remetido a algo conhecido" (§355 594; cf. §354). Mas aí é que está: tornar algo conhecido significa comunicá-lo através de um aparato conceitual-linguístico que sempre será um "processo de abreviação" e, por isso, atravessar "vivências apenas medianas e vulgares" (Nietzsche Para além de bem e mal KSA 1980 §268 221). Todo acesso conceitual à vida, pois, é abreviação e sufocamento das possibilidades criadoras6. Nunca é sentir, mas sim re-sentir; nunca é criativo, mas gregário. Estar excessivamente preso às malhas conceituais de uma cultura revela uma simplificação da vida mesma, mera instrumentalização conceitual-linguística que é incapaz de criar o novo e, por isso, resigna-se meramente com a interpretação da vida. Em suma: do interior do instrumental conceitual-linguístico de uma cultura, tornar algo conhecido é sempre reproduzir algo com base nesse aparato conceitual, ao mesmo tempo em que é somente ressentir as mesmas vivências de sempre, que são comunicadas e abreviadas conceitualmente através de uma linguagem que também é comum e simplificadora. Daí a exigência do distanciamento conceitual em relação à vida, da invocação de "imensas forças contrárias para deter ...a trajetória do homem em direção ao semelhante, usual..., em direção ao vulgar!" (Ibíd.).

Querer o acontecimento na plenitude de ser digno do que nos acontece, pois, exige um outro pathos, um duplo movimento que ultrapassa a mera "efetuação" da ferida no corpo, da vulgar experimentação do comum que aprisiona nas malhas conceituais e impede a criação. E aqui tocamos em nosso problema: denominamos esse pathos precisamente como a arte de transfigurar.

DA TRANSFIGURAÇÃO

O Acontecimento possui uma dupla estrutura: a corporificação, ou seja, quando o "acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa..." (Deleuze 2003 154); é preciso querê-lo, como vimos, a ponto de não ser inferior ao acontecimento e, portanto, dignos daquilo que nos acontece. Porém, o momento mais intenso do acontecimento se revela no instante da sua duplicação, quando se opera com um segundo movimento em relação à efetuação do acontecimento: a transfiguração ou "contra-efetuação": "mas cada vez devemos duplicar esta efetuação dolorosa por uma contra-efetuação que a limita, a representa, a transfigura" (Id. 164).

Tomamos aqui transfiguração e contra-efetuação como sinônimas, na medida em que não é possível compreender o acontecimento sem a arte de transfigurá-lo. Isso significa que mais do que acessar o acontecimento como um estado de coisas que se efetua no espaço e no tempo, trata-se de acessá-lo através da contra-efetuação, ou seja, da transfiguração do próprio acontecimento. Daí o porquê a nossa hipótese remontar à transfiguração tanto em Deleuze quanto em Nietzsche, como a via mais adequada para experimentar criativamente a vida.

Quando Deleuze caracteriza o acontecimento como impessoal, neutro, etc., parece-nos que ele se refere precisamente ao saudável pathos de distanciamento que nos salva do acesso conceitual e vulgar à vida. Não basta querer o acontecimento, é preciso também mimetizá-lo artisticamente tal como faz o ator-comediante, que leva às últimas consequências a efetuação uma vez que é capaz de parodiá-lo, mimetizá-lo, mais ou menos como alguém que olha de cima num movimento que seleciona e, ao mesmo tempo, desprende-se do próprio acontecimento, tornando-se impessoal, neutro, etc. Transfigurar o acontecimento é limitar a efetuação na carne, mas que também não impede que o acontecimento o fissure, não evita a chaga que o obriga a viver com as feridas abertas7. A diferença é que na transfiguração há um movimento que duplica o acontecimento, tornando-o impessoal, na medida em que a transfiguração carrega consigo o saudável pathos de distanciamento que desprende o indivíduo da efetuação do acontecimento no corpo. Aquele que transfigura, desprende-se; aquele que parodia e ri, não se converte na vítima ressentida da vida, no indigno daquilo que acontece.

Deleuze opõe o mímico ao adivinho. O segundo é a vítima que interpreta excessivamente e sempre com o torvelinho do ressentimento ligado; o primeiro é o ator que se torna comediante dos próprios acontecimentos, que está no acontecimento mas ao mesmo tempo para além dele e, portanto, desprendido dele mesmo: "tornar-se comediante de seus próprios acontecimentos, contra-efetuação", e só assim o ator se abre ao "papel impessoal e pré-individual"(Deleuze 2003 153).

O ressentimento é citado por Deleuze para compreender o significado de querer o acontecimento em sua dupla estrutura8. E não é difícil entender o porquê. O ressentido encarna a chaga de tal modo que seu alimento é o próprio pus que sai da sua ferida. Incapaz de se desprender dela, resta a ele condenar o acontecimento, condenar a fissura, moralizar tudo que toca e intoxicar-se com o próprio veneno. Aí não há leveza, mas gravidade; aí não há humor, mas seriedade. O ressentido leva tudo a sério, todo acontecimento é profundamente encarnado por ele, tornando-se assim excessivamente pessoal. Não há transfiguração ou contra-efetuação, mas profundidade, resignação e vitimização: "captar o que acontece como injusto e não merecido (é sempre a culpa de alguém), eis o que torna nossas chagas repugnantes, o ressentimento em pessoa, o ressentimento contra o acontecimento" (152). Em suma, o ressentido nunca cria nada, apenas re-sente, apenas interpreta, pois seu acesso à vida é abreviado pela mera efetuação.

Por isso Deleuze se refere ao ator como a figura que reúne em si as condições mais adequadas à transfiguração. O comediante não representa mais uma pessoa, mas um "tema", ele se furta aos limites do acontecimento e do indivíduo através de um extremo distanciamento de si e daquilo que acontece: mas não pelo rancor –pois ele também o encarnou– mas porque ele é capaz do humor, ou seja, "esta arte da superfície" (9) e da leveza que não o afunda na profundidade encarnada do acontecimento, mas o mantém na superfície que se distancia e transfigura o próprio acontecimento.

Através do humor, o ator-comediante dos próprios acontecimentos ultrapassa o mero acesso conceitual à vida. Muito pelo contrário! Trata-se da oposição entre humor e ironia. Esta última sim tem acesso exclusivamente conceitual à vida e, portanto, um empobrecimento e abreviação da existência. O ironista quer descer à profundidade, quer achar o que há por trás do acontecimento e, portanto, toda ironia acaba por encerrar "a singularidade nos limites do indivíduo ou da pessoa" (142). A ironia não transfigura, mas interpreta; a ironia é dialética e, como tal, constrói a representação fixa. O humor, ao contrário, abole as significações no instante em que se desprende e contra-efetua o próprio acontecimento. Enfatizemos que o comediante incorpora sim o acontecimento, mas se distancia dele quando dissolve os limites de si próprio e do próprio acontecimento através da transfiguração. O humor não busca nenhum princípio primeiro. A ironia é fiel, o humor é traidor (Deleuze e Parnet 1998 82). Só na contra-efetuação ou transfiguração do acontecimento, pois, o ator-comediante é capaz de ter um acesso pleno à vida e para além das identidades e conceitos fixos do ironista:

A contra-efetuação não é nada, é a do bufão quando ela opera só e pretende valer para o que teria podido acontecer. Mas ser o mímico do que acontece efetivamente, duplicar a efetuação com uma contra-efetuação, a identificação com uma distância, tal o ator verdadeiro ou dançarino, é dar à verdade do acontecimento a chance única de não se confundir com sua inevitável efetuação, à fissura a chance de sobrevoar seu campo de superfície incorporal sem se deter na quebradura de cada corpo e a nós de irmos mais longe do que teríamos acreditado poder. Tanto quanto o acontecimento puro se aprisiona para sempre na sua efetuação, a contra-efetuação o libera sempre para outras vezes. (Deleuze 2003 164. O grifo é nosso)

Uma última palavra ainda sobre a transfiguração em Deleuze, onde ele analisa o texto de S. Fitzgerald e M. Lowry, na série "Porcelana e Vulcão". Trata-se da fissura silenciosa que precisa incondicionalmente se efetuar no corpo que, por um lado, é o desejo mesmo do sábio estóico querer "a encarnação, a efetuação do acontecimento puro incorporal em um estado de coisas e em seu próprio corpo, em sua própria carne" (149); por outro lado, porque se corre o risco do discurso sobre o acontecimento se tornar mero diletantismo teórico ou vagos conselhos de sabedoria e distinção. Ao se referir a Fitzgerald, Lowry, Artaud ou mesmo Nietzsche, Deleuze exige ter que aceitar inclusive a fissura sem se colocar à margem, evitando que ela atinja a profundidade do corpo:

Ou então irmos nós mesmos provar um pouco, sermos um pouco alcoólatras, um pouco loucos, um pouco suicidas, um pouco guerrilheiros, apenas o bastante para aumentar a fissura, mas não para aprofundá-la irremediavelmente? ... Em verdade, como ficar na superfície sem permanecer à margem? (161)

Segundo Deleuze, é com a pressão da fissura que se deve pensar, ou seja, não basta apenas o pensamento da saúde; é preciso, sobretudo, reconhecer que a fissura é desejável, pois "nunca pensamos a não ser por ela e sobre suas bordas e que tudo o que foi bom e grande na humanidade entra e sai por ela, em pessoas prontas a se destruir a si mesmas e que é antes a morte do que a saúde que se nos propõem"(164). A fissura não é nada se ela não fende o corpo; pela pressão da doença e da fissura é possível pensar o que Deleuze denomina de "grande saúde", expressão essa emprestada diretamente de Nietzsche (Nietzsche GC §382 KSA 1980 635). Mas aí é que está: exige-se a fissura do acontecimento no corpo, pois é pela pressão da doença que nos tornamos suficientemente sadios. Mas ao mesmo tempo em que não se está à margem da fissura, é imprescindível também permanecer na superfície, e o veículo pra isso, como se vê, é sempre a transfiguração ou a contra-efetuação. No fundo, "entre os gritos da dor física e os cantos do sofrimento metafísico", na medida em que precisamos ser "dignos do que acontece", devemos também, pela transfiguração, "extrair alguma coisa alegre e apaixonante do que acontece"(Deleuze e Parnet 1998 79).

A contra-efetuação ou a transfiguração se revela como a via mais adequada pela qual se tem acesso ao acontecimento. Não se pode confundir o acontecimento, como diz Deleuze, "com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas" (Deleuze 2003 23). O acontecimento puro, de superfície, impessoal, neutro, etc., se dá na contra-efetuação ou no momento em que o humor transfigura a efetuação no corpo, dissolvendo os limites individuais, pessoais, etc. Portanto, é no distanciamento da ferida, da efetuação, ou no desprendimento característico da transfiguração que está o acesso não-conceitual à vida. Para além da ironia que vasculha as profundidades, o humor do ator-comediante aprende a arte da superfície na medida em que transfigura a efetuação "espaço-temporal". Em suma, não é pelo procedimento irônico da interpretação, da efetuação ou da ferida do ressentimento que acessamos à vida, mas sim pela leveza da transfiguração.

A exigência deleuzeana a propósito da transfiguração, vale dizer, a "identificação com a distância" tal como o faz o ator-comediante que duplica o acontecimento no instante em que se desprende dele, parece ser exatamente a mesma exigência nietzscheana a propósito do acesso não-conceitual que o homem tem à vida. Para além da mera instrumentalização conceitual-linguística que obriga o homem apenas re-sentir experiências previamente produzidas, tornando-nos indignos do que acontece, trata-se de se tomar a mesma distância através da transfiguração desse conjunto conceitual, do contrário, resta a ele apenas a Ironia que se esforça em interpretar a vida ao invés de criá-la, mantê-lo preso nas experiências comuns e vulgares que lembra a doença fissurada ao invés de inventar a grande saúde.

O ponto de partida para analisar a transfiguração em Nietzsche, a nosso ver, é o conceito de "pathos da distância", que permite o saudável distanciamento da mera efetuação espaço-temporal dos acontecimentos. Através desse pathos o homem é capaz de duplicar a experiência, na medida em que consegue atingir uma distância suficiente da efetuação corporal, ou um desprendimento saudável em relação às vivências comuns e vulgares. À exigência nietzscheana que mencionamos anteriormente em relação às "forças contrárias" que impeçam a evolução do homem rumo ao semelhante, parece-nos se ajustar em relação a esse pathos da distância que, por sua vez, possui uma dupla significação: por um lado, estabelece a distância entre um homem e outro e, por outro lado, faz nascer um "outro pathos pleno de mistérios, a exigência de sempre ampliar novas distâncias no interior da própria alma, a produção de estados cada vez mais elevados, raros, distantes, pleno de tensões, abrangentes, enfim, a elevação do tipo 'homem', a contínua 'auto-superação do homem'"(Nietzsche Para além de bem e mal KSA 198 §257 205; cf. Crepúsculo dos Ídolos. "Incursões de um Extemporâneo". §37 KSA 1980 6/136ss)

O que queremos dizer é que limitar a efetuação num estado de coisas ou no corpo, como diz Deleuze, pressupõe também para Nietzsche precisamente a distância necessária que permite transfigurar aquilo que acontece. Do contrário, permanece-se preso aos limites do próprio acontecimento efetuado ou da vivência que não cessa de sempre ser a mesma; permanece-se atado às feridas que insistem em permanecerem abertas, bem como sepulta seu detentor na eterna seara da vítima ressentida. Além disso, em ambos os filósofos não se trata em absoluto de acessar a vida conceitualmente, ou seja, não está em questão saber o que é a vida, o que é a verdade do acontecimento, etc; essa exigência pertence ao ironista. É preciso duplicar essas efetuações, cuja condição se dá através do pathos de distanciamento capaz de produzir, então, a transfiguração ou desprendimento daquilo que se efetua. De fato, ambos os filósofos falam de querer e ser digno do que nos acontece, porém, trata-se de um querer transfigurado que limita o que acontece no espaço-temporal, liberando o homem e o acontecimento dos próprios limites.

À esse pathos da distância em Nietzsche, relaciona-se também uma radical mudança de vontade, oriunda da tensão interna e da luta incessante entre inúmeros "tipos" e "formas de vida" no interior do homem. Diga-se ainda que essa tensão que caracteriza o pathos da distância nada tem a ver com a gravidade ou a seriedade do ressentido; ao contrário, trata-se de um pathos de leveza capaz levar às últimas consequências o sim àquilo que acontece, transformando o que é cinza em claridade, o que é grave em leveza. Estamos falando em Nietzsche do mesmo desprendimento mencionado por Deleuze ao se referir a Bousquet, a propósito do significado desse distanciamento:

A meu gosto da morte, diz Bousquet, que era falência da vontade, eu substituirei um desejo de morrer que seja a apoteose da vontade". Deste gosto a este desejo, nada muda de uma certa maneira, salvo uma mudança de vontade, uma espécie de salto no próprio lugar de todo o corpo que troca sua vontade orgânica por uma vontade espiritual, que quer agora não exatamente o que acontece, mas alguma coisa no que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece, segundo as leis de uma obscura conformidade humorístic. (Deleuze 2003 152)9

É essa leveza que está em questão também em Nietzsche. A mesma leveza que "transforma todo 'Foi assim' em um 'Assim eu o quis!'"(Nietzsche. Assim Falou Zaratustra. "Da Redenção" KSA 1980 179)10. Não há transfiguração sem o pathos da distância, na medida em que ele permite o completo desprendimento da efetuação, ou aquele olhar que permite ver de cima (cf. Nietzsche Humano, demasiado Humano § 34 KSA 1980 2/55)11. Engraçado que Nietzsche opõe o músico ao filósofo, ou melhor, alguém "se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico", ou seja, no fundo a exigência de contra-efetuar o procedimento do ironista12, a típica figura do filósofo dialético incapaz da distância e da transfiguração: "O céu cinzento da abstração cortado por trovões; a luz, forte o suficiente para todas as filigranas das coisas; apreender os grandes problemas de perto; ter uma visão global do mundo, tal como se o tem a partir de uma montanha. –Defino agora mesmo o pathos filosófico" (Nietzsche O Caso Wagner §1 KSA 1980 6/14. O grifo é nosso).

O pathos da distância é condição para a transfiguração em Nietzsche; porém, é quando ele escreve sobre a "arte do estilo" que melhor compreendemos o porquê definitivamente o acesso à vida não se dá conceitualmente, mas sim através da transfiguração. Tenhamos em mente que no aforismo 268 de Para além de bem e mal que analisamos anteriormente, Nietzsche definia o conceito como signos-imagens para grupos de sensações; na medida em que "comunicamos vivências internas" o fazemos através de um aparato conceitual que é sempre a abreviação ou simplificação da vida, além de ser um elemento limitador da experiência, uma vez que não conseguimos nos desprender da linguagem ordinária. Daí a importância do pathos da distância como condição da transfiguração. No entanto, no capítulo "Por que escrevo livros tão bons" de Ecce homo, Nietzsche explica assim sua arte do estilo: "Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos através de signos, incluindo aí o tempo desses signos –este é o sentido de todo estilo; e levando em conta que a multiplicidade de estados interiores em mim é extraordinária, há em mim também muitas possibilidades de estilo... Bom é todo estilo que comunica realmente um estado interior"(Nietzsche Ecce homo. "Por que escrevo livros tão bons" §4 KSA 1980 6/304.)13.

Aparentemente, ambos os aforismos são contraditórios, pois se toda "comunicação de vivências internas" é pura simplificação da vida, na medida em que não se distancia da linguagem ordinária que coage o homem aos limites de si mesmo, como pode agora a "arte do estilo" ser precisamente a habilidade de "comunicar" esses estados internos? Digamos que se trata apenas de mais uma armadilha no interior do labirinto da filosofia de Nietzsche, pois ele não se refere à comunicação conceitual como fazem os ironistas que se esforçam em abrir caminho à vida através da interpretação.

Nietzsche não quer permanecer aqui nas malhas conceituais que nos obrigam sempre a "comunicar" vivências sempre vulgares. Na continuação do aforismo o procedimento dos ironistas é suspenso: "Bom estilo em si – pura estupidez, mero 'idealismo', algo como o 'belo em si', como o 'bom em si', como a 'coisa em si'". Em outros termos: não se trata de mera comunicação de estados internos através de um aparato conceitual comum, tal como no caso da interpretação da vida pelos ironistas. Mesmo porque Nietzsche se refere à comunicação de um estado interno que já possui, ele mesmo, um distanciamento, ou seja, trata-se da comunicação de uma "tensão interna de pathos". Já é preciso ter se distanciado da seara da linguagem costumeira e comum usada para comunicar vivências internas. Comunica-se um "pathos", um estado que vê de cima e abarca com a vista as sensações medianas; um estado, cuja vivência já está além da experiência corriqueira, uma vivência que não é a experiência da mera efetuação do acontecimento num estado de coisas ou no corpo, uma vivência que, por ser uma comunicação de pathos, já está contra-efetuada ou transfigurada da efetuação ou vivência vulgar. Daí porque Nietzsche exige ouvidos especiais, ou seja, uma clara alusão à música, na medida em que esta é pré-conceitual e não se deixa formular através do conceito: "Pressupondo-se sempre que há ouvidos –que haja tais ouvidos que sejam capazes e dignos para o mesmo pathos, que esses ouvidos nunca faltem, não faltem aqueles com os quais seja lícito comunicar. –Meu Zaratustra, por exemplo, ainda procura interinamente por tais ouvidos" (§4 KSA 1980 304)13.

A arte do estilo, pois, comunica um estado interno sim. Mas ela o faz num duplo movimento: por um lado, a arte do estilo ultrapassa a linguagem conceitual que primeiro define o que é a vida, para depois representá-la conceitualmente (procedimento ironista); por outro lado, ela comunica um pathos interno que já é um estado distanciado da seara comum. Em ambos os casos estamos falando de contra-efetuação, ou como denominamos aqui, transfiguração. Não se trata apenas de efetuar vivências internas num estado de coisas ou no corpo; ou melhor, trata-se de duplicar essa efetuação através do pathos da arte do estilo: "A arte do grande ritmo, o grande estilo dos períodos, para expressão de um imenso acima e abaixo de paixão sublime, sobre-humana, foi primeiramente descoberto apenas por mim; com um ditirambo como o último do terceiro Zaratustra, intitulado 'Os sete selos', voei milhares de milhas acima e além do que até então se chamou poesia".

Quando Deleuze fala do "verbo" como veículo do acontecimento, fala também de uma "nova maneira de destituir o É"(Deleuze e Parnet 1998 7). Me parece que a arte do grande estilo mencionada por Nietzsche é igualmente a destituição do é, em proveito de uma linguagem que duplica aquilo que é efetuado, que se distancia milhares de milhas acima de um estado comum, para ser capaz de comunicar um pathos interno. Trata-se, pois, de comunicação de vivências, corpos, estados, etc., mas ela difere da expressão usual e conceitual que em geral comunica vivências internas apenas comuns e vulgares. E isso ocorre porque a arte do estilo é duplicada e, como tal, comunica um estado (pathos) que já está contra-efetuado ou transfigurado em relação à mera vivência14. Ao se referir ao acontecimento como resultante "dos corpos, de suas misturas, de suas ações e paixões", Deleuze imediatamente acrescenta que ele "difere em natureza daquilo que resulta" (Deleuze 2003 188). Ora, aí já há menção indireta do distanciamento na medida em que o acontecimento surge de um estado de coisas, mas não se confunde com sua simples efetuação. Por isso o acontecimento é, segundo Deleuze, um "atributo" que "não existe fora da proposição que o exprime. Mas difere em natureza de sua expressão", ou seja, não é também apenas a mera comunicação desse estado de coisas, embora não possa existir fora dessa comunicação. Por isso a menção em relação ao "verbo", que é a comunicação duplicada do acontecimento e, como tal, já distanciada e transfigurada (cf. Deleuze e Parnet 1998 77; 2004 51s).

Não importa se Deleuze designa o verbo infinitivo como veículo do acontecimento e Nietzsche a arte do estilo com seu cortejo de paródia, máscara, riso, etc. O importante é que em ambos os autores se trata de uma mesma dinâmica que está na base da transfiguração, do mesmo procedimento que indica em que medida o acesso criativo do homem à vida não se dá pela via conceitual que abrevia, simplifica e empobrece a vida mesmo.

A transfiguração como via de acesso criativo à vida de modo algum corresponde a um conceito meramente "alambicado" que, aparentemente, retira aquilo que tem de mais importante tanto em Nietzsche quanto em Deleuze: o corpo, a fissura, a doença, uma fisiologia da escrita que, como diz Zaratustra, só tem valor quando "alguém escreve com o seu sangue"(Nietzsche Assim Falou Zaratustra Do ler e escrever KSA 1980 48.). Tal como dissemos anteriormente a propósito da efetuação do acontecimento, Deleuze considera primordial querer o acontecimento inclusive fissurado no corpo, apesar de contra-efetuá-lo também. Tudo o que foi produzido de grandioso na humanidade "entra e sai" pela fissura. A partir dela, Deleuze toca explicitamente no tema da "grande saúde", questão igualmente caríssima à filosofia de Nietzsche (cf. Nietzsche GC KSA 1980 382). Na análise da série "Porcelana e Vulcão", Deleuze arremata:

Quando Fitzgerald ou Lowry falam dessa fissura metafísica incorporal, quando nesta encontram, ao mesmo tempo, o lugar e o obstáculo de seu pensamento, a fonte e o estancamento de seu pensamento, o sentido e o não-sentido, é com todos os litros de álcool que eles beberam, que efetuaram a fissura no corpo... Cada qual arriscava alguma coisa, foi o mais longe neste risco e tira daí um direito imprescindível (Deleuze 2003 60. O grifo é nosso).
Impossível pensar a filosofia de Nietzsche sem considerar o par saúde/doença, especialmente pela ênfase que ele agrega à indispensabilidade da "própria doença" (Nietzsche Humano, demasiado Humano KSA 1980 Prefácio 4)15. Ora, em Nietzsche pathos de distância expressa duas características básicas: um estado que aumenta constantemente a distância no interior da alma (Nietzsche Para além de bem e mal §257 KSA 1980), bem como um estado de tensão interna (Nietzsche Ecce homo Livros 4 KSA 1980). Aí é que está: também em Nietzsche produzir esse pathos pressupõe todas as fissuras e tensões da alma, a imprescindibilidade da convalescença, daquele que conhece a "grande saúde" porque carregou no corpo o flagelo doloroso da doença. Por isso não falamos de um conceito destilado de alambique quando nos referimos à transfiguração. O "direito imprescindível" que comenta Deleuze ao se referir à fissura alcoólica de Fitzgerald e Lowry, corresponde precisamente ao privilégio de mestre do "espírito livre", qual seja, "poder viver por experiência e oferecer-se à aventura" (Nietzsche Humano, demasiado Humano KSA 1980 Prefácio 4). Transfigurar, pois, também pressupõe para Nietzsche experimentar a doença, a fim de que alguém se torne suficientemente digno de possuir a grande saúde. A passagem a seguir, finaliza a discussão:
Vê-se que eu não gostaria de despedir-me ingratamente daquele tempo de severa enfermidade, cujo benefício ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou plenamente cônscio das vantagens que a minha instável saúde me dá, em relação a todos os robustos de espírito. Um filósofo que percorreu muitas saúdes e sempre as torna a percorrer passou igualmente por outras tantas filosofias: ele não pode senão transpor seu estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância – precisamente essa arte da transfiguração é filosofia (Nietzsche GC Prefácio 3 KSA 1980. O grifo é nosso. cf. Ecce homo Por que sou tão sábio KSA 1980 6)

Por isso falamos de uma "arte da transfiguração", cuja dinâmica contra-efetua o acontecimento evitando a simplificação e empobrecimento da própria vida. Fissura-se o corpo e se vivencia a doença, mas é preciso transportá-las a uma espiritual distância, cuja transferência é a duplicação do acontecimento ou simplesmente a "arte da transfiguração".

E aqui voltamos à nossa hipótese de início. O acesso à vida pela via da transfiguração pertence a uma "filosofia experimental" ou a uma "experimentação-vida". Na medida em que ambos ultrapassam a filosofia da representação com seu cortejo de categorias teóricas que a acompanha, eles também levam ao limite precisamente essa mesma racionalidade do ironista (Deleuze) ou dos mestres da finalidade da existência (Nietzsche). É dessa região limítrofe que Deleuze diz: "Experimentem, nunca interpretem" (2003 61)16. A arte da transfiguração compõe também a filosofia experimental em Nietzsche. Através do pathos da transfiguração alguém aprende uma certa "jovialidade" que renuncia o "desvario adolescente no amor à verdade", cujo limite da racionalidade aprende também a permanecer "na superfície, na dobra, na pele", em ser superficial, "por profundidade"(Nietzsche GC Prefácio 4 KSA 1980). Só nesse limite, segundo Nietzsche, o "experimento é possível"(Prefácio 2; cf. A501 KSA 1980). Enfim, é na seara da experimentação que podemos ter o acesso mais criativo e artístico à vida, cuja via é a arte da transfiguração.



Notas de Rodapé

1 Doravante apenas KSA, no volume e no fragmento, quando se referir aos textos do espólio nietzscheano. Para as obras publicadas, usaremos a abreviação do livro, GC para A Gaia Ciência e número do aforismo, seguida da referência direta nas obras completas, ou seja, KSA e no da página. Salvo indicações contrárias, todas as traduções do alemão são de minha própria autoria.
2 Cf. ainda p. 10: "Dir-se-ia que a antiga profundidade se desdobrou na superfície, converteu-se em largura. O devir ilimitado se desenvolve agora inteiramente nesta largura revirada".
3 Cf. também Deleuze e Parnet 1998 79: "De modo que, agentes ou pacientes, quando agimos ou sofremos, resta-nos sempre, sermos dignos do que nos acontece. É essa, sem dúvida, a moral estóica: não ser inferior ao acontecimento, tornar-se o filho de seus próprios acontecimentos".
4 Atente-se ao fato de que há uma dupla estrutura do acontecimento em Deleuze, cuja segunda parte se relaciona com a transfiguração ou "contra-efetuação". A esse tema retornaremos ainda em breve.
5 A mesma tese percorre a filosofia de Nietzsche até seus últimos escritos, como no seguinte fragmento de dezembro de 1888/início de janeiro de 1889, KSA 13, 25[7]: "Eu não quero nada diferente, nem do que é passado – eu não me permito querer nada de outra forma... Amor fati".
6 Num fragmento do outono de 1884/outono de 1885, KSA 11, 34[86], Nietzsche se coloca, de antemão, apartado dessas vivências comuns, especialmente quando se refere à dificuldade de compreender seus próprios escritos: "as vivências internas, avaliações de valor e anseios são diferentes em mim". Na medida em que a compreensão pressuporia ter as vivências "em comum" uns com os outros, a compreensão dos próprios escritos de Nietzsche já estaria dificultada, uma vez que o filósofo se auto-intitulava como aquele, cujas vivências são sempre diferentes do mediano.
7 Deleuze cita Bousquet ao se referir à transfiguração ou contra-efetuação do acontecimento: "Minha ferida existia antes de mim, nasci para encarná-la"
8 Deleuze menciona inúmeros exemplos pra explicar a transfiguração do acontecimento. Poderíamos também citar os "poderes estabelecidos" que insistem em nos convencer que a vida é dura de suportar, pregando-nos definitivamente no acontecimento ou na sua mera efetuação. É preciso também, neste caso, "perder o rosto" como nos diz Deleuze. Cf. a propósito Mil Platôs III, 93ss. Além disso, cfr. Diálogos 1998 75.
9 Zaratustra, em "Da visão e do enigma" (KSA 1980 4/199) menciona a mesma mudança de vontade que produz o pathos de distância que diz sim: "Mas a coragem é a melhor homicida, a coragem que toma de assalto; ela abate ainda a morte, pois diz: 'Era isso a vida? Pois bem! Mais uma vez!'".
10 Cf. ainda Aurora § 195 (KSA 3 168): "Destino, eu te sigo! E mesmo que não o quisesse, teria porém que fazê-lo, sob gemidos".
11 quando Nietzsche se refere ao espírito livre: "a ele tem de bastar oscilar livre e destemido sobre homens, costumes, leis, bem como sobre todas as tradicionais avaliações das coisas, como um estado dos mais desejados". Ora, "oscilar livre" é precisamente ganhar o pathos da distância necessário a fim de poder transfigurar.
12 Lembre-se também que a contra-efetuação nietzscheana, ou antes, a transfiguração que Nietzsche faz em oposição aos ironistas é precisamente a leveza da "Gaia Ciência" em relação à seriedade dos ironistas, denominados por ele como "os mestres da finalidade da existência". Estes sim têm apenas um acesso conceitual à vida, pois o ironista "tem de acreditar saber, de tempo em tempo, por que existe, sua espécie não pode prosperar sem uma periódica confiança na vida! Sem acreditar em uma razão na vida!" (Nietzsche GC1 KSA 1980 372). À esta exigência conceitual dos ironistas Nietzsche fala do riso que conduz à "libertação e irresponsabilidade últimas... Talvez então o riso terá se aliado com a sabedoria, talvez então haverá apenas 'gaia ciência'".
13 Sobre o tema da música como linguagem pré-conceitual, cfr. Stegmaier, W. Philosophischer Idealismus "und die" Musik des Lebens: zu Nietzsches Umgang mit Paradoxien. In: Nietzsche-Studien 33 (2004) 90-128, especialmente a p. 102 e 123s., bem como nossa tese Viesenteiner, Jorge L. Experiência e Vivência: a vida na dimensão de pathos. Unicamp, 2009 267-277.
14 Conceitos como paródia, máscara e riso fazem parte das figuras de pensamento que orbitam em torno do tema da transfiguração, nesse sentido de contra-efetuar e comunicar um estado de pathos elevado. Para um aprofundamento dessas questões sugiro Duhamel, R. e Ogel, E. Die Kunst der Sprache und die Sprache der Kunst. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1994. Ainda, Van Tongeren, P. Die Moral von Nietzsches Moralkritik. Bonn: Bouvier Verlag, 1989 (especialmente o último capítulo). E, por fim, o texto de Stegmaier, W. Nietzsches Zeichen. Nietzsche-Studien, 29 (2000): 41-69. Sobre Deleuze em torno dessa temática em Nietzsche, confira Deleuze, G. Pensamento nômade. Nietzsche hoje? Marton, S. São Paulo: Brasiliense, 1985.
15 No prefácio ao segundo volume de Humano, demasiado Humano, 6, Nietzsche se pergunta se toda sua "vivência" não teria sido apenas "a história de uma doença e convalescença" (Prefácio 6 376).



Referências

Deleuze, Gilles. "Pensamento nômade". Nietzsche hoje? Marton, S. São Paulo: Brasiliense, 1985. Impresso.         [ Links ]
- - -. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34. (c/ F. GUATTARI), 1996. Impresso.         [ Links ]
- - -. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34. (c/ F. GUATTARI), 1997. Impresso.         [ Links ]
- - -. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta. (c/ F. GUATTARI), 1998. Impresso.         [ Links ]
- - -. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. Impresso.         [ Links ]
Duhamel, R. e Ogel, E. Die Kunst der Sprache und die Sprache der Kunst. Würzburg: Königshausen und Neumann, 1994. Impresso.         [ Links ]
Nietzsche, Friederich. Kritische Studienausgabe. Berlin: Walter de Gruyter, 1980. Impresso.         [ Links ]
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- - -. "Philosophischer Idealismus und die, Musik des Lebens: zu Nietzsches Umgang mit Paradoxien". Nietzsche-Studien 33 (2004): 90-128. Impresso.         [ Links ]
Tongeren, Paul V. Die Moral von Nietzsches Moralkritik. Bonn: Bouvier Verlag, 1989. Impresso.         [ Links ]
Viesenteiner, Jorge L. Experiência e Vivência: a vida na dimensão de pathos. Tese de doutorado. Brasil: Unicamp, 2009. Impresso         [ Links ]

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