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Discusiones Filosóficas

Print version ISSN 0124-6127

discus.filos vol.13 no.21 Manizales July/Dec. 2012

 

A concepção do valor: uma análise acerca da objetividade dos valores proposta por P. Grice

The conception of value: an analysis about the objectivity of values proposed by P. Grice

Lauren de Lacerda Nunes*
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA-RS), Brasil. laurenlacerdanunes@gmail.com

Gabriel Garmendia Da Trindade**
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Brasil. garmendia_gabriel@hotmail.com

* Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PPGF da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Brasil. Professora assistente na área de humanidades da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA-RS), Campus São Borja.
** Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), Brasil. Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Recibido el 23 de noviembre de 2012 y aprobado el 14 de diciembre de 2012



Resumo

Este artigo pretende analisar tópicos específicos do primeiro capítulo intitulado "Value and objectivity" do livro Conception of value de P. Grice. Através desta análise pretende-se realizar uma discussão metaética acerca da possibilidade de uma objetividade ou ceticismo com relação aos valores morais. Os referidos tópicos são: 1) a abordagem de P. Grice acerca da Teoria do Erro de J. Mackie; 2) a contribuição de R. M. Hare à discussão da Teoria do Erro de J. Mackie; 3) as críticas dirigidas por Grice à abordagem de R. M. Hare e 4) a análise de P. Grice acerca do anti-objetivismo radical de J. Mackie contraposto à sua visão objetivista. Conclui-se a discussão questionando-se a cética Teoria do Erro de Mackie que afirma serem os valores morais falsos quando na realidade Mackie os teria tratado metodologicamente como "sem sentido". Com isso, o ceticismo de valores proposto por Mackie se desqualifica frente à possibilidade do objetivismo dos valores proposto por P. Grice.

Palavras chave

objetivismo, Grice, Teoria do Erro.

Abstract

This article aims at analyzing specific topics of the first chapter "Value and objectivity" of P Grice's book Conception of value. Through this analysis we intend to do a metaethical discussion about the possibility of an objectivity or skepticism concerning moral values. The referred topics are: 1) P. Grice's approach of J. Mackie's Error Theory; 2) the contribution of R. M. Hare to the discussion of J. Mackie's Error Theory; 3) P. Grice's criticisms to R. M. Hare's approach and 4) P. Grice's analysis of the radical anti-objectivism of J. Mackie while opposed to his own objectivist vision. The discussion is concluded by disagreeing with J. Mackie's Error Theory, which asserts moral values as false, when in fact Mackie would have treated it methodologically as "no sense". With it, the skepticism of values proposed by J. Mackie is disqualified when it faces the possibility of an objectivism of values proposed by P. Grice.

Key words

objectivism, P. Grice, Error Theory.



Introdução

O presente trabalho1 pretende expor em linhas gerais alguns tópicos do primeiro capítulo intitulado "Value and objectivity" do livro Conception of value de P. Grice. Neste capítulo Grice pretende elucidar o que seria propriamente uma concepção acerca dos valores morais. É importante ressaltar que, para Grice, o que importa é oferecer uma noção geral de valor, ou seja, o lugar desse conceito no mapa de estudos da filosofia e a sua conexão com outras questões também representadas nesse mapa.

Entretanto, Grice não pretende com isso oferecer uma leitura transcendental ou metafísica dos valores, apesar de ressaltar que deve-se estar preparado para oferecer respostas com adequado suporte metafísico, se isso for possível, quando o assunto é a concepção dos valores. Ao se buscar esse adequado suporte metafísico Grice defende que isso fornecerá uma clara configuração da natureza da ética teórica e o seu lugar na taxonomia das investigações que constituem a filosofia. Pois, a teorização em ética não é isolada: reclama o mesmo método das outras temáticas filosóficas.

Oferecidas tais considerações preliminares, pode-se passar ao que Grice realmente tem como metas em seu capítulo "Value and objectivity". Primeiramente, pretende tratar problemas fundamentais acerca da natureza do valor, que poderiam ser divididas em: (i) Questões sobre a objetividade dos valores e (ii) Questões sobre a possibilidade de defender ou refutar o ceticismo sobre os valores. É importante notar que aquilo que subjaz tanto a primeira quanto à segunda questão é o fato de que Grice busca, através de sua investigação sobre objetividade, responder à questão elementar de se há uma "entidade" que corresponda àquilo que comumente chama-se de "valor". Seria o ceticismo a favor ou contra o objetivismo? Essas parecem ser questões provocativas, no sentido em que Grice afirma que pretende "descobrir" em sua análise quem exatamente seria "o cético", se o objetivista com relação aos valores ou o subjetivista.

Dessa forma, a escrita de Grice volta-se nesse primeiro capítulo a esclarecer questões sobre a objetividade dos valores relacionando-as o tempo todo com o ceticismo moral. Na medida em que Grice já escreveu em outras obras em defesa de uma espécie de objetivismo na moralidade, ele deseja determinar se tal linha de raciocínio é defensável ou não. Por isso, um de seus objetivos primordiais no presente capítulo é abordar duas concepções anti-objetivistas: J. L. Mackie e P. Foot. Este trabalho se focará especialmente na interpretação de Grice acerca de J. L. Mackie e sua Teoria do Erro.

I
Grice e uma exposição preliminar da Teoria do Erro de Mackie

Grice inicia sua exposição acerca da Teoria do Erro de Mackie com a célebre frase deste autor que afirma "Não há valores morais objetivos" (Mackie 15). Quais teriam o sido os passos de Mackie para chegar a tal afirmação radical acerca dos valores morais? De acordo com Grice, Mackie possui uma tese central a respeito do status da ética. Essa tese diria respeito ao fato de Mackie não considerar os "valores" como uma exclusividade da ética: outras áreas do saber também os possuiriam e também nessas áreas a objetividade de tais valores seria de vital importância. Um exemplo seriam os valores estéticos. Pois, como afirmou Mackie, uma vez que a objetividade é considerada, as mesmas observações valem tanto para valores estéticos quanto para valores morais, pois ambos teriam o mesmo status. Uma discussão séria sobre a objetividade dos valores estéticos só não ocorre porque estes trazem uma problemática "menos urgente" (Ibid. 43).

Dito isso, Grice retorna à frase célebre de Mackie de que "não há valores morais objetivos" e afirma que geralmente existem três reações típicas a ela:
1) Alguns autores a veem como falsa, perniciosa e uma ameaça à moralidade;
2) Alguns autores a veem como uma verdade trivial que não vale a pena ser discutida;
3) Alguns autores a consideram sem significado ou vazia, não trazendo nenhuma questão real. (Grice 26)

Grice opta por tratar da terceira questão, associada por Mackie com uma reação típica do pensamento de Hare. Dessa forma, é iniciado outro processo no texto de Grice que prioriza a análise da terceira questão supracitada e as reações de Mackie com relação às colocações de Hare.

II
Grice, Hare, Mackie e a objetividade dos valores

Grice inicia sua exposição afirmando que sequer possui significado para Hare uma afirmação acerca da objetividade dos valores. Pois, a atitude de pensar que "alguém agiu errado" e censurar essa pessoa por isso, é comum tanto a objetivistas quanto a subjetivistas. Hare afirma que para os subjetivistas trata-se de uma atitude de desaprovação e para os objetivistas trata-se de uma intuição moral. Seriam apenas nomes diferentes para a mesma coisa e nenhum poderia ser preferível ao outro.

Importante ser dito que tal concepção de Hare reflete muito de duas ideias expostas em A Linguagem da moral. Nesta obra, Hare realiza um estudo acerca das inferências morais e em especial acerca da natureza dos imperativos. Acaba concluindo que seria possível separar a parte "frástica" da parte "nêustica" de um imperativo e através de tais distinções estabeleceu aquilo que haveria de comum tanto a imperativos quanto a indicativos. Evidentemente, esse tópico mereceria ser mais aprofundado, e como esse trabalho não pretende expor o pensamento de Hare de maneira exaustiva, basta apenas mencionar que esta é uma temática recorrente em suas obras.

Dando continuidade à exposição de Grice acerca do pensamento de Hare, pode se passar à exposição de Grice do argumento deste último. O mencionado argumento é o de que não haveria diferença substancial entre subjetivistas e objetivistas no tocante à concepção dos valores morais, como foi dito.

Suponha-se que A expressa ou reporta a presença de desaprovação em comer carne em si mesmo e que B expressa sua falta de desaprovação em comer carne em si mesmo. Passe-se à análise do argumento com relação a A e B de acordo com Hare (25-7):

A pensa que comer carne é errado
B pensa que comer carne não é errado, que ele mesmo (não o subjetivista).
está em posição de afirmar que um deles está errado.

A isso, o subjetivista de Hare responderia:

1. Se alguém (x) pensa que A julga erroneamente que comer carne é errado.
≡ x desaprova o julgamento de A de que comer carne é errado.
≡ x desaprova a desaprovação de A sobre comer carne.
≡ x não desaprova comer carne.
Então:

2. Se alguém (x) pensa que B julga erroneamente que comer carne não é errado.

≡ x desaprova o julgamento de B de que comer carne não é errado.
≡ x desaprova a não-desaprovação de B sobre comer carne.
≡ x desaprova comer carne.
Então:

3) Qualquer pessoa x deve desaprovar ou não-desaprovar comer carne (desaprovação pode estar ou não presente nesta pessoa). Logo,

4) Qualquer pessoa x deve julgar que ou A ou B julgam erroneamente com relação a comer ou não comer carne (3° excluído).

É importante ressaltar que de acordo com o argumento exposto, "julgar erroneamente" é o mesmo que desaprovar. Além de sustentar tal argumento, Hare em uma citação realizada por Mackie chega a supor a existência de dois mundos: um no qual os valores foram construídos objetivamente e outro no qual foram aniquilados. Nos dois mundos as pessoas estarão preocupadas com as mesmas coisas, afirma Hare, não haverá diferença na preocupação "subjetiva" que as pessoas terão pelas coisas, apenas no seu valor "objetivo". Qual a diferença entre os estados de coisas nesses dois mundos? "Nenhuma" é a única resposta fornecida por Hare.

Partindo dessa ideia de Hare, Mackie decide examinar a indistinguibilidade dos dois mundos propostos por Hare e estabelece três pontos contra esta tese: 1) Hare não consegue provar o que pretende com os seus dois mundos, apenas abre a questão de que é preciso pensar em uma ética de primeira e segunda ordem; 2) os julgamentos feitos em uma ética de primeira ordem devem ser totalmente independentes de qualquer julgamento contra ou a favor da objetividade dos valores, que cairão em uma ética de segunda ordem. Tendo isso exposto, Mackie afirma que isso tudo não mostra, como Hare gostaria, o vazio, ou a indecisão sobre tais questões e objetividade. Tais questões não são vazias como Hare pensa como Mackie mostra em seus dois comentários posteriores.

O primeiro dos comentários de Mackie diz respeito ao fato de que se forem admitidas objetivamente crenças de valores, elas se proverão de um apoio justificativo para as valorações em geral, o que de outra forma, não ocorreria. O segundo comentário de Mackie diz o seguinte: se o mundo for organizado em torno de valores objetivos, como Hare supõe, estaria disponível então, uma maneira simples de modificar ou adquirir as direções de interesse de cada um.

Afinal, se poderiam deixar as realidades do reino dos valores influenciarem as atitudes, "deixando o pensamento ser controlado pela maneira como as coisas fossem" (Mackie 22).

Para Mackie, Hare expõe a sua teoria a uma crítica positivista. Seria até mesmo possível vislumbrar um "positivismo hareano", comparável com o berkeliano, que insiste que as aparências sejam exatamente aquilo que são, exista ou não um mundo material por detrás delas. Nesta parte do raciocínio de Mackie, Grice intervém ao afirmar não estar totalmente satisfeito com as críticas de Mackie dirigidas a Hare. De acordo com ele, Mackie não teria visto outros pontos vitais na teoria de Hare, os quais poderiam mudar a interpretação de alguns fatores. A próxima sessão se ocupará, portanto, das críticas de Grice endereçadas a Hare, considerando ainda, a Teoria do Erro de Mackie como objeto de análise.

III
As críticas de Grice a Hare: objetivismo x subjetivismo

Grice considera errônea a tendência de Mackie a apostar toda a sua crítica a Hare na distinção entre uma ética de primeira e segunda ordem. De acordo com Grice a real fraqueza do argumento de Hare reside na conclusão do argumento anteriormente exposto:

3) Qualquer pessoa x deve desaprovar ou não-desaprovar comer carne (desaprovação pode estar ou não presente nesta pessoa). Logo, 4) Qualquer pessoa x deve julgar que ou A ou B julgam erroneamente com relação a comer ou não comer carne. (3º excluído)

A conclusão do argumento repousa essencialmente na ideia de que para qualquer conteúdo Ø, qualquer pessoa deve desaprovar Ø ou não desaprovar Ø. Hare afirma que o raciocínio trata-se de uma tautologia, mas Grice diz que isso não fornece ou implica a premissa vital que ele precisa para o seu argumento ir adiante. Qual seja: "para qualquer Ø, qualquer pessoa tem ou uma atitude de desaprovação com relação à Ø ou uma atitude de não desaprovação com relação à Ø".

Logo, para Grice o raciocínio exposto não se trata de uma tautologia, uma vez que a ausência de desaprovação apenas conduz a uma atitude de não desaprovação se alguma condição adicional for também preenchida: a pessoa em questão deve ter conhecimento mínimo sobre o assunto. Dessa forma, tudo isso mostra que o argumento de Hare não serve formalmente para dissolver a diferença entre objetivismo e subjetivismo, como ele pretendeu.

Apesar de considerar que Mackie não dirigiu suas críticas ao ponto certo no pensamento de Hare, Grice afirma estar inclinado a considerar que, ao final da presente discussão, Mackie estaria certo.

Da mesma forma que Mackie, Grice não se sente apto a concordar com Hare na afirmação de que não haja diferença entre subjetivistas e objetivistas. E dada à falha apontada no argumento de Hare, Grice toma para si, a partir de então, a tarefa de identificar mais precisamente a tese sobre a qual objetivistas e subjetivistas discordariam entre si obrigatoriamente. Dessa forma, a partir da consideração de que Mackie é um anti-objetivista Grice vai tentar elucidar qual tese, claramente, Mackie sustenta.

IV
A análise de Grice acerca do anti-objetivismo da Teoria do Erro de Mackie

Em primeiro lugar, Grice julga adequado que se analise o que são os tópicos de primeira e segunda ordem em ética a que Mackie se refere, localizados nas distinções de mundos proposta por Hare. A explicação vem na forma de exemplos. Julgamentos éticos de primeira ordem consistem, de acordo com Mackie, em comentários avaliativos sobre ações particulares e princípios amplos e gerais como, por exemplo, "todos devem lutar pela felicidade geral". Por sua vez, julgamentos éticos de segunda ordem dizem respeito ao que ocorre quando alguém realiza um julgamento ético de primeira ordem: se tal julgamento expressa uma descoberta ou uma decisão; ou se gera um ponto interessante para se pensar sobre a ética; ou aborda uma visão sobre o significado dos termos éticos. Dito isso, Grice enumera alguns aspectos salientes na teoria de Mackie.

O primeiro aspecto saliente para Grice é que na tese anti-objetivista de Mackie, questões sobre o status da ética são de segunda ordem, bem como sua teoria como um todo. Além disso, para Grice, Mackie afirma haver considerável medida de independência entre os reinos de primeira e segunda ordem. Isso dito menciona-se o exemplo do ceticismo moral. De acordo com Mackie alguém pode ser um cético moral de segunda ordem sem ser um cético moral de primeira ordem e vice-versa. Por exemplo, uma pessoa pode sustentar fortes visões morais de conteúdo bastante convencional, ao mesmo tempo em que acredita que tais visões sejam simples atitudes e condutas que condigam com o comportamento da maioria. Da mesma forma, alguém pode rejeitar toda a moral estabelecida ao mesmo tempo em que acredita ser uma verdade objetiva que essa moralidade seja má e corrupta.

O segundo aspecto que Grice considera digno de nota na teoria de Mackie é que a sua versão de um anti-objetivismo ou ceticismo moral é uma tese negativa. Para esclarecer esse ponto é importante elucidar o entendimento do próprio Grice acerca do objetivismo. Em primeiro lugar, ele aborda a visão de Mackie. De acordo com Mackie, uma visão anti-objetivista supostamente afirma que não existem entidades ou relações de certo tipo, valores e demandas objetivos, que muitos pensam existir. Do ponto de vista de Grice, uma visão objetivista, apesar de sua aparência positiva, também se torna inteligível enquanto negação de alguma posição que carregue o rótulo "subjetivista". Ou seja, como a negação da disputa de que as sentenças morais são redutíveis ou realmente correspondem à expressão de certas atitudes como aprovação ou desaprovação. Para Grice, nesse sentido, o subjetivismo ou o não-objetivismo, apesar de sua aparência negativa, seria o termo positivo: afinal, os valores postulados poderiam ser reduzidos a expressões subjetivas de aprovação e desaprovação, algo que o objetivista condena. Mas, para Mackie, afirma Grice, "objetivista" não é um termo cripto-negativo, ou seja, que esconda uma faceta positiva. Grice considera que Mackie avaliou erroneamente a sua própria visão do objetivismo ao afirmar isso.

O terceiro aspecto saliente da teoria de Mackie mencionado por Grice é que a negação do objetivismo efetuada por Mackie não pode ser tomada como uma tese ética de segunda ordem, meramente semântica (sobre o significado dos termos valorativos). Nem como uma tese lógica (sobre a estrutura e os tipos de determinados argumentos). Para Grice a tese de Mackie seria ontológica: aceitaria ou negaria a existência de certos itens na realidade, e por isso, só poderia se tratar de uma tese de primeira ordem.

O quarto e último aspecto saliente da teoria de Mackie para Grice diz respeito à afirmação polêmica de Mackie (que caracteriza toda a sua teoria) de que as valorações ditas ou pensadas por pessoas ordinárias são sistematicamente, compreensivelmente e abrangentemente falsas. Em suma, os valores morais (e não apenas eles) seriam falsos. De acordo com Grice, o ceticismo moral extremo de Mackie é tomado pelo autor não como uma tese do significado daquilo que os julgamentos morais afirmam, mas sim, sobre a não presença de certos itens no mundo real. Por isso, parece adequado para Mackie afirmar que a existência de valores reais é sustentada por aquilo que as pessoas ordinárias pensam e dizem. Contudo, isso não seria, de fato, um aspecto do mundo, o que gera a consequência de que as valorações proferidas pelas pessoas seriam falsas.

Para tornar o ponto anterior mais inteligível, Grice expõe a comparação efetuada por Mackie acerca de sua Teoria do Erro com a teoria das cores de Boyle (Mackie 20) e Locke (Ibid. 20). Para esses autores trata-se de uma crença falsa aquela de que as coisas no mundo real possuem qualidades como a cor. As coisas reais possuiriam apenas disposições que dariam a sensação da cor, bem como qualidades primárias (forma, tamanho), que seriam fundamento de tais disposições. Mackie salienta que nenhum desses itens que explicam a sensação da cor deve ser identificado com as cores particulares, pois nada pode ser identificado com uma cor. Para Mackie a situação dos valores seria análoga à das cores, considerando-se o pensamento de Boyle e Locke.

De acordo com Grice o raciocínio de Mackie até agora exposto leva a duas questões: 1) Por que Mackie sustenta que demandas por objetividade seriam incorporadas em julgamentos de valores ordinários? E 2) Por que Mackie acredita que tais demandas sejam falsas?

Alguns pontos preliminares antes de se passar à resposta da primeira questão. Para Grice, Mackie sustenta que uma demanda por objetividade esteja incorporada em um julgamento de valor ordinário. Tal demanda seria, consequentemente, parte do significado de tais julgamentos de valor (ou as sentenças nas quais são expressos). Isso é algo que não parece ser considerado por Mackie: tal inclusão de significado. Logo, para Grice, Mackie não pode afirmar consistentemente que o seu anti-objetivismo não é uma tese sobre significado de afirmações de valores. A única coisa que Mackie poderia afirmar é que sua tese contém uma tese sobre significado dos valores, mas, não estaria restrita a isso.

Para Grice, a visão de Mackie de que uma demanda moral por objetividade seria incorporada a um julgamento de valor ordinário parece repousar, de forma insegura, na seguinte sugestão. A de que há duas alternativas à sua suposição de que julgamentos de valor ordinários teriam a função de introduzir valores objetivos no discurso sobre a conduta e a ação dos agentes: o não-cognitivismo e o naturalismo.

Mackie caracteriza o não-cognitivismo como a visão moral que defende que os juizos morais ou valores não seriam asserções, no sentido de serem acessíveis ao entendimento, mas sim expressões de sentimentos e desejos do agente. O naturalismo, por seu turno, seria a visão moral onde os juízos morais corresponderiam ou seriam redutíveis a objetos naturais. Mackie lembra, de maneira perspicaz, que qualquer uma dessas visões torna inoperante a aparente autoridade da ética.

A referida autoridade da ética repousaria, de acordo com Mackie, nos sentimentos do homem ordinário. Parece que este homem sente certo desconforto com relação à moralidade, que somente seria aliviado quando ele consegue lidar com questões como "tal curso de ação é errado em si mesmo ou certo em si mesmo". Inevitavelmente isso leva Mackie a mostrar que esse sentimento nada mais é do que uma espécie de "objetivismo cotidiano", que afirmaria que as qualidades não-naturais dos juizos morais seriam apenas uma espécie de reconstrução "de filósofo". Por isso, Mackie defende a tese de que os elementos objetivistas estariam embutidos em julgamentos morais ordinários e que estes, seriam falsos. Para tornar ainda mais claro seu ponto de vista, Mackie ainda apresenta mais dois argumentos: o argumento da relatividade e o argumento da estranheza. Passe-se à análise de cada um desses argumentos.

O argumento da relatividade de Mackie baseia-se na premissa de que há diferentes códigos morais entre diferentes sociedades, em diferentes períodos entre grupos ou classes mais complexas e etc. A um primeiro olhar, tais diferenças seriam assunto da antropologia e por si só, não sustentariam nenhuma conclusão ética de primeira ou de segunda ordem. Porém, podem interferir de maneira indireta.

Mackie supõe que é mais plausível pensar que crenças morais refletem modos de vida mais do que qualquer outra coisa é capaz de fazer. Por exemplo, as pessoas que aprovam a monogamia, vivem monogamicamente, ao invés de viverem monogamicamente porque aprovam a monogamia. Tais constatações tornam, na visão de Mackie, muito mais fácil explicar as divergências de valores morais, pois se podem encarar tais divergências como produtos de diferentes modos de vida e não somente como percepções distorcidas de valores morais supostamente objetivos.

O argumento da relatividade proposto por Mackie apresenta-se como uma das suas principais arma contra o objetivismo. Mas Grice pontua que o objetivista poderia contra-argumentar afirmando que as crenças morais divergentes seriam derivadas do resultado da operação de um único conjunto já escolhido de princípios gerais em circunstâncias diversas de aplicação. Contudo, a contra-argumentação do objetivista tende a ruir, pois como lembra Grice, muitas vezes parece que crenças morais divergentes não necessariamente surgiram por derivação de princípios gerais, mas sim, de algo como "senso moral" ou "intuição moral".

O argumento da estranheza como proposto por Mackie é um dos mais importantes para sua teoria. De acordo com esse argumento, para sustentar sua posição, o objetivista postula entidades e aspectos valorativos de tipos completamente diferentes daqueles a que estamos familiarizados. E como não há nenhuma faculdade cognitiva capaz de percebê-los, o objetivista se vê, na imensa maioria dos casos, obrigado a afirmar que possuímos algo como uma "intuição moral" ou "senso moral" capaz de apreender tais entidades, que seriam "estranhas" (Mackie 37-8).

Realizadas todas essas colocações acerca da teoria de Mackie, Grice ocupa-se de refletir acerca de alguns pontos principais, que de acordo com ele, demonstram a fragilidade da Teoria do Erro. Em especial, Grice retoma alguns pontos acerca do objetivismo e em que sentido exatamente Mackie teria tomado o termo, bem como o argumento da "estranheza" e o argumento da relatividade de Mackie, supramencionados.

Há, para Grice, como foi mostrada, uma versão positiva e uma versão negativa do objetivismo. A versão positiva afirma que atribuir objetividade a algo é proclamá-lo como pertencente ao "esquema básico" da realidade. De acordo com Grice, essa parece ser a versão defendida por Mackie. A versão negativa do objetivismo seria, afirma Grice, atribuir objetividade a algo negando que sentenças sobre este objeto sejam redutíveis ou elimináveis (de segunda ordem). Para Grice, Mackie vacilou entre essas duas versões de objetivismo ao formular o seu célebre anti-objetivismo.

Além disso, em uma análise dos argumentos da "estranheza" e da relatividade, Grice afirma não estar convencido de que não existam valores morais objetivos. Com relação ao primeiro argumento, Grice afirma haver dois tipos de "estranheza" não mencionados por Mackie. O primeiro tipo seria dizer que certas propriedades não-naturais seriam consideradas valores que de alguma maneira "misteriosa" se colocariam acima de aspectos naturais e familiares. O segundo tipo de "estranheza" estaria na suposição de que o reconhecimento da presença dessas propriedades não-naturais motivaria ou poderia motivar os agentes sem auxílio de nenhum interesse ou desejo que estes poderiam ter.

Ainda, as "estranhezas" a que Mackie denuncia não seriam, de acordo com Grice "esqueletos nos armários" dos objetivistas, como ele teria proclamado. Estas seriam apenas alguns dos desafios que os objetivistas têm de resolver e até mesmo o próprio Mackie, mesmo que este já tenha se adiantado na resolução dos mesmos. A verdade é que tais desafios ainda não foram esgotados e por isso, salienta Grice, não podem ser jogados como "tijolos contra toda a construção objetivista" (Grice 45).

Para Grice é como se Mackie estivesse dizendo que duvidasse sinceramente da aritmética, pois se tal coisa fosse possível, teria de ser sobre números, e números são coisas muito estranhas, completamente inacessíveis a qualquer observação. Ou ainda, como se Mackie estivesse a pensar algo como "não vejo como o matrimônio possa existir", pois se existisse as pessoas deveriam ser amarrada uma na outra no casamento, e tudo que o que se vê na vida real e no cinema sugere que a única maneira de as pessoas estarem amarradas umas às outras é através de cordas, complementa Grice. Em suma, Grice desqualifica os principais argumentos utilizados por Mackie em sua visão anti-objetivista.

Conclusão

Pode-se concluir a presente análise do primeiro capítulo de Grice "Value and objectivity" de seu livro Conception of value elucidando alguns pontos dignos de nota em seu texto. O primeiro ponto é tornar evidente a escolha de Grice por Mackie para se analisar uma visão anti-objetivista. A opção de Grice por Mackie revela a intenção do primeiro por realmente pôr em cheque a sua própria visão acerca de um objetivismo dos valores. Pois, Mackie é um dos autores mais radicais em ética quando se trata de negar que exista algo como uma moralidade possivelmente objetiva. Mackie sequer admite os valores morais, chegando ao extremo de afirmar não apenas que estes não existiriam, mas que seriam falsos.

Também foram abordados pontos do pensamento de Hare, outro autor chamado à discussão por Grice e citado na obra de Mackie. Pois, se Mackie é radical ao afirmar que os valores morais seriam falsos, Hare também causa certo estranhamento ao afirmar que não haveria diferença substancial nas visões objetivista e subjetivista da moralidade. Grice analisou os argumentos de cada um dos autores (priorizando, evidentemente, Mackie) e mostrou porque não estaria satisfeito com nenhuma das leituras.

Sobre Hare, Grice expõe a análise realizada por Mackie a respeito das ideias do autor e de sua possível resposta ao ceticismo com relação aos valores levantado por Mackie. Mackie apenas expõe em linhas gerais a resposta fornecida por Hare a respeito da objetividade dos valores: a de que não haveria diferença substancial entre objetivistas e subjetivistas. Grice analisa de forma profunda tal colocação de Hare ao reconstruir seu argumento e provar que o mesmo não se sustenta.

A respeito da Teoria do Erro de Mackie, Grice torna evidente seu descontentamento com a argumentação deste. Para Grice, parece que Mackie atribui falsidade a algo sem sentido. Mackie nega o objetivismo, mas precisa do valor objetivamente compreendido para chamá-lo de falso. Talvez, se Mackie tivesse optado por considerar os valores morais como "sem sentido", pudesse escapar de tal crítica, pois poderia argumentar que os objetivistas atribuem sentido a algo que não o possui. Ainda assim, Mackie teria permanecido na esfera de uma teoria do erro.

Além disso, Grice coloca que os argumentos centrais de Mackie, a saber, o argumento da "estranheza" e da relatividade dos valores morais, é na realidade bastante comum e podem ser considerados desafios aos objetivistas e para o próprio Mackie, e não elementos capazes de pôr totalmente em cheque toda uma concepção objetivista da moralidade.



Notas de Rodapé

1 As obras em inglês utilizadas no presente trabalho são uma tradução livre realizada pelos autores.



Referências Bibliográficas

Grice, P. "Value and objectivity". The Conception of value. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 23-45. Print.         [ Links ]         [ Links ]

---. A Linguagem da Moral. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Print.         [ Links ]         [ Links ]