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Discusiones Filosóficas

Print version ISSN 0124-6127

discus.filos vol.13 no.20 Manizales Jan./June 2012

 

Fenomenologia hermenêutica, circularidade e desocultamento

Phenomenology hermeneutics, circularity and unconcealment

Cezar Luís Seibt
Universidade Federal do Pará, Brasil. celuse@ufpa.br

Recibido el 3 de marzo de 2012 y aprobado el 6 de abril de 2012



Resumo

O texto mostra como Heidegger elabora sua proposta de superação da metafísica, da abertura para o acontecimento contra a objetificação possibilitada pela tradição, passando por uma nova visão da fenomenologia, ligada à hermenêutica. Enfatiza a questão dos pressupostos, considerando-os como condições prévias para o acontecimento do mundo e do reconhecimento dos entes. Faz o conhecimento entrar autenticamente no círculo hermenêutico e reconhece suas potencialidades. No processo de desocultamento dos entes, as condições prévias, o horizonte do ser, mantêm-se ocultos. Tanto os entes como as condições prévias do acontecimento dos entes se dá dentro do círculo hermenêutico.

Palavras chave

Círculo hermenêutico, conhecimento, fenomenologia hermenêutica, ocultamento.

Abstract

This paper shows how Heidegger develops his proposal to overcome metaphysics, the opening for the event against the objectification possible by tradition, through a new vision of phenomenology linked to hermeneutics. It emphasizes the issue of presuppositions, regarding them as preconditions for the event of the world and the recognition of the entities. It gets the knowledge authentically in the hermeneutic circle and recognizes its potential. In the process of unconcealment of beings and preconditions, the horizon of being remains hidden. Both entities and preconditions of the event take place within the hermeneutic circle.

Key words

Hermeneutic circle, knowledge, hermeneutic phenomenology, concealment.



Considerações introdutórias: da fenomenologia a fenomenologia hermenêutica

Na entrevista de Heidegger para Der Spiegel, que saiu com o título: "Meu caminho para a fenomenologia", Heidegger avalia e mostra, de forma geral, o modo como foi aos poucos se diferenciando e distanciando da fenomenologia de Husserl, tendo como pano de fundo sua leitura de Aristóteles. Percebe que a atitude básica da fenomenologia é aquela que caracterizava já o modo grego de filosofar. Um retorno às coisas mesmas tinha a ver com desocultamento, desvelamento, o que Heidegger lê na palavra Alétheia. Nas palavras do próprio pensador:

[...] o que para a fenomenologia dos atos conscientes se realiza como o automostrar-se dos fenômenos é pensado mais originariamente por Aristóteles e por todo pensamento e existência dos gregos como Alétheia, como o desvelamento do que se pre-senta, seu desocultamento e seu mostrar-se. Aquilo que as Investigações redescobriram como a atitude básica do pensamento revela-se como o traço fundamental do pensamento grego, quando não da filosofia como tal. (Pensadores 300)

Nesse encontro com Aristóteles e a filosofia grega, Heidegger confronta-se com o problema do sentido do ser que, no início parece ter certa vitalidade e ser fundamental para os demais problemas filosóficos, mas que aos poucos emudece a partir de uma naturalização de um dos modos possíveis de compreensão.

A determinação do tempo como presença, fixa também o modo de compreensão do ser e, com isso, Heidegger põe em dúvida a capacidade de experimentar a coisa mesma a partir da ontologia tradicional. A fenomenologia parece oferecer uma saída, mas não a partir do modelo da reflexividade. É preciso perguntar pelo ser do desvelar, do pre-sentar. O problema é saber qual é a coisa mesma a ser investigada, se a consciência, como no caso da fenomenologia de Husserl, ou o ser do ente no seu desvelar-se. Segundo Heidegger, quanto mais se ocupava do aspecto fundamental da filosofia grega, que é a ideia de desocultamento ou Alétheia,

[...] tanto mais insistente tornava-se a questão: de onde e de que maneira se determina aquilo que, de acordo com o princípio da fenomenologia, deve ser experimentado como 'a coisa mesma'? É ela a consciência e sua objetividade, ou é o ser do ente em seu desvelamento e ocultação? Deste modo fui levado ao caminho da questão do ser, iluminado pela atitude fenomenológica, sempre de novo e cada vez de maneira diferente, inquietado pelas questões emanadas da dissertação de Brentano. O caminho do questionamento tornou-se, porém, bem mais longo do que presumia. Exigia muitas paradas, desvios e sendas perdidas. (Heidegger, Pensadores 300)

Heidegger pergunta pelo sentido do ser a partir da questão da coisa mesma. Nesse perguntar e no confronto com o pensamento grego, (re)-descobre o caráter de ocultamento no descobrimento. No aparecer do ente, na sua manifestação, acontece um encobrimento. No desvelar há o velar; quando o ente aparece, desaparece o fundo, o horizonte, dentro do qual o ente é possível. Desaparece o próprio ser-no-mundo. Stein afirma que: "o fator determinante e individualizador do método fenomenológico é a descoberta que Heidegger fez de que existe um primado da tendência para o encobrimento" (89-90). A fenomenologia lida, portanto, não principalmente com o que se dá, mas, sobretudo, com o que se oculta no dar-se.

Para que se possa pensar esse caráter de desvelamento e ocultamento, ou seja, a revelação do ser no ente enquanto um duplo movimento, não se pode ficar preso ao ente que se manifesta na abertura. Há que retornar para o modo de ser no qual e através do qual se dá o fenômeno da abertura, ao Dasein, portanto. Uma hermenêutica desse ente irá:

[...] pôr a nu os modos de dissimulação em que primeiramente, e o mais das vezes, se situa o próprio ser-aí, na sua cotidianidade. Heidegger descobre o ser-aí no movimento de fuga de si mesmo, numa tentativa de não se assumir na sua totalidade, como preocupação, que se articula em existência, faticidade e decaída ou ser-adiante-de-si, já-ser-em e junto-dos-entes. O ser-aí se vela para si mesmo, encobre suas possibilidades e assim barra a possibilidade de uma revelação do ser. A atitude do filósofo para contornar a fuga do ser-aí de si mesmo, é partir da análise da cotidianidade e descobrir nela o homem no movimento de fuga. (Heidegger, Pensadores 89-90)
Mas precisamos deixar mais clara à questão da 'coisa mesma'. Quais são as coisas? A que coisas mesmas? Heidegger mesmo responde:
Por um lado, às coisas mesmas no sentido de investigar demonstrando as coisas com os pés postos no solo; por outro, em primeiro lugar recuperar e assegurar esse solo (o olhar; exigência de colocar o solo a descoberto). A segunda delas é a exigência de colocar fundamento e por isso inclui a primeira. (Heidegger, Pensadores 104)

Às 'coisas mesmas' não significa a descrição de objetos particulares e específicos, mas a investigação que põem os pés no solo, e que para colocar os pés no solo precisa antes recuperá-lo. A descrição dos objetos particulares e específicos é tarefa das ciências ônticas, enquanto a filosofia tem a função de demonstrar o solo onde os pés estão apoiados quando alguém se ocupa com objetos.

A filosofia tem um caráter ontológico, de investigação do fundamento, mesmo quando esse fundamento seja mobilidade (Bewegtheit). Por isso,

a fenomenologia, enquanto disciplina descritiva, é uma ciência prévia (Vorwissenschaft) às disciplinas tradicionais em filosofia, nas quais se discutem as questões concretas. (Ibíd. 107)
Diferentemente das outras 'ciências', a fenomenologia,
não diz nada sobre o conteúdo de coisa do objeto de interesse da ciência, mas precisamente diz acerca do como, a maneira de tratar algo e como deve ser tratado em trabalho de investigação. (Ibid. 115)

Ela é uma atitude fundamental que "nada diz acerca do ser do objeto em questão, mas nomeia seu modo de ocorrência" (Ibid. 115).

O ocultamento não pode ser entendido como se por detrás do fenômeno houvesse algo escondido, como se o fenômeno fosse algo atrás do qual houvesse algo a ser descoberto. Não há outro ente ou algo do ente escondido, que pertence ao nível ôntico, mas o que se esconde é do nível ontológico, da condição de possibilidade. O próprio Heidegger diz que:

não se pode perguntar por nenhum detrás, posto que o que se dá é justamente algo em si mesmo. O que sim pode acontecer é que o que se mostra em si mesmo e se tem de demonstrar esteja encoberto. (Heidegger, Prolegómenos 116) O trabalho da filosofia consiste em "desmontar os encobrimentos", em "fazer ver colocando em descoberto" (Heidegger, Prolegómenos 116).

O modo tradicional de entender a realidade está baseado nos entes que estão manifestos. O que se torna agora problema da fenomenologia é o horizonte que possibilita a manifestação, o que não se manifesta na manifestação dos entes, mas, ao contrário, se oculta nesta manifestação. Fenomenologia em sentido fenomenológico, como Heidegger agora pensa, não é descrição de entes que se manifestam na abertura, mas a descrição da própria abertura, pois esta se oculta com o manifestar dos entes. O encobrimento há de tornar-se assunto da fenomenologia.

Para que se possa falar de algo como encobrimento, esse não pode ter se realizado em totalidade, precisa haver ainda algo presente, mesmo que em forma de aparência. Na aparência e também no mascaramento os "fenômenos originariamente vistos se mantêm desarraigados, arrancados do seu solo e sem entender-se em sua procedência efetiva" (Ibid. 116-17).

Essa é a crítica de Heidegger aos conceitos teóricos que se desgrudam do solo pré-teórico onde se originaram e acabam sendo assumidos irrefletidamente e de forma dogmática. O dogmatismo acontece se for feito um corte entre o conhecimento (o conhecido) e as condições prévias e pré-teóricas que tornam possível o comportamento teórico. A coisa originariamente experimentada em sua vigor e efetividade podem

[...] ser transmitida de maneira vazia, segundo um modo de entender já predeterminado, perdendo o enraizamento no solo e tornando-se voz que flutua no ar. Essa possibilidade de petrificação do originariamente obtido e acreditado está implícita no próprio trabalho concreto da fenomenologia.
[...] junto com a possibilidade do descobrir radical leva em si o perigo correspondente de fixar-se nos seus êxitos. (Ibíd. 116)

Por isso, o trabalho fenomenológico é um "ater-se crítico, em sentido positivo, consigo mesmo [...] para deixar-se guiar e determinar pelo que significa em cada caso o fenomenologicamente dado da intencionalidade" (Ibid. 117-18).

Não há nenhuma comodidade neste trabalho. Há um trabalho a ser feito consigo mesmo, de desconstrução ativa de pressupostos sem, contudo, eliminar a dimensão do pressuposto. Dito de outra maneira há que lembrar o esquecimento, ou desocultar o ocultamento. Isso exige um esforço que Heidegger resume na dupla tarefa de fazer uma analítica do Dasein e na destruição da metafísica.

Ocupar-se com o 'retorno às coisas mesmas' conduz para a questão básica do sentido do ser que toma como ponto de partida o lugar onde o ser é compreendido.

Esse lugar é um ente que precisa, ele mesmo, por ser o ente que tem uma compreensão do ser, autointerpretar-se primeiramente para libertar-se dos esquecimentos de que é vítima em função da sua ocupação com os entes que se dão na abertura. Essa libertação é um desocultamento do seu modo fundamental de ser, que tem implicações fortes na posterior elaboração da questão fenomenológica básica do sentido do ser, uma questão que:

nenhuma ontologia conseguiu colocar e para a qual, no entanto, de alguma maneira, de modo fundado ou infundado, constantemente se-lhe pressupõe uma resposta e se faz uso dela. (Heidegger, Prolegómenos 122)
E, como diz Dartigues,
a fenomenologia hermenêutica deverá, pois, decifrar o sentido do texto da existência, esse sentido que precisamente se dissimula na manifestação do dado. (115)

Alcançar esse horizonte que foi ocultado e ignorado na investigação tradicional e que em Husserl aparece no fato de deixar intocado o ser da intencionalidade é fundamental para que se possa ver que "as chamadas atuações lógicas do pensar ou do conhecer teórico, objetivador, não constituem senão uma parte concreta e reduzida" (Heidegger, Prolegómenos 106).

O esforço se concentra na tentativa de mostrar que o conformar-se às coisas mesmas é um "apreender originário simples e não alguma espécie de construção experimental de subestruturas" (Ibid. 106).

Fenomenologia hermenêutica e a circularidade da compreensão

Heidegger indicou pontos centrais do caminho que havia percorrido:

companheiro na busca foi o jovem Lutero e o modelo foi Aristóteles, a quem aquele odiava. Impulso me deu Kierkegaard e os olhos foi Husserl quem me implantou. (Heidegger, Ontologie 5)

Diversas fontes se juntam no pensamento do jovem filósofo, que vão desde a ontologia clássica até a crítica da mesma, que se realiza no apreço pela singularidade, pela existência particular.

Essa problemática da universalidade, do fundamento, se faz presente no seu pensamento, mas profundamente marcado pela existência, pela faticidade. A questão ontológica é marcada pela realidade fática. O ser não é mais um ser teórico, uma abstração, mas um ser que é compreendido no horizonte de um determinado ente. Com essa junção, nem ser, nem o ente Dasein podem ser compreendidos como antes. Há uma nova visão aqui, um novo 'paradigma'.

Heidegger não quer repetir o 'equívoco' de Husserl e vai procurar realizar uma fenomenologia hermenêutica, ou seja, uma fenomenologia do ser que tem como ponto de partida o ser do Dasein. E, como diz Gethmann, a filosofia de Heidegger "terá como tema a ontologia e como método a fenomenologia" (21) ou, como diz o próprio Heidegger "nós denominamos o método da ontologia de fenomenologia" (Die Grundprobleme 466).

Stein assim explica o sentido da hermenêutica em Heidegger:
hermenêutica não significa, em Ser e Tempo, nem teoria da arte de interpretar, nem a própria interpretação, antes a tentativa de, primeiramente, determinar a essência da interpretação, a partir do hermenêutico. (187)

O Dasein é ele mesmo, hermenêutico. Ele existe interpretando, enredado num círculo que finca suas raízes na faticidade e, a partir dela, avança sem poder se libertar deste pressuposto prático.

Com a caracterização da fenomenologia do Dasein enquanto hermenêutica marca-se a diferença em relação à fenomenologia de Husserl. Mas é no próprio confronto com o pensar de Husserl que emerge a diferença. Fenomenologia enquanto hermenêutica coloca a base do projeto na existência fática do Dasein enquanto ente a partir de onde há compreensibilidade e, portanto, ser.

A hermenêutica fenomenológica deverá tornar-se pesquisa radical, a partir da faticidade. Tal fenomenologia será hermenêutica pelo fato de que é uma autointerpretação da faticidade. Stein indica isso quando diz que:

[...] o método fenomenológico visa ao redimensionamento da questão do ser, não numa abstrata teoria do ser, nem numa pesquisa historiográfica de questões ontológicas, mas numa imediata proximidade com a práxis humana, como existência e faticidade. A linguagem -o sentido, a significação- não é analisada num sistema fechado de referências, mas ao nível da historicidade.
[...] O método fenomenológico, enquanto método hermenêutico-lingüístico, não se desliga da existência concreta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada. É isto que lhe dá como característica uma inelutável circularidade. (Heidegger, Pensadores 88)

Para fugir da determinação abstrata do ser que leva a uma concepção também abstrata do ser humano, Heidegger se dirige para a faticidade, para a existência mesma do ente que já sempre compreende o ser.

A partir dele, numa autointerpretação como ponto de partida, se avança para as outras questões tradicionais que perderam suas raízes ao longo da história. Isso quer dizer, retomar as raízes temporais, históricas do compreender humano só pode dar-se a partir do lugar onde a compreensão se realiza. Esse lugar onde ela acontece não é nenhum ente objetivo que possa ser determinado com base nas categorias tradicionais do tempo presente, mas passam por uma hermenêutica, uma interpretação que não tem como evitar a circularidade.

Dentro da circularidade acontece a compreensão do Dasein e nessa circularidade ela permanece, na maior parte das vezes e em geral, de forma inautêntica e imprópria. Ela pode conquistar sua autenticidade e propriedade sem sair do círculo ou ancorando-se em algum porto seguro, mas assumindo a própria circularidade, a condição de ser-no-mundo como sua condição de ser. Isso implica também uma nova análise da questão do tempo.

Vida não é mais um fenômeno que pode ser apreendido objetivamente, mas é 'Da-sein': é existência enquanto fenômeno temporal e abertura. Mas isso não é tão simples se recordarmos o caráter duplo de encobrimento e desencobrimento que a atenção ao fenômeno nos manifesta. É o ser do Dasein que em primeiro lugar é preciso enfrentar e tornar acessível no seu aparecer marcado pelo ocultamento. Nisso vemos o esforço de Heidegger em Ser e Tempo ao tomar como ponto de partida a descrição do Dasein em sua cotidianidade. Aquilo que antes dizíamos da Alétheia grega tem seu impacto na autocompreensão do ente que compreende o ser.

Somente através da fenomenologia, agora tomando consciência da ambigüidade que ocorre no fenômeno da manifestação, ou seja, através da radicalização da fenomenologia de Husserl, Heidegger estabelece um ponto de partida para o trabalho filosófico: uma hermenêutica do Dasein. Dessa forma,

[...] enquanto utilizada para a analítica da faticidade e da existência, a fenomenologia se torna hermenêutica, passa a se movimentar num círculo hermenêutico. Esta circularidade, que não é apenas característica da compreensão, mas através dela, do próprio ser-aí, também apresenta uma ambigüidade que acompanha toda a obra de Heidegger. Pelo método fenomenológico se desvendou esta circularidade, que passa, por sua vez, a possibilitar uma verdadeira penetração na fenomenologia. (Heidegger, Pensadores 94)

No texto que resultou do seminário do semestre de verão de 1923, intitulado Ontologia (Hermenêutica da faticidade) o autor começa a tratar de forma explícita do caráter hermenêutico da fenomenologia e caracteriza a ontologia como fenomenologia. Isso que aí se inicia continua se desenvolvendo até resultar na analítica existencial do Dasein em Ser e Tempo.

Na medida em que a fenomenologia é hermenêutica, indica-se que a fenomenologia não é pura. Ela
está carregada de pressupostos do mesmo modo que todo conhecimento humano, e o filosófico não consiste em eliminar os pressupostos a qualquer preço por meio de argumentos, mas reconhecê-los e ajustar a investigação positiva e objetivamente conforme eles. (Heidegger, Ontologie 223-24)

Heidegger também reconhece que há pressupostos que uma investigação filosófica nunca alcança que sempre permanecem às suas costas e que, portanto, não permitem transparência total. Na compreensão nem tudo pode ser exposto ou demonstrado de forma plena e definitiva. Há sempre um resto que lhe escapa.

Olhando para o caminho de Heidegger é possível constatar que no princípio a "intencionalidade está no centro da investigação e orienta-se cada vez mais claramente em direção à 'vida em si', à vida fática" (Ruckteschell 46). Distancia-se do modelo metafísico para aproximar-se da vida fática.

No curso Ontologia (Hermenêutica da faticidade), o parágrafo três explicita o que o autor compreende por hermenêutica: é a interpretação que a faticidade realiza de si mesma. O tema da hermenêutica é o próprio existir, o próprio Dasein, exatamente pelo fato de o tema ele mesmo ser hermenêutico.

E o ponto de partida não poderá ser nenhuma idealização do ser humano, mas o seu modo concreto de ser, a medianidade e cotidianidade na qual o Dasein concreto e efetivo se realiza.

Parte, por isso, de uma interpretação vigente, prévia; fala a partir do já interpretado para o já interpretado (Heidegger, Ontologie 18) sem pretensão de alcançar um ponto externo para avaliar a interpretação. Isso porque a existência "não é nunca 'objeto', mas ser; existe, está aqui somente enquanto 'é' o viver de cada momento" (Ibid. 19).

Faticidade, como o próprio Heidegger diz, é o "nome que damos ao caráter de ser do nosso próprio existir. Mais exatamente a expressão significa: esse existir em cada ocasião" (Heidegger, Ontologie 7).

Faticidade não pode ser nenhuma abstração ou o resultado de algum silogismo. Não é o resultado de nenhum esforço teórico, mas a constatação imediata do existir ocasional. A faticidade precisa interpretar a si mesma e isso Heidegger chama de hermenêutica. E essa interpretação é possível, "porque os modos fundamentais não são livremente oscilantes, pois o Dasein existe faticamente" (Marx 98).

O Dasein não é nenhuma essência, não possui determinação prévia que o caracterize como Dasein, mas, por outro lado, também não é qualquer coisa que flutue livremente por aí. O Dasein é situado, existe sempre faticamente, numa certa transcendência horizontal, imanente.

A fenomenologia hermenêutica, muito mais do que uma construção teórica, é a constatação da finitude, historicidade, faticidade do ser humano. Ela conquista para ele um novo modo de estar no mundo e no meio dos entes. Parte das condições históricas e concretas inultrapassáveis e incontornáveis nas quais o ser humano existe, já sempre numa abertura compreensiva, no ambiente lingüístico que o abre para o sentido das coisas e do mundo. Existe na condição de intérprete e essa compreensão se constitui se abre, na própria relação, num círculo de interpretação que institui o ser, o sentido das coisas, do mundo e autocompreensão do Dasein.

Essa abertura compreensiva (acontecimento do ser) antecede e é condição de possibilidade do conhecimento das ciências particulares diversas. Na impossibilidade de sair da abertura compreensiva sem, com isso, fechar-se para o encontro com qualquer ente, o Dasein encontra-se num círculo interpretativo. Ser Dasein é já sempre interpretar, encontrar-se aberto para o acontecimento do mundo. Sem nenhuma referência externa à própria abertura, não tem como superar a condição hermenêutica.



Referências bibliográficas

Dartigues, André. O que é a fenomenologia? São Paulo: Centauro, 2005. Impresso.         [ Links ]         [ Links ]

Heidegger, Martin. Die Grundprobleme der Phänomenologie. Frankfurt/Main: Vittorio Klostermann, 1975. Impresso.         [ Links ]         [ Links ]

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Marx, Werner. Heidegger und die tradition. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1961. Impresso.         [ Links ]         [ Links ]

Stein, Ernildo. Compreensão e Finitude-estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001. Impresso.         [ Links ]